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2006 amg O Pensamento estrategico nacio (1)

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O PENSAMENTO ESTRATÉGICO NACIONAL: QUE FUTURO?�
Armando Marques Guedes
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Instituto Diplomático
1.
Queria começar pelo mais evidente. A protecção do território nacional ao longo, e no interior, da única fronteira continental que temos enquanto Estado, continua a ser uma prioridade óbvia. E continuará certamente a sê-lo por muito tempo, visto não serem previsíveis grandes mudanças, para além das que já ocorreram, nesses âmbitos. Tal como o é a defesa das nossas mais complexas fronteiras marítimas, das águas territoriais às zonas económicas exclusivas que nos couberam depois de Montego Bay, em redor da orla litoral do continente e, em pontilhado, à volta dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Em termos também “convencionais”, mas estes desta feita comparativamente recentes, temos agora responsabilidades acrescidas noutros perímetros de segurança e defesa mais instáveis, mais distantes e menos óbvios: os da União Europeia, os do espaço Schengen, e os da NATO. Não são de prever realinhamentos político-geográficos que alterem muito, atenuem, ou esbatam, essas incumbências.
Certo é, porém, que, para Portugal, há umas poucas redistribuições e diversas mudanças com algum peso. Várias delas muito posteriores a 1974 e 1975. Algumas desencadeadas a partir de meados dos anos 90, outras depois de 2001. Com os novos raios de acção das forças aéreas, aero-espaciais e navais norte-americanas e aliadas, em geral os Açores deixaram largamente, pelo menos no plano político-militar puro e duro, de justificar o famoso dictum de Marcello Caetano, segundo o qual “vistos da Europa seremos os últimos, mas vistos da América somos os primeiros”. Mas não totalmente. É verdade que com a implosão da URSS e o fim da ordem bipolar perdemos, em Portugal, o lugar de destaque por definição concedido a uma das rampas de desembarque, que éramos, de forças expedicionárias enviadas a partir do Atlântico para fazer frente, lá para os Pirinéus, às colunas do flanco sudoeste dos famigerados tanques soviéticos, naquilo que iria tornar-se – era um cenário futuro que antevíamos no passado – num dos embates do primeiro dos teatros de operações (a Europa) caso a Guerra Fria aquecesse.
Todavia, com a instabilidade a sul e o integrismo islamista em ascensão, as zonas magrebinas incluídas em Processos como o de Barcelona, ao aumentar a profundidade de campo do nosso perímetro externo de segurança e defesa até, pelo menos, ao Atlas, reinstalaram no palco, enquanto peças com localizações essenciais, os nossos dois arquipélagos atlânticos. Vistos do Atlântico continuamos a ser dos primeiros, sobretudo se, a partir das grandes operações conjuntas da NATO previstas para inícios de 2006, Cabo Verde se vier a tornar numa terceira cabeça de ponte, o que não nos será decerto indiferente. Apesar de ajustes pontuais aqui e ali, a Paz de Westephalia, dir-se-ia, continua viva e de boa saúde.
Mas podemos ir mais longe. Por muito que reconheçamos uma marcada semelhança de família nas diversas reconfigurações de circunstância do velho tabuleiro em que nos habituámos a jogar e a “inscrever lições” [ou a não as inscrever, como nos preveniria José Gil], não são decerto as frentes convencionais mais ou menos clássicas aquilo que vai formatar, constrangendo-a em vários planos, a doutrina estratégica portuguesa, um pensamento hoje numa gestação-transformação imprevisível. Cenários muitíssimo mais atípicos se perfilam no horizonte. Preenchem aí, seguramente, papéis de destaque as deslocalizações e as incertezas induzidas pelos processos de transformação e integração regionais e mundial, bem como a emergência de uma cada vez mais marcada e contestada multiculturalidade interna e externa, numa “aldeia global” eivada de exclusões e para a qual não foram ainda encontradas condições de governabilidade.
Sem pretender advinhar o futuro – coisa que só bin Laden parece conseguir fazer com alguma proficiência e com enorme convicção – é precisamente sobre essas novas “linhas da frente” que me quero deter nesta palestra de fecho de mais uma Conferência em tão boa hora organizada pelo IDN.
Tal como aqueles que me precederam, tenho como tema central o pensamento estratégico para o nosso País. Não queria deixar de fazer a seguinte salvaguarda inicial: ao invés dos conferencistas que me precederam, vou falar pouco da história do caso português, na nossa defesa convencional e na sua evolução estratégica. Não quer tal dizer que não ache tudo isso da maior importância. Mas não é o meu tema. Distribuiram-me como tópico o futuro: foco, por isso, a minha atenção nas novas ameaças que se perfilam no horizonte, alerto para a sua iminência, e derivo daí algumas sugestões.
O pensamento estratégico português – no sentido em que o há e não continuamos a viver naquilo a que o Doutor Salazar chamou famosamente “o milagre permanente” – vai ter de sofrer alterações sérias. Transformações de fundo, embora me não pareça que isso vá fazer abalar muito o “triângulo estratégico” (Europa, relação transatlântica, Lusofonia) que nos acompanha desde há tanto tempo.
Deixem-me ser claro quanto, senão aos motivos, pelo menos aos correlatos das mudanças que creio que se avizinham. Penso em tendências que me parecem inexoráveis, como o crescimento dos conflitos assimétricos no Mundo pós-bipolar saído da Queda do Muro de Berlim. Àparte comentários avulsos que formulo aqui e ali, muitas vezes em rodapé, não me debruço sobre as eventuais causas, ou a mecânica macro, dos conflitos “externos” e “internos” com que, creio eu, vamos deparar cada vez mais. Deixando tais temas para outras núpcias, reflito, antes, sobre a natureza tão sui generis da chamada 4th generation warfare�. Observo com atenção hoje redobrada os novíssimos papéis preenchidos pelas tecnologias de ponta e pelas consequências destas, designadamente no que diz respeito, por um lado, às formas low tech de ataques e, por outro, às mais sofisticadas e muitas vezes very high tech “armas de destruição massiva”. Imagino as turbas de new global warriors� mais ou menos iluminados com que nos defrontamos, encaro com natural apreensão a War on Terror e as periferias ou centros urbanos fragilizados, que tanta dificuldade temos em perceber, encurraladas que estão em zonas cinzentas para nosso desconforto posicionadas a cavalo entre categorias histórico-jurídicas como as de “guerra” e “crime”. Matuto sobre a emergência de actores não-estaduais até há bem poucos anos inesperados e ONGs quantas vezes bem armadas e com agendas tão radicais quão brutais; penso ainda nos mecanismos, cada vez mais visíveis e generalizados, de profissionalização e outsourcing sistemáticos em lugar de uma conscrição e de uma violência antes monopolizadas pelos Estados. Cismo sobre as curiosas estruturas organizacionais e nos processos tácticos de swarming [enxameamento?] hoje em dia retomados em formatos muito mais descentrados, difusos, mas também muitíssimo mais letais e virulentos do que nos bons velhos tempos da provecta guerrilha. Interna como externamente, convivemos com assimetrias económicas, políticas, e demográficas insustentáveis…
Tudo isto é inovação. Pior ainda: neste Mundo pós-soviético em que vivemos todos, forçados tant bien que mal a uma convivência estreita, muitas das battlelines do futuro, como há já alguns anos o previu Samuel Huntington�, irão ter lugar nas nossas “fronteiras internas”, nas nossas cidades e comunidades.
Imagino o futuro, é bom de ver, como uma espécie de imagem caricatural do presente, um devir híbrido, no qual à segurança e defesa clássica se adicionam mecanismos novos e novas ameaças, que começamos já em boa medida a entrever. É daí que vão vir as mais importantes mudanças doutrinais que antevejo no pensamento estratégico português. 
Mas tudo a seu tempo. Dividirei esta comunicação em duas partes de substância. Numa primeira, abordo alguns dos exemplos que considero paradigmáticos das mudanças de fundo a que estamos a assistir no que diz respeito ao enquadramentoestratégico global em que Portugal se vê inserido. Mudanças essas que, naturalmente, não deixarão de influenciar o pensamento estatégico português. A minha tónica, nessa secção inicial, não está colocada na evolução do sistema internacional, nem no andar da globalização, nem sequer na sucessão de conjunturas que têm vindo a redesenhar tabuleiros; fiz isso (ou, pelo menos, tentei fazê-lo) noutros lugares�. Ponho antes hoje e aqui o acento tónico nas configurações muito particulares que algumas novas questões de defesa e segurança têm vindo a assumir nos palcos contemporâneos da última dúzia de anos e sobretudo dos últimos três ou quatro. Num segundo passo, tento delinear aquilo que considero as principais linhas de força das alterações estruturais que, em consequência, há seguramente que levar a cabo em Portugal, ao nível da nossa cultura estratégica, com tudo o que isso implica. Limito-me, no que se segue, a fazer um simples diagnóstico geral.
Concluo, em guisa de clef de voute, e com algum risco, com algumas sugestões muito concretas.
2.
O dia 18 de Agosto de 2005, pelo menos em Bagdade, foi terrível. Vou dar uma ilustração rápida. Num bairro shiita do leste da capital iraquiana, um carro-bomba conduzido por um suicida explodiu perto de uma estação da Polícia, mesmo em frente a uma paragem de autocarro. A hora era de ponta. Dez minutos mais tarde, quando uma multidão se juntou junto ao posto policial para observar a devastação e comentar os esforços frenéticos e desesperados da ajuda civil e militar de emergência que acorreu ao local, um segundo carro pilotado por um bombista suicida entrou pela estação adentro e explodiu por sua vez. A carnificina foi o que podem imaginar. Não tinha, porém, acabado. Uma vintena de minutos mais tarde, quando as vítimas dos dois primeiros rebentamentos foram transportadas para o tristemente célebre Hospital de Kindi e familiares e amigos aflitos convergiram para a porta, um terceiro carro-bomba, ao que parece já lá estacionado há algum tempo, estoirou junto à entrada. Escuso-me de entrar em pormenores. Aproveitando a confusão e o afluxo de forças de segurança ao local, vários outros ataques foram perpetrados, nesse mesmo dia noutros lugares da cidade.
