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1 Maria Angélia Teixeira A VIOLÊNCIA NO DISCURSO CAPITALISTA: UMA LEITURA PSICANALÍTICA TESE apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teoria Psicanalítica, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor. ORIENTADORA: Tânia Coelho dos Santos Rio de Janeiro 2007 2 Maria Angélia Teixeira A VIOLÊNCIA NO DISCURSO CAPITALISTA: UMA LEITURA PSICANALÍTICA Tese submetida ao corpo docente da Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor. Aprovada em 29 de outubro 2007. ________________________________________________________ Profª. Drª Tânia Coelho dos Santos - Orientador ________________________________________________________ Profª. Drª Angélica Bastos Grimberg _______________________________________________________ Profª. Drª Ana Maria Rudge ______________________________________________________ Profª. Drª Maria Anita Carneiro Ribeiro ________________________________________________________ Profª. Drª Sonia Alberti Rio de Janeiro 2007 3 A Véra Motta, pela preciosa contribuição. 4 AGRADECIMETOS À Profª. Drª. Tania Coelho dos Santos, pela rigorosa orientação acadêmica e pelas lúcidas lições de psicanálise. À Profª. Drª. Angélica Bastos Grinberg, pelo debate generoso. Aos professores da Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. A Jairo Gerbase, meu marido, pelo apoio incondicional. Aos colegas do Campo Psicanalítico, pela inestimável interlocução. Aos queridos amigos e familiares, pela carinhosa tolerância. A Henrique e Caio, pela solidariedade. 5 RESUMO Esta tese tem a finalidade de analisar a dimensão subjetiva da violência, especialmente a que se apresenta no discurso do capitalista. Foram adotadas as teorias da pulsão destrutiva e do supereu formuladas por Sigmund Freud e as teorias dos discursos e do gozo formulada por Jacques Lacan. Três vetores orientam esta pesquisa: o primeiro está relacionado aos fundamentos teóricos da constituição subjetiva da violência; o segundo está destinado a identificar a violência contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso da tecnociência capitalista; o último tem o propósito de analisar e confrontar o poder de intervenção do discurso psicanalítico frente às manifestações de violência na contemporaneidade. O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao seu correlato, o supereu, foi por Lacan atribuído aos avatares dos quatro discursos (do mestre; da universidade; da histérica; do psicanalista) e suas modalidades de ordenação do desejo e do gozo nos laços sociais. A violência que é produzida pelo quinto discurso, que é o da tecnociência capitalista, convoca a ética da psicanálise a uma nova leitura sobre suas causalidades, seus efeitos e incidências nos laços sociais. A oposição do discurso do mestre, ao do capitalismo tem a finalidade de confrontar a violência instituída e instituinte do discurso do mestre (discurso fundante da subjetividade) com a violência que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais e desregulação do gozo no discurso do capitalista. A oposição do discurso do capitalista ao do psicanalista tem a finalidade de rediscutir sua evidência clínica, bem como a participação do psicanalista na construção da atualidade. A aposta psicanalítica de reinventar o mundo com o vigor das palavras, relançando o gozo da vida, constitui-se o ponto de partida desta tese. Palavras-Chaves: Psicanálise; Violência; Destrutividade; Supereu; Pulsão; Gozo; Discursos. 6 RESUMÉ Cette thèse a pour but d‘analyser la dimension subjective de la violence, particulièrement celle qui se présente dans le discours capitaliste. Pour l‘analyser, nous avons adopté les théories de la pulsion de destruction et du surmoi formulées par Sigmund Freud et les théories des discours et de la jouissance formulées par Jacques Lacan. Trois vecteurs orientent cette recherche: le premier est en lien avec les fondements théoriques de la constitution subjective de la violence; le second est destiné à identifier la violence contemporaine comme indice de la mutation subjective produite par le discours de la techno-science capitaliste; le dernier a pour objet d‘analyser et de confronter le pouvoir d‘intervention du discours psychanalytique face aux manifestations de violence dans la contemporanéité. Le malaise dans la culture que Freud a attribué à la pulsion de mort et à son corrélat, le surmoi, a été attribué par Lacan aux avatars des quatre discours (du maître; de l‘université; de l‘hystérique; du psychanalyste) et à leurs modalités d‘ordonnancement du désir et de la jouissance dans les liens sociaux. La violence qui est produite par le cinquième discours, qui est celui de la techno-science capitaliste, interpelle l‘éthique de la psychanalyse pour une nouvelle lecture de ses causalités, de ses effets et de ses incidences sur les liens sociaux. L‘opposition du discours du maître à celui du capitaliste a pour but de confronter la violence instituée et instituante du discours du maître (discours fondateur de la subjectivité) avec la violence qui se présente comme mutation subjective, rupture des liens sociaux, dérèglement de la jouissance dans le discours capitaliste. . L‘opposition du discours du capitaliste à celui du psychanalyste a comme objectif de remettre en discussion son évidence clinique, de même que la participation du psychanalyste à la construction de l‘actualité. Le pari psychanalytique de réinventer le monde avec la vigueur des mots, relançant la jouissance de la vie, constitue le point de départ de cette thèse. Mots-clés: Pscychanalyse; Violence; Destructivité; Surmoi; Pulsion; Jouissance; Discours. 7 SUMÁRIO p. INTRODUÇÃO 8 1 VIOLÊNCIA: AVATAR DA PULSÃO DESTRUTIVA 12 1.1 VIOLÊNCIA, UM DESAFIO CONTEMPORÂNEO À PSICANÁLISE 12 1.2 O PODER DA VIOLÊNCIA EM FREUD 16 1.3 PRIMARIEDADE DA PULSÃO DESTRUTIVA 19 1.4 VICISSITUDES DA PULSÃO DESTRUTIVA 25 1.5 A VIOLÊNCIA DO SUPEREU FREUDIANO 30 2 VIOLÊNCIA, AVATAR DO DISCURSO 37 2.1 PULSÃO DE MORTE E IMPERATIVO DE GOZO DO SUPEREU 37 2.1.1 Pulsão de morte e supereu 37 2.1.2 Imperativo de gozo do significante mestre S1 e do objeto a 48 2.2 O DISCURSO DO CAPITALISTA E A DESREGULAÇÃO DO GOZO 59 2.2.1 O discurso mestre: o advento do sujeito e a recuperação do gozo 61 2.2.2 O discurso do capitalista: uma mutação 67 2.2.3 A violência no discurso capitalista: laço social ou ruptura? 73 3 INCIDÊNCIAS DA VIOLÊNCIA NA CLÍNICA PSICANÁLITICA 82 3.1 VOZES DA VIOLÊNCIA 82 3.1.2 Vozes e silêncios da violência 85 3.2 SUPEREU E DISCURSOS: MANIFESTAÇÕES SUBJETIVAS DA VIOLÊNCIA 903.2.1 A culpa: responsabilidade e gozo 93 3.2.2 Masoquismo: erótica mortífera do supereu 97 3.2.3 Reação terapêutica negativa: comércio de gozo 102 3.3 DISCURSO ANALÍTICO E DISCURSO CAPITALISTA: IMPASSES E PERSPECTIVAS 104 3.3.1 Discursos e produtos: oposição 105 3.3.2 O discurso psicanalítico, uma forma de resistência? 