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Políticas de enfrentamento ao heterossexismo: corpo e prazer Organizador: Fernando Pocahy Políticas de enfrentamento ao heterossexismo: corpo e prazer Organizador: Fernando Pocahy 1ª edição Porto Alegre, 2010 Políticas de enfrentamento ao heterossexismo: corpo e prazer Organizador: Fernando Pocahy Edição: nuances - grupo pela livre expressão sexual e nupsex - Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (ufrgs) Este livro não pode ser comercializado. Sua distribuição é gratuita. Catalogação-na-Publicação Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BIBPSICO/UFRGS Arte: Luis Gustavo Weiller Editoração de capa: Perseu Pereira Diagramação: BHZ Design P779 Políticas de enfrentamento ao heterossexismo : corpo e prazer / organizador Fernando Pocahy. — Porto Alegre : NUANCES, 2010. 176 p. Resultante do Seminário que guarda o título do livro, e que teve lugar entre os dias 6, 7 e 8 de agosto de 2008 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ISBN 978-85-60658-03-9 1. Homossexualidade. 2. Sexualidade. 3. Gênero. 4. Corpo. 5. Direitos humanos. I. Pocahy, Fernando. II. Seminário Políticas de Enfrentamento ao Heterossexismo (2008 : Porto Alegre, RS). CDD 306.76 Instituições parceiras Igualdade – Associação de Travestis e Transexuais do RS Liga Brasileira de Lésbicas – Região Sul cesec – Centro de Estudos de Cidadania e Segurança (Univ. Cândido Mendes/RJ) clam – Centro Latino-americano em sexualidade e direitos humanos (ims/uerj) acadepol - Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul esp - Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul geerge – Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (ufrgs) nupacs - Núcleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo e da Saúde (ufrgs) nupsex - Núcleo de Pesquisas em Sexualidade e Relações de Gênero (ufrgs) Secretaria Especial dos Direitos Humanos Agradecimentos O nuances – grupo pela livre expressão sexual expressa agradecimento a todas as pessoas e instituições que se engajaram na realização do Seminá- rio Políticas de enfrentamento ao heterossexismo: Corpo e Prazer e que fizeram deste evento um espaço de reencontro e novidade, cuja memória permanece viva nessa publicação. Encorajados pelo apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, através Coordenação Geral de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – lgbt, Programa Brasil sem Homofo- bia, reunimos em Porto Alegre pessoas que, cada uma a seu tempo e mo- mento, dialoga(ra)m e/ ou colabo(ra)ram com a atuação do grupo nuances e/ou que estão presentes no debate acadêmico e militante sobre sexualida- de, gênero e direitos humanos. A oportunidade de realizarmos o evento e esse livro com recursos públi- cos reflete mais do que um momento político. Ela diz respeito aos esforços de muitas pessoas no processo de construção da democracia em nosso país. Gênero, sexualidade e raça/etnia são mais do que temas de sociedade, eles são dimensões políticas sem as quais não podemos pensar o Brasil. Nosso especial agradecimento à sedh pelo financiamento deste proje- to, bem como pela parceria; a Rodrigo Lopes pela curadoria da exposição “Lampião da Esquina” que teve lugar durante o evento; à Universidade Fe- deral do Rio Grande do Sul, em particular à Faculdade de Educação e ao geerge – Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero que não somente acolheram e ofereceram a estrutura para a realização do encontro, mas abriram possibilidades de diálogo com a comunidade acadêmica ao sediar o evento e ao hospedar a exposição comemorativa aos trinta anos Sumário Apresentação • 11 Fernando Pocahy Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil • 13 Júlio Assis Simões Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade • 35 Roger Raupp Rios Políticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporâneo • 45 Sérgio Carrara Pouco saber para muito poder: a patologização do gênero • 61 Berenice Bento Plurais na singularidade – reflexões sobre travestilidades, desejo e reconhecimento • 75 Larissa Pelúcio Impasses contemporâneos do protagonismo lésbico: para além da inversão da sigla • 85 Guilherme Silva de Almeida Políticas para “lésbicas” e para “sapatões”: diversidade, diferenças e o enfrentamento ao heterossexismo • 103 Regina Facchini Respostas do movimento glbt à homofobia e a agenda da segurança pública • 125 Silvia Ramos Sexualidades minoritárias e educação: novas políticas? • 143 Guacira Lopes Louro Educação, heterossexismo e homofobia • 151 Henrique Caetano Nardi de surgimento do Jornal Lampião da Esquina; ao Setor de Apoio a Eventos da Faculdade de Educação, pelo apoio técnico e por todas as gentilezas; e muito particularmente ao Núcleo de Pesquisas em Sexualidade e Relações de Gênero - nupsex/ufrgs que colaborou com a edição deste livro. Nossos agradecimento a todas as instituições parceiras e suas/seus re- presentantes, sem as/os quais este evento não teria encontrado a repercus- são e a notoriedade que se produziram: Igualdade – Associação de Traves- tis e Transexuais do RS, Liga Brasileira de Lésbicas – Região Sul, geerge – Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (ufrgs), nup- sex – Núcleo de Pesquisas em Sexualidade e Relações de Gênero (ufrgs), nupacs – Núcleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo e da Saúde (ufrgs), clam – Centro Latino-americano em sexualidade e direitos hu- manos (ims/uerj), cesec – Centro de Estudos de Cidadania e Segurança (Universidade Cândido Mendes/RJ), Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul e Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul. A todas as pessoas que estiveram presentes nessa jornada deixamos re- gistrado neste livro imagens e vozes de um encontro animado pela ética e pala solidariedade, vigoroso em sua potência de idéias e em seu compro- misso com a democracia e a dignidade humana. Muito obrigada/o! Ativistas do nuances 13Apresentação Apresentação O nuances tem o prazer de apresentar-lhes a publicação Políticas de En- frentamento ao Heterossexismo, resultante do Seminário que guarda o tí- tulo do livro, e que teve lugar entre os dias 6, 7 e 8 de agosto de 2008 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O evento contou com a presença de ativistas, pesquisadoras/res, estudan- tes e representantes da gestão pública, entre outras pessoas implicadas em pensar/viver modos de desafiar as formas culturais e políticas do heteros/ sexismo. Esta ação, entre tantas outras já realizadas pelo grupo nuances, reflete a trajetória de um grupo de ativistas que em seus 20 anos de existência sem- pre buscou promover amplo e radical debate sobre as formas de produção de desigualdade social, denunciando e agindo diante dos processos de nor- malização das possibilidades de experimentação do corpo e das formas de produção de prazer (particularmente a sexualidade). O projeto deste evento foi realizado através de Convênio com a Secre- taria Especial dos Direitos Humanos e articulado a diversas parcerias ins- titucionais em âmbito local e nacional. Este seminário se constituiu como uma estratégia de ampliação e fortalecimento de alianças no campo acadê- mico, militante e de gestão pública. E no instante em que nos dispusemos a refletir e agir diante da imposição dos binarismos, das classificações e dos sistemas de oposição que determinam os lugares que uns e outros/as podem ocupar em nossa sociedade, a partir das representações de gênero e da sexualidade (em interseccionalidade com outros marcadores sociais), acionamos coletivamente (especialmente no debate entre Universidade e Movimento Social) uma crítica às epistemologiasnormativas que cercam o mundo e que dão garantias às diversas formas de exclusão. 15Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil Ao propormos a veiculação do conceito de heterossexismo, amplamente citado e tensionado no evento e presente nos artigos que seguem, não tive- mos a intenção de esvaziar a força política que construímos no movimento lgbt através da palavra homofobia (e de suas particularidades l/g/b/t- fobia). No entanto, o que arriscamos nessa revisão e ampliação do conceito, foi uma forma de evidenciar ainda mais um tipo de violência e de hierar- quização das relações sociais que se produz nos domínios da sexualidade - amalgamada a representações fixas e hierarquizadas de gênero. O heteros/sexismo não diz respeito somente a lésbicas, travestis, tran- sexuais, gueis ou bissexuais. Esta forma de discriminação diz respeito ao modelo de sociedade que vivemos. Ela opera muitas vezes de forma sutil na maioria das vezes, mas por outras em gritante manifestação, trabalhando a conferir inteligibilidade social a partir da suposta naturalidade e evidente status da heterossexualidade. Esta forma compulsória atribui sentidos às formas de viver a sexualidade e o gênero, sendo construída e reiterada “na- turalmente” por discursos científicos, culturais e/ou religiosos fundamen- talistas; discursos estes que criam e favorecem condições para a banalização da violência que se materializa em desqualificações, negligências, descaso, insultos, constrangimentos, agressões físicas, tortura e através de assédios de toda ordem. Não faltam violações de direitos e, terrivelmente, a violên- cia letal nestes jogos de subordinação e de controle da vida. De uma forma mais ampla, um dos efeitos diretos desse tipo de norma e consequente dis- criminação é o enfraquecimento da democracia. Resultado de um ardente e vigoroso debate, trazemos aqui nesta publicação algumas provocações a que pensemos na multiplicidade das formas com as quais nós podemos arriscar alguma virada nestes jogos de assujeitamento- objetificação