Deixem-me parar um pouco por aqui. E permitam-me que reflita em voz alta. De um ponto de vista táctico-organizacional, há dois traços distintivos particularmente edificantes nesta história.
Em primeiro lugar, note-se, um enorme passo foi dado, em relação ao que até então tinham sido, em Bagdade e no resto do Iraque, resultados avulsos e largamente independentes uns dos outros: os atacantes obviamente dedicaram um esforço substancial ao planeamento da operação, e designadamente no que diz respeito à antecipação dos lugares onde multidões se iriam formar. Os feddayyin que gizaram a operação, claramente não pensaram apenas num acontecimento discreto, mas congeminaram antes o encadeamento de uma série de eventos ligados uns aos outros, e entrosados de tal modo que os warriors pudessem, logo à partida, ter um controlo previsível sobre os resultados finais. O efeito destrutivo, por isso mesmo, foi exponencial, e muitíssimo maior do que teria sido se tivesse havido um só acontecimento, ou se tivessem ocorrido uma série de acções avulsas, seguidas mas desligadas umas das outras. Criaram-se sinergias. A eficácia do ataque não pode, por conseguinte, senão ser medida a partir da mecânica “causal” do como a primeira explosão gerou uma segunda e depois ambas, por seu turno, desembocaram numa terceira, culminando num quase total controlo, de certa forma garantido ab initio, da definição do “campo de batalha”.
Há mais ainda. Uma vez executada esta acção, a lição foi aprendida e, com variantes, nos últimos meses, a receita tem vindo a ser aplicada noutros lugares, designadamente no Afeganistão� e até na Tchechénia�. Voltarei a este ponto relativo aos processos de aprendizagem, tão típicos desta 4th generation warfare – como a apelidam os analistas políticos e militares britânicos e norte-americanos – empreendida pelos new global warriors
Para já gostaria de me debruçar rapidamente sobre um outro traço distintivo e edificante desta história. Até ao momento olhei para a lógica da planificação dos ataques (ou melhor do ataque em várias fases) em si mesmo, enquanto acção objectiva. Vale a pena agora perder alguns momentos sobre a dimensão subjectiva da sequência que narrei. Deste outro ponto de vista, complementar, notem, assim, a enorme preocupação táctica dos atacantes com aquilo que estou tentado a apelidar de previsões psicológicas e sociológicas gerais por parte das vítimas, e nomeadamente com o que só podemos chamar uma “gestão do terror” instilado. Aquilo que salta logo à vista é a devastação moral de maneira patente desejada e certamente bem conseguida.
Por aí, dir-me-ão, nada de novo: com efeito, apesar de tudo é por isso mesmo que consideramos e nomeamos como “terroristas” os grupos que levam a cabo este tipo de actividades. Mas queria dar realce a um aspecto muito específico desta acção concreta em Bagdade de que acabei de falar, a sua dimensão recursiva, se se quiser.
Façamos um fast forward de treze dias, para uma ponte sobre o Rio Tigre, a famosa e ampla ponte Aimmah, que liga Al-Aimmah a Kadhimia, apinhada de shiitas devotos a dirigir-se para uma celebração religiosa que iria ter lugar na outra margem do enorme curso de água. Cerca de um milhão de crentes convegiam para o santuário. Num primeiro momento foram lançadas granadas de morteiro sobre a massa de gente; houve 4 mortos. A mesquita de Kadhimia foi alvejada com rockets: resultado, 36 feridos. A tensão, compreensivelmente, subiu de tom.
O que se seguiu foi muito pior. Ao que foi apurado em entrevistas aos sobreviventes, correu célere um boato entre a multidão aglomerada na ponte e deslocando-se nela a passo de caracol: o boato de que haveria um homem-bomba no meio dos peregrinos (e na parte central da ponte) que se iria autodetonar. A boiada estoirou. Num espaço para todos os efeitos fechado, gerou-se um pânico desenfreado, no qual as pessoas tentaram fugir para os rebordos da plataforma, para tentar escapar à hipotética explosão no meio dela. Face à impossibilidade de ir mais longe num sentido lateral, a multidão fluiu nas três únicas direcções disponíveis: ou saltando da ponte alta para um Tigre profundo, ou tentando correr para trás e para a frente, afunilando-se, em guisa de resultantes, dois movimentos em muitos casos sobrepostos e em muitas vezes em sentidos diferentes, com os consequentes e inevitáveis atropelos sistemáticos.
O resultado foi dramático. Houve 965 mortos no total, uns deles esmagados pela massa humana em movimento, outros afogados ao cairem ao rio em cima dos primeiros que tinham saltado. Um grupo sunita, o Jaysh al-Taifa al-Mansoura, reinvindicou de imediato a acção, congratulando-se com euforia pelo seu sucesso, num site da Internet tido como afecto à al-Qaeda.
Quais as traves-mestras das lições embutidas neste caso a quatro tempos? Do meu ponto de vista, gostaria, para já, de sublinhar uma única: o tipo de “gestão do pânico” patente neste exemplo (e muitos outros haveria, como é óbvio) pode facilmente ser escalado de modo a ampliar, exacerbando-os de forma radical, os efeitos gerados por vulgares ataques bombistas, vulgares no sentido de serem simples, discretos, e casuais. Um domínio propício à aplicação deste princípio pode vir a ser a planificação cuidada do desmembramento de multidões em fuga de uma cidade.
Tal como tivemos ocasião de verificar nas evacuações em Nova Orleães em volta do furacão Katrina, a capacidade que temos de gerir um despejo maciço de pessoas é inadequadíssima, mesmo em condições comparativamente benignas. Numa evacuação desencadeada por um ataque com armas nucleares sujas, ou em resposta, por exemplo, à libertação de biotoxinas, as consequências podem ser inimagináveis: se estivermos perante um inimigo com um conhecimento, ainda que rudimentar, da dinâmica de multidões – o que vimosser o caso nos dois exemplos que dei – o resultado pode ser catastrófico. Por causa de uma falha em cascata do sistema, um conceito a que quererei voltar, uma multidão pode com facilidade e a bastante baixo custo, se se quiser, ser manipulada para fazer muito mal a si própria. Basta, por exemplo, restringir o número de saídas, ou levar a cabo pequenos ataques cirúrgicos no arco da multidão que tenta escapar de uma cidade face a uma ameaça química, biológica ou nuclear, para amplificar em flecha a propagação de impedimentos à fluidez do movimento e, por conseguinte, causar uma subida abrupta no potencial para o caos�.
Tudo isto redunda em histórias edificantes, sem sombra de dúvida. Também aqui há, é bom de ver, processos cumulativos de apredizagem, senão em curso, em todo o caso em potência. Há em acontecimentos destes sérios avisos à navegação, pois trata-se de exemplos empíricos recentes muito concretos e cada vez mais generalizados. Como o mostram cada vez mais casos, de Bagdade a Karachi, e de Seattle a Gotemburgo, Belgrado ou Tblisi, a questão não é se, mas como, quando, e quanto. Nova Iorque, Madrid, Londres, e Paris, aí estão para no-lo demonstrar. O que talvez não seja ainda óbvio é como o demonstram. Nem como para eles nos podemos e devemos preparar, e muito menos o que isso significa para a progressão do pensamento estratégico português.
Mas cada coisa a seu tempo. Regressemos, por ora, ao que podemos generalizar a partir dos casos que conhecemos. No que precede, fiz sempre questão, terão notado, de pôr em evidência mecanismos e dispositivos tácticos de desmembramento acelerado, e largamente auto-induzido, de sistemas complexos. Recuando q.b., queria agora explicar porquê. E, no processo, gostaria de mudar de patamar e de ponto de aplicação. De tácticas de acção político-militar, quero passar rápida e sucintamente à organização, aos arranjos organizacionais dos agrupamentos que as elaboram. Às chamadas networks, as “estruturas em rede”.
A quasi-universalidade de “estruturas em rede” na Natureza testemunha as suas vantagens competitivas; e os consequentes sucessos evolucionários da estratégia de networking contituem uma espécie de “avaliação de desempenho” no quadro maior de uma “gestão por objectivos”, para usar expressões caras aos administrativistas contemporâneos. Dos enxames de abelhas aos bandos de pássaros, passando por sistemas complexos de predação, a organização em rede deu desde sempre amplas provas de eficácia. A generalização das “estruturas em rede” aos sistemas artificiais, construídos com intencionalidade pragmática e instrumental por seres humanos, é uma espécie de consagração dessa eficácia face aos sistemas hierarquizados a que estamos muito mais habituados, nas ordens política, jurídica, económica, tecnológica, ou militar.
Vou mostrar em linhas gerais como e porquê as estruturas organizacionais em rede penetram, desmembram, e em última instância são capazes de fazer desmoronar, sistemas hierárquicos. Progredirei por abordagens sucessivas. Para além das questões militares de que falei, uma óbvia história de sucesso, darei um outro exemplo que vale pelos muitos que poderia aduzir: a Internet.
Deixem-me começar por aqui. Quero falar somente sobre alguns dos numerosos impactos políticos da Internet. Criada pela famosa ARPA norte-americana para garantir comunicações fiáveis mesmo em casos de ataques nucleares maciços ou de precisão, a net tem tido uma capacidade extraordinária de penetração, resiliência, e até de subversão política, ao garantir fluxos regulares e imparáveis de informação que contrariam os esforços de propaganda e clausura informativa levados a cabo pelas elites de tantos dos regimes políticos menos democráticos; e, ao mesmo tempo, através da net estabelecem-se, caracteristicamente, laços cruzados e transversais de solidariedade e participação, que são potenciais portadores e disseminadores de visões e opiniões alternativas às do poder instituído.