108 3.3.3 Violência: realidade de discurso 112 3.3.4 A participação do psicanalista na construção da atualidade 116 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 121 REFERÊNCIAS 124 8 INTRODUÇÃO De reconhecida gravidade e extensão na contemporaneidade, a violência tem sido tratada em seus múltiplos aspectos por distintos campos do conhecimento. Limitamos-nos aqui a analisar a dimensão subjetiva da violência, na perspectiva estrita da teoria e da clínica psicanalítica. Para estudá-la, recortamos alguns aspectos conceituais da obra de Freud e Lacan. O início de nossa pesquisa foi determinado, de um lado, pela perplexidade e impotência em que se vê, inicialmente, um analista, frente às experiências de extrema violência relatadas por analisandos. De outro, por inquietantes indagações psicanalíticas relativas aos impasses gerados pela violência na contemporaneidade. É a violência um conceito psicanalítico? De que espécie de violência pode a psicanálise falar? É o ser humano essencialmente violento? É a violência um fenômeno inerente à vida psíquica ou pura patologia? Faz parte do laço social ou é ruptura? Inata ou transmitida? O que mudou da violência na contemporaneidade? Há recursos técnicos psicanalíticos apropriados para abordá-la? Três vetores orientaram nossa pesquisa: o primeiro, relacionado aos fundamentos teóricos da constituição subjetiva da violência; o segundo, destinado a identificar a violência contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso da tecnociência capitalista; e, por fim, o propósito de analisar e confrontar o poder de intervenção do discurso psicanalítico frente às manifestações de violência na atualidade. A psicanálise define a violência como um modo paradoxal de satisfação pulsional determinante da constituição da subjetividade e da construção/desconstrução da cultura, como se pode verificar no exercício das leis, nas guerras, nos sacrifícios e rituais religiosos, nos dispositivos do poder e no cotidiano das relações humanas. Inerente ao laço social, a violência se encontra na origem da criação das leis, dos contratos e das organizações sociais. Desde o final do século XX, vêem-se os psicanalistas obrigados a proceder a uma revisão reflexiva acerca das múltiplas dimensões da violência, reveladora de uma nova realidade instaurada pelo discurso capitalista. A subjetividade de hoje não pode ser explicada apenas com base nas teorias formuladas num período histórico marcado pela determinação de quatro discursos, a saber, o do mestre, o da histérica, o da universidade e o da psicanálise. A 9 violência que se apresenta na contemporaneidade interpela a ética da psicanálise a uma nova leitura sobre suas causalidades, seus efeitos e incidências nos laços sociais. É preciso evidenciar que a violência, além de uma aberração psicopatológica, mal incurável no ser humano, como pode parecer à primeira vista, é uma vicissitude da vida mental, inscrita nas dimensões de gozo pulsional dos discursos, e que se modifica com a civilização. Para analisá-la, adotaremos as teorias da pulsão destrutiva e do supereu formuladas por Sigmund Freud e as teorias dos discursos e do gozo formulada por Jacques Lacan. É necessário salientar que, para abordar a violência hodierna, torna-se imprescindível analisar como ela é produzida no discurso capitalista. Contudo, escapa à nossa pretensão uma análise das origens do capitalismo, sem descuidarmos, entretanto, de verificar as razões que levaram a humanidade a construir uma sociedade, cuja organização política, social e econômica trabalha, escandalosamente, contra a integridade e a dignidade do ser humano e a preservação da vida na Terra. Ao longo do trabalho, procuramos registrar a exacerbação da pulsão destrutiva desfusionada da pulsão erótica, vicissitude do supereu e do real desarticulado dos registros simbólico e imaginário, além de sua intensificação com o crescimento da tecnociência e do capitalismo. A violência globalizada não confirmou a projeção feita por Freud em ―Mal-estar da civilização‖, segundo a qual a civilização se faz às custas da redução da pulsão destrutiva. A fórmula se inverteu, e hoje, testemunhamos o estrondoso crescimento da tecnociência capitalista, que produz epidemicamente a violência. No primeiro capítulo, intitulado ―Violência: avatar da pulsão destrutiva‖, abordaremos a constituição subjetiva da violência, de acordo com os pressupostos da segunda tópica freudiana, em dupla perspectiva: do conceito de pulsão de morte ou de pulsão destrutiva, como Freud preferiu chamar em 1930, e do conceito de supereu. Na primeira delas, a violência é apontada como advinda de três vicissitudes da pulsão de morte formuladas por Freud, nos seguintes termos: a união de Eros com Tânatos, no sadismo; Tânatos domado e inibido em sua finalidade, portanto sublimado; e a cega fúria narcísica de destrutividadade, de fundamental importância para o nosso trabalho, por apresentar a pulsão de morte desfusionada da pulsão erótica. Na segunda perspectiva, a violência advém dos avatares do supereu, nova instância do aparelho psíquico, responsável pelos destinos da pulsão de morte, paradoxalmente instituída e instintuinte da subjetividade e das leis da civilização. 10 A concepção de pulsão destrutiva e de supereu, enquanto conseqüências diretas do ―Além do princípio do prazer‖, produziu avanços teóricos de grande valor para analisar problemas clínicos, especialmente aqueles relativos às violências contemporâneas, seja no âmbito das manifestações sociais, seja no âmbito das manifestações estritamente subjetivas. No segundo capítulo, intitulado ―Violência, avatar dos discursos‖, analisaremos a violência de acordo com as proposições teóricas de J. Lacan, com especial recorte dos conceito de pulsão de morte, redefinida a partir da categoria do real, e de supereu, redefinido como imperativo de gozo e correlato da castração nos laços sociais do discurso do mestre. Se, para Freud, o supereu é paradoxal porque é simultaneamente herdeiro do complexo de Édipo (do Nome-do-Pai) e do Isso (pulsão destrutiva), para Lacan pode-se dizer que o supereu é paradoxal porque é herdeiro do S1 (significante-mestre) posicionado no lugar do comando do discurso do mestre e do objeto a como voz. O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao seu correlato, o supereu, foi por Lacan atribuído aos avatares dos quatro discursos e suas modalidades de ordenação do desejo e do gozo nos laços sociais. O surgimento do quinto discurso, que é o da tecnociência capitalista, transformou o mal-estar em devastação. Por esta razão, confrontaremos a violência instituída e instituinte do discurso do mestre, discurso fundante da subjetividade, regulada pela perda e recuperação de gozo, nos termos do sujeito e do objeto a, com a violência que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais, como desregulação do gozo no discurso do capitalista. No capítulo três, intitulado ―Incidências da violência na clínica psicanalítica‖, refletiremos sobre aspectos clínicos relativos às vozes e aos silêncios da violência; confrontaremos impasses e perspectivas do discurso do capitalista com o discurso psicanalítico e concluiremos evocando a participação do psicanalista na construção da atualidade. Dividimos a violênciaque comparece na clínica psicanalítica em dois grandes planos. Aquela que poderia ser chamada de social, por se apresentar entre corpos, e aquela que poderia ser chamada de violência do sujeito, por tomar-se a si próprio, em sua divisão como outro ou como objeto. Queremos chamar atenção para esta modalidade de violência que, sendo invisível para o mundo, comparece como pano de fundo na clínica psicanalítica. A reação terapêutica negativa lhe é exemplar, inclusive para confirmar a primariedade do masoquismo e do supereu e desvelar a lei insensata, feroz e cruel que o rege. Esta é a matriz que regula a violência nos quatro discursos; o quinto discurso carece de revisão a esse respeito. 