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O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades Durval Muniz de Albuquerque Júnior Universidade Federal do Rio Grande do Norte “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe este grito que ele e o lance a outro; de outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. (Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto)1 Michel de Certeau2 pergunta: o que fabrica o historiador quando faz história? Querendo com isto ressaltar que o que faz o historiador é um trabalho; um trabalho de fabricação de uma narrativa, de um artefato escriturístico; um trabalho de fabricação dos acontecimentos do passado. Querendo com isto dizer que a historiografia é produto de uma operação, de uma atividade de atribuição de sentido aos eventos. A historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria o passado, buscando dar forma à mecânica que azeitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e espaço. Karl Marx3, muito antes de Certeau, já havia falado do motor da história, da mecânica social, da qual caberia ao historiador, usando como instrumento o materialismo histórico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em suas engrenagens mais sutis. Embora tenham escrito seus textos em séculos distintos, Marx e Certeau parecem partilhar algumas metáforas, alguns topos lingüísticos, algumas imagens-símbolo da sociedade moderna, da 1 MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 2 CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A Escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65. 3 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998. sociedade industrial, quando se trata de pensar a atividade do historiador e as tarefas que este teria a cumprir socialmente. Nos dois autores, a historiografia, o texto de história, aparece como produto de uma atividade de manufatura, como uma atividade que remete ao maquínico, mesmo que seja em dimensões distintas: se para Marx as maquinações estavam na ordem social, faziam parte da realidade, do referente, do passado, do qual tratava o historiador; historiador que trazia para o interior de sua narrativa os modos como esta história se produzia e os modos de produção que davam movimento e eram o fundamento mesmo do devir histórico; para Certeau as maquinações se davam na hora da fabricação da narrativa história, esta não descobria na ordem social, no passado, na realidade, uma maquinaria já pronta, engrenagens perfeitamente identificáveis, mas as produzia com a matéria prima da linguagem, montando peça por peça versões do passado, que apareceria como um artefato fruto da indústria do historiador, de sua destreza, de sua perícia narrativa e profissional. Tendo a partilhar e, ao mesmo tempo, discordar desta aproximação entre a atividade do historiador e aquela realizada pelo trabalhador fabril, pelo trabalhador surgido com a grande indústria, pelo trabalhador surgido com a sociedade burguesa e capitalista; aproximação que tem conotações políticas claras e que visa questionar a separação feita pelo mundo moderno entre o trabalho manual e o trabalho intelectual: historiadores e operários seriamos todos trabalhadores, apenas trabalharíamos sobre matérias distintas e produziríamos produtos distintos e valorados socialmente de maneira diferente. Concordo com a idéia de que a historiografia é produto de um trabalho, de um trabalho de atribuição de sentido aos eventos, aos acontecimentos do passado. Concordo que o historiador exerce um trabalho de produção do passado, que este o fabrica como um artefato. Concordo que este exerce uma tarefa de produção de versões para aquilo que se passou, que produz sentido para os tempos, que dá a eles existência e consistência. Mas considero que o trabalho que realizamos não tem o caráter maquínico, o caráter fabril, o caráter plenamente moderno, que as imagens e metáforas usadas tanto por Certeau quanto por Marx parecem indicar. O trabalho do historiador me parece ter mais analogias com o trabalho artesanal do que com o trabalho na grande indústria. O historiador me parece habitar mais um atelier do que um espaço fabril. Considero que a atividade historiadora tem maior proximidade com a paciente e meticulosa atividade manual exercida por tecelões, bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras. Atividades que têm maior proximidade com o universo definido como feminino do que com as atividades fabris identificadas como pertencentes ao universo masculino. Nascido em sociedades onde o trabalho da maquinofatura estava ausente, o saber histórico parece partilhar do universo cultural em que as atividades artesanais eram aquelas que centralizavam as atividades de trabalho e que garantiam a reprodução material da sociedade. Nascido para garantir a reprodução da memória e do poder dos setores sociais dominantes nas sociedades da antiguidade clássica européia, a historiografia parece ter sido pensada e praticada como uma forma de trabalho artesanal que tomava como matéria prima os restos, os fragmentos de narrativas sobre o passado e sobre o presente, que podiam ser recolhidos e submetidos a um trabalho de enredamento, que podiam ser tramados de forma a dar um passado para estes povos e, ao mesmo tempo, permitir que estes restos ganhassem sobrevida e pudessem chegar às futuras gerações, onde exerceriam um papel pedagógico, transmitindo as experiências das gerações passadas, garantindo o aperfeiçoamento progressivo destas sociedades. Se na narrativa homérica Penélope tecia um infindável enxoval enquanto aguardava a volta de seu Ulisses4 amado e ludibriava os candidatos a sua mão real desmanchando toda a noite o que havia tecido, garantindo assim uma espécie de paralisia do tempo, fazendo com que o tempo adotasse uma forma circular tal como a forma da roca que manipulava durante todo o dia, na narrativa de Heródoto5 ele é o tecelão que articula aquilo que viu e aquilo que ouviu sobre o passado e sobre o presente, sobre os gregos e sobre os bárbaros, num tecido que se projeta para o futuro, para que as futuras gerações não esquecessem as maravilhas praticadas por seus antecessores. Ele não narra uma viagem de um personagem lendário, ele é o viajante, que em seu perambular por todas as cidades da península e por cidades e povos desconhecidos vai tecendo, vai urdindo, vai fazendo comque estes pontos desconhecidos se articulem numa geografia inteiriça. Heródoto, o histor, é aquele que conecta povos e lugares que se desconheciam, é aquele que conecta lenda, mito e testemunho, é aquele que articula os tempos, o passado com o presente e este com o futuro6. No seu deambular de viajante e em sua narrativa vai tecendo uma identidade unificada para os gregos, do presente e do passado, e os vais 4 Ver: HARTOG, François. Memória de Ulisses. Belo Horizonte. Ed. da UFMG, 2004. 5 Ver: HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999. 6 Ver: HARTOG, François. Os Antigos, o Passado e o Presente. Brasília. EDUNB, 2003. distinguindo e apartando de outra figura que tece como sendo unificada e homogênea: o bárbaro. Heródoto, herdeiro dos aedos, tece uma narrativa que seja encantadora para os ouvidos, que, assim como o canto das sereias homéricas, possa arrastar os ouvintes para a praça pública, para a ágora, possa produzir o estado de encantamento e, ao mesmo tempo, a sensação de comunhão em um todo. Como uma artesã do patchwork, Heródoto de Halicarnassos costura fragmentos, pedaços de lendas, de mitos, com pedaços de narrativas factuais, de testemunhos, de memórias, dando a este caos sarapintado uma coerência, uma ordem, uma aparente coesão. O seu instrumento de trabalho não é o fuso ou a roca, nem mesmo o cesto ou a ânfora, mas as palavras, a escrita em prosa. O prosear, o contar, o narrar é a arte que permite a tecelagem do passado, ela é a arte que permite inventar o passado7, que permite dar forma aos tempos, que possibilita o registro do que se passou procurando entender-se como se passou. Trabalho de ordenamento e de racionalização do vivido, a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido. O historiador, como a bordadeira, ao final de suas atividades de pesquisa, tem à sua frente uma cesta cheia de documentos, de relatos, de imagens, de escritos, de narrativas, de variadas cores e tonalidades, misturados de forma caótica. É ele, como faz a profissional do bordado, que submete este caos a uma ordem, a um desenho, a um plano, a um projeto, a um molde, a um modelo, que deve ser previamente pensado. Assim como no bordado existirá aquelas laçadas, aqueles pontos, aquelas amarrações, que serão fundamentais para que o desenho se sustente e se faça, na narrativa historiográfica existirá, o que não por mera coincidência se chamará de fio condutor, de fio da meada, o problema, a questão, o objetivo, que deve ser perseguido e deve estar presente durante toda a narrativa. Sem o problema, sem a tese, sem um argumento central a expor e defender, a narrativa historiográfica não perderá seu caráter fragmentário, não passará 7 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007. de uma crônica, de um arrolar de eventos e de suas datações, um amontoado de fatos coloridos, dispersos e dispostos aleatoriamente8. Mesmo que no mundo contemporâneo, mesmo que, desde o século XVIII, paralelamente a implantação da sociedade industrial, da produção maquinofatora, a história tenha passado a reivindicar a condição de ciência, se pensando como um saber metódico, presidido por regras ditadas a partir de um modelo que eram as ciências ditas naturais, buscando tornar-se uma máquina de produzir e dizer a verdade sobre o passado, pretendendo remontá-lo tal como ocorreu, a historiografia não conseguiu superar suas origens artesanais, a narrativa historiográfica não conseguiu expurgar suas dimensões artísticas, literárias e poéticas, o artesanato da e na linguagem9. O historiador não é um trabalhador de linha de montagem, mesmo que muitas vezes nossos sindicatos assim raciocinem; não predomina no trabalho historiográfico, pelo menos até esta data, os modelos fordista ou toyotista de organização do trabalho. O trabalho do historiador ainda se faz, em grande medida, de forma individual e isolada, dentro de seu atelier, de sua casa, de sua biblioteca, de sua sala ou quarto de estudos. O historiador tem uma jornada de trabalho que, em grande medida, ele ainda controla, notadamente se trabalha para o setor público. O historiador obedece a um tempo de trabalho que pode ser bastante extenso, não tendo uma jornada fixa a cumprir, seu trabalho pode se estender por dias e noites inteiras, e sua jornada de trabalho está sujeita a muitas porosidades temporais, tanto pode trabalhar por horas seguidas, como entremear seu trabalho com tempos de descanso ou com outras formas de atividade. O tempo intensivo e sem porosidade que persegue a organização fabril encontra aqui resistências em se instalar, por mais que sejamos convocados pelas agências financiadoras e pelas instituições onde trabalhamos a produzirmos cada vez mais e em menos tempo. Embora necessite, cada vez mais, de um grande número de outros profissionais, e não consiga fazer seu trabalho sem que outros historiadores já tenham escrito sobre seu tema - afinal tal como os galos na madrugada, um historiador sozinho não tece um amanhã -, após a leitura de uma grande quantidade de outros textos, de fazer com eles um trabalho artesanal de pesca, de caça ou mesmo de furto, um trabalho de meticuloso esquartejamento dos textos em notas e fichamentos, é o historiador em sua solidão que 8 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 9 Ver: HARTOG, François. O Século XIX e a História. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. vai costurar todos aqueles fragmentos, fazê-los aparecer como se fizessem parte de um mesmo tecido. Mesmo que pequenos pontos remetam para a barra da página onde estarão suspensas, penduradas, quase caindo, as referências, as notas de rodapé, que procurarão enunciar alguns dos fios que ali foram urdidos, elas terão a função de chamar atenção e legitimar a perícia de quem teceu a trama, pois quanto mais esta não deixar aparecer em sua frente os nós, as amarrações, as laçadas, as linhas arrepiadas e cortadas a dente que compõem o desenho do passado que aparece a nossa frente em sua inteireza e em sua perfeita articulação, mais hábil em seu ofício será considerado o historiador que a tramou10. Embora, como dirá Blanchot11, escrevamos em uma solidão povoada por presenças do presente e do passado, embora muitos espectros venham se sentar conosco em nossa mesa de trabalho, a forja do texto do historiador, tal como a ferramenta feita pelo ferreiro, é produto de seu trabalho individual, de sua habilidade no uso dos instrumentos necessários a elaboração da escritura da história, é ele quem usa sozinho os seus martelos, suas bigornas e seus foles, é ele quem reaquece os fragmentos do passado, quem lhes infunde calor, vida, para que ganhem liga, se soldem, venham a se amalgamarem em um todo, em uma unidade de sentido. Sem o sopro de vida das narrativas historiográficas, as brasas que restaram do fogo das batalhas do passado, das fogueiras das vaidades ou das revoluções, e que jazem ainda crepitando mortiças sob as cinzas do tempo, fagulhas de esperanças, de projetos, de desejos, de sonhos, restos das chamas das paixões e das rebeliões humanas, não voltariam a brilhar, a crepitar, a queimar em nosso tempo, a nossa carne e a nossa consciência. Como dirá Walter Benjamin, o historiador é aquele que tem a função messiânica de colher, como um jardineiro, as últimas flores da esperança que, embora murchas e já sem perfume,ainda teimam em permanecerem balançando sob o vento dos tempos, ainda tremulam como bandeiras que simbolizaram, que foram o escudo e a heráldica, que marcharam a frente dos exércitos de vencidos de todos os tempos12. O historiador é a carpideira que, ao mesmo tempo, chora e louva os mortos, que num gesto de carinho para com os que se 10 GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 11 BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 12 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996. foram, os veste de novo para um ato inaugural, os fazem novamente vir para o centro da sala, para a frente do cortejo, os fazem levantar a fronte e novamente falarem, vociferarem, imprecarem, readquirindo o direito a fala e a dirigir seu próprio enterro, a simularem o controle sobre a versão de sua própria vida, da sua própria memória. A carpintaria do passado, portanto, é obra do historiador, ele é o carpina que de posse dos escombros que o passado deixou, os submete a um trabalho de corte, de rejuntamento, de limagem, de aparas, de encaixe e aprumo que os põem novamente para funcionarem como acesso ao que foi, como porta ou janela por onde podemos espiar ou adentrar a dramaturgia dos tempos idos. O historiador é um padeiro que faz, com aparas das atitudes, dos costumes, das ações das massas, fermentar novas imagens dos tempos, que servem de alimento para nossos sonhos de continuidade, para nossa fome de identidade, para nossa inanição de sentidos para vida, para o estarmos aqui na terra, para a nossa existência finita e ilimitada. A história pode ser delicioso pão que alimenta nossas vaidades, nossa onipotência, nossos preconceitos, que explica e justifica nossas desigualdades e diferenças, mas pode ser também o licor amargo que tragamos para nos darmos conta de nossas veleidades, de nossos crimes, de nossas injustiças, de nossas ignomínias, de tudo que nos amarga a existência individual e coletiva. Historiador, o cozinheiro do tempo, aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural. “Sempre o pirão de farinha da história”13. Farinha moída pelos moinhos do tempo, grãos minúsculos de tempos que podem vir a fazer liga, podem vir a se espessarem, a engrolarem, a se escaldarem, sob a atividade concentrada, vigorosa, da pá do historiador. Pá feita de letras, habilidade narrativa, vórtice da linguagem a tragar, misturar e conectar todos estes grãos de tempo, linguagem a produzir a transubstanciação dos elementos que captura, experiências humanas reexperimentadas, provas novamente provadas, o estranho que se encontra, o sentido que se transporta, metáforas a fazer o trânsito entre o indizível e o dizível, o ontem e o hoje, o assignificante e o significado, o reaquecer do esquecido dando novamente caldo, fazendo vir a tona, emergir, borbulhar depósitos de tempo, camadas de acontecimentos que sedimentadas, que adormecidas no fundo do caldeirão da história, voltam novamente a circularem, a exalarem sentidos e valores, projetos e desejos, voltam a ser o prato do dia. 13 Referência a trecho da música O Fim da História (Gilberto Gil, Parabolicamará, Wea, 1991). O historiador ainda realiza todas as etapas de seu trabalho, aqui o parcelamento das tarefas e a alienação do trabalho ainda não fizeram a sua aparição de forma completa. Embora cada vez mais trabalhemos em equipe e sejam deixadas para os bolsistas de iniciação científica as tarefas mais duras e inóspitas, como levantar, fichar, copiar ou digitalizar aquela documentação coberta de poeira e veneno, infestada de fungos e tomada pelo mofo, aquele jornal que se rasga só de pegar em suas páginas – pois, na oficina da história14 a hierarquia entre mestres e aprendizes também está presente, de forma rigorosa, se manifestando na diferença de remuneração, na hierarquia de poder e saber, no tipo de atividade que cada um exerce, sendo a relação orientador- bolsista uma relação de exploração mascarada pelo caráter pedagógico e educativo de que se reveste, tal como acontecia nas corporações medievais - o historiador ainda detém, ou pelo menos deve deter, o conhecimento sobre todas as etapas que compõem a sua atividade e deve possuir um saber fazer, uma sabedoria, que deve ter nascido da prática, do freqüentar os arquivos, do resumir documentos e bibliografia, do escrever notas parciais, até do redigir o artigo ou o livro. Aprendizes de historiador têm que enfiar a mão na massa, têm que praticar cada etapa do ofício, sob pena de nada aprender. O fazer historiográfico não se aprende apenas nos bancos escolares, não se aprende apenas ouvindo ou lendo como se deve fazer, não se aprende lendo manuais de metodologia ou de técnicas de pesquisa. A formação do historiador tem que ter uma dimensão prática, tem que ser tomada como o que me parece ser, o aprendizado de uma arte, de um artesanato, o aprendizado de um saber fazer que exige treinamento, realização e repetição das tarefas, permanente crítica e aperfeiçoamento daquilo que faz, a busca de uma virtuosidade, de uma destreza manual e intelectual. A historiografia exige o exercitar da imaginação, da capacidade de estabelecer conexões entre os estilhaços do passado, de preencher as lacunas entre os eventos, necessita do exercício da capacidade de ficcionalizar, de intuir articulações naquilo que só nos chega em pedaços. O trabalho historiográfico exige, sobretudo, a destreza narrativa, a capacidade de contar uma boa história, exige o desenvolvimento da capacidade de enredar eventos, de elaborar boas tramas. O historiador, assim como as rendeiras, deve saber conectar os fios, amarrar os nós, respeitando os vazios e silêncios que também constituem o 14 FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, s/d. desenho do passado, o entramado dos tempos. Para fazê-lo deve submeter-se ao treinamento constante da habilidade de desfiar a narrativa, de utilizar as linhas de que dispõe para aí urdir versões do passado, discursar sobre o que ocorreu numa dada época. Como toda habilidade artesanal só se aprende a escrever história escrevendo, praticando, agindo por ensaio e erro, abusando da repetição, buscando o adestramento necessário, elaborando várias versões do mesmo texto, corrigindo-o, rasurando-o, refazendo-o, escrevendo versões sucessivas. Como toda atividade artesanal o trabalho do historiador leva-o a sujar as mãos, implica uma relação corpo a corpo, subjetividade a subjetividade, com o seu material de trabalho. O historiador se mistura e sai com as roupas, o corpo e a alma marcados pelo seu material de trabalho, pelos acontecimentos, pelas vidas e ações que vem a por em cena. Assim como as mãos e o corpo do artesão, a subjetividade do historiador sai calejada ou cheia de cicatrizes de seus encontros com as vidas humanas, com as lutas, com as ilusões e desilusões daqueles que vieram nos anteceder. O trabalho do historiador, nestes tempos que correm, se aproxima do trabalho do lixeiro, a apanhar os restos do que sobrou dos sonhos e grandes projetos e promessas que já pretenderem ser o sentido do processo histórico. O historiador na pós-modernidade é um profissional dedicado à reciclagem das versões do passado, dos sonhos dos homens, das utopias falhadas, das grandes profecias malogradas. É alguém que, de posse das latas e garrafas vazias das grandes promessas da história, agora atiradas num canto, amassadas, enferrujadas, chutadassem cerimônia pelos passantes, as submete a um trabalho de reprensagem, de releitura, de redefinição de sentido e utilidade, versões do passado que depois de passarem por um trabalho de desconstrução, de seleção, de modelagem, voltam a estarem cheias de saber e de sabor, voltam a fazer sentido, voltam a influenciarem a vida dos homens de hoje, que as podem tragar por terem novo valor. A alienação do trabalho tem dificuldade de se fazer presente em nosso ofício. Ao acabar seu trabalho o historiador ainda pode sentir e ver a obra como sua, ele ainda pode colocar acima da capa do livro o seu nome de autor, ainda pode dizer este é o meu livro, o artigo que escrevi, este resumo em anais é de minha lavra. Ele vê seu rosto projetado sobre o que faz, se vê refletido no texto que acaba de escrever, se sente de posse do saber que ali foi plasmado, se sente proprietário daquele texto, até que alguma editora venha comprar a preço vil seus direitos autorais, que passam a pertencer a outro por, pelo menos, cinqüenta anos. Tal como no artesanato, o trabalho historiográfico é marcado pela super- exploração em todas as suas etapas, poderíamos dizer que temos aqui a presença da extração da mais valia absoluta. O texto do historiador tem, como o artefato fabricado por um artesão, valor de uso, mas também, cada vez mais, valor de troca. O escrito do historiador é consumido pelo saber que encerra, pelas informações que veicula, pelas elaborações éticas, estéticas e políticas que formula, pelos modelos subjetivos que fornece, pelo prazer ou fruição que pode oferecer, pelos elementos de identidade e de localização temporal e espacial que constrói, esse é o seu valor de uso. Mas não podemos esquecer que hoje o texto do historiador é também um objeto de mercado, muitos deles visam a atender a demanda que vêm das editoras, das empresas educacionais, da mídia, do público consumidor deste gênero, o que não os tornam necessariamente ruins ou suspeitos. Mas quero chamar atenção para o fato de que, o historiador, tal como o artesão, o produtor direto, realiza, quase sempre, uma troca bastante desigual quando seu produto é colocado a venda. O texto do historiador, como o objeto fabricado pelo artesão, exige muitas horas de trabalho, é um produto que exige um trabalho extensivo, mas que será adquirido por preços que estão muito longe de corresponder ao tempo gasto para sua produção. O mesmo vai dar-se na relação entre pesquisadores e auxiliares de pesquisa, estes realizam as tarefas mais árduas e são remunerados de maneira vergonhosa. O trabalho do historiador, como o de qualquer artesão, se não penaliza o corpo com a intensividade do trabalho fabril, submetendo-o a velocidade da máquina, da linha de montagem, cobra do corpo a submissão a longas permanências em dadas posições, a repetição de dados gestos, a tensão permanente de quem está em estado de criação, de quem está concentrado num trabalho de invenção. Este desgaste excessivo do corpo não é levado em conta na hora de se remunerar seu trabalho, pois este é visto como um trabalho leve, como uma atividade cerebral, mental, que não exige ou desgasta a sua força de trabalho. Como todo trabalho artesanal o ofício do historiador exige atenção para o detalhe, o debruçar-se sobre o material singular e raro que se tem a frente. Como diz Michel Foucault15, a raridade é a característica do que chamamos de fontes para o nosso trabalho. Ao contrário do aguadeiro, quando o historiador vai as fontes não é para encontrar aí abundância e refrigério, mas escassez e trabalho árduo. O historiador é um 15 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 23 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007. bricoleur que tem que dar forma a seus objetos a partir de cacos, de fragmentos, de restos, de rastros, de sinais16. Para por de pé seus sujeitos e seus objetos tem que ser especialista no uso da cola da imaginação histórica, tem que ser um exímio costureiro dos retalhos de tempos que tem em suas mãos, tem que ser um experimentado ventríloquo para tentar falar por aqueles que as vozes já se calaram, tem que partilhar a habilidade da bordadeira para com as linhas coloridas da teoria e da metodologia conseguir dar forma a um desenho, a uma configuração do passado, ordenando o caos dos eventos que deixaram suas marcas em alguma forma de registro. Para os que são aprendizes deste artesanato, que estão dando os primeiros passos para o conhecimento dos mistérios que habitam a oficina da história, queria apelar para que resistamos a fazer da historiografia uma produção industrial ou fabril, uma produção em série, uma produção afeita apenas às leis do mercado, uma mercadoria a mais nas prateleiras repletas de receitas de auto-ajuda. É preciso que reafirmemos o caráter artesanal, artístico de nosso ofício. Não os convido a se tornarem ludistas, não precisamos quebrar as máquinas para que nossa arte de inventar o passado possa ser praticada. Os computadores fazem aquilo que os ordenamos, embora em espanhol chamem-se ordenadores, quem tem o poder sobre eles ainda somos nós. Devemos lembrar que a pretensão de tornar a história uma ciência objetiva, metódica, racional, realista, verista, essencialista é contemporânea a emergência da sociedade capitalista industrial, da sociedade das máquinas e do trabalho fabril. Muitos desejaram ser operários da história, tanto ao escrevê-la, como ao praticá-la, apostando na sua refrabicação, maquinando o desvendamento de suas engrenagens e a mudança da roda que a presidiria, se apossando de seu motor e fazendo nele uma revolução a todo vapor e com muita energia. Homens de ferro e de nervos de aço em busca de implantarem de vez o futuro maquinado, fazendo o processo histórico atingir a máxima aceleração, estabelecendo um corte definitivo com o passado, para estancar num eterno presente, anulando de vez o tempo, este nosso grande inimigo. Apostaram na técnica e na ciência como capazes de trazer a igualdade e a liberdade. Este sonho ruiu, mas como artesãos das cinzas, dos pedaços de muros derrubados e de estátuas caídas dos pedestais, os historiadores são convocados hoje a reunirem o que sobrou destes sonhos, destes desejos, destas ilusões, destas utopias, destas fantasias, e com eles conseguir dar forma a 16 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. novos cenários para o presente e para o futuro. Abdicando de fazer da história uma grande usina de sonhos, mas regando a pequena, modesta, localizada, mas insubstituível flor da esperança que nasce em pequenos canteiros por todo mundo. História que não recusa as migalhas17, mas que com elas tenta pacientemente dar forma as temporalidades, agrupando-as num trabalho poético sobre a matéria da empiria e da utopia. Materialismo poético, mais do que dialético, contrários que não se resolvem em unidades, mas que revolvem as unidades e as unanimidades. História como fabricação de objetos e sujeitos, como invenção incessante de formas para o passado, de tecelagem permanente dos tempos. Trabalho e arte comprometidos com discussões políticas, éticas e estéticas. A oficina do historiador se abrindo para aqueles que foram marginalizados pela sociedade do trabalho e dos trabalhadores, aqueles que nunca foram vistos como sujeitos do passado ou do futuro, aqueles que nunca contaram, aqueles que nunca valeram nada por não se dedicarem ao que seria o fundamento de nossa sociedade: o trabalho. Uma oficina que não mata gatos18, mas aberta a gatos e ratos, aberta a mulheres, crianças, prostitutas, boêmios, ladrões, sodomitas, loucos, bruxas, presos, artistas, saltimbancos, palhaços de ofício e navida. Uma história que não se dirige apenas a razão, a consciência, mas que dá lugar aos sentimentos, aos sentidos, as paixões, aos desejos, aos delírios. Uma história que abandone sua paixão trágica pela desgraça, pelo sofrimento, pela morte. Que não deixe de falar das injustiças, das misérias, da exploração, mas que seja capaz de ver que aí também há o riso, a alegria, a felicidade. Tudo o que desejo é que os leitores deste texto sejam felizes praticando o ofício de historiador, fazendo dele a maior arte que pode ser praticada por cada um de nós, arte bem brasileira, a de driblar com luta, resistência, determinação, coragem, sabedoria e saber todas as situações, forças, relações sociais e de poder, as formulações culturais e simbólicas que nos tentam fazer desistir da vida e de nela ser felizes. Ao poder, ao capitalismo interessa pessoas infelizes, deprimidas, melancólicas porque submissas, submetidas, derrotadas e prontas a comprar a mais nova droga que o mercado oferecer. Façam de seu ofício sua droga diária, faça da história e da arte de tecer o passado seu Prozac de todas as horas e com muito amor e humor vocês resistirão à fábrica de deprimidos que se tornou a sociedade burguesa. Resistam encantando a vida, dando a ela arte e astúcia, tomem ciência de que só fazendo da vida e da história 17 DOSSE, François. A História em Migalhas. São Paulo: EDUSC, 2003. 18 DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1988. uma arte, tanto como fazem os artistas ou como fizemos todos quando meninos, é que seremos felizes. Que vocês sejam, como historiadores, artistas e arteiros, é tudo o que desejo para aprendizes de feiticeiro no atelier da história.
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