Face à ameaça sentida ao seu controlo, aos líderes autoritários ou totalitários restam tão-só duas hipóteses, que vemos da China ao Irão, ao Afeganistão dos taliban, à Coreia do Norte: por um lado, canalizar todos os fluxos de informação que chegam ao território para meia dúzia de servidores sob o seu estrito controlo directo, exercendo aí uma “censura prévia” apertada de sites e conteúdos; e, por outro lado, tentar garantir o monopólio desses seus servidores, ilegalizando, por norma com penalizações severas, quisquer acessos à “rede” por telemóveis ou antenas parabólicas, trancando uns e proibindo liminarmente as outras. Sem grande sucesso, note-se, pois que depressa emergem “anonymous ghost servers” que “mascaram” os Ips dos utilizadores, encancarando a porta ao passar por entre os dedos dos supostos “controladores”. Falando claramente com conhecimento de causa, o Embaixador norte-americano David Gross, que, em meados deste mês de Novembro de 2005 logrou garantir que a atribuição de domain names na Internet, a “governação da Internet”, aos dezasseis “root servers around the world” (as plataformas-redistribuidoras mundiais de base de toda a Internet) continuava nas mãos da empresa americana ICANN, sublinhou sempre com clareza e frontalidade que “the United States has always looked at these things through the prism of freedom of expression”. Ou seja, Gross, defendendo uma “não-excessiva regulamentação” da estrutura descentrada da net, ajudou a garantir a sua não transformação numa estrutura hierárquica. 
Deixando a net, deixem-me dar-vos uma outra ilustração sobre a capacidade pró-activa das estruturas organizacionais em rede. A um nível mais mundano, mais grass-roots se se preferir, uma bastante boa medida da eficácia dos networks é, hoje em dia, a sua generalização às mais variadas formas de acção e participação políticas, um pouco por toda a parte e de maneira cada vez mais acelerada.
Limitar-me-ei aqui a três exemplos, todos eles, penso eu, sobejamente conhecidos: as manifestações e formas de “acção directa anti-hegemónica” da “Esquerda festiva” em Seattle, Gotemburgo, ou Milão, para só listar alguns dos inúmeros exemplos possíveis; motins urbanos como aqueles que ocorreram em Los Angeles e, mais recentemente, em Paris; e, por último, os levantamentos populares pró-Democracia ocidental e liberal na Europa Central e de leste. Todos constituem casos de “subversão” notoriamente eficaz; todos eles como irei mostrar, foram desenhados com compasso e esquadria; e todos se mostram tão acéfalos como localizados nas fronteiras difusas entre a ilegalidade e a “desobidiência civil”, entre a expressão democrática “legítima” e formas nuas e cruas de exercícios voluntaristas do poder. São paradigmas, quero sugerir, de uma espécie de soft low-high tech política. Na economia desta Conferência, desenho estes três conjuntos de exemplos apenas a traço muitíssimo grosso e faço-o só en passant.
Começo, então pelas manifestações anti-globalização, ou por uma “globalização alternativa”. Os movimentos “republicanos comunitaristas” empenhados, em Cimeiras paralelas como as de Porto Alegre, em formas mais “directas” e mais “democrático-participativas” de integração e governação global, formam um estudo de caso particularmente fascinante. Trata-se de uma movimentação global cautelosa e sistematicamente avessa a quaisquer formas doutrinárias ou de controlo e coordenação central. Se o fazem por cautela externa, para evitar uma eventual “decapitação”, ou antes pelo temor interno de um desencadear de processos de “burocratização”, é algo que podemos deixar em suspenso: em todo o caso, alguns dos activistas serão da primeira destas opiniões, outros da segunda, e a maioria de um doseamento compósito de ambas.
De qualquer forma a questão tem sido estudadíssima e discutidíssima pelos activistas e participantes. Entre 2001 e 2003, por exemplo, a prestigiada New Left Review britânica publicou uma dúzia de artigos de alta qualidade sobre o que significativamente intitulou “A Movement of Movements”; a sua leitura, é instrutiva, jáque versam por norma a multiplicação da eficácia político-participativa que resulta desse “descentramento”, designadamente a sua capacidade nos planos de “recrutamento e mobilização”�. Uma outras tónica patente nos estudos produzidos é colocada nas lessons learned e no como progredir organizacionalmente em termos de eficácia, uma eficácia medida, estudiosamente, segundo uma mera lógica pragmática dos “efeitos conseguidos”.
Como seria de esperar, os vários movimentos de activistas têm componentes mais e outras menos radicais. E exibem colorações diferentes, por assim dizer. Vimos em Seattle, em 1999, nas manifestações organizadas pela Direct Action Network contra a reunião da Organização Mundial do Comércio, na altura para grande espanto de todos, uma amálgama de gente variada, a coalescer em agrupamentos genéricos difusos. Em imagens que nos habituámos a contemplar depois, de Gotemburgo a Milão, a Quebec City, a Barcelona, a Florença, a Frankfurt, deparamos com ligas de ecologistas, misturados com bandos menos ordenados de anarco-sindicalistas, frentes de Esquerdas mais clássicas, mesclados com verdadeiras falanges de grupos nacionalistas de Direita, associações sindicais, grupúsculos constituídos por representantes de ONGs e os seus compagnons de route, intelectuais, artistas, defensores dos direitos dos homossexuais, e grupos tacteantes de adolescentes e senhoras e senhores mais velhos, todos misturados a contracenar, nas nossas televisões, em autênticos palcos esotéricos, como que em conglomerados de gente, na sua composição.
A primeira impressão é a de uma multiplicidade, a de um “caos criativo”�. Mas depressa reparamos que os grupos e agrupamentos aparecem e desaparecem, se ligam uns aos outros, se misturam e reconfiguram as suas interligações de uma forma quase líquida. É aí, precisamente, que radica a sua força: na sua capacidade de conduzir uma “guerra” pacifista “em rede” (a Direct Action Network chamou-lhe, na mouche, uma netwar). Em Seattle, em 1999, as acções de rua multiplicaram-se e diversificaram-se. Marchas de protestos tradicionais, organizadas com disciplina linear e rigor pela confederação sindical histórica norte-americana, a AFL-CIO, alternaram com as tácticas violentas de hit-and-run do Black Bloc (sobretudo os ditos Black Box), dos grupúsculos dissidentes Anarchists from Eugene, e da famosa Ruckus Society, com os cânticos e os graffitti que diziam "Remember, We Are Winning!", dos membros da rede Direct Action, bem como com a rapina, em lojas e sobre os passantes de ocasião, levada a cabo por oportunistas com as mais variadas motivações, muitos deles sem quaiquer ligações ao protesto.
Face a esse tipo de exuberância organizacional, chame-se-lhe isso, as autoridades não souberam nunca como nem contra quem reagir, e quando o fizeram foi de tal maneira à toa e à bruta que o Procurador-Geral do Estado de Washington lhes pôs um processo, grupos de advogados preocupados com a defesa de direitos cívicos lhe juntaram outros, e isso mais a patente impotência funcional demonstrada levaram a demissões em rápida catadupa nas complexas estruturas de comando e controlo das autoridades.
O sistema “derreteu”. Num ápice, a projectada Cimeira da OMC falhou no arranque agendado, foi cancelada, e reposta para data e lugar incerto. A surpresa foi geral.
A vitória foi claramente conseguida no plano organizacional e no de comunicação-coordenação comparativa�. Assistiu-se a uma manifestação nítida da supremacia, em quadros confrontacionais, de redes sobre pirâmides, e de sistemas amplos de comunicação “de banda larga” sobre sistemas mais formais e de curto espectro�. Tudo pareceu confirmá-lo: muito mais do que de uma vitória de força, de um recurso a formas de coesão monolítica, motivação abstracta, ou ideologia, tratou-se de uma derrota de estruturas hierárquicas frente a redes policentradas que lhes escaparam por entre os dedos e nelas induziram efeitos devastadores de ruptura em cascata. Por forma a o ir tornando mais explícito, regressarei, naturalmente, a este ponto.
Mas deixem que lance a minha própria rede num arco amplo. Um segundo grupo de exemplos que quero aqui trazer é o constituído por motins, como os de Los Angeles em Abril e Maio de 1992 [no Jurássico, de algum modo], e por aqueles que tiveram lugar nas banlieues de Paris no início deste mês de Novembro de 2005. A uma dúzia de anos de distância um do outro, estes dois levantamentos, em dois Continentes diferentes, mostram a progressão cumulativa interessante e exibem bem a amplificação de eficácia conseguida por um simultâneo adensamento das formas e dos meios de comunicação utilizados e o esbatimento, consequentemente tornado possível, das estruturas organizacionais formais em termos “lineares”.
No dia 29 de Abril de 1992, doze jurados no Tribunal de Sylmar, na área da grande Los Angeles, na California, deram os seus veredictos num caso altamente controverso, o espancamento nocturno, em 1991, acidentalmente filmado por um video-amador, de um jovem afro-anericano, Rodney King, por quatro agentes do LAPD, o desde então desprestigiadíssimo Los Angeles Police Departement. Durante um ano, o caso tinha recebido uma intensa cobertura mediática. A leitura dos veredictos, frente às câmaras de televisão, da NBC, à CBS, à CNN, passando por numerosas cadeias locais de emissão, causou surpresa e indignação generalizadas. Um dos agentes, abertamente racista, foi considerado culpado de “uso excessivo de força”; os outros três foram ilibados. 