11 Adotamos a proposição feita por Lacan de que o discurso psicanalítico dispõe de recursos para interpretar os desfuncionamentos subjetivos do discurso do capitalista advindos dos desvios da relação da ciência com o gozo do saber. Há mais de meio século, o saber transformado em mercado e a apropriação da mais-valia, pelo capitalista dão a medida da deriva do sujeito, do objeto, do grande Outro e do saber como privilegiado meio de gozo. Consideramos ainda, que continua válida a aposta psicanalítica de reinventar o mundo com o vigor da palavra que supõe saber ao Outro. Na contramão do capitalismo, o método psicanalítico, sustentado no amor ao saber do inconsciente, tenta resgatar a relação do saber com a verdade, relançando o gozo da vida. 12 1 VIOLÊNCIA: AVATAR DA PULSÃO DE MORTE Recorreremos, inicialmente, ao conceito de pulsão formulado por Freud para analisar a violência segundo a teoria psicanalítica. Pretendemos fazer uma leitura psicanalítica da violência, desmistificando os preconceitos, inclusive teóricos e psicopatológicos com os quais habitualmente é abordada, coisa bastante compreensível, dado o horror que ela própria dissemina, para, de forma conceitual, poder pensar a respeito da sua constituição, do seu manejo técnico na clínica e se possível, colaborar com as estratégias coletivas de intervenção sobre a mesma. 1.1 VIOLÊNCIA, UM DESAFIO CONTEMPORÂNEO À PSICANÁLISE Identificada como um dos graves problemas da atualidade, a violência diz respeito a todos os segmentos da sociedade, e, embora não tenha ocupado grande parte da reflexão psicanalítica, não exime os analistas deste debate, posto que tratam, diariamente, do mal-estar próprio à violência que assola nossos dias. O laço social produzido pelo discurso psicanalítico, legitimado pela prática de uma análise, autoriza e convoca os analistas a se pronunciarem amplamente sobre os impasses da civilização, a exemplo da violência na contemporaneidade, valendo lembrar a afirmação de Lacan: ―[...] este discurso merece ser elevado à altura dos laços mais fundamentais dentre os que permanecem para nós em atividade.‖ (LACAN, 1993, p. 31). Os psicanalistas estão aí para testemunhar que a clínica psicanalítica continua se apresentando como um eficaz recurso simbólico na abordagem do mal-estar da contemporaneidade, e que o discurso psicanalítico entrou na cultura operando mudanças cruciais nos demais discursos e nas diversas áreas do saber. 13 Também são os analistas testemunhas da extensão dos efeitos subjetivos e da produção de novos sintomas gerados pelo discurso do capitalista, devendo-se aí incluir a violência, e dos esforços deste para produzir o pensamento único e tornar-se discurso hegemônico. Portanto, nenhuma atitude isenta de responsabilidade é cabível em nome de qualquer suposto rigor conceitual. Para estudar a violência, foi necessário recorrer inicialmente à pulsão de morte, chamada por Freud de pulsão destrutiva em 1930 no artigo, ―O Mal-estar na civilização‖. Ao tecer considerações sobre o supereu, Freud examina a violência que o sujeito dirige contra si próprio, e não apenas em direção a outrem, como somos facilmente levados a pensar, alterando radicalmente, a concepção psicanalítica sobre a violência. Há mais violência hoje que antes? Quanto a esta pergunta, importa antes de tudo dizer que há hoje discursos sobre a violência, o que a faz existir de um novo modo, diferentemente da Antiguidade, quando os atos de violência se explicavam por suas tradições. Hoje, a lei já não mais outorga amplos direitos sobre a vida, nem ao pai de família, nem à Igreja, restando algum poder sobre ela ao Estado, quando faz uso da pena de morte e das guerras. É preciso distinguir a que tipo de violência o discurso do psicanalista dá acesso, em sua prática. É igualmente necessário saber da amplitude e da extensão das violências, para além da clínica, a cada época. Existem três tipos de violência, segundo Soler (2003a, p. 9-18, tradução nossa): A violência instituída, aquela da ordem, sem oposição entre esta e a lei, entre o direito e a violência que se pode até pensar, necessária, sendo a própria regra, de certo modo, uma forma de violência à qual nos submetemos porque somos civilizados; a da desordem que se apresenta como barbárie, e a violência instituinte, que desde Freud está colocada entre o sintoma e suas condições culturais, sendo o sintoma o que não funciona bem na ordem da civilização, o que faz obstáculo à intenção de felicidade do princípio do prazer. Este terceiro tipo proposto pela autora diz respeito à dimensão pulsional da violência, razão pela qual servirá de referência para nossa tese. Neste momento histórico é preciso reinterpretar a violência, especialmente a violência globalizada, cotidiana, repetitiva, nem sempre letal, muitas vezes invisível, tomando-a não apenas no plano objetivado da realidade, mas da subjetividade, de acordo com as premissas psicanalíticas. 14 A psicanálise tem contribuições a fazer a respeito das suas causalidades e dos seus mecanismos. Ademais, é da sua responsabilidade fazê-lo ante os novos sintomas que vão surgindo ao longo do exercício clínico. A violência generalizada se apresenta na atualidade como um novo fenômeno inclassificável, ante o qual os psicanalistas devem pronunciar-se, somando-se a outros campos do conhecimento. Seria possível analisar a violência segundo alguns conceitos freudianos e lacanianos. Tem-se, por exemplo, a fantasia, especialmente aquela que Freud isolou clinicamente, como fantasia fundamental de uma criança espancada; a pulsão, enquanto vicissitude da pulsão de morte, isto é, gozar da destruição; a identificação, enquanto método inconsciente que reproduz um significante mestre; e os conceitos de ato, de compulsão a repetição e de passagem ao ato. Tomando-se como referência a proposição lacaniana que diz: após um ato não se é mais o mesmo, no caso da violência, trata-se de um ato radical que promove a devastação subjetiva, na dupla posição daquele que comete o ato e daquele que é alvo do mesmo. Poderíamos ainda estender à violência a definição lacaniana da angústia: a violência é um ato que não engana. ‗Ato que não engana‘ porquanto é do real, definido com a categoria da impossibilidade. O Real, ao contrário do universal, é da ordem do não-todo; impossível de dizer, inefável; impossível de escrever, sempre no limite do sentido, ou no puro sem sentido e sem qualquer equivalência com a noção de realidade. Neste exercício teórico para abordar psicanaliticamente a violência, é preciso também distingui-la dos fenômenos do ódio, do sadismo e da agressividade, pois, no limite, a violência resulta da desfusão das pulsões de morte e de vida, (erótica), de acordo com o pensamento freudiano da segunda tópica. O ódio é uma das três paixões do ser, além do amor e daignorância. É um sentimento acompanhado de mais lucidez que o amor e segundo Lacan (1979b), não deve ser confundido com o campo da pulsão. A agressividade, fundamentalmente, se define por sua relação especular, imaginária, com o outro semelhante. Suas origens se dão, precocemente, no estádio do espelho e fazem parte do narcisismo e da constituição do eu. O sadismo é uma vicissitude bem particular da pulsão de morte ou de destruição, porque está amalgamada com a pulsão de vida, erótica, e, como bem se sabe, presente não apenas nas práticas eróticas que infligem sofrimentos a outrem, mas nas fantasias sexuais dos 15 seres falantes. Consta da série das violências, embora não seja seu melhor representante na atualidade. Entretanto, neste trabalho, recorreremos fundamentalmente aos conceitos de pulsão de morte e supereu segundo o pensamento de Freud e à teoria dos discursos e do gozo, de Jacques Lacan, para analisar a dimensão subjetiva da violência no seu aspecto instituinte e instituída. Afora certos esforços para localizar algum trauma primevo responsável pelo aparecimento da violência, há teorias que defendem sua origem antinatural no homem, por considerá-la ―o negativo absoluto da razão‖, um modo ―irracional‖ de funcionamento, o que é refutado por Jurandir Freire Costa (1984, p. 12), ao identificar esta posição como não isenta de