que envolvem sexualidade e gênero. E nós podemos começar este debate revisitando a história presente em nossas próprias lutas e os desafios sobre o reconhecimento social que desejamos, perguntando-nos como ele se produz e como é negociado em termos de política de identidade. Tenhamos um bom (re)encontro e boas inquetações nesta leitura. Fernando Pocahy nuances/ ppgedu-ufrgs(geerge/nupsex) Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil Júlio Assis Simões1 Escrever sobre a história do movimento lgbt no Brasil é tarefa prazerosa e relevante, mas ao mesmo tempo temerária. Trata-se de cobrir um período relativamente curto, mas também intenso, em que os primeiros grupos de militância homossexual, auto-sustentados e de organização despojada, sur- gidos no final dos anos 1970, deram lugar ao cenário atual de redes nacionais de entidades ativistas lgbt e seus variados vínculos com o Estado e com o movimento internacional. Hoje, o Brasil aparece como o país que mais re- aliza Paradas do Orgulho lgbt, e o movimento lgbt parece ter-se tornado responsável pelas maiores manifestações públicas de massa no País. Devo dizer que minha participação direta nessa história foi bem mo- desta, como membro do grupo Somos, no remoto ano de 1979; e minha maior contribuição ao movimento talvez tenha sido coletar um punhado de assinaturas de meus professores na Faculdade de Filosofia, Letras e Ci- ências Humanas da usp, onde eu era aluno do curso de Ciências Sociais, para um abaixo-assinado em defesa dos editores do jornal Lampião, que então sofriam um processo na Justiça por ofensa à moral e aos bons cos- tumes. É verdade que assisti a dezenas de longas reuniões de grupo, e para isso até estava calejado, tendo em vista as outras tantas dezenas de assem- bléias estudantis que já tinha frequentado naquele agitado final de década de 1970. Mas, depois desse breve período de militância, apenas acompanhei de longe os esforços de vários dos amigos que fiz no movimento, alguns já não mais presentes entre nós, que prosseguiram em várias outras frentes 1 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Antropologia da usp. 16 Júlio Assis Simões 17Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil de batalha, no combate à pandemia do hiv-Aids e nas tentativas de recriar espaços de sociabilidade e discussão sobre homossexualidade e diversida- de sexual. Depois ainda, acompanhei o trabalho militante e investigativo de pessoas mais jovens, alguns quase alunos que viraram grandes amigos, como Regina Facchini, que se tornou uma pesquisadora de referência no campo e com quem fui estimulado a escrever recentemente um pequeno livro sobre esse assunto2. Foi essa experiência e a rememoração por ela pro- porcionada que me deu alento para aceitar esta incumbência, atendendo ao convite dos caros e caras ativistas do grupo Nuances. Não é possível contar a história inteira no espaço que disponho. Só po- derei apresentar contornos dessa trajetória, passando em grandes pincela- das por suas fases, e chamar a atenção para as mudanças sociais e políticas mais amplas que moldaram as formas de organização e atuação do movi- mento. Como todo mundo que fala sobre esse assunto deixa transparecer suas próprias experiências e preferências, vou acabar dando mais espaço à primeira fase do movimento, porque me sinto mais à vontade para falar dela, por tê-la vivido mais de perto. Ainda assim, gostaria também de in- cluir, mais ao final, algumas reflexões em torno do processo contemporâ- neo de constituição do cidadão lgbt como sujeito de direitos e dos desafios que têm sido postos ao movimento atual. Vou adotar aqui a convenção, seguida por vários estudiosos3, de que o desabrochar de um movimento homossexual no Brasil se deu no final da década de 1970, com o surgimento de grupos voltados explicitamente à militância política, formados por pessoas que se identificavam como ho- mossexuais (usando diferentes termos para tanto) e buscavam promover e 2 Julio Assis Simões e Regina Facchini, Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao lgbt. São Paulo: Edtora Fundação Perseu Abramo, no prelo. 3 A literatura disponível converge ao considerar o final dos anos 1970 como marco do surgimento de “movimento homossexual” no Brasil. Ver, entre outros: Peter Fry, Da hierarquia à igualdade: a cons- trução histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982, pp. 87-115; João Silvério Trevisan, Devassos no paraíso. 3ª. ed. Rio de Janeiro, Record, 2000; Edward MacRae. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”. Campinas, Ed. da Unicamp, 1990; Cristina Câmara, Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro, Ed. Academia avançada, 2002; Cláudio Roberto da Silva, Reinventando o sonho: história oral de vida política e homossexualidade no Brasil Contemporâneo. Dissertação de Mestrado. São Paulo, usp, 1998; James Green, Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo, Ed. da Unesp, 2000; James Green, “Mais amor e mais te- são”: a construção de um movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis. cadernos pagu, 15, 2000, pp. 271-295; Regina Facchini, Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro, Garamond, 2005; Gláucia Elaine Silva de Almeida. Da invisibilidade à vul- nerabilidade: percursos do “corpo lésbico” na cena brasileira face à possibilidade de infecção por dst e Aids. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, ims/uerj, 2005; Carlos Figari, @s outr@s cariocas. Belo Horizonte, Ed. da ufmg; Rio de Janeiro, iuperj. 2007. difundir novas formas de representação da homossexualidade,contrapos- tas às conotações de sem-vergonhice, pecado, degeneração e doença. Con- siderando tais características – de aglutinar pessoas dispostas a declarar sua homossexualidade em público e que se apresentavam como parte de uma minoria oprimida em busca de alianças políticas para reverter essa situação de preconceito e discriminação –, podemos dizer que o movimento políti- co em defesa da homossexualidade no Brasil completou 30 anos. O marco consagrado nessa historiografia particular é a formação do grupo Somos, em São Paulo, em 1978, à mesma época em que era lançado o Lampião, jor- nal em formato tablóide que se voltava para um enfoque acentuadamente social e político da homossexualidade. Isso posto, devemos ter em conta que a história das associações de pes- soas que têm a homossexualidade como um aspecto compartilhado em suas vivências é, contudo, muito mais antiga e diversificada no Brasil. Nem sempre essas associações assumiram caráter político e, muitas vezes, nem mesmo tiveram a homossexualidade como foco aglutinador, embora te- nham sido veículos importantes para sua expressão social – como é o caso, por exemplo, dos fãs-clubes de famosas cantoras da música popular, desde a era do rádio até hoje. Não há espaço aqui de retroceder tanto no tempo, e dar a essa “movi- mentação homossexual” do passado o lugar devido. Cabe lembrar, de todo modo, que a década de 1970, que se inicia no Brasil sob o jugo da ditadura escancarada e que corresponde aos nossos “anos de chumbo” – o período mais violento de perseguições, torturas e assassinatos cometidos pelos ór- gãos da repressão política e por seus braços paralelos que faziam cair seu peso sobre os costumes – foi também, paradoxalmente, um tempo de gran- de efervescência artística e de contestação cultural no País, culminando no amplo movimento político de oposição à ditadura, no seio do qual, justa- mente, irá brotar o então chamado movimento homossexual. Trata-se de um momento marcado pela contracultura, pelo desbunde e sua concomi- tante conversão em formas de consumo de massa; pelo reaparecimento do movimento estudantil e sindical; por uma intensa atividade de grupos de esquerda (ainda que na clandestinidade); e pelo surgimento e visibilidade das versões modernas do movimento feminista e do movimento negro. Foi também um tempo em que espaços públicos de sociabilidade homossexual começaram a se tornar mais visíveis e ruidosos, especialmente nas grandes cidades. Tempo de “explosão discursiva” sobre as homossexualidades, para além dos tradicionais jornais caseiros, alcançando a grande imprensa e o 18 Júlio Assis Simões 19Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil mercado editorial. Tempo em que as homossexualidades saíram do armário não só para ir ao bar e à festa, mas também à assembléia e à reunião de pauta. Libertários e despojados O jornal Lampião e o grupo Somos, de São Paulo, são reconhecidos hoje como expressões modelares da primeira onda de ativismo homossexual no Brasil. Formados praticamente ao mesmo tempo, tiveram ambos uma exis- tência curta. Lampião4 durou de abril de 1978 a junho de 1981, publicando 37 edições mensais em pouco mais de três anos de existência. O Somos du- rou um pouco mais, cerca de cinco anos de 1978 a 1983. Mas talvez o grande período para ambos tenha sido o ano e meio, que vai de fevereiro de 1979 a junho de 1980. Essas datas marcam o auge da atuação do grupo Somos. Em fevereiro de 1979 deu-se o seu aparecimento público numa semana de debates sobre “movimentos de emancipação de grupos discriminados” promovida pelos estudantes do Centro Acadêmico do curso de Ciências Sociais da Univer- sidade de São Paulo, quando o grupo foi batizado como “Somos” – nome que, além de suas propriedades palindrômicas, evocava o jornal publica- do pela extinta Frente de Libertação Homossexual da Argentina. Na outra ponta, em junho de 1980, acontecia a principal ação pública dos militantes homossexuais da época: um ato público realizado em frente ao Teatro Mu- nicipal de São Paulo, que reuniu o já então fragmentado Somos e represen- tantes dos movimentos feminista e negro, em protesto contra a repressão policial, capitaneada pelo delegado Richetti, que atingia os principais pon- tos de prostituição e de freqüência homossexual do centro da cidade. Cerca de mil manifestantes seguiram em passeata pelas ruas do centro de São Paulo, naquela que pode ser considerada a primeira manifestação de rua do movimento homossexual no Brasil, e na qual se celebrizaram palavras de ordem inusitadas, como “somos todas putas”, “amor, tesão, abaixo a re- pressão!”; “agora, já, queremos é fechar” e “Ricchetti é louca, ela dorme de touca!” 