De boca a ouvido, a palavra correu rápida em Los Angeles. No princípio dessa mesma tarde, motins explodiram em múltiplos pontos da cidade, de forma descoordenada e espontânea, de maneira regular mas curiosamente imprevisível. A violência urbana durou três longos dias. Jornais e televisões, rádios, e a nesse tempo ainda incipiente Internet, mantiveram sempre toda a gente actualizada sobre o andar da carruagem. Tudo isto deu azo a mimetismos e imitações de todo o tipo, aquilo a que os anglo-saxónicos chamam copycatting. A que ponto é que tal resultou, no fundo, da existência de valores partilhados e fluiu de uma indignação comum sentida por muitos, é coisa que em boa verdade ninguém sabe. Conhecemos, todavia, as reacções desencadeadas e as consequências.
O então Mayor Tom Bradley impôs na cidade um recolher obrigatório, e escolas e lojas foram fechadas. O preço foi altíssimo: mais de 50 mortos, alguns deles de formas absurdas; contabilizaram-se mais de 4.000 feridos, muitos deles graves, largas secções da cidade foram incendiadas, passantes eram indiscriminadamente atacados nas ruas, houve 12.000 presos e mais de um bilião de dólares em propriedade destruída. O Governador do Estado da Califórnia, Pete Wilson, enviou 4.000 militares da National Guard patrulhar as ruas. Um número incontável de lojas foi assaltado.
A violência não teve nem líderes nem instigadores óbvios no terreno�. Se os teve, e algumas indicações há de que, ainda que de maneira vaga e difusa, os pode ter de facto havido, certo parece ser que não houve coordenação hierárquica. O controlo, se o houve, foi levado a cabo por, ou em relação a, um dispositivo, ou a dispositivos, exteriores e não internos e superiores; descentrou-os. Outro ponto a que irei voltar.
Voltemo-nos agora para Paris, avançando treze anos. Estamos em Novembro de 2005. É com toda a probabilidade demasiado cedo para avaliar os acontecimentos ocorridos em Paris no início deste mês. Uma causa aventada foi a morte acidental, por electrocução, de dois jovens, um magrebino de origem, outro de cepa negro-africana, ambos cidadãos franceses, quando fugiam do que pensaram ser uma perseguição da Polícia.
Um dia depois, os ânimos irromperam. Sem embargo de hipóteses que foram insinuadas de que os jovens amotinados seriam teleguiados por caïds locais da droga, ou por ulemas muçulmanos, os motins que se seguiram parecem antes ter tido um carácter espontâneo e policentrado. As numerosas entrevistas que ouvimos de jovens enragés versão 2005, sugerem-no sem quaisquerambiguidades. A incapacidade quasi-radical das autoridades em prever, conter, ou decapitar, os movimentos insurgentes aponta na mesma direcção.
O recolher obrigatório foi rapidamente imposto, primeiro por doze dias e depois, por decisão do Conselho de Estado, enquanto fosse preciso. Milhares de jovens foram encarcerados, e muitíssimos milhares de carros, autocarros, camiões, e edifícios incendiados. Claramente sem compreender muito bem os contornos ou sequer os motivos do que se passava, Dominique de Villepin, o Primeiro-Ministro, reagiu mal, de forma pouco “politicamente correcta”, e o Ministro do Interior, Nicolas Sarkosy, pior, insultando os manifestantes (a que chamou la racaille) e porventura até propiciando um agravamento das tensões. O Presidente Chirac manteve-se prudentemente na sombra. A demonstrar o nível de incompreensão com aquilo que estava a acontecer, um Ministro em exercício explicou na RTF que os distúrbios resultariam – é extraordinário – das prácticas poligâmicas dos pais dos manifestantes, que teriam como inevitável consequência a ausência de figuras masculinas no imaginário dos jovens. 
E, de facto, a situação não parecia fácil de perceber. As analogias possíveis eram ténues. Em Maio de 1968, também em Paris, viaturas eram queimadas como símbolos do capitalismo; em Novembro de 2005, foram-no porque estavam à mão.
Aquilo que sabemos é que as autoridades francesas depressa encerraram “centenas” de blogs na Internet, que serviam de mecanismos de mobilização e definição táctica; para tal foram contratados, de escantilhão, “várias centenas” de técnicos especialistas em informática. Mecanismos difusos e frugais de “command and control” bem mais eficaz, de um ponto de vista de “coordenação comunicacional”, chamemos-lhe isso, do que transmissões televisivas ou por telefonia, media esses que, em todo o caso, também foram acompanhando o desenrolar dos acontecimentos. Porventura não independentemente de tanto, os distúrbios duraram três semanas e não três dias, como em Los Angeles: as autoridades francesas raramente descobriam, e muito menos apanhavam, fosse quem fosse.
Sabemos ainda que diversíssimos chatrooms da web foram utilizados através de servidores estrangeiros, e que telemóveis e SMSs constituíram armas de eleição. Digo bem, armas: pois, por estes meios, os insurgentes lograram a enorme vantagem, da maior utilidade nos labirintos complexos de ambientes urbanos, de conseguir tirar e comunicar uns aos outros retratos, e retratos em realtime, em tempo real, dos “campos de batalha”.
Por outras palavras, por um lado ampliaram o seu efeito de surpresa, E, por outro, reduziram drasticamente, perante um adversário – as forças da ordem – que o não soube fazer, a opacidade induzida pela famosa “névoa da guerra” sobre a qual escreveu há tantos anos von Clausewitz.
Um terceiro e último exemplo é o dos muito recentes movimentos pró-Democracia na Europa Central e na antiga Europa de Leste. Com um sinal político oposto, estes derradeiros exemplos têm uma curiosa semelhança de família com os dos “republicanos comunitaristas anti-globalização”. Viram-se executados de modo a ser descentrados, espontâneos no sentido de imprevisíveis q.b., e estiveram ordenados tão-só segundo uma lógica pragmática dos “efeitos conseguidos”. Foram, curiosamente, assim desenhados, e desenhados também com compasso e esquadria. Identificaram “pilares” nodais do poder instituído, e foram-nos erodindo com instrumentos vários, de vários lados, e a ritmos sincopados mas inexoráveis.
Toco rapidamente em dois casos: os da “Revolução da Violeta”, que na Sérvia depôs, em 2000, Slobodan Milosevic, e na “Revolução da Rosa” que, em Tblisi, na Geórgia, levou, em finais de 2003, Edvard Schevardnadze a uma demissão precipitada.
As histórias, mais uma vez, são altamente instrutivas. O Otpor! (em sérvio, Resistência!), foi um movimento pró-Democracia criado em meios universitários sérvios em Outubro de 1998, geralmente acreditado como de grande impacto instrumental na longa luta que, durante grande parte do ano 2000, levou à queda (e eventual prisão e envio para o Tribunal da Haia) de Slobodan Milosevic. Constituído como resposta às leis universitárias e de controlo de mass media altamente repressivas do ditador sérvio, o Otpor!, de início restrito à Universidade de Belgrado, logo depois dos bombradeamentos da NATO contra posições governamentais e estratégicas na ex-Ioguslávia, nomeadamente no Kossovo e nos principais centros industrais e linhas de comunicação estaduais, depressa encetou uma campanha política contra o Presidente do país. A repressão pelas forças da ordem foi tão violenta quanto o permitiam a presença de jornalistas estrageiros directamente ligados ao Mundo por canais de comunicação virtualmente impossíveis de controlar: cerca de 2.000 activistas foram rapidamente presos e muitos outros brutalmente espancados.
Mal Milosevic, em Setembro de 2000, deu início à sua campanha presidencial com vista a uma re-eleição, o Otpor! lançou com garbo e firmeza inexorável a célebre campanha "Gotov je" (Ele Acabou), um nome tirado das centenas de milhares de graffitti que de um dia para o outro inundaram as cidades sérvias. O descontentamento sérvio com a conjuntura foi mobilizado e Milosevic derrotado. Uma combinação complexa de greves, protestos, abaixo-assinados, acções-relâmpago nos media, e publicitação e coordenação policentrada e acéfala causou uma óbvia desorientação terminal nas hierarquias e sedes do poder político-militar sérvio.
Face ao estrondoso e altamente inesperado sucesso conseguido na ex-Ioguslávia, autênticos clones do Otpor! começaram a surgir quase de imediato. Associações cívicas de juventude, em tudo semelhantes, emergiram na Geórgia, designadamente o Kmara, o Pora na Ucrânia quando das eleições presidenciais de 2004, em que o seu candidato, Viktor Yushchenko, apesar de uma tentativa de envenenamento que o desfigurou, acabou por ganhar, o Zubr na Bielorússia contra o Presidente Alexander Lukashenko, e o Mjaft!, na Albânia. Os passos seguidos, em todos estes casos, foram virtualmente idênticos, mutatis mutandis.
Et pour cause. Os processos de ensino-aprendizagem foram densíssimos. Alguns “líderes” activistas estudantis anónimos do Otpor! sérvio foram, em Março de 2000, para o Hotel Hilton de Budapeste, na Hungria, a convite do International Republican Institute, um think-tank norte-americano. A algumas centenas de metros, também nas margens do Danúbio, outros estudantes da Universidade de Belgrado ficaram alojados no Hotel Marriott, a expensas do National Endowment for Democracy, uma entidade semelhante.
Parte da organização de tudo isto coube à Open Society Institute, fundada e liderada por George Soros, o filósofo-milionário doutorado em Filosofia Analítica por Sir Karl Popper na London School of Economics. Nos hotéis que referi os estudantes-activistas assistiram a Seminários, coordenados por académicos e militares, em que pontificou o Coronel Robert Helvey, duplo veterano do Vietname, um conhecido especialista e autor de formas de resistência não-violenta um pouco por todo o Mundo, da Birmânia a vários Estados latino-americanos. Um teórico-operacional de peso.
O guru intelectual do Coronel Hervey é Gene Sharp, um Professor norte-americano de Ciência Política inicialmente em Harvard, no Center for International Affairs (onde permaneceu durante trinta anos), e agora Senior Scholar na Albert Einstein Institution em Boston, Professor Emeritus em Dartmouth, também no Massachusetts, e autor de diversos estudos teórico-prácticos� sobre o empowerment activo da sociedade civil, que foram rapidamente traduzidos para sérvio.