preconceitos. Este, aliás, foi um dos aspectos bem explorados por Lacan (1977): exaltar a radicalidade do pensamento de Freud, enquanto inventor de uma nova razão, ao formular o conceito de inconsciente como uma extrapolação ao conceito de pulsão, enquanto ordenadores do aparelho psíquico. Um dos objetivos desta pesquisa é demonstrar que a violência se inscreve nestas premissas, que definem o aparelho psíquico segundo a razão freudiana. A violência é um dos fenômenos que torna evidente ser a pulsão não irracional, nem o negativo absoluto da razão. Ao contrário, ela revela a existência de uma outra razão para além da razão cartesiana, que se sustenta fora da lógica da consciência, porque se inscreve na lógica do inconsciente e da pulsão, de acordo com a tópica freudiana. De acordo com a álgebra lacaniana, a violência é um modo de gozar que evidencia a inclusão do sem sentido, do nonsense no campo do sentido, e o real como impossibilidade na estrutura de linguagem. Em sua releitura de Freud, Lacan estabelece como ponto de partida uma mudança de perspectiva fundamental: originário não é o homem natural, nem o homem determinado pela filogenética (COELHO DOS SANTOS, 2002), porém o homem inscrito na estrutura significante da linguagem e do laço social, do discurso, desnaturalizado por sua condição de ser falante, de onde advém o sujeito desejante do inconsciente em sua realidade dividida, entre seu ser de falta e seu ser de gozo. A perspectiva psicanalítica de tratar o aparelho psíquico como pulsional, conforme procedeu Freud e como aparelho de gozo, conforme Lacan não adere à categoria ética do bem 16 supremo de Aristóteles. Portanto, a ética com a qual abordaremos a violência estará unicamente pautada pela ética que rege a clínica psicanalítica. Estabelecidas as premissas que orientam este trabalho, passarei a abordar os pressupostos teóricos formulados por Freud, necessários para definir a violência como uma vicissitude da pulsão, condição indispensável para analisar a violência generalizada que constitui a barbárie contemporânea. 1.2 O PODER DA VIOLÊNCIA EM FREUD O senhor [Einstein] começou com a relação entre o direito e poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‗poder‘ pela palavra mais nua e crua ‗violência‘ [Gewalt]? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra; e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. (FREUD, 1976m p. 246). A pergunta feita por Albert Einstein a Sigmund Freud há mais de setenta anos, em cartas trocadas entre ambos sobre o tema, como evitar a guerra, continua na ordem do dia – pode-se mesmo dizer que todos os atuais movimentos sociais e políticos que lutam contra a violência ou em nome da paz, igualmente se perguntam por que a guerra e como evitá-la. À época, Einstein e Freud examinavam questões relativas a Primeira Guerra Mundial, época em que as guerras eram localizadas no tempo e no espaço. Hoje, além das guerras pontuais, vive- se um novo tipo de guerra permanente, configurada pelas diversas modalidades de violência disseminadas globalmente e responsáveis pela barbárie contemporânea. Inicio estas reflexões a respeito da violência globalizada que se apresenta na atualidade, a partir das considerações feitas por Freud no entre - guerras, ocasião em que ele se viu premido a refazer mais uma vez a teoria da pulsão, admitindo, não ter dimensionado corretamente a extensão do poder das pulsões de morte, da destrutividade, e da crueldade. O pacifismo com o qual Freud se declarou a Einstein era reflexo, provavelmente, da lucidez que possuía para reconhecer a condição humana, dividida entre Eros e Tânatos. Embora partilhando o repúdio da maioria, Freud não escolheu esconder, ignorar ou denegar a 17 presença da destrutividade no universo humano, mas ao contrário, ousou declarar a evidência das violências reinantes, embora permanentemente camufladas por várias instâncias da organização social, especialmente pelos fabricantes das armas e das guerras. Freud declara ser impossível denegar o poder da violência, tanto quanto ignorar ser este um dos elementos essenciais da história da cultura, como mostra o inesgotável espírito de guerra dos seres falantes. E, ainda que, em muitas passagens tenha afirmado que a civilização precisou dominar a violência para progredir, reconhece a inequívoca participação da violência na construção da própria civilização e na inscrição das leis que tiveram como antecedente a força bruta, da qual sempre se serviram. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso a tentativa de substituir a força real pela força das idéias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência. (FREUD, 1976m, p. 251). Sempre atento aos males da alma e da cultura, Freud escreve em 1920 o texto paradigmático ―Além do princípio do prazer‖, no qual propõe um paradoxal aparelho psíquico ordenado por duas pulsões contrárias, não mais sexuais e de autopreservação, como fizera em 1915, porém, de vida e de morte: a primeira une, é erótica, a segunda desagrega, é agressiva e destrutiva. Entretanto, são os textos escritos em 1929 e 1932, respectivamente, ―O mal-estar na cultura‖ e ―Por que a guerra?‖, que trarão a noção de uma pulsão agressiva cujo fim estaria identificado unicamente com a destruição. Freud declara ter resistido por longo tempo a concluir que a pulsão de morte, ou da destrutividade poderia existir isoladamente, não necessariamente fusionada com a pulsão de vida, ou pulsão erótica, como afirmara até então. A confusão decorreu da extensão feita das características do sadismo em amalgamar as vicissitudes da pulsão erótica, ou de vida, com aquelas da destrutividade, ou de morte, para outras manifestações. Admite, neste sentido, a pura tendência à destruição dirigida contra o mundo e os outros seres vivos, para além do par sadismo-masoquismo. É preciso deixar claro que a pulsão de morte, tal como foi postulada nos anos 1920, não é suficiente paradar conta da violência. Para abordá-la tal como se apresenta na pós- modernidade, é preciso ir à última teoria da desfusão pulsional, em que a pulsão de morte opera isoladamente, sem qualquer fusão com a pulsão erótica, ou de vida. 18 Os argumentos necessários para definir a violência como um avatar da pulsão de morte encontram-se no sexto capítulo do ‗Mal estar da civilização‘ (FREUD, 1974b). Ali vamos encontrar reunidas o que poderíamos chamar as três vicissitudes da pulsão de morte na teoria freudiana: a) a união de Eros com Tânatos no sadismo; b) Tânatos domado e inibido em sua finalidade, portanto sublimado; c) a terceira, de fundamental valor para o nosso trabalho, pode ser chamada de cega fúria de destrutividade. Nada de harmonia no mundo do ser, se ele fala. Da paradoxal exigência de satisfação da pulsão, concluído seu circuito, resta a impossibilidade de obtenção de satisfação plena. Neste circuito, a pulsão de morte também se inscreve: ―Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis.‖ (FREUD, 1974b, p. 136). A resposta a Einstein mostra a radicalidade do pensamento freudiano sobre o poder da violência: ―Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força da violência e os vínculos emocionais (identificação é o nome técnico) entre seus membros.‖ (FREUD, 1976m, p. 251). Na contramão do senso comum – tentando escapar da manipulação das ideologias dominantes – Freud desconstrói o ideal universal do amor como único responsável pela união das pessoas e dos grupos na construção da cultura, destacando a violência também como fator de união. Curiosamente, divide a força dos grupos entre a violência e o amor: A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo ao instinto agressivo um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. (FREUD, 1976m, p. 136). Uma solução ao problema apresentada a Einstein: ―[...] como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar as inclinações agressivas dos homens. Pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.