5. Um pouco antes, uma parte do Somos participara do ato público de comemoração do 1º de Maio, no Estádio da Vila Euclides, em São Ber- 4 O nome completo do jornal era Lampião da Esquina, sendo o complemento “da Esquina” acrescen- tado por questões de registro comercial, já que existia então uma editora com o nome “Lampião”. Os exemplares, porém, estampavam a palavra “Lampião” em letras garrafais, e foi por esse nome que o jornal ficou conhecido. Por isso, me refiro a ele aqui apenas dessa forma abreviada. 5 João Silvério Trevisan, A guerra santa do Dr. Richetti. Lampião, n. 26, julho de 1980. nardo do Campo, no abc paulista, desfilando debaixo de surpreendentes aplausos dos operários presentes – episódio esse que foi o estopim para a cisão do grupo. Esse ano e meio é também talvez o melhor momento do Lampião, ape- sar do inquérito que fustigou seus editores. O jornal aumentava sua tira- gem, melhorava sua distribuição para além de Rio e São Paulo e desenvol- via com o Somos um relação de colaboração bastante estreita, ainda que também tumultuada. O número 10 do jornal (março de 1979) deu grande cobertura aos debates sobre os “movimentos de emancipação”, em que o Somos se assumiu para o mundo. Um texto relatando a experiência de um ano de existência do Somos foi publicado com destaque nas duas primei- ras páginas da edição de número 12 (maio de 1979), na qual a reportagem principal, “Amor entre mulheres”, trazia entrevistas, textos e depoimentos produzidos em grande parte por lésbicas ativistas do Somos. Na edição de número 16 (setembro 1979), a reportagem de capa, “Homossexuais se orga- nizam”, trazia uma entrevista com integrantes do Somos e textos em que o grupo expunha suas metas, organização e métodos. Em contrapartida, integrantes do Somos colaboravam na comerciali- zação do Lampião nos espaços de frequência homossexual de São Paulo, e também distribuindo cópias das edições que continham matérias sobre o grupo, marcadas por um carimbo de cortesia com o número de sua caixa postal. O grupo também formou uma Comissão de Defesa do Lampião, colhendo assinaturas a um manifesto em apoio ao jornal em razão do in- quérito contra o seu Conselho Editorial. O abaixo-assinado em defesa do Lampião e a participação formal do Somos no ato público de comemoração ao Dia de Zumbi, promovido em novembro de 1979 pelo Movimento Negro Unificado foram, aliás, as pri- meiras tomadas de posição política que o grupo fazia em público. Essa re- duzida presença pública não se explica apenas pelas restrições impostas pelo regime militar à liberdade de expressão. O Somos era um movimento muito voltado mais para dentro do que para fora, construído a partir de subgrupos de identificação e reconhecimento, segundo um estilo confes- sional inspirado no feminismo, em que eram importantes os relatos e tro- cas de experiências pessoais entre seus membros. Foi principalmente essa experiência que fez com que o grupo adquirisse grande importância para muitos participantes, que nele encontraram uma fonte crucial de relações de afeto, amizade e apoio emocional, muitas das quais perduraram por largo tempo, ao longo da vida de seus ex-integrantes.20 Júlio Assis Simões 21Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil Lampião e Somos se assemelhavam nas novidades que representavam. Lampião era bem diferente de tudo o que lhe havia precedido em termos de imprensa homossexual no País até então – a começar pelo fato de que reu- nia em seu Conselho Editorial um conjunto de jornalistas, escritores e inte- lectuais de considerável peso na vida cultural brasileira, que emprestavam uma inédita legitimidade à empreitada. Os integrantes do Somos tampouco correspondiam aos estereótipos então vigentes sobre homossexuais. Havia alguns intelectuais e profissionais liberais, ao lado de um número crescente de jovens, muitos dos quais universitários. Trejeitos acentuados ou roupas espalhafatosas não eram a tônica. Na apresentação pessoal, indumentária, postura corporal, gestos e tom de voz, a maioria das moças e rapazes do So- mos não se distinguia do padrão vigente entre sua geração; e, nas reuniões do grupo, a conduta geral não era nada muito diferente do que se via numa assembléia estudantil. Lampião se propunha a “sair do gueto” e ser um veículo pluralista aberto a diferentes pontos de vista sobre diferentes questões minoritárias. Isso foi posto em prática com a publicação de matérias sobre movimento feminista, movimento negro, transexualidade, sadomasoquismo, populações indíge- nas, prisioneiros, ecologia e até mesmo uso de maconha, embora o jornal não tenha sido bem sucedido para atrair mulheres para o seu Conselho Editorial. Lampião também se preocupava com as condições dos que se dedicavam à prostituição masculina e feminina, tendo realizado matérias e entrevistas com travestis, garotas e garotos de programa. Por outro lado, o enfoque informativo, opinativo e politizado de todas essas questões se fazia predominantemente por meio da incorporação da linguagem popular do meio homossexual, com farto uso de palavras como “bicha”, “boneca”, “viado” e equivalentes. O uso dessas palavras considera- das pejorativas causava mal-estar entre vários editores e leitores do jornal enquanto outros, como Aguinaldo Silva, defendiam-no como estratégia para esvaziar seu potencial ofensivo. De modo semelhante, no Somos, muitos defendiam que as palavras “bicha” e “lésbica” deviam ser usadas, como uma espécie de senha de per- tencimento, a fim de “esvaziar” seu conteúdo pejorativo. O grupo, que era predominantemente masculino e não contava com travestis ou transexuais em seus membros, propunha que as assimetrias entre homens e mulheres deveriam ser combatidas, bem como a polarização ativo/ passivo e os este- reótipos efeminado/ masculinizada, ainda que admitindo que isso poderia ser importante no plano das fantasia eróticas. Por outro lado, o uso do lin- guajar do gueto homossexual masculino no tratamento cotidiano não dei- xava de causar tensões entre os ativistas, sobretudo, mas não exclusivamen- te, com as mulheres, e era fonte de longos debates em torno do “machismo” das “bichas”. No Lampião esse tipo de discussão repercutia em textos assi- nados, entre outros, por João Antonio Mascarenhas, que não via com agra- do a atenção que o jornal concedia aos travestis (na época, a palavra sempre era dita no masculino); e criticava travestis e homossexuais afeminados em geral por representarem uma caricatura da “mulher objeto sexual, a mulher cidadã de segunda classe, a mulher idealizada pelos machistas”. Na verdade, havia desacordos e divergências entre editores e colabora- dores do Lampião a respeito de quase tudo. Uma querela em torno dos ter- mos que seriam apropriados para se referir à homossexualidade marcou os primeiros números do jornal. Havia quem fosse contrário ao uso de “gay” por considerá-lo imperialista e alheio à realidade brasileira. Para se ter uma idéia, na entrevista com Winston Leyland (um ativista americano cuja visita ao Brasil, em 1977, acabou funcionando como catalisador para o surgimen- to do Lampião) feita por João Silvério Trevisan e James Green, publicada no número 2 (junho/julho de 1978), o termo gay, que era abundantemente empregado pelo entrevistado, foi traduzido como “entendido”. Outros de- fendiam que a palavra fosse grafada na forma aportuguesada “guei”. No Somos as divergências também eram muitas, e tendiam a ser con- tornadas por meio de processos de tomada de decisão; no Somos tinham por norma o consenso. Uma motivação forte em boa parte de seus inte- grantes era evitar a cristalização de lideranças e incentivar um estilo de ação autogestionário. As coordenações das reuniões gerais, assim como dos subgrupos de identificação e atuação deveriam ser rotativas. Na prática, isso implicava reuniões longas, com uma profusão de debates e dificul- dades operacionais de toda sorte que, paradoxalmente, contribuíam para concentrar as posições de direção em um pequeno conjunto de pessoas com interesse e disponibilidade, que se distinguiam pelo carisma pessoal e pela habilidade retórica. Com a expansão e diversificação do grupo e o decorrente acirramento de divergências, a exigência de consenso passou a ser também um trunfo manipulado por quem se opunha a determinadas propostas ou buscava evitar mudanças de orientação para o grupo. Nessas ocasiões, acusações de “machista”, “fascista” e “autoritário”, termos usados de forma intercambiável e indiscriminada, costumavam ser recursos pode- rosos para conter e calar um oponente, sob a justificativa, um tanto irônica, de que o autoritarismo devia ser combatido em todas as suas manifesta- 22 Júlio Assis Simões 23Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil ções. Também se dizia, com humor, que as decisões no Somos não eram realmente tomadas por “consenso”, e sim por “cansaço”.6 Um dos raros consensos entre os participantes do Somos era o prin- cípio de que o grupo deveria ser exclusivamente formado por homosse- xuais. Estabelecida uma relação de oposição entre hetero e homossexuais, que envolveria uma situação de opressão dos segundos pelos primeiros, considerava-se