As receitas de Sharp e Hervey, e a destreza dos estudantes em aprendê-las e em as rentabilizar no terreno, tiveram um efeito devastador nas ditaduras sobre as quais se debruçaram. As coberturas sistemáticas e contínuas da CNN e da BBCWorld, que transmitiram as imagens para todo o Mundo, também. A Internet e telemóveis, a web e os ubíquos SMSs foram de novo instrumentosde eleição. Uma vez que as tácticas gizadas tomaram uma prise sobre as conjunturas político-organizacionais dos diversos regimes, erodindo-lhes as âncoras nodais em que fundeavam e a partir das quais organizavam a sua capacidade de exercício do poder, os regimes ditatoriais desmoronaram quase instantaneamente, atacados com pontaria certeira por forças móveis e difusas, teimosas apesar de quasi-intangíveis, e todavia poderosíssimas.
Neste como nos outros casos, os processos de ensino-aprendizagem e de passagem de testemunho (quantas vezes realizados para lá de quaisquer hipotéticas fronteiras político-ideológicas) não foram com efeito de subestimar. Cada uma das movimentações a que fiz referência aprendeu, ostensiva e cuidadosamente, com as experiências das anteriores. Para o efeito escreveram-se livros e artigos. Mas, sobretudo, criaram-se chatrooms, blogs, fomentaram-se encontros e sessões de brainstorming para trocas de experiências: como propôs John Robb num activíssimo site que mantém na net�, constituiram-se open source communities as quais, tal como a Linux e Linus Torvald o fazem há uma dezena de anos em contraponto à Microsoft de Bill Gates, vão interactivamente encontrando, quantas vezes online, soluções tácticas para temas e escolhos operacionais; e vão gizando, pari passu, quadros estratégicos como subproduto de somatórios de milhares de esforços individuais e colectivos que convergem sobre os problemas que vão sendo suscitados.
Com uma muito maior “largura de banda”, para reter a minha metáfora, criou-se e mantém-se, vivo e bem vivo, o que John Robb chamou uma plataforma em open source, um bazar de ideias e projectos. Um mercado em que se participa “negociando” projectos e tácticas apontadas para o gizar de formas de intervenção política mais eficaz. Regressarei a estes pontos.
3.
Para contextualizar melhor tudo o que expuz, e puxar os fios à meada que tenho vindo a tecer, e cujo padrão [que tenho vindo a exibir como que por revelação fotográfica] espero agora se começará a tornar nítido, deixem-me então dar um novo passo em frente. Com vários exemplos mostrei já a capacidade destrutiva de redes face a sistemas hierárquicos, o potencial que elas têm para os desmontar. A pergunta que se impõe é a seguinte: como fazer frente a esses tão eficazes networks, sejam elas agrupamentos terroristas, insurgentes urbanos, ou milícias como tal organizadas? Como combatê-las?
Tendo em mente o objectivo de para tanto esboçar respostas, vou dizer algumas coisas sobre a estrutura organizacional da al-Qaeda, a morfologia interna dessa ONG terrorista, se se quiser. Tentarei aventar hipóteses de como lhe fazer frente com sucesso. Vou aludir aos chamados “números de Dunbar”, argumentavelmente expressões quantificadas das únicas escalas estáveis de indivíduos produtivamente associados uns com os outros em organizações estruturadas em rede, como a de bin Laden. Em contraponto, viro-me de seguida para as operações Aliadas, lideradas pelos norte-americanos e pelos britânicos, no Afeganistão pós-Taliban e no Iraque de depois do Saddam Hussein.
O ponto genérico que tento a par e passo ir pondo em relevo são os cascade failures (os falhanços, ou as rupturas, “em cascata”) que redes tendem a induzir em sistemas hierárquicos quando os defrontam. A radiografia (melhor, o TAC) é simples de enunciar: ao atacar os pilares de sustentação e os elos centrais dos sistemas organizados com base em princípios de centralidade e hierarquia (seja em estruturas policiais ou político-militares de comando e direcção, seja em sistemas de abastecimento de água, luz, electricidade, ou telecomunicações, ou até em fluxos de bens comerciais), redes bem geridas conseguem facilmente, por decapitação dos nódulos centrais dos sistemas hierarquizados, causar-lhes falhas em catadupa que podem com uma rapidez surpreendente fazê-los desmoronar.
Como pano de fundo do que vou expor, remeto sempre que posso para o caso português. O objectivo da terceira parte da minha comunicação é sobretudo o de dizer alguma coisa sobre a dinâmica, a fisiologia se se preferir manter a minha metáfora, dos sistemas a que tenho vindo a fazer alusão. Vistas as coisas de outro ângulo, o meu tópico focal, o meu pano de fundo se se quiser, continua a ser as “guerras de 4ª geração”, como têm sido apelidadas.
A minha finalidade mantém-se: a de imaginar aquilo que deve ser o futuro pensamento estratégico nacional, face a este tipo de novas ameaças.
Vou directo à piéce de résistance, a al-Qaeda. Queria começar por sublinhar o carácter extremamente lasso da estrutura orgânica da al-Qaeda, e sobretudo a das redes de ligações existentes ao nível dos relacionamentos entre os seus operacionais. Num famoso video encontrado no Afeganistão, o próprio Osama bin Laden se vangloriou do facto, ligando-o implicitamente ao feito (o abate das Torres Gémeas), afirmando peremptoriamente e com indisfarçável orgulho que “aqueles que foram treinados a pilotar não se conheciam uns aos outros. Um grupo de pessoas não conhecia o outro grupo”�.
Outro tanto foi reconhecido como provável pelos serviços ocidentais de informações. Numa entrevista tanto quanto me lembro com Larry King, na CNN, foi, salvo erro, o próprio Colin Powell quem comparou a estrutura difusa e policentrada da al-Qaeda à de “uma rede, uma holding económica [essa magnífica invenção de juristas], ou até à de uma Internet chatroom. Não se pense, no entanto, que tal siginifica um amorfismo, no sentido de uma total homogeneidade, da estrutura em causa. Nódulos centrais, como iremos ver, tornam-se imprescindíveis, que preenchem a função de uma espécie de “administradores de rede”, como seria de esperar. Esta estruturação dualista é nítida se mapearmos o “organigrama” relacional, como irei demonstrar.
Quero mostrar-vos algumas imagens muito interessantes, compostas laboriosamente em vários momentos pouco após o 11 de Setembro de 2001 por um investigador norte-americano, Valdis Krebs�, e que dizem respeito às redes conhecidas das ligações e contactos que articulavam uns com os outros os terroristas que participaram nas acções aéreas suicidas. Aquilo que acabei de asseverar aparece aí graficamente explícito, como julgo se tornará de imediato evidente, sem que sejam precisas grandes explicações. 
 1. Eis a imagem do padrão de relacionamentos [como que em serpente, ça va sans dire] que, com base em materiais não-classificados, emergiu logo em meados de Outubro desse mesmo ano fatídico de 2001:
2. Quando começou a saber-se de encontros repetidos para coordenação e distribuição de funções entre os membros dos grupos que tomaram os aviões, por contactos com serviços de informações não norte-americanos (da Alemanha, à Europa central, do Egipto à Jordânia, da França à Grã-Bretanha e a vários Estados africanos), emergiu o seguinte padrão, já mais intrincado: 
3. Mas os 19 operacionais que tomaram os quatro aviões não actuaram sozinhos. Tiveram outros cúmplices, que os não acompanharam nas suas missões finais. Dois anos depois, Valdis Krebs, sempre com base em meras notícias de jornal, reconstituíra e cartografara a seguinte rede de contactos e relacionamentos conhecidos. Notem a posição nodal, de autêntica placa giratória de comunicação e contacto, de Mohammed Atta:
Em vez de aprofundar mais estas reconstituições (sobre as quais, em todo o caso, não há muito mais dados desclassificados), talvez valha a pena esgravatar um bocadinho e tentar espremer algum sumo deste género de esforços.
Vou falar-vos dos números de Dunbar. Robin Dunbar é um conhecido primatologista britânico, um especialista de renome mundial, que redigiu em 1993 um artigo importante sobre os limites materiais ao tamanho dos agrupamentos humanos, que fixou em cerca de 150 pessoas, aventando, como tamanho médio cerca de 60 indivíduos�. A razão disso, segundo o nosso primatologista, relevaria da estrutura do neocortex cerebral, e exprimir-se-ia como um facto “cognitivo”: esses seriam os constrangimentosefectivos que temos quanto ao número de entidades com quem conseguimos manter e processar relacionamentos estáveis e uma comunicação continuada. O limite e a média aventada por Dunbar podem e devem ser aplicados a vários tipos de grupos, e têm-no sido: de círculos e clubes de amigos, a comunidades virtuais na net, a grupos políticos, a agrupamentos e células terroristas, etc..
Mas podemos ir muito mais longe do que estabelecer médias e limites, e o próprio Dunbar o propôs. Deixem-me tentar mostrar-vos como o podemos fazer e no processo sugerir a utilidade disso para o tema desta Conferência – as linhas por que se pode coser o futuro do pensamento estratégico nacional –, aplicando a modelização ao caso do terrorismo global de fonte islamista, e designadamente a al-Qaeda.
Uma primeira constatação. Para redes vivas e distribuídas no espaço nem todos os tamanhos são possíveis, ao contrário do que se passa com grupos hierárquicos que podem ter a escala que queiramos dar-lhes. Tanto é bem conhecido por sociólogos, psicólogos preocupados com dinâmicas de grupo, ou antropólogos [profissão que já tive noutra encarnação, há quase duzentos anos]. O mesmíssimo desenho em rede que as torna tão resistentes a decapitação e erosões põe limites máximos absolutos na escala que podem ter e criam descontinuidades na série dos seus tamanhos possíveis. Quais?