‖ (FREUD, 1976m, p. 255), seguramente não se efetivou, pois o inimaginável progresso científico e tecnológico do século XX foi insuficiente para barrar as forças desagregadoras do homem na pós- modernidade. Ao contrário, a civilização disseminou a barbárie com muita tecnologia, em lugar de desviar estas forças para outras finalidades, digamos, sublimadas ou recalcadas. São 19 facilmente observáveis e insanos os níveis de requinte alcançados pelas indústrias armamentistas na confecção de armas de última geração, como digno de registro é o seu poder de invenção de guerras na garantia de seu mercado. 1.3 PRIMARIEDADE DA PULSÃO DESTRUTIVA Para demonstrar a força do argumento de Freud, quanto à primariedade da pulsão destrutiva, destacarei algumas passagens que configuram o que designo a última teoria da pulsão de morte na obra do autor, apresentada nos capítulos V, VI e VII do texto ―O mal-estar na civilização‖, e cuja análise crítica permanece atual, guardadas as devidas circunstâncias históricas. Algumas considerações e projeções do autor sobre o mal-estar na cultura não se concretizaram, até porque os problemas da atualidade ganham velocidade e desdobramentos que não se poderiam calcular, à época. Freud demonstra a hipótese da autonomia da pulsão agressiva, competitiva, destrutiva, feroz, cruel, violenta, de luta, precisamente chamada pulsão de morte, que não deixa de passar pelos desfiladeiros do Outro. É preciso recorrer a Lacan para declinar o outro em todas as suas possibilidades: do Autre (A), grande Outro ao ‗objeto a‘, passando pelo autre, semelhante especular, imagem do outro, que se escreve ‗a‘; pelo Outro sexo, pelo corpo como Outro, pelo Outro gozo, pela falta de um significante no Campo do Outro, e pelo Ideal do Outro, Duas considerações a respeito do texto freudiano são dignas de nota. Primeiro o emprego da palavra repúdio, para identificar a reação mais habitual das pessoas diante das manifestações destrutivas, o que constitui forte razão para se distanciarem destas manifestações, embora paradoxalmente sejam também por elas atraídas. Pode-se até observar uma estranha satisfação no próprio repúdio, o que levaria a pensar na existência de certo ‗empuxo‘ à violência, e que pode ser observado na curiosidade manifestada pelas pessoas ao passarem por acidentes no trânsito e no recorde de leituras das páginas policiais dos jornais. O segundo aspecto a considerar diz respeito a identificar, ainda que de modo sutil, a violência a uma verdade, sempre repudiada. 20 O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá- lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo - Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. (FREUD, 1974b, p. 133). Freud aponta a mútua hostilidade primária dos seres humanos, como fator ameaçador da integração da sociedade civilizada, motivo pelo qual se cria, dentre outros, o ideal de ‗amar ao próximo como a si mesmo‘, numa tentativa de abrandar esta hostilidade. A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. [...] vem daí, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem [...] (FREUD, 1974b, p. 134). O autor defende a necessidade de certa dose destas inclinações agressivas para construir a civilização, ao dizer que seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição, por serem estas indiscutivelmente indispensáveis. (FREUD, 1974b, p. 134). Ao mesmo tempo, discorda dos argumentos comunistas que defendem a propriedade privada como a maior causa promotora da destrutividade e agressividade entre os homens, baseados na hipótese do homem inteiramente bom e bem disposto para como seu próximo,corrompidos pela instituição da propriedade privada. Freud verifica o equivoco do ideal comunista ao defender a abolição da propriedade da riqueza privada – que confere poder ao indivíduo e o induz a maltratar o próximo, propondo, em contrapartida, que toda a riqueza comum seja partilhada igualmente por todos, 21 eliminando-se, desse modo, a má vontade e a hostilidade entre os homens. Freud considera este argumento uma simplificação do problema. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. (FREUD, 1974b, p. 135). Quanto às teorias que defendem os fatores socioeconômicos como causas prioritárias da violência em contraposição aos psíquicos, Freud adota uma atitude sem ilusões, afirmando que a abolição da propriedade privada não eximirá o homem da sua agressividade e das relações de poder entre eles. A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas. (FREUD, 1974b, p. 135). De forma enigmática, o autor deixa uma única relação humana fora deste embate ―com a única exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem.‖ (FREUD, 1974b, p. 135). Numa outra passagem, acrescenta mais um aspecto importante à discussão, reiterando sua posição: Se eliminarmos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator, permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos esperar; é que nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana seguirá a civilização. (FREUD, 1974b, p. 136). Ao contrapor o progresso à pulsão de morte, Freud volta a condicionar a civilização ao puro domínio das pulsões destrutivas, perdendo a dimensão paradoxal que às vezes adota. Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou 22 uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. (FREUD, 1974b, p. 137). Nesta passagem, reconhecemos um equívoco por parte do autor. Em primeiro lugar, a pós-modernidade tem revelado enorme tendência em eliminar sacrifícios às pulsões, nos termos referidos pelo autor. A sexualidade atual adquiriu ares de liberdade, a das mulheres em especial, embora o século se finalize marcado pela maldição do sexo. O estigma das doenças sexualmente transmissíveis, a Aids em particular, a exacerbada exibição pública do sexo, não pela exibição da nudez, mas das práticas sexuais tão freqüentes nos canais de TV e redes de Internet, que oferecem variadas possibilidades, dos sexshops, com vasto menu, aos sites de pedofilia. Se tudo isso são marcas do tempo, seguramente são marcas que confirmam, como nunca, que ‗não há relação sexual‘, que não há trégua quanto à impossibilidade de fazer o um complementar na relação sexual. No que tange às pulsões destrutivas, a violência generalizada e globalizada é o grande exemplo da ausência de sacrifícios. Revela enorme perda e nenhum ganho de segurança, configurando a maldição da violência feroz no século XX, também exibida de forma exacerbada pelos meios de comunicação. Ao contrário, a perda de segurança se espalhou por todo o planeta de forma nunca antes vista, inclusive nos meios rurais. A barbárie contemporânea, diferentemente da Antiguidade, nasce com as garantias da tecnociência e do capital internacional, não sem grandes conseqüências para a humanidade. Se, para Freud, a fórmula é quanto mais civilização, menor pulsão de destruição, menor selvageria, mais segurança, o que está posto no século XXI é a fórmula invertida: maior progresso, maior avanço tecnológico e científico, maior barbárie, maior violência e maior insegurança. Certamente, se estivesse acompanhando os dias atuais, Freud não faria tão suave crítica aos americanos, como a que vem a seguir: O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu mesmo estou empregando métodos americanos. (FREUD, 1974b, p. 138). Na retrospectiva que faz no sexto capitulo, Freud atualiza a teoria das pulsões para explicar como a pulsão de morte opera, isoladamente, em silêncio, introduzindo novos elementos conceituais, com especial destaque para o narcisismo. 