que os homossexuais, como oprimidos, somente poderiam encontrar a si mesmos, aceitar-se e recuperar sua autonomia estando entre iguais. O suposto, certamente muito discutível, era o de que um ambiente formado por homossexuais seria mais igualitário, assim como as relações homossexuais, por se darem entre “iguais”, seriam menos assimétricas que as heterossexuais. Essa exclusividade homossexual costumava ter um efeito positivo nos subgrupos de identificação e reconhecimento, contribuindo para que os recém-chegados se sentissem menos constrangidos e lidassem melhor com seus próprios sentimentos de culpa e autodepreciação. Essa experiência ad- quiriu grande importância para muitos participantes, que encontraram no grupo uma fonte crucial de relações de afeto, amizade e apoio emocional, que não raro perduraram fora dele. Era bastante disseminado o sentimento de ter encontrado a própria turma, de se considerar “casado com o grupo”. Também eram questionadas a monogamia e a possessividade nos relacio- namentos estáveis. Nem Lampião nem Somos tinham opinião fechada quanto às origens da homossexualidade (referida, na época, como “homossexualismo”). Dis- cussões desse tipo costumavam ser desqualificadas como perda de tempo, já que predominava a visão de que tudo o que fora produzido pela ciência e pela academia a esse respeito seria apenas uma expressão mais asséptica do mesmo preconceito que contaminava toda a sociedade. Uma atitude geral era considerar que a homossexualidade de cada um era algo que dizia res- peito somente aos próprios interessados, e que ninguém – família, escola, Igreja ou Estado – tinha o direito de se intrometer nisso. O princípio de que era preciso reconhecer, aceitar e assumir a própria homossexualidade, dominante nos subgrupos de identificação, reforçava a visão de algo que de alguma maneira era parte essencialda pessoa, uma 6 Baseio-me aqui em minhas próprias memórias desse período, como freqüentador das reuniões gerais do Somos, e de parte das reuniões de seu Grupo de Atuação, de maio a dezembro de 1979. O leitor pode confrontar as avaliações opostas sobre essa dinâmica organizativa, apresentadas respectivamente por Edward MacRae (A construção da igualdade, cap. 5), da qual me aproximo, e por João Silvério Trevisan (Devassos no paraíso, 3ª. ed. parte 5, cap.2). marca inescapável e certamente “incurável”, sobre a qual não se podia ter outro tipo de controle que não fosse o seu reconhecimento. Mas, se no So- mos, como observou MacRae, se costumava “partir do princípio de que a humanidade estaria dividida entre heterossexuais e homossexuais (e tal- vez alguns bissexuais)”, havia também no grupo certa resistência a crista- lizar identidades, tendência essa que foi ganhando força ao longo do tem- po. Afinal, como também ressaltava MacRae, o Somos era um “inusitado e dinâmico espaço para discussões de sexualidade” que arregimentava um conjunto consideravelmente heterogêneo de pessoas onde divergências e conflitos eram freqüentes, assim como as trocas de opiniões e influências. Nesse espaço atuavam vários que adotavam uma noção mais fluida e situ- acional da identidade sexual, e lembravam que a população homossexual não era homogênea, nem do ponto de vista da sua sexualidade, nem de sua vivência mais ampla. Pode-se compreender, assim, que o grupo tivesse concepções divergen- tes em relação a uma série de temas: a natureza da homossexualidade, o significado da bissexualidade, a conduta das travestis, das “bichas pintosas” e das lésbicas masculinizadas. Se, de um lado, o “bissexualismo” era deplo- rado como identidade ou subterfúgio para não assumir a homossexuali- dade, em outros momentos a prática bissexual era elevada ao patamar da subversão suprema de todas as regras. Se travestis,“pintosas”, “fanchas” e “sapatões” eram desvalorizadas como foco de interesse erótico e criticadas por reproduzirem padrões de dominação macho/fêmea, eram também pre- zadas por sua ousadia e autenticidade. Lampião e Somos tendiam a conceber os homossexuais como uma mi- noria oprimida e, portanto, com o interesse comum de reivindicar o direito “a uma existência não mistificada, limpa, confiante, de cabeça levantada”, para usar os termos de um artigo de Darcy Penteado curiosamente inti- tulado “Homossexualismo, que coisa é esta?” – pergunta à qual se evitava oferecer uma resposta definitiva. Uma posição em favor de uma estratégia efetiva de obtenção de direitos homossexuais, no entanto, não era consen- sual nem entre os editores e colaboradores do jornal, nem entre os mem- bros do grupo. A incerta situação política da “abertura”, atravessada por ações localiza- das de repressão policial e terror paramilitar, continha as expectativas em relação aos avanços liberalizantes, o que talvez ajude a compreender por que iniciativas mas pragmáticas em favor de direitos civis pareciam distan- tes nos horizontes da época. É certo que Lampião, o Somos e os emergentes 24 Júlio Assis Simões 25Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil grupos se esforçaram por construir uma pauta de reivindicações que vi- savam combater discriminações sofridas pelos homossexuais na vida civil em geral. Essa pauta seria desenhada por ocasião dos encontros de grupos organizados que ocorreram em 1980. Mas havia também uma divergência mais profunda, que se traduzia numa grande desconfiança não só quanto aos rumos da institucionaliza- ção, mas em relação ao significado da própria atuação política nos mol- des institucionais que voltavam a ser divisados no horizonte. Os debates da época estimulavam o questionamento das posições políticas focadas na centralidade da luta de classes, reivindicando legitimidade a lutas mais específicas. Por conta disso, a emergente política de identidade posta em prática pelos movimentos de feministas, negros e homossexuais gerava uma tensão junto a certos militantes da esquerda, vários dos quais esta- vam aliados às tendências progressistas da Igreja Católica. Para estes, tais esforços minoritários pulverizavam o privilégio que deveria caber à “luta maior” em prol de mudanças sociais e econômicas mais amplas em dire- ção ao socialismo. A esquerda brasileira dos anos 1970 talvez não fosse tão moralista e defensora da família quanto tinha sido nos anos 1950 e 1960; no entanto, boa parte dela ainda via a homossexualidade como uma grave deformação moral. Tanto no Lampião como no Somos havia vários que tentavam reconstituir vínculos entre as duas posições. Na virada dos anos 1980, no entanto, as divergências se acentuaram a ponto de constituir uma polarização extremada, deteriorando as relações entre o Lampião e os gru- pos emergentes, como também dentro do próprios grupos, notadamente o Somos, que sofreu seguidas cisões e foi aos poucos deixando a cena. Uni- dades auto-sustentadas e carentes de recursos, nem Lampião nem Somos se mostraram aptos a enfrentar os desafios trazidos pelos novos tempos de liberalização, redemocratização e crise econômica. Um dos fragmentos do Somos, o galf (Grupo de Ação Lésbica Feminista) seria um dos poucos grupos formados nessa primeira onda movimentalista a sobreviver pela dé- cada de 1980 e chegar aos anos 1990 sob um novo formato de organização não-governamental, que passaria então a ser o modelo para as mais varia- das formas de movimentos sociais, e cuja adoção foi grandemente incenti- vada em meio ao processo de constrição das respostas sociais à pandemia hiv-aids – outro terrível desafio daqueles novos tempos de 1980. A luta diante da Aids O saudoso antropólogo e poeta Nestor Perlongher7 ressaltou, no calor da hora, que a Aids surpreendeu o universo do ativismo homossexual brasilei- ro numa situação paradoxal. Enquanto grande parte dos grupos organiza- dos existentes se desestruturavam, crescia a expansão publicitária do “espe- táculo gay”, fazendo aumentar inclusive a visibilidade das travestis, não só nas ruas das cidades, mas também na grande mídia, para além do carnaval. A transexual Roberta Close, vedete do verão carioca de 1984, o ano da cam- panha das diretas-já, vivia o auge de sua consagração como modelo de be- leza feminina brasileira. Depois de estrelar o videoclipe da canção “Close”, sucesso do compositor popular Erasmo Carlos, seria a principal atração da edição de maio da revista masculina Playboy. Em agudo contraste, no verão de 1985, quando a morte do teatrólogo Luiz Roberto Galizia abalou o meio intelectual e artístico paulistano, a doença já estava instaurada como rea- lidade inexorável. Na segunda metade dos anos 1980 verificou-se uma es- calada de matérias sensacionalistas na imprensa, que ecoavam declarações abertamente preconceituosas de várias autoridades médicas e de políticos ligados a grupos religiosos, assim como aumentava a repercussão a crimes violentos contra gays e travestis8. Perlongher, vítima da Aids, que viria a falecer em 1992, retratou o peso da chegada da doença e de seu impacto sobre as propostas de liberação sexual, como um anúncio do “desaparecimento da homossexualidade”9. Houve, decerto, um deslocamento importante. A epidemia deu ensejo a uma inusitada aproximação entre os ativistas homossexuais e as autori- dades médicas. Cabe ressaltar a importante participação de pessoas que passaram pelo Somos e pelos outros grupos de São Paulo no processo que fez surgir a primeira ong-Aids brasileira, o Grupo de Apoio e Pre- venção à Aids – gapa/SP, em 1985, bem como a resposta governamental configurada no programa estadual de São Paulo, o primeiro criado no País. Sob a direção do médico Paulo Teixeira (que tivera alguma proximidade com o Somos nos seus primórdios), esse programa tornou-se um referen- cial importante de orientação não discriminatória e dedefesa dos direitos dos afetados. Do mesmo modo, antigos militantes de grupos cariocas tive- 7 Nestor Perlongher, O que é Aids. São Paulo, Brasiliense, 1987. 