 	Análises comparativas cuidadosas mostram que a eficácia vai desaparecendo quando as redes atingem 80 membros, chegando a uma quebra radical por volta dos 150 membros, o tal limite máximo para uma interação minimamente coesa e eficaz. Não é difícil aventar razões para isso. Segundo por exemplo Chris Allen�, um analista britânico, o enfraquecimento inicial deve-se aos esforços crescentes que começam a ser exigidos para que continue a ser possível manter a imprescindível coesão grupal. A quebra torna-se inevitável ao crescerem para cerca de 150 pessoas, já que por essa altura a interacção directa e pessoal se esbate, ao ponto de deixar de se conseguir dirimir dissatisfações e tensões, o que leva o já excessivamente grande agrupamento em rede a uma fragmentação em agrupamentos mais pequenos e coesos, que podem ou não reter ligações entre si. O número de 150 formaria, por conseguinte, uma espécie de limite material efectivo no tamanho destes grupos: o dito número de Dunbar�.
	A al-Qaeda com toda a probabilidade conseguia manter unos e íntegros grupos maiores quando tinha campos de treino no Afeganistão, como o conseguirá ainda noutros lugares onde os tenha. A razão para isso parece, mais uma vez, bastante simples de entender: a proximidade e intimidade permitiria à al-Qaeda, ou aos seus membros que coexistiam nos campos, a operar como uma entidade militar hierárquica clássica. Uma vez tais campos de treino destruídos – como o foram na maior parte dos casos – factores como aqueles a que fiz alusão decerto terão causado a fragmentação-atomização da al-Qaeda que hoje de facto observamos.
O que nos leva a dois tipos de tamanhos exequíveis, no sentido de estáveis: seguindo Chris Allen podemos apelá-los de agrupamentos de pequena e agrupamentos de média escala. Pensemos neles como dois golden, ou magic numbers�, dois “pontos de acumulação”, se quiserem. Retratê-mo-los.
Agrupamentos (ou células, se preferirmos) que sejam pequenos, e que se mostram viáveis no que diz respeito ao preenchimento de tarefas concretas, atingem por via de regra um tamanho optimizado aos 7-8 membros. Um limiar mínimo andará próximo dos 5, número abaixo do qual se torna impossível mobilizar recursos que garantam eficácia óptima no preenchimento de funções; o limiar máximo andará próximo dos 9 membros.
Agrupamentos de tamanho médio, pelo seu turno, rondarão os 45-50 membros como escala óptima, com um limiar inferior de cerca de 25 pessoas e um máximo de uns 80. Entre os números intermédios situados entre o par 9-10 e o 45-50 dá-se a travessia de um deserto. Tanto se parece dever ao facto de que, em entidades com mais de 9-10 membros, se torna imperativo exibir alguma especialização funcional dos mesmos. E uma especialização requer um número demasiado grande de “gestores” e controladores. Ao que indicam os estudos empreendidos, o agrupamento começa então a conseguir retornos positivos do investimento em gestão que fez. O número 25 parece ser o ponto de break-even, por assim dizer. 
Ao contrário do que possa parecer, isto é tudo menos irrelevante. Porque gera uma fase de fraqueza nos grupos. A descontinuidade entre a escala dos 9-10 e a dos 45-50 membros, gera um período por um lado preocupante e por outro problemático, bem conhecido dos estudiosos do crescimento e desenvolvimento das redes terroristas. Não é difícil compreender porquê. A pequenez dos estragos que um agrupamento pequeno de 7-8 membros consegue causar confina-o a um espaço geográfico exíguo, e por isso eles não representam uma grande ameaça. Uma vez que a rede cresça para 45-50 membros, torna-se capaz de montar ataques em espaços geográficos muito mais amplos.
Todavia, durante a transição do primeiro para o segundo destes tamanhos, a rede passa por uma fase de grande vulnerabilidade. Durante um intervalo de tempo que pode ser estimado com alguma precisão, a coesão interna da rede “deslassa” e, durante dias ou semanas, aquilo que era uma rede passa temporariamente a uma estrutura hierarquizada, para efeitos da execução prática e expedita da mudança de escala. O que, naturalmente, cria uma esplêndida janela de oportunidade para acções anti-terroristas eficazes, se soubermos ser suficientemente rápidos no explorar do intervalo de tempo durante o qual a rede se encontra em transição de escala.
Não é assim somente em agrupamentos terroristas. Quaisquer outros grupos humanos estão, ao que se sabe, condicionados por limites deste tipo ao seu tamanho e apresentam, em resultado, vulnerabilidades semelhantes. Dou um só exemplo: segundo números fidedignos do FBI�, entre 2002 e 2003, na Mafia nova-iorquina, os Genoveses, eram a maior das cinco famílias da cidade que, depois de recrutarem 9 novos peões de brega, lograram atingir um contingente geral de 152 mafiosos. Os Gambinos, pelo seu lado, ao que parece tiveram um annus horribilis em 2000-2001, já que perderam 33 “soldados”, conseguindo no entanto manter 130 membros, a que fez dela a segunda família em termos quantitativos. Ao mesmo tempo, os Luchese, mais fraquitos, terão conseguido quand même adoptar 3 novos membros na respectiva família, que por isso passou ao terceiro posto, com um total de 113 facínoras nas ruas da cidade, de acordo com as fontes policiais federais. Seguiam-se, em 2002, as famílias Colombo e Bonnano, com respectivamente 90 e 85 capangas. Como curiosidade, é de registar que os muito mais pequenos DeCavalcante, acreditados, sabe Deus porquê, como o modelo para a famosa série de televisão The Sopranos, mas com apenas 36 membros, entraram na berra e, nesse ano, seduziram à pala disso mesmo 8 novos recrutas.
Note-se que, mesmo em casos como estes, os limites materiais concretos no tamanho dos grupos, a que já aludi, se mantêm, ainda que com números ligeiramente inflacionados, dado que é sempre possível, pelo menos em regime de contrato temporário, ou à tarefa, recrutar “pistoleiros de aluguer” como operacionais ou guarda-costas. E que, como o FBI bem sabe, a sua fragilidade aumenta nos períodos de transição de escala a que, mais tarde ou mais cedo, se vêem expostos. 
4.
Voltemos ao nosso tema central. Não é apenas explorando, analiticamente, momentos de relativa fraqueza, que podemos combater entidades destas, organizadas em rede. Para o fazer com eficácia e de maneira sustida e sustentável, porventura a melhor forma é a de nos organizarmos nós próprios em swarms. Um conceito que já não é novo. 
Swarm é um termo que logo de início traduzi tentativamente por enxame. O swarming é uma manobra táctica (por vezes operacional) de convergência, num único ponto, de forças muito dispersas�. As vantajens disso são manifestas: torna desnecessárioque as forças que utilizamos sejam mais poderosas do que as do nosso opositor; basta que elas sejam mais fortes no ponto de conflito. Napoleão puro�.
Um exemplo, para retomar aquilo que antes disse, pode ser tirado das movimentações anti-OMC em Seattle em Novembro de 1999. Um rápido rewind mostra-no-lo. Os anarquistas do agrupamento Black Box, embutido num mar de manifestantes pacifistas, constituíam um pequeno grupúsculo preparado para utilizar a violência. Desta posição muito dispersa, utilizando meios sofisticados e instantâneos de comunicação entre os seus vários membros (designadamente SMSs), conseguia convergir com enorme rapidez para um lugar, esmagar as forças policiais aí presentes em recontros breves mas extremamente intensos, e de imediato refluir e tornar a misturar-se com a multidão amorfa de manifestantes. Tudo isto antes de as autoridades lograrem reagrupar e recolocar forças no local atacado.
Mais ainda, faziam este género de incursões em vários lugares ao memso tempo, com base em vários pequenos agrupamentos de swarmers. Os Black Box repetiram à exaustão este autêntico pulsar de grupos de swarmers, e a Polícia de Seattle nunca foi capaz de se adaptar e de reagir a tempo.
É fácil generalizar. Notem que o swarming, uma táctica operacional particularmente adequada a situações de assimetria, depende de uns poucos princípios simplicíssimos: (i) fluidez, ou seja, uma maior mobilidade, rapidez de deslocação e melhores tácticas de recuo e “invisibilização” do que o inimigo, (ii) a capacidade de uma concentração local e, se possível, com o adversário ao alcance de fogo à distância, de uma força superior àquela que o oponente aí possui, e (iii) uma melhor imagem da situação (o que os anglo-saxónicos chamam “situation awareness”), do que a dos oponentes.
A combinação destes três princípios torna o swarming numa táctica virtualmente imbatível. É o que tem vindo a acontecer no Iraque, para grande desmando das tropas norte-americanas e britânicas.
O swarming não é, todavia, uma táctica integralmente imbatível. Basta, por exemplo, que o adversário consiga neutralizar um dos três princípios que delineei para o risco de falhanço crescer de maneira vertiginosa. A táctica militar norte-americana para desbaratar grupos de swarmers é intitulada pelos estrategas anglo-saxónicos de Find, Fix, and Defeat [apesar das diferenças de alguma monta entre swarming e guerrilha, esta é uma expressão não muito diferente do que, nas nossas lutas anti-guerrilha, apelidávamos, “localizar, conter, e destruir”, com as “forças de quadrículo” e as nossas “tropas especiais”�].
É uma contra-táctica que, quando bem aplicada, resulta. Uma ilustração apenas. Na Convenção Nacional Republicana de 2004, em Nova Iorque, por exemplo, de cada vez que uma “pulsação” de swarmers entrava em acção num local, grupos pré-posicionados de polícias, evitavam o contacto directo e desenrolavam longas e altas redes de plástico, no perímetro em que a acção tinha lugar. Criaram assim barreiras artificiais ao eventual recuo dos manifestantes, que se viam “desacelerados” e, em simultâneo, isolados em pequenas bolsas de que se não conseguiam retirar com a rapidez necessária, no interior das quais se viam facilmente neutralizados.