23 O autor retoma a teorias das pulsões na seguinte seqüência: inicialmente, os instintos do ego e os instintos objetais se confrontavam, mutuamente. Para denotar a energia destes últimos, introduz o termo ‗libido‘. A antítese se verificou entre as pulsões do ego e as pulsões „libidinais‘ do amor, que eram dirigidas a um objeto. Esta formulação apresentou um pequeno problema, pois um desses instintos objetais, o instinto sádico, destacou-se do restante, pelo fato do seu objetivo não ser o amar. Ademais, ele se encontrava obviamente ligado, sob certos aspectos, aos instintos do ego, pois não podia ocultar sua estreita afinidade com os instintos de domínio que não possuem propósito libidinal. Mas essas discrepâncias foram superadas; pois o sadismo fazia claramente parte da vida sexual, em cujas atividades a afeição podia ser substituída pela crueldade. (FREUD, 1974b, p. 140). Alterações nesta teoria se tornaram essenciais, à medida que as investigações progrediam das forças reprimidas, para as repressoras, das pulsões objetais, para as do ego. O decisivo passo à frente consistiu na introdução do conceito de narcisismo, isto é, a descoberta de que o próprio ego se acha catexizado pela libido, de que o ego, na verdade, constitui o reduto original dela e continua a ser, até certo ponto, seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para os objetos, tornando-se assim libido objetal, podendo transformar-se novamente em libido narcísica. (FREUD, 1974b, p. 140). Freud chama a atenção para a importância do conceito de narcisismo, que possibilitou a obtenção de uma nova compreensão analítica das neuroses traumáticas e de várias afecções fronteiriças às psicoses, bem como destas últimas. Esse desdobramento deixa o conceito de libido ameaçado. Como os instintos do ego também eram libidinais, pareceu por certo tempo inevitável que se tivesse de fazer a libido coincidir com a energia instintiva em geral, como Jung já o fizera, anteriormente. Entretanto, Freud não desiste da idéia de que os instintos não podiam ser todos da mesma espécie. Defende,por um lado, a libido como atributo da pulsão de vida e, por outro, a força silenciosa da pulsão de morte. O passo seguinte foi dado em 1920 no texto Além do Princípio do Prazer, quando a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida instintiva atraíram pela primeira vez sua atenção. Ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, Freud imaginou haver outro instinto contrário, que abalasse essas unidades para 24 conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico (hipótese que não teve a concordância de Lacan). Assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos. O problema, contudo, residia em demonstrar as atividades deste suposto instinto de morte. Se as manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas, as do instinto de morte pareciam operar silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, embora não se constituíssem em prova cabal. Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self). Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. (FREUD, 1974b, p. 141). Os argumentos que vêm a seguir, sempre em torno do sadismo, produziram certas confusões quanto à conclusão que Freud adotou, a partir deste período, de que a pulsão destrutiva pode funcionar separada da pulsão de vida. Contudo, vale ressaltar a importância da distinção teórica entre o masoquismo e o sadismo, enquanto movimentos em que a destrutividade se dirige para o ego, no caso do primeiro, ou para fora deste, ou seja, para o outro, no caso do segundo. Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de instinto raramente — talvez nunca — aparecem isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo de nós conhecido como instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo desse tipo particularmente forte, isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e a pulsão destrutiva, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união que transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa outra conspícua e tangível. (FREUD, 1974b, p. 141). O autor assinala suas resistências em aceitar a existência de um instinto de morte ou de destruição, aspecto que se manterá com certa atualidade nos diferentes círculos psicanalíticos. Estou ciente de que existe, antes, uma inclinação freqüente a atribuir o que é perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de sua própria natureza. A princípio, foi apenas experimentalmente que apresentei as 25 opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o decorrer do tempo, elas conseguiram tal poder sobre mim, que não posso mais pensar de outra maneira. Para mim, elas são muito mais úteis, de um ponto de vista teórico do que quaisquer outras possíveis; fornecem aquela simplificação, sem ignorar ou violentar os fatos, pela qual nos esforçamos no trabalho científico. Sei que no sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do instinto destrutivo (dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando dirigido para dentro, de fato foge, grandemente à nossa percepção, a menos que esteja revestido de erotismo.) Recordo minha própria atitude defensiva quando a idéia de um instinto de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela. Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos [...] (FREUD, 1974b, p. 142). Freud observa também que as crianças não gostam quando se fala da inclinação humana para a ‗ruindade‘, a agressividade, a destrutividade e a crueldade, embora constate ao mesmo tempo, a presença de atos extremamente agressivos e destrutivos na infância. Lembra que Deus nos criou à imagem de sua própria perfeição e que ninguém deseja ser lembrado como é difícil conciliar a inegável existência do mal. Em especial, vale destacar o comentário que o autor faz sobre a natureza profundamente moral da humanidade ante a agressividade. Este é um dos méritos dessa teoria, o de evidenciar a força desta dimensão destrutiva e não apenas da dimensão sexual, contra as quais a moral se insurge e o recalque trabalha. 1.4 VICISSITUDES DA PULSÃO DESTRUTIVA Três são as vicissitudes da pulsão de morte, desenhadas por Freud, nas quais a violência é bem representada, exibindo em cada uma delas seu caráter paradoxal, como veremos a seguir. O primeiro destino da pulsão de morte é o sadismo. Neste caso, encontram-se amalgamadas a pulsão de vida, erótica, libidinal, com a pulsão de morte, destrutiva, 26 amplamente exercitada na psicopatologia da vida cotidiana, nas práticas eróticas e tão presente nas fantasias. O paradoxo aqui incide na junção do erótico com a destruição. O nome ‗libido‘ pode mais uma vez ser utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto de morte. Deve-se confessar que temos uma dificuldade muito maior em apreender esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por assim dizer, como algo situado em segundo plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros. É no sadismo — onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido, embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso erótico — que conseguimos obter a mais clara compreensão interna (insight) de sua natureza e de sua relação com Eros. (FREUD, 1974b, p. 141). O segundo destino da pulsão de morte é a cega fúria de destrutividade. Essa vicissitude introduz novo aspecto ao estudo da violência, ao vincular a origem da destrutividade ao antigo ego narcísico e onipotente. Como responsável pelo alto grau de satisfação narcísica, o ego realiza