8 Para um retrato vívido desse período em São Paulo, ver Roldão Arruda, Dias e ira: uma história verí- dica de assassinatos autorizados. São Paulo, Globo, 2001. 9 Nestor Perlongher, O desaparecimento da homossexualidade. In: Herbert Daniel et alii. SaúdeLoucu- ra 3. São Paulo, Hucitec, 1993. 26 Júlio Assis Simões 27Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil ram papel importante na formação da Associação Brasileira Interdiscipli- nar e Aids e do Grupo Pela vidda (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids), este formado majoritariamente por soropositivos. Em outros estados da federação foram sendo organizados programas similares, que contavam também com a importante presença de ativistas e ex-ativistas de grupos organizados. A contribuição dos recursos vindos dos projetos relacionados ao com- bate ao hiv/Aids foi muito significativa para a expansão e diversificação do movimento homossexual brasileiro. Esses movimentos já se notam nos anos 1980, que assistiram à intensificação de um ativismo muito menos refratária à ação no campo institucional, mais voltado a estabelecer organi- zações de caráter mais formal e mais focado em assegurar o direito à dife- rença. Formaram-se poucos grupos, mas mais coesos, reunidos cada qual em torno de uma liderança reconhecida, carismática, bem articulada e, não menos importante, dotada dos recursos simbólicos e materiais efetivamen- te capazes de fazer avançar metas e objetivos mais claramente definidos e circunscritos. João Antônio Mascarenhas, articulador inicial do grupo de intelectu- ais que formou o Lampião e fundador do extinto grupo Triângulo Rosa, que durou de 1985 a 198810; e Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, formado em 1980 e ativo até o presente, tornaram-se personagens funda- mentais dessa segunda onda de ativismo homossexual, paralelamente aos vários militantes ativos no período anterior que passaram a se dedicar prio- ritariamente à luta contra a Aids. As propostas encaminhadas pelo ggb e pelo Triângulo Rosa, na déca- da de 1980, já haviam sido delineadas nos primeiro encontro de militantes organizados, mas ambos os grupos destacaram-se exatamente por levá-las adiante, a partir do entendimento comum que a “causa homossexual vinha em primeiro lugar”. O ggb foi o primeiro grupo a pôr em prática, em 1981, a campanha pela retirada da homossexualidade do código de classificação de doenças do inamps, assumindo a sua coordenação e encaminhamento concreto. A mudança foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina em 1985. Foi uma campanha marcante por ter mirado uma das raras ins- tâncias em que se discriminava oficialmente a homossexualidade no Bra- sil e, dessa forma, ter questionado a associação entre homossexualidade e doença que voltava com força devido à Aids. O ggb e o Triângulo Rosa 10 Sobre o Triângulo Rosa, ver Cristina Câmara, Cidadania e orientação sexual, op. cit. encabeçaram outra importante campanha na década, junto à Assembléia Constituinte, pela inclusão da proibição de discriminação por “opção se- xual”, posteriormente renomeada de “orientação sexual”, na Constituição. Por ocasião dessa campanha, temas inéditos, referentes à homossexualida- de, foram debatidos no Congresso Nacional, e João Antonio Mascarenhas falou aos parlamentares na condição de ativista gay. Nessa mudança de orientações políticas, é significativa a introdução do conceito de “orientação sexual”, que passa a ocupar definitivamente o lugar de “opção” no discurso da militância. Durante o processo de elaboração e da defesa da inclusão da não-discriminação da homossexualidade na Consti- tuição, os militantes envolvidos, consultando acadêmicos e profissionais de várias áreas, chegaram a um consenso pela utilização da expressão “orien- tação sexual”. A partir dessa utilização, a polêmica entre homossexualidade como “opção” ou como “essência” deixa de estar tão presente no cotidiano dos grupos. “Orientação sexual” virou uma solução de consenso que permi- tia conferir concretude e legitimidade à experiência da homossexualidade, sem necessariamente entrar em questão sobre suas causas mais profundas, ainda que tenda muitas vezes a reanimar a ênfase em explicações a partir de uma “essência”, inata ou revelada em tenra idade. De outra parte, com a atuação mais pragmática por parte dos grupos ou associações em favor dos direitos civis, a ambigüidade entre a legitimidade da homossexualidade e a valorização de sua face “marginal” tendeu a se desfazer. Em seu lugar, verificou-se uma tendência de depurar a homosse- xualidade de seus aspectos “marginais” de modo a dotá-la de uma imagem pública respeitável, o que excluía uma parte significativa das vivências a ela relacionadas. Isso se revelou, por exemplo, no célebre discurso proferido por João Antonio Mascarenhas no plenário da Assembléia Nacional Cons- tituinte, em 1987, no qual seu autor criticava o preconceito da mídia por não fazer a distinção entre o “homossexual” e o “travesti”, em termos que repetiam a posição que expressara, anos atrás, no Lampião. Expansão e segmentação Foi por meio da ampliação das conexões com os programas estatais de combate ao hiv-aids e às doenças sexualmente transmissíveis, especial- mente a partir dos anos 1990, que se forjaram as condições para expandir e segmentar o movimento. Foi também por meio dessas conexões que pas- 28 Júlio Assis Simões 29Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil sou a preponderar quase definitivamente o modelo das ongs, levando à contenção do número de membros efetivos; à criação de estruturas formais de organização interna; à elaboração de projetos de trabalho em busca de financiamentos; à formulação clara de objetivos e objetos de intervenção ou de reivindicação de direitos; à preocupação com prestação de contas e resultados; à preocupação em ter quadros preparados para estabelecer relações com a mídia, parlamentares, técnicos de agências governamentais e associações internacionais – enfim, a tudo aquilo que consome grande parte da rotina dos atuais grupos e associações do movimento.11 Além das diversas iniciativas de fortalecimento das associações de gays, como o Pro- jeto Somos, que homenageia o famoso grupo pioneiro, os investimentos dos programas de dst e Aids abriram espaço à incorporação paulatina de travestis e transexuais, bem como estimularam decisivamente a organiza- ção autônoma das lésbicas. Em 1993 e 1994 haviam sido realizados dois encontros de “Travestis e Liberados” relacionados inicialmente com as atividades desenvolvidas pela da Associação de Travestis e Liberados – Astral, do Rio de Janeiro. Com o surgimento de novas associações de travestis, esses congressos passaram a ocorrer em outras cidades do país, passando a ser denominados “Encontros de Travestis e Transexuais que Atuam na Luta e Prevenção à Aids”, manten- do a sigla entlaids. Já foram realizadas 14 edições do entlaids, nas quais representantes de travestis e transexuais têm reivindicado mudanças nas ações de segurança pública e acesso à educação e ao mercado de trabalho, além de debaterem questões relacionadas aos serviços de saúde. Organiza- ções de travestis estiveram representadas pela primeira vez no movimento por ocasião do vii Encontro Nacional de Gays e Lésbicas de 1995, realizado em Curitiba. A partir daí, o termo “travestis” foi incorporado ao nome dos futuros encontros nacionais. Desde 1992, vinha ocorrendo um aumento da participação de gru- pos exclusivamente lésbicos nos encontros nacionais do movimento. O vi Encontro, realizado nesse ano no Rio de Janeiro, teve a presença de dois grupos lésbicos. O vii Encontro, em Cajamar (SP) passou a in- cluir o termo lésbicas no seu nome,tendo contado com a participação de quatro grupos lésbicos, todos também de São Paulo. Em 29 de agosto de 1996, foi realizado no Rio de Janeiro o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (senale), a partir de iniciativa do Coletivo de Lésbicas do Rio (colerj). Desde então, foram realizadas seis edições do senale. A data 11 Para uma análise do movimento nos anos 1990, ver Regina Facchini, Sopa de letrinhas?, op. cit. do primeiro senale foi consagrada como “Dia Nacional da Visibilidade Lésbica”. A articulação com a Coordenadoria Nacional de dst e Aids foi fun- damental também para a ampliação da visibilidade e da organização das lésbicas. O primeiro senale resultou da aproximação de lideranças lésbi- cas – até então dispersas, em sua maioria, em grupos mistos (formados por gays e lésbicas ou por feministas e lésbicas) – da Coordenadoria Nacional, com vistas a obter maior visibilidade política a partir do reconhecimento da vulnerabilidade lésbica frente a dst e Aids. A demanda por saúde sexual contribuiu de forma decisiva para produzir uma identidade lésbica eman- cipada da identidade homossexual, abrindo caminho para a emergência e fortalecimento de lideranças em âmbito nacional, o surgimento de novos grupos e a progressiva autonomização do movimento de lésbicas, em torno do eixo formado por saúde, visibilidade e organização.12 O ano de 1995 foi marcado por dois eventos significativos: o viii Encon- tro de Gays e Lésbicas, em Curitiba, quando se deu a fundação da abglt e a realização da 17ª Conferência Internacional da ilga (International Lesbian and Gay Association), no Rio de Janeiro. O viii Encontro foi o primeiro a ser financiado com recursos do Ministério da Saúde, e que reservava uma parte específica para a discussão de questões ligadas ao hiv/Aids, regis- trando um recorde de número de grupos, com presença de 84 entidades, entre elas 34 grupos gays ou mistos, três grupos exclusivamente lésbicos e três grupos de travestis. A Conferência da ilga realizada no Rio (a 17ª. de sua história) contou com cerca de 1.200 participantes. A lista de recursos obtidos por esse evento é ilustrativa da dimensão atingida pelas conexões do movimento. Segundo os registros no Guia Oficial da Conferência, houve apoio do Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de dst e Aids; da Secretaria Esta- dual de Saúde do RJ, por meio da Divisão de Controle de dst e Aids; dos sindicatos dos Bancários e Previdenciários, ambos do RJ, e dos trabalha- dores na Universidade Federal do Rio de Janeiro; do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da ufrj; de duas ongs internacionais ligadas à temática dos direitos humanos; de quatro empresas privadas e de quatro associações brasileiras: a abia e o Grupo Pela vidda (ongs-Aids sediadas no Rio); o ggb e o grupo Dignidade. Mais recentemente, outro passo na direção do fortalecimento das co- 12 Sobre o movimento de lésbicas, ver Gláucia Almeida, Da invisibilidade à vulnerabilidade, op. cit. 30 Júlio Assis Simões 31Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil nexões com o Estado foi dado com o lançamento do Programa Brasil Sem Homofobia, em 2004. A partir de 2005, algumas iniciativas do Programa começaram a ser postas em prática, com os editais para apresentação de projetos voltados ao combate e à prevenção da homofobia, incluindo a oferta de aconselhamento psicológico e assessoria jurídica; e à qualificação de profissionais de educação nas temáticas de orientação sexual e identida- de de gênero. Por fim, mas não menos importante, realizou-se em 2008 uma Confe- rência Nacional glbt inédita, convocada pelo governo federal, com o tema “Direitos humanos e políticas públicas: o caminho para garantir a cida- dania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais”. A organização dessa Conferência foi precedida de reuniões regionais e estaduais, como tem sido o procedimento em relação a outros movimentos articulados em torno de segmentos sociais ou temas específicos. A Conferência foi, desse modo, um momento importante por marcar uma situação em que o mo- vimento tomou decisões levando em conta a um conjunto mais amplo de pessoas identificadas como lgbt, para além dos ativistas. Fica a expecta- tiva que isso possa ajudar a reverter uma tendência de concentração das informações, debates e discussões apenas nos foros virtuais e presenciais freqüentados pelos ativistas. É significativo observar, a esse respeito, que, enquanto os encontros nacionais realizados pelo movimento realizados na segunda metade dos anos 1990, dispõem de registros minuciosos e acessí- veis, são bastante escassas as informações disponíveis sobre os congressos da década de 2000. Conquistas e desafios do presente Em sua trajetória, o movimento político lgbt no Brasil amealhou algumas vitórias significativas e se debateu com resistências poderosas. Gostaria de con- cluir com um breve balanço de antigos e novos desafios que lhe fazem frente. O movimento lgbt tem investido grande esforço na promulgação de leis e na criação de políticas públicas governamentais. As leis estaduais e municipais contra discriminação hoje existentes no Brasil apresentam raios de alcance diferente, especificando penalidades contra discriminação no mercado de trabalho, em contratos de aluguel ou relativas a demonstrações públicas de afeto. Cabe destacar, nesse quadro, a formulação abrangente da lei aprovada no Rio Grande do Sul, que “dispõe sobre a promoção e o reco- nhecimento da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade e preferência sexual”, no âmbito do “respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidadãos”. Outras demandas legais importantes do movimento receberam grande visibilidade, mas esbarraram em obstáculos poderosos. O caso exemplar é o do projeto de Lei no. 1.151/95, de autoria de Marta Suplicy, então deputada federal por São Paulo, sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, apresentado na Câmara dos Deputados em outubro de 1995, na seqüên- cia da fundação da abglt e da realização da Conferência Internacional da ilga, no Rio de Janeiro. Como se sabe, o projeto propunha a união civil como um direito de cidadania fundamentado nas liberdades civis assegura- das pela Constituição. Embora fizesse menção a “vínculos afetivos”, a con- cepção de “união civil” era cuidadosamente distanciada do matrimônio ou das uniões estáveis. O foco do projeto estava na compensação de injustiças relacionadas a histórias de construção de patrimônio em comum entre par- ceiros do mesmo sexo. Mesmo com todos esses cuidados, porém, o projeto já sofreu alterações na formulação original ao ser submetido à Comissão Especial instaurada para sua análise, substituindo “união” por “parceria”, eliminando-se as referências aos “vínculos afetivos” e adicionando o veto a qualquer implicação relativa a adoção, tutela ou guarda de crianças e ado- lescentes, ainda que fossem filhos dos contratantes. O substitutivo acabou não sendo levado à votação, pois seus apoiadores concluíram que não ha- veria apoio suficiente para que fosse aprovado.13 Outra frente de combate do movimento lgbt tem sido a criminalização de condutas repressivas e violentas contra lgbt. Está em debate no legis- lativo um projeto que visa definir “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero”, nos moldes da Lei nº 7.716, que estabelece os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. A resistência ao projeto, expressada sobretudo por au- toridades religiosas cristãs em aliança com psicólogos e médicos ligados a grupos religiosos evangélicos, tem se concentrado nas alegações de cerce- amento da liberdade de expressão (especialmente a liberdade de expressão religiosa) e em reiterados esforços de patologização e criminalização da ho- mossexualidade, por meio de sua associaçãoà pedofilia. Em face das consideráveis barreiras e dificuldades enfrentadas no âm- bito do legislativo e do executivo, o Judiciário tem-se mostrado um campo 13 Para uma análise dos debates em torno desse projeto, ver Luiz Mello, Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. 32 Júlio Assis Simões 33Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil mais favorável à promoção de diretos lgbt. Marcos importantes foram al- cançados no reconhecimento legal de vínculos afetivos homossexuais, para efeitos de herança e direitos previdenciários, assim como na punição de casos de homofobia. Em contrapartida, persistem dificuldades sempre que as questões se encaminham para o terreno do direito de família. As reivindicações pelo direito à sexualidade não-procriativa, que mar- caram boa parte da trajetória do movimento homossexual, convivem hoje com lutas pelo direito à adoção, guarda e cuidado de filhos. No que se refere à adoção, no Brasil, a homossexualidade não é um impeditivo, em princí- pio. Entretanto, a “conjugação homem/homossexual” muitas vezes é vis- ta como incapaz de assegurar os cuidados básicos da criança, por conta dos estereótipos de instabilidade emocional e promiscuidade sexual cola- dos à homossexualidade masculina. Nesse caso, os requerentes costumam ser mais bem avaliados desde que demonstrem capacidade de “maternar”, tida como uma virtude “feminina” por excelência14. A noção de maternida- de lésbica, por sua vez, pode ser vista como inerentemente conflitiva, por amalgamar os estereótipos excludentes da cuidadora zelosa e assexuada e da mulher sexualizada, tida como passional e violenta.15 A visibilidade al- cançada na mídia por autorizações da guarda de crianças a casais de gays e lésbicas ainda não redundou numa política definida a esse respeito, embora tenham sido abertos precedentes importantes. A transexualidade, por sua vez, é um terreno onde os discursos médicos ainda são predominantes e normativos. O acesso a cirurgias de “redesigna- ção sexual”, uma reivindicação do movimento lgbt, está condicionado aos critérios estabelecidos pelas resoluções do Conselho Federal de Medicina em 1997, alteradas em 2002, que definem o “paciente transexual” de for- ma patologizante, como “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou auto-extermínio”. Para se submeter à cirurgia, além do diagnóstico exclusivo de “transexualismo”, é preciso ser maior de 21 anos e submeter-se a acompanhamento psicológico ou psiquiátrico por pelo menos dois anos16. A mudança no registro civil envolve outras dificuldades. Em princípio, so- 14 Cf. Ana Paula Uziel, Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro, Garamond, 2007. 15 Cf. Érica Renata de Souza, Necessidade de filhos: maternidade, família e (homo)sexualidade. Tese de Doutorado. Unicamp, 2005. 16 Em agosto de 2007, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão das cirurgias de redesignação sexual entre os serviços prestados pelo sus, por determinação da Justiça Federal da 4ª. Região (Sul). Entretan- to, o Supremo Tribunal Federal cancelou o procedimento previsto em dezembro de 2007, alegando falta de planejamento e estrutura. mente é permitida uma vez, completado o procedimento cirúrgico. Entre- tanto, cirurgias realizadas fora de programas considerados habilitados têm sido excluídas das solicitações de autorização legal para mudança de nome. Nega-se, assim, um direito fundamental de identidade. Essas frentes de luta retratam não apenas a variedade de questões e demandas no universo lgbt, como também a importância de perseverar na busca de reconhecimento para assegurar direitos e garantias civis fun- damentais.17 Cabe lembrar que essa não é a única tendência seguida pelo movimento, que também se pauta por vezes na reivindicação por direitos especiais, tal como expressa a polêmica proposta em favor de um “estatuto lgbt” aprovada na recente Conferência Nacional. Vou considerar, por fim, algumas questões internas ao próprio movi- mento. Grande parte dos progressos obtidos pelo movimento lgbt deveu- se ao seu processo recente de institucionalização. É certo que não se trata de uma institucionalização equiparável à que desfrutam organizações não- governamentais em outros campos de atuação social e política, tais como meio ambiente, crianças e adolescentes, mulheres ou prevenção a dst e Aids. É como se houvesse uma escala hierárquica de legitimidade e aceita- ção social de temas e sujeitos de direitos, a qual pesa desfavoravelmente em relação aos lgbt. Ainda assim, a trajetória do movimento lgbt mostra de forma eloqüente a interpenetração e a porosidade entre Estado e Sociedade Civil no Brasil. Nesse campo de relações há vantagens, mas também riscos. Abrem-se novos canais para pressões vindas “de baixo” que, entretanto, po- dem também favorecer o desenvolvimento de novas redes de clientela e amortecer o seu potencial crítico. O acesso a recursos tem potencializado enormemente a capacidade de ação política das associações de base e sua articulação produtiva em diferentes planos, mas a disputa por eles também esgarça solidariedades e repõe hierarquias. O movimento se defronta ainda com o desafio de renovar as conexões entre os diversos mundos no interior do próprio universo lgbt. As identi- dades que compõem o movimento têm caminhado progressivamente para a construção de suas próprias demandas e agendas. É ilustrativo disso o empenho com que se busca cunhar novas categorias de vitimização, além da já problemática “homofobia” – tais como “lesbofobia”, “transfobia” e daí por diante. Nota-se, em particular, que é cada vez mais complicada a arti- 17 Sob esse aspecto, cabe chamar a atenção para os importantes trabalhos de Roger Raupp Rios. Ver, por ex., Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2008. 34 Júlio Assis Simões 35Uma visão da trajetória do movimento lgbt no Brasil culação dos grandes focos de identificação e mobilização representados nas noções de orientação sexual e identidade de gênero. A homossexualidade deixou de ser um termo abrangente para se cindir em questões de diversi- dade sexual e questões de diversidade de gênero. Trata-se de um descola- mento que aprofunda uma tendência desde os primórdios do movimento em defesa das sexualidades não normativas, que desestabiliza categorias de “homens” e “mulheres” e de “masculinos” e “femininos” que convencional- mente se estribaram na distinção binária entre os sexos, mesmo quando esses sexos eram pensados como sendo da “alma” e não do corpo. É um fenômeno político e cultural de alcance mais amplo, que transcende o mo- vimento lgbt, mas não deixa de incidir nele de forma aguda, além de trazer uma série de questionamentos também para o movimento feminista. Isso pode ser ilustrado nos esforços de autonomização do movimento trans, por meio de sua construção como voz dissidente, tanto no campo das lutas de gênero quanto no da homossexualidade. Esse estado de coisas parece requerer esforços urgentes na reconstru- ção dos vínculos esgarçados com a crescente segmentação. E também re- quer esforços para renovar as formas de interlocução entre o movimento e aqueles e aquelas a quem pretende representar. Nesse terreno, o movi- mento sofre uma poderosa concorrência do mercado segmentado, que se mostra muito ágil na disputa pelas representações sociais e políticas das identidades em jogo. O mercado é, hoje em dia, uma instância central tanto para a compreensão da normatividade sexual, quanto das formas de sua contestação18. É ilustrativo, a esse respeito, mencionar o episódio de uma campanha recente promovida por um grupo de blogueiros gays de São Paulo, pelo reconhecimento do direito à herança de um amigo cujopar- ceiro de longa data havia morrido repentinamente. A campanha consistia na divulgação de um abaixo-assinado que atestava a relação duradoura do casal e que podia ser assinado em filiais de uma loja de cuecas nos Jardins e no Shopping Center Frei Caneca, bastante frequentado pelo público gay paulistano. O fato de essas pessoas recorrerem a uma loja de cuecas para centralizar a coleta de apoios a um abaixo-assinado e não terem pensado, por exemplo, em procurar uma entidade do movimento lgbt, parece dizer algo não muito alentador sobre a distância desse movimento em relação a suas supostas bases de representação. Diante de desafios tão formidáveis, as melhores esperanças talvez ainda 18 Sobre a relação entre mercado segmentado e o movimento, ver Isadora Lins França, Cercas e pontes: o mercado gls e o movimento glbt. Dissertação de mestrado. São Paulo, usp, 2006. provenham das imagens das Paradas do Orgulho lgbt, onde as diferenças se mostram e convivem de forma estimulante e pacífica no mesmo espaço público. Nelas parece se refazer a expectativa que o movimento lgbt possa atualizar permanentemente a promessa de celebração de identidades ví- vidas, diversas e porosas, sobre um terreno renovado e compartilhado de igualdade. 37Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Roger Raupp Rios1 Introdução Este texto objetiva fornecer um panorama da trajetória dos direitos sexu- ais a partir da perspectiva dos direitos humanos. Para tanto, na primeira parte, aponta os princípios fundamentais que animam o desenvolvimento dos direitos sexuais no cenário internacional, com ênfase nos direitos de liberdade, privacidade, igualdade e respeito à dignidade da pessoa humana. Na segunda, indica as principais tendências e tensões dos direitos sexuais no Brasil. O desenvolvimento dos Direitos Sexuais na perspectiva dos Direitos Humanos A relação entre o direito, entendido como ordenamento jurídico (isto é, o conjunto de instrumentos normativos estatais vigente num determinado momento, englobando atos legislativos e decisões judiciais) e a sexualidade não é novidade. Tradicionalmente, o direito foi produzido como instrumen- to de reforço e de conservação dos padrões morais sexuais majoritários e dominantes. Vale dizer, o direito atuou confirmando determinadas relações e práticas sexuais hegemônicas. Exemplos disto são, ao longo da história, a naturalização da família nuclear pequeno-burguesa, as atribuições de direitos e deveres sexuais entre os cônjuges e a criminalização de atos homossexuais. 1 Juiz Federal. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – ufrgs. 38 Roger Raupp Rios 39Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Com a emergência de movimentos sociais reivindicando a aceitação de práticas e relações divorciadas dos modelos hegemônicos, levou-se à are- na política e ao debate jurídico a idéia dos direitos sexuais, especialmente dos direitos de gays, lésbicas, travestis e transexuais. O surgimento des- tas demandas e o reconhecimento de alguns direitos, ainda que de modo lento e não uniforme, inaugurou uma nova modalidade na relação entre os ordenamentos jurídicos e a sexualidade. Os direitos sexuais devem ser compreendidos no contexto da afirmação dos direitos humanos, ao invés de apartá-los e concebê-los de modo paralelo aos princípios fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nesta perspectiva dos direitos humanos, a trajetória dos direitos sexuais tem enfrentado desafios e originalidade. De fato, conforme a história dos instrumentos internacionais demonstra, os direitos sexuais não foram con- cebidos originalmente de modo autônomo aos direitos reprodutivos. Ao contrario, eles foram entendidos como uma espécie de complemento da idéia de direitos reprodutivos. Efetivamente, a preocupação principal que historicamente orientou a expressão “direitos reprodutivos e sexuais” foi a denúncia da injustiça presente nas relações de gênero e a negação de auto- nomia reprodutiva. Não há dúvida da importância da luta contra a injustiça reprodutiva e entre os gêneros. Todavia, como a reflexão e a prática dos direitos sexuais deixam muito claro, o âmbito da sexualidade vai bem além destas realidades. Esta dimensão da realidade requer a que se leve a sério a liberdade de expressão sexual, direito que é desafiado especialmente diante de resistência ao reconhecimento de direitos de homossexuais, masculi- nos ou femininos, transexuais e travestis. Ademais, a afirmação de direitos sexuais vai além da proteção desta ou daquela identidade sexual (homos- sexual ou travesti, por exemplo) e alcança, inclusive, práticas sexuais não necessariamente vinculadas à condição identitária, como exemplificam as práticas sadomasoquistas e a prostituição. O que importa, portanto, é visualizar os direitos sexuais a partir dos princípios fundamentais que caracterizam o paradigma dos direitos hu- manos, criando as bases para uma abordagem jurídica que supere as tra- dicionais tendências repressivas que marcam historicamente as atuações de legisladores, promotores, juízes e advogados nesses domínios. A partir desta perspectiva, estabelecem-se as bases para, superando-se regulações repressivas, concretizarem-se os princípios básicos da liberdade, da igual- dade, da não-discriminação e do respeito à dignidade humana na esfera da sexualidade. A luta pelo reconhecimento e a promoção dos direitos de homossexuais é um caso emblemático da necessidade de uma compreensão dos direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos. Com efeito, as trajetórias até hoje percorridas neste esforço demonstram como os mencionados princí- pios fundamentais são hábeis a proteger indivíduos e grupos considerados minoritários em face dos padrões sexuais dominantes. Trata-se de afirmar a pertinência da sexualidade ao âmbito de proteção dos direitos humanos, deles extraindo força jurídica e compreensão política para a superação de preconceito e de discriminação voltados contra todo comportamento ou identidade sexuais que desafie o heterossexismo, ora entendido como uma concepção de mundo que hierarquiza e subordina todas as manifestações da sexualidade a partir da idéia de “superioridade” e de “normalidade” da heterossexualidade. Ao longo dos debates sobre diversidade sexual e direitos humanos, são invocados vários direitos: liberdade sexual; integridade sexual; segurança do corpo sexual; privacidade sexual; direito ao prazer; expressão sexual; associação sexual e informação sexual. Neste campo, os direitos humanos cuja invocação se revelou mais capaz de proteger homossexuais em face da homofobia e do heterossexismo foram, basicamente, o direito de privacida- de e o direito de igualdade. Com efeito, decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, exami- nando a lei penal da Irlanda do Norte criminalizadora de práticas homos- sexuais consensuais entre adultos, considerou que tal tratamento viola o artigo 8º da Convenção Européia de Direitos Humanos, onde se garante o respeito à vida familiar e privada (caso Dudgeon v. UK, 1981). Desde então, predomina no direito europeu a compreensão de que o direito humano de privacidade protege homossexuais em face de discriminação em virtude de sua orientação sexual. Relacionado de modo indissociável à privacidade está o direito de liber- dade, mesmo porque a privacidade nada mais é do que uma manifestação, no âmbito das relações interpessoais, do próprio direito de liberdade. Com efeito, o direito de liberdade possibilita aos indivíduos, de forma autônoma, a tomada de decisões quanto aos objetivos e aos estilos de vida. Diante da importância ímpar que a sexualidade assume na construção da subjetivida- de e no estabelecimento de relações pessoais e sociais, a liberdadesexual, que também se expressa como direito à livre expressão sexual, é concreti- zação mais que necessária do direito humano à liberdade. 40 Roger Raupp Rios 41Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Não ser discriminado em virtude de orientação sexual é outro direito humano decisivo para a proteção de homossexuais em face da homofo- bia e do heterossexismo. Tanto na sua dimensão formal (“todos são iguais perante a lei”), quanto na sua dimensão material (“tratar igualmente os iguais e desigualmente os iguais, na medida de sua desigualdade”), o direi- to de igualdade não se compadece com tratamentos prejudiciais baseados na orientação sexual. Desse modo, restrições de direitos não autorizadas em lei (por exemplo, a proibição de manifestações de carinho entre ho- mossexuais idênticas àquelas admitidas para heterossexuais), bem como preterições de direitos fundadas em preconceito (por exemplo, justificar a exclusão de gays e lésbicas da possibilidade de adotar sob o pretexto de da- nos à criança), caracterizam violação do direito de igualdade, diretamente vinculada ao âmbito dos direitos sexuais. A proibição de discriminação por orientação sexual, por vezes, é ex- plicitamente prevista pelo direito. Exemplos disso são as Constituições de países como a África do Sul e do Equador e de Estados brasileiros como Sergipe e Mato Grosso. Na maioria das vezes, o que ocorre é a proibição decorrente da abertura das listas de critérios proibidos de discriminação, que são expressas ao admitir, além dos fatores previstos (raça e origem, por exemplo), quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, iv, da Constituição Federal de 1988). Além disso, nunca é demais salientar que a discriminação por orientação sexual é uma espécie de discriminação por motivo de sexo, o que é vedado textualmente pelo direito. Isto porque a discriminação por orientação se- xual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem alguém dirige seu envolvimento sexual, na medida em que a caracterização de uma ou outra orientação sexual resulta da combinação dos sexos dos en- volvidos. Assim, Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou conduta sexuais. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discrimina- ção; se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos têm sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Contra este raciocínio, pode-se objetar que a proteção constitucional em face da discriminação sexual não alcança a orientação sexual, pois o discrímen não se define pelo sexo de Paulo ou de Maria, mas pela coincidência sexual, tanto que homens e mulheres, nesta situação, são igualmente discriminados. Este argumento não subsiste a um exame mais apurado. Isto porque é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos; ao contrário, é essencial para a caracterização da orientação sexual levar-se em conta o sexo, tanto que é o sexo de Paulo ou de Maria que ensejará ou não a discriminação sofrida por Pedro. O sexo da pessoa envolvida em relação ao sexo de Pedro é que vai qualificar a orientação sexual como causa de eventual tratamento diferenciado. A proteção da dignidade humana é outro direito humano básico com repercussões imediatas para o exercício dos direitos sexuais por travestis, transexuais, gays e lésbicas. Compreendida como o reconhecimento do va- lor único e irrepetível de cada vida humana, merecedora de respeito e con- sideração, este direito humano requer que, na esfera da sexualidade, nin- guém seja vilipendiado, injuriado ou qualificado como abjeto em virtude de orientação sexual diversa da heterossexualidade. Implica também que os projetos de vida, concernentes a tão importante dimensão da subjetivi- dade, não sejam impostos por terceiros ao sujeito, de forma heterônoma, fazendo do indivíduo um meio para o reforço de determinadas visões de mundo, a este externas e alheias. A violação a este princípio tão fundamen- tal no regime jurídico dos direitos humanos é recorrente: basta atentar para os constrangimentos e imposições experimentados por aqueles que não se conformam a valores, costumes e tradições, de ordem secular ou religiosa, que grupos sociais empunham e reclamam submissão. Direitos Sexuais no Brasil: tendências e tensões No contexto nacional, o marco mais significativo sobre diversidade sexual e direitos sexuais é o Programa Brasil sem Homofobia (Programa de Comba- te à Violência e à Discriminação contra gltb - gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais - e de Promoção da Cidadania de Homossexuais), lançado em 2004 pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, a partir de definição do Plano Plurianual ppa – 2004-2007 (brasil, 2004). Trata-se, na suas pala- vras, de programa constituído de diferentes ações, objetivando (a) o apoio a projetos de fortalecimento de instituições públicas e não-governamentais que atuam na promoção da cidadania homossexual e/ou no combate à ho- mofobia; (b) capacitação de profissionais e representantes do movimento homossexual que atuam na defesa de direitos humanos; (c) disseminação de informações sobre direitos, de promoção da auto-estima homossexual; e (d) incentivo à denúncia de violações dos direitos humanos do segmento 42 Roger Raupp Rios 43Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade gltb (brasil, 2004). Antes dele, as duas versões do Plano Nacional de Di- reitos Humanos (de 1996 e 2002) mencionaram o combate à discriminação por orientação sexual, sem, contudo, emprestar ao tópico maior desenvol- vimento. Como dito acima, na trajetória dos direitos humanos, a afirmação da se- xualidade como dimensão digna de proteção é relativamente recente, tendo como ponto de partida, no contexto internacional, a consagração dos di- reitos reprodutivos e da saúde sexual como objetos de preocupação (rios, 2007). Em âmbito nacional, a inserção da proibição de discriminação por orientação sexual iniciou-se em virtude de demandas judiciais, a partir de meados dos anos 1990, voltadas para as políticas de seguridade social (leivas, 2003). Seguiram-se às decisões judiciais iniciativas legislativas, municipais e estaduais, concentradas nos primeiros anos no segundo milê- nio, espalhadas por diversos Estados da Federação (vianna, 2004). Um exame do conteúdo destas iniciativas e da dinâmica com que elas são produzidas no contexto nacional chama a atenção para duas tendências: a busca por direitos sociais como reivindicação primeira onde a diversidade sexual se apresenta e a utilização do direito de família como argumentação jurídica recorrente. Estas tendências caracterizam uma dinâmica peculiar do caso brasileiro em face da experiência de outros países e sociedades oci- dentais, onde, via de regra, a luta por direitos sexuais inicia-se pela proteção da privacidade e da liberdade negativa e a caracterização jurídico-familiar das uniões de pessoas do mesmo sexo é etapa final de reconhecimento de direitos vinculados à diversidade sexual. Além destas tendências, a inserção da diversidade sexual, assim como manifestada na legislação existente, revela a tensão entre as perspectivas universalista e particularista no que diz respeito aos direitos sexuais e à diversidade sexual, de um lado, e à luta por direitos específicos de minorias sexuais, de outro. A primeira tendência a ser examinada é a utilização de demandas reivin- dicando direitos sociais como lugar onde se defendeu a diversidade sexual. Como referido, enquanto em países ocidentais de tradição democrática a luta por direitos sexuais ocorreu, inicialmente, pelo combate a restrições legais à liberdade individual, no caso brasileiro o que percebe é a afirmação da proibição da discriminação
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