Para além disto, boas tácticas incluem a criação de agrupamentos mais fluidos [mais líquidos, para repetir uma imagem] do que os dos adversários, comunicações de “banda mais larga” do que as deles, e actualizações da battlefield situation (ou seja, uma battle awareness) melhores, mais regulares, e mais pormenorizadas do que as dos swarmers atacantes.
Por outras palavras, swarmers combatem-se com swarmers mais eficazes�. Quando tal é impossível, combate-se não permitindo ao “inimigo” a realização plena de pelo menos um dos três princípios que enumerei: seja a fluidez, a capacidade de concentração de forças num ponto, ou a situation awareness.
Numa frase: a nossa resposta tem sempre de ser dada num plano organizacional. A alternativa é vermo-nos desmembrados, como tem vindo a acontecer com regularidade nos combates assimétricos de 4ª geração um pouco por todo o Mundo.
Com o intuito de colocar tudo isto em perspectiva, vale a pena formular neste ponto um comentário de carácter comparativo e geral. Uma pausa pausa reflexão pode ter alguma ultilidade. É verdade que mudanças nas tecnologias de comunicação e informação (dos caminhos de ferro, à telegrafia sem fios, ao telefone, ao rádio) têm tido desde há tempos imemoriais um enorme impacto ao nível do “command and control” militar. Mas sempre soletraram um aumento na centralização do controlo, satisfazendo desse modo, numa frase que ficou célebre, o desejo dos “commanders to command and staffs to staff”.
Por outro lado, com as novas tecnologias de informação, a pressão sentida é a inversa: empurra na direcção de uma cada vez maior autonomia. Uma situação que pode parecer paradoxal. E que suscita questões de fundo relativas à definição de objectivos parciais, aos mecanismos de conciliação de esforços para os articular entre si, e um novo olhar que temos de lançar sobre a própria natureza (e para a urgência de uma redifinição do papel) do comando e da direcção das acções militares. Um ponto que não pode ser excessivamente realçado. Como escreveu com lucidez Thomas Adams em 2000�, com as Forças Armadas norte-americanas em mente, “they [the modern US military] have the technology to move information down to the lowest level so that it is possible for the men inside tanks to have as much information as their commanders have. . . . But once you give that information to tank crews, and they start working for their own safety, their own victory, how are they going to respond to commands from above? And what happens to battle strategy? Is it in the head of the commander, or do you just train the crews and let them figure it out for themselves as the situation demands?”. E, prosseguindo: “imagine an environment of rapidly shifting battlefields, probably in urban areas. Fighters are moving and operating with lightning fluidity responding to changes in the situation at the individual and squad level. Deadly accurate fire support is on call by the basic soldier or marine. Response times are too short for bureaucratic channels and formulaic calls for fire. Instead, the digitized soldiers are able to take instant advantage of fleeting opportunities--a misstep by the enemy, a sudden break. Decisionmaking power is forced downward; there are too many individual situations and too many variations for commanders to control. Deciding how to prioritize resources in such a situation is a real problem. To blindly follow a pre-set operations order—‘We will attack in this sector, preceded by a diversion here’--is to abandon most of the advantages gained by the panoply of sensors and information systems”.
Nada disto é particularmente novo. Logrando um excelente contraste, o notável Coronel norte-americano Alan Campen, escreveu, em 2001, que “decentralized, self-synchronized network-centric warfare with sophisticated sensing and striking capabilities at the very tip of the combat spear demands far more of command and control than does the orchestration of a symphony with its centralized direction and well-rehearsed score. Widely dispersed combat units, which must necessarily act as one, will not benefit from centralized orchestration. Instead, they require the integrated flexibility described by musician Wynton Marsalis in explaining how innovative and individualistic jazz artists ‘negotiate their agendas’ in real-time pursuit of a common theme – in this case, commander’s intent”. Pormenorizando no plano formal, Campen realçou, neste contexto, as vantagens de uma “decentralized, and self-synchronized, multidimensional orchestration of military operations”�. Uma lição a aprender.
Generalizando: a questão do command and control é, de facto, essencial. O apuramento dos meios para uma efectiva coordenação [talvez a expressão ‘orquestração’, de Campen, seja uma melhor metáfora, aindaque porventura não a ideal] da acção de agentes autónomos, ou quasi-autónomos, cada um deles com os seus próprios processos de tomada de decisão, é primordial. No que toca a mecanismos de aprendizagem, o mais importante será o de saber descrever os diversos meios utilizados para lograr uma coordenação dos esforços de actores independentes (ou relativamente independentes) através de pistas, recados e ligações ou conexões deixadas no “ambiente”, que asseguram melhores processos para a imprescindível circulação de informação útil que permitem as convergências e complementaridades ambicionadas. Trata-se, no fundo, de levar a cabo um rastreio de formas oblíquas, mas muito eficazes, de passagem, ou de transmissão, de informação.
Vários dispositivos de ensino-aprendizem deste tipo são conhecidos. É fácil enumerar alguns. Na ausência de verdadeiras coordenações centrais, tais mecanismos por norma funcionam sobre a base de diagnósticos partilhados quanto às forças e fraquezas dos adversários-alvo e partilham, ainda que o façam de maneira tácita, um mínimo de finalidades últimas. Quando e enquanto isso é possível, muitas vezes constituem também uma ou mais open source communities baseadas numa troca livre e constante de informações, naquilo que redunda num autêntico mercado aberto e facilmente acessível de ideias e tácticas que lhes permitem convergências regulares na ligação que sedimentam entre as leituras que empreendem e as finalidades que têm. Tanto pode ser conseguido frontal e deliberadamente, por meio da abertura de logs ou blogs na Internet, por exemplo; ou até, em formatos mais densos e intensos, por intermédio de “pulsações” de transmissão concentrada de informações e experiências, por via das técnicas de “publicitação em circuito restrito” que conseguem manter e ir sustendo, e que vão de contactos directos e relâmpago a SMSs telegráficos, passando pela feitura e circulação de “manuais tácticos de operações”. Ou seja, partem de consensos mínimos e difusos, e tendem a dar-lhes substância crescente nos fora que logram ir criando�.
Mesmo um bastante menor grau de coordenação explícita e muito pouco hierarquizada pode surtir efeitos surpreendentes. Um exemplo bastará por todos. Dispositivos descentralizados também podem com efeito operar pela via de formatos subreptícios (mas não necessariamente menos eficazes) de ensino-aprendizagem, formatos que incluam a utilização mais ou menos sistemática, nos meios em que agem, de “marcadores ambientais” (chamemos-lhes isso, à imagem, aliás, do que fazem os biólogos e ecologistas). Esses marcadores funcionam, por exemplo, como uma mais ou menos explícita sinalização de alvos e, também, pela demonstração de vulnerabilidades do adversário conseguida por ataques no início deliberadamente desenhados para serem diversificados – e com resultados consequentemente diferentes entre si, com todo o potencial “didáctico” que tanto implica – e de acções seleccionadas e empreendidas com o intuito de significar de maneira sonora preferências dos atacantes, ou vulnerabilidades dos atacados, a montante de um bom entendimento por parceiros que “falam uma língua comum”, que estão atentos às acções uns dos outros, mas que não podem ou não arriscam uma grande comunicação directa entre si. Na Natureza, processos de aprendizagem deste tipo baseiam-se, caracteristicamente, em baterias de instintos que resultam de adaptações evolucionárias. Em agrupamentos humanos, e no curto prazo, basta a criação, à partida ou a par e passo, de uma “cultura” adequada de aprendizagem e de transmissão de informações de agentes autónomos (ou quasi-autónomos), cada um deles com os seus próprios processos independentes de tomada de decisão.
Concluo com um paralelo. Tal como no que diz respeito ao desenvolvimento de open source platforms [como os já referidos sistemas operativos da Linux], os segredos do sucesso das actividades e dos processos de aprendizagem a montante destes podem ser encontrados numa série simples de princípios, ou factores�. Vistas as coisas da perspectiva dos swarmers, para garantir eficácia basta: (i) tentar circular cedo e muitíssimas vezes os formatos seguidos – tentar novas formas de ataque, com tanta variedade e rapidez quanto possível, em vez de esperar pelo “plano perfeito”; (ii) aprender a reconhecer as boas ideias uilizadas pelos “pares” envolvidos em processos de “co-desenvolvimento” de tácticas operacionais; e (iii) os co-developers, ao funcionar como beta testers de novos formatos de ataque, são os melhores aliados, já que inovam nos planos gizados, convergem nas fraquezas identificadas e tornadas explícitas pelos nossos ataques, e criam um ruído genérico que é protector no sistema, no sentido em que torna difícil aos adversários identificar as fontes dos ataques. Se houver uma pool suficientemente grande de co-developers capazes, afincados e atentos, é apenas uma questão de tempo até que alguém veja como óbvia a solução para um problema difícil e prontamente o resolva; basta-nos, depois, copiar o sistema utilizado.
5.
Quereria terminar, voltando-me agora de maneira muito breve para o caso português, aplicando-lhe a rede que acabei de tecer, ou melhor, lançando-a sobre ele, no arco amplo de que falei. Vou ser rápido, conciso e directo.
Caso mantenhamos uma política externa minimamente eficaz e a crise europeia se não agrave em flecha, não será decerto abusivo estimar que parece provável que aquelas que são as ameaças efectivas a portugueses, à nossa segurança nacional, e ao cumprimento das nossas obrigações para com aqueles com quem temos relações especiais nos quadros da defesa e segurança – europeus comunitários, parceiros NATO e, mais difusamente, a lusofonia e as Nações Unidas, estejam a “mudar de regime”, por assim dizer. O Mundo globalizou, e com ele o terrorismo. As velhas ameaças mantêm-se, mas já não são nem as únicas, nem porventura as principais.
É desde há muito sensível a evidência de que estamos cada vez mais a ter de confrontar uma mistura confusa de actores não-estaduais, grupos separatistas e “irredentistas”, levantamentos de insurgentes, ataques terroristas, motins urbanos, guerra electrónica e informacional, e ameaças de uso de armas de destruição massiva. Os sinais de que isso começa a acontecer também cá são inúmeros�. Numa palavra, parecem ter vindo para ficar numerosas ameaças não-convencionais. Decerto com algum exagero [mas aqui aplica-se o Princípio de Murphy] às vezes temos a sensação desconfortável de viver dentro de um barril de pólvora.
Trata-se de desafios para os quais não estamos de todo preparados. Mas são desafios que podemos (temos escala, meios e oportunidades excelentes para tanto, como irei muito sucinta e indicativamente argumentar) e devemos aproveitar.
Dêem-me mais dois momentos da vossa atenção. Embora sejam muitíssimo úteis em circunstâncias convencionais – e nisso e no cumprimento das nossas obrigações, compromissos e alianças eles continuem a preencher um papel primordial – armamentos “clássicos”, como magnos navios de guerra, submarinos, aviões pesados de transporte, carros blindados, e outras “armas de teatro operacional”, têm uma utilidade muito reduzida tanto na resposta como no combate a agrupamentos terroristas, insurgentes, e motins, sobretudo se os formatos organizacionais dos atacantes forem – como certamente serão – os de um swarming assimétrico cujas aprendizagem e passagem de testemunho estão claramente em alta.
O que acabei de esquissar na minha apresentação tem consequências que não podemos ignorar, e que são muito terra a terra. A manterem-se as tendências, e tudo indica que é provável que assim seja, as novas ameaças que se perfilam no horizonte exigem, para ontem, redefinições doutrinárias de peso e um redireccionamento marcado dos nossos conceitos estratégicos de defesa, do treino ministrado às nossas Forças Armadas, das armas escolhidas, das características dos equipamentos produzidos ou comprados, da centralidade atribuída às operações especiais e aos serviços de informações que temos,e de um redimensionamento da capacidade de resposta dos nossos sistemas de emergência e de protecção civil. Ameaças como as que retratei exigem uma articulação cada vez mais estreita entre os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e o da Defesa Nacional, e de ambos com o da Administração Interna.
A janela de oportunidade está à nossa frente. Com o fim da conscrição e a profissionalização um passo foi dado. Outro resulta da criação, a 1 de Outubro passado, do Instituto de Estudos Superiores Millitares. As janelas estão abertas. Escancaradas. Importa agora reconfigurar bem pensamento estratégico e doutrinas. E há que saber passá-los do papel à prática.
Quais os passos a dar? A postura e atitude dos militares, dos diplomatas, das comunidades de informações, das polícias e dos serviços vários de emergência e protecção civil, têm de se saber adequar às alterações de circunstâncias desencadeadas pela presença e actuação destes múltiplos actores não-estaduais e geradas por esta 4ª geração de guerras, a mais assimétrica e descentrada de todas aquelas as que até aqui tivemos de defrontar.
Para nós portugueses, algumas das implicações das guerras de 4ª geração que por aí proliferam são incontornáveis. O Mundo mudou, e os 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque, 11 de Março de 2004 em Madrid, e 7 de Julho do ano de 2005 em Londres são simples marcos, momentos constituintes se se quiser, dessa terrível mudança. O “milagre permanente” infelizmente acabou. Para os que trazem ainda consigo a mentalidade dos Cold-Warriors da Guerra Fria ou da luta anti-guerrilha dos anos 60 e 70, em versão Mao, Giap e Ho Chi Min, Agostinho Neto ou Amílcar Cabral�, tudo o que esbocei exige uma mudança bastante profunda de concepção: a preparação e o gizar de tácticas e de uma estratégia de segurança e defesa, e de um corpus coeso de uma verdadeira política externa – e o primeiro conjunto tornou-se definitivamente numa parte integrante do segundo – têm de ser profundamente pensadas e repensadas. 
Numa frase, temos de mudar também nós se, para além de continuar a fazer frente a ameaças convencionais clássicas, que continuam, se quisermos – como me parece indiscutível termos de querer – confrontar conflitos localizados múltiplos, se quisermos saber dar conta de um número, seguramente crescente, de incidentes terroristas, quantas vezes pequenos mas cada vez de mais alto impacto. E se tivermos como uns dos nossos objectivos principais, como me parece ser inevitável que tenhamos, o desmantelamento definitivo dos novos agrupamentos anti-democráticos, ou pelo menos não democráticos, efémeros, evanescentes, de geometria muito variável e organizados em rede, constantemente “actualizados” [refreshed] de um ponto de vista informacional e em comunicação permanente dentro de si e uns com os outros. Agrupamentos esses, como sabemos, de alta capacidade destrutiva face às estruturas militares e infra-estruturas civis e militares pesadas mas cruciais, muitíssimo hierarquizadas no seu arranjo interno genérico. Estruturas estas que se tornam, por isso mesmo, vulneráveis a ataques low-tech cirúrgicos mas com um temível “efeito de cascata” sobre os sistemas de que depende a nossa estabilidade, o nosso bem-estar colectivo, e as formas político-organizacionais que escolhemos livremente ter.
Deixem-me então esboçar, a um nível muito macro, o que julgo ser aquilo em que inevitavelmente se deve cristalizar o que pode vir a tornar-se numa nova doutrina estratégica portuguesa, num pensamento estratégico para o futuro.
Em primeiro lugar, quero sublinhar que a melhor doutrina, seja ela qual for, decorre do que expus e do facto que ideias lineares como a de um “conceito estratégico de defesa nacional” se tornaram manifestamente insuficientes, E não me refiro só ao último conceito: digo a própria fórmula. Entre muitas outras coisas, para retomar o que vinquei logo de início, deu-se a emergência de ameaças sérias no espaço jurídico-conceptual e político em que antes se podiam com clareza distinguir “guerras” de “crimes”, e “acções militares de defesa ou ataque” e questões policiais de “ordem e segurança”. As fronteiras esbateram-se. Em resultado, estas distinções já não são enxutas, e tudo indica que não voltarão a sê-lo nunca mais; o que coloca problemas bicudos, para dizer o mínimo, de atribuições e competências. Levantam-se, por aí, questões novas, mas questões cuja resolução é urgente, sob pena de deixarmos de saber distinguir GOEs, de GNRs, de tropas especiais, comandos, fuzileiros, ou rangers, para usar uma terminologia já com barbas, e de forças de intervenção rápida.
Em segundo lugar – o que não é desligável do que acabei de dizer – para efeitos de gestação de um melhor pensamento estratégico, há que saber assumir que, quer queiramos quer não, vivemos hoje cá numa situação dual e compósita. Defrontamos, por um lado, obrigações e ameaças convencionais. Há decerto que saber dar o devido realce a este ponto. Não me parece que verdadeiramente possamos pôr em dúvida – nenhum Governo, desde o 25 de Abril de 1974 o fez – o nosso “triângulo estratégico”: a Europa, a relação transatlântica, e a Lusofonia, visto que é nesses termos que temos definido (e nos convém continuar a definir) a nossa posição no sistema internacional. Por outro lado, no entanto, confrontamo-nos com ameaças e riscos profundamente atípicos�. O fim da arrumação bipolar das coisas, com o desmembramento do bloco soviético, deixou-nos um Mundo novo. E um legado pesado.
Deixou-nos um mundo dividido, dorido, indignado, e cheio de expectativas. Legou-nos a obrigação, o dever, de nos readaptarmos aos novos enquadramentos, de proceder a reajustes, a afeiçoamentos. Obriga-nos a que levemos a cabo algum reposicionamento, mas mantendo, na linha da frente das nossas preocupações e objectivos, os interesses dos portugueses e a redefinição [há cinco séculos, pelo menos, que o fazemos] do nosso lugar num Mundo que teima em não parar de mudar. Aquilo de que aqui vos dei algumas imagens é o que hoje temos, e aquilo com que temos de saber lidar. Para lá de modas e apetites efémeros, os vectores estratégicos nacionais mantêm-se: o que se alterou foi o nosso modo de inserção na conjuntura. Tudo isto, parece-me, exige respostas estruturais e estratégico-organizacionais claras, e elas têm de ser novas.
Não quereria terminar sem aventar algumas das traves-mestras muito concretas em que me parece que essas mudanças devem repousar, no segmento não-convencional do novo sistema dualista que imagino para Portugal num futuro muito próximo. A segurança de pessoas e infra-estruturas irá seguramente ter de caber a pequenos grupos, agrupamentos modulares, de homens e mulheres altamente profissionalizados, superiormente instruídos a nível táctico e muitíssimo, altissimamente, “info-incluídos” [para inventar um conceito “revisionista” e irreverente], tão bem treinados quanto possível, muito bem equipados, mais reticulados em termos funcionais do que ordenados nos termos hierárquicos tradicionais, com uma grande percentagem de oficiais, que actuem em conjunção estreita, muito estreita, com serviços de informações portugueses e estrangeiros e com operacionais anti-terroristas, de maneira a conseguir infiltrar, tomar o pulso, e neutralizar, os agrupamentos que se dedicam a estes novos tipos de guerra�. Os motivos são óbvios. A técnica do swarming exige uma das características-chave das redes: a adaptabilidade. Numa hierarquia, cada um se vê definido pelas “caixinhas” que preenche num gráfico organizacional. Numa rede, as pessoas mudam os seus papéis de acordo com a situação. Uma das formas de trazer adaptabilidade em hierarquias (sejam elas militares ou outras) é por intermédio do que os analistas norte-americanos apelidam de matrix teams: equipas fluídas, de geometria variável, constituídas ad hoc em função da questão a tratar e resolver.
Criar tais pequenos grupos e basear neles [e na projecção de força militar, por essa “aldeia global” fora, que através deles conseguiremos] o core da nossa doutrina estratégica

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