antigos desejos onipotentes, especialmente aqueles relativos à destruição. Freud atribui a mais cega fúria de destrutividade ao ego narcísico, em seu pleno exercício dos desejos onipotentes. Neste caso, o paradoxo encontra-se na própria constituição do ego, de um lado, garantindo a autopreservação e os seus laços com a realidade e do outro, mantendo o ego narcísico onipotente alheio à realidade. Podemos dizer que esta teoria elaborada por Freud oferece excelentes recursos para uma possível leitura da atual sociedade, identificada como individualista e narcísica por alguns teóricos contemporâneos, na qual, aliás, os atos de violência se apresentam como marcas inconfundíveis. Certamente, este destino da pulsão é o que melhor representa as violências, sem qualquer relação com a pulsão erótica. Contudo, mesmo onde ele surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega fúriade destrutividade, não podemos deixar de reconhecer que a satisfação do instinto se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de antigos desejos de onipotência deste último. (FREUD, 1974b, p. 141). O terceiro destino da pulsão destrutiva está inibido em sua finalidade, portanto sublimado. O paradoxo aqui incide exatamente na problemática de como satisfazer o impulso destrutivo através de outra finalidade. O instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua finalidade, deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a 27 satisfação de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza. (FREUD, 1974b, p. 144). Podemos vincular a inibição da pulsão agressiva, ou seja, a operação da sublimação a certas medidas de proteção pessoal e grupal e à criação de modo geral. Dentre elas destacamos as que se transformam em produções artísticas, políticas e sociais, por exemplo os movimentos pela paz e a posição pessoal de alguns grandes líderes que transformaram suas vidas em causa comum a todos, contra a violência, ou em nome da paz para a humanidade. Grandes homens, entre os quais Martin Luther King, John Lennon e Ghandi – cuja posição radical, no combate à guerra com a paz, em seu ato literal de depor as armas –, pregaram a paz, a liberdade, iguais direitos e foram provavelmente por esta razão, violentamente assassinados. Esse destino da pulsão destrutiva, a inibição da sua finalidade, leva-nos a repensar a respeito dos resultados obtidos pelos atuais recursos, em particular aqueles do mundo da imagem, tais como os jornais, o cinema, a televisão, os telejornais em especial e mesmo a exploração da violência como espetáculo feita pela mídia de modo geral. Possivelmente, constituem-se em poderosos métodos que devolvem, em grande escala, de forma imaginária e narcísica, mas também sublimada, os primários desejos narcísicos onipotentes de destruição, satisfazendo as pulsões destrutivas dos seres falantes. Certamente, assistir na tela realiza algo que nos distancia da possibilidade de passarmos ao ato. Estas proposições, feitas por Freud em 1929, em conformidade com os postulados da segunda tópica, representam uma importante revisão da teoria das pulsões, especialmente da pulsão de morte. Seguramente, possibilitam algumas leituras psicanalíticas sobre as violências, especialmente aquelas que comparecem na clínica. Nesta linha argumentativa, é possível afirmar que há uma teoria da violência em Freud, ainda que este léxico tenha sido empregado com pouca freqüência em sua obra. Antes, contudo, de passar ao próximo item no qual apresentarei a importância das variantes do supereu, em sua estreita relação com a pulsão destrutiva, gostaria de abrir uma discussão relativa às conseqüências clínicas do advento do conceito de pulsão de morte e dos seus últimos desdobramentos, na forma de desfusão da pulsão de vida. É fácil constatar a vasta repercussão das teorias que definem a etiologia sexual das neuroses e demais estruturas clínicas. Segundo Foucault (2002), este movimento se inicia 28 antes mesmo das teorias formuladas por Freud, em cuja tradição ele, aliás, se inscreve. Comparativamente, há uma insignificante repercussão e utilização da teoria da pulsão destrutiva da pulsão de morte, na abordagem da etiologia das doenças psíquicas. Toda reformulação teórica das pulsões realizada por Freud parece não ser levada suficientemente em conta. Fica-se, via de regra, agarrado ao primeiro momento quando do surgimento da pulsão erótica. Rigorosamente, a teoria das pulsões nasce como uma teoria sobre a sexualidade. Freud escreve ―Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖ em 1905, e, em 1915, ―As pulsões e suas vicissitudes‖, quando sistematiza a primeira teoria das pulsões. Somente em 1920, propõe opor à pulsão de vida a pulsão de morte. Há, contudo, forte resistência em considerar esta reviravolta teórica e clínica, em parte, talvez, pelo que a destrutividade encerra em si mesma. E, segundo o comentário do próprio Freud, a moralização sobre a destrutividade é maior que sobre qualquer outro destino das pulsões. O ponto que queremos salientar é que embora Freud tenha reformulado a teoria das pulsões e dado igual peso à pulsão de morte na etiologia das doenças mentais, recorre-se, invariavelmente, à pulsão sexual para explicar todas as doenças, desconsiderando a reviravolta teórica e clínica operada pelo autor. É preciso admitir que esta leitura equivocada dificulta o reconhecimento de certas manifestações clínicas, que dizem respeito à destrutividade, agressividade, violência, crueldade, e suas abordagens terapêuticas. A teorização da pulsão de morte, destrutiva, como fator etiológico, tem sido aplicada de modo pontual a alguns fenômenos, a exemplo do masoquismo, da reação terapêutica negativa e da neurose obsessiva. O problema, entretanto, está exatamente na diferença que há entre os sintomas próprios da moral sexual vitoriana, que fizeram Freud trabalhar na invenção da psicanálise, e os que se apresentam na contemporaneidade. O aumento gritante dos índices de violência e dos seus requintados métodos, favorecidos pela tecnociência, juntamente com novas manifestações sintomáticas, fazem-nos pensar na força desses outros determinantes para além do princípio do prazer, da ordem da pulsão de morte, de acordo com o pensamento freudiano. Em lugar dos sintomas de conversões, legítimos representantes do que retorna do recalcado sexual, não deveria ser ampliada a pergunta sobre o que retorna da pulsão de morte, ou o que está posto como efeito da pulsão de morte na etiologia das doenças contemporâneas, também chamadas sintomas inclassificáveis, que se colocam do lado do pior? 29 Vemos o aumento crescente das violências auto ou heterodestrutivas, a exemplo das escarificações, bulimias, depressões, obsessões, as compulsões de modo geral, entre outras. A este respeito há um exemplo recente, o pedido de uma mulher, via Internet, de ser violentada e assassinada, obtendo para espanto geral, a resposta de seiscentos candidatos. Fantasia ou fato? Seja o que for, passou a existir na retórica virtual. Há, por um lado, ampla utilização da etiologia sexual, da pulsão erótica, e das neuroses e, do outro, uma quase ausência de exploração equivalente para a teoria da pulsão de morte e destrutiva. As violências, tais quais se apresentam na clínica do fim do século XX e início do XXI, entretanto, exigem uma revisão, pois a erótica freudiana, tão largamente utilizada durante o último século, não parece dar conta do horror, que não é da castração, presente nestes fenômenos deste século. Postular a clínica em sua relação com o supereu, conforme Freud desenvolveu, sinaliza para o começo de uma nova argumentação relativa aos paradoxos do gozo na determinação do pathos, que será retomada por Lacan com o conceito de gozo. Para dar conta da clínica psicanalítica do século XXI, é preciso recorrer à pulsão de morte (em sua relação com o supereu e o masoquismo primário) proposta por Freud. Não é possível escutar o sujeito do inconsciente, hoje, abstraindo essas inter-relações conceituais para tratar os atos de violência em toda sua extensão auto ou hetero destrutivas. É preciso fazer um retorno a Freud, para lembrar que a etiologia dos sintomas não é somente sexual, do recalcado sexual, mas paradoxais formações que abrigam toda a dimensão contraditória das pulsões encerradas no narcisismo e nas formações do supereu. O conceito de gozo em Lacan vem nesta direção, ou seja, coloca as causalidades da subjetividade para além da teoriada sexualidade, inscrevendo-se na tradição da sua época, na trilha de Bataille e outros de sua geração, que apresentaram os elementos inspiradores para a concepção do objeto a através do qual Lacan consolida o conceito de gozo. Para concluir o sexto capítulo, Freud o faz de forma literária e espetacular. Após refazer todo o caminho da pulsão de morte, termina exaltando a força da vida, Eros e, mais uma vez, responsabilizando a pulsão de morte por certos impedimentos à civilização. Contudo, embora advertido do horror do pior e disposto a não esconder suas conseqüências, o que traz aí de mais importante é sua aposta na força da vida, ao afirmar que a civilização resultante desta luta de gigantes se resumiria, essencialmente, na luta da espécie humana pela vida, retificando o que poderia ser interpretado como uma luta primária para construção da civilização. 30 Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior impedimento à civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa investigação fui conduzido à idéia de que a civilização constituía um processo especial que a humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Por que isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com suas cantigas de ninar sobre o Céu. (FREUD, 1974b, p. 144). Ao final, vence a vida, a civilização, porém pagando o preço do mal-estar engendrado pelo supereu. 1.5 A VIOLÊNCIA DO SUPEREU FREUDIANO Nascido de uma exigência clínica, o supereu é um conceito formulado por Freud na segunda tópica, especialmente no texto O Ego e o Id (FREUD, 1976/h). Apresenta-se no primeiro momento como uma instância psíquica relativa à consciência moral, ao sentimento de culpa e às interdições, sendo herdeiro do Complexo de Édipo, ou seja, uma introjeção da autoridade das figuras parentais, representante da lei e regulador da realidade. À primeira vista, o supereu em Freud parece se apresentar como uma instância que zela pela homeóstase do aparelho, interditando o incesto e proibindo o gozo da pulsão destrutiva. 31 Contudo deve-se sinalizar para a insuficiência dessa concepção, destacando-se que o supereu, referido por Freud é paradoxal por ser ao mesmo tempo herdeiro do complexo de Édipo e do isso. É simultaneamente definido como uma instância cruel, feroz, sem noção da realidade e regido por uma lei insensata. Suas exigências desmedidas não passam de exigências morais que o sujeito poderia cumprir, desde que aceitasse abrir mão de seu gozo. Ao contrário, uma vez cumpridas tais exigências, elas se tornam cada vez maiores e, quanto mais o sujeito se esforça no sentido de alcançar as virtudes e uma nobreza moral, quanto mais o sujeito se aproxima de ser santo, tanto mais o supereu faz exigências. Em 1929, em O mal-estar na civilização, Freud (1974b) define o supereu como uma instância a serviço pulsão destrutiva, responsável pelos seus destinos. Manifesta no sétimo e oitavo capítulo do referido texto grande interesse em continuar pesquisando os meios empregados pela civilização para inibir, transformar a agressividade ou mesmo livrar-se dela. O problema gira em torno dos métodos utilizados para tornar inofensivo o desejo de destruição e agressão do ser humano. Nesta nova investida para além do princípio do prazer, o autor articula a pulsão de morte, destrutiva, ao supereu produtor do sentimento de culpa, que se expressa como uma necessidade de punição. Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‗consciência‘, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (FREUD, 1974b, p. 146-147). Essa severa guarnição, embora esteja a serviço da civilização para dominar o perigoso desejo de agressão e destruição do indivíduo, cria sérios problemas para este. A operação da pulsão de morte voltada contra o eu (aspecto, que coincide com uma das quatro vicissitudes da pulsão, a saber, o retorno ao próprio eu) e dirigindo para essa instância os impulsos agressivos e destrutivos, foi o modo encontrado por Freud para explicar a ferocidade da culpa e a crueldade da punição. Se, por um lado, são esforços utilizados pelo sujeito para preservar o coletivo, por outro são métodos que imprimem violentas conseqüências contra o próprio 32 sujeito, tornando muito cara a construção da civilização. O impasse permanece, pois trocar a devastação coletiva pela devastação individual não resolve muito bem o problema. Simultaneamente, Freud mostra o aspecto contraditório da questão ao explicar essas operações – o sentimento de culpa e a necessidade de punição - como duas grandes manifestações subjetivas primárias e intrínsecas ao pathos, não necessariamente a serviço do progresso e da civilização. Aliás, estiveram sempre presentes com o nome de pecado nas mais diversas práticas religiosas. A constatação dos efeitos do supereu na clínica e na cultura conduziu Freud a vários caminhos. Um deles leva à reflexão sobre a indiferenciação originária do ser falante para julgar o bom e o mau, trazida para explicar como se dá a instauração do julgamento moral. Inicialmente, Freud o vincula ao desamparo original, à dependência dos cuidados básicos recebidos dos adultos e ao temor da perda do amor das pessoas primordiais, frequentemente os primeiros laços parentais. O que é mau, freqüentemente, não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser algo desejável pelo ego e prazeroso para ele. Aqui, portanto, está em ação uma influência estranha, que decide o que deve ser chamadode bom ou mau. De uma vez que os próprios sentimentos de uma pessoa não a conduziriam ao longo desse caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em relação a outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de amor. Se ela perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida de uma série de perigos. (FREUD, 1974b, p. 147). Freud introduz o elemento do desamparo original em relação ao objeto amoroso, sugerindo que o maior perigo é ficar exposto a essa pessoa mais forte, que pode mostrar sua superioridade sob forma de punição. Quanto a isso, cabe fazer algumas atualizações baseadas em Lacan, no sentido de colocar o problema não apenas no plano imaginário da prematuração biológica e da dependência dos cuidados e garantias dadas pelo amor dos outros parentais, mas também na dimensão do desamparo simbólico, ou seja, do desaparelhamento simbólico originário com o qual o ser falante entra no mundo. Esta é uma das razões pelas quais se faz necessário distinguir o Outro simbólico da linguagem dos outros semelhantes do plano imaginário, para dar a essa teorização sua justa medida. Inicialmente, mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos ameaça e, por medo, tentamos evitar. Vislumbra-se, contudo, a possibilidade de o mau poder ser bom e prazeroso para o ego e provavelmente, neste caso, Freud está se referindo às possíveis relações 33 existentes entre o supereu, enquanto uma instância do aparelho psíquico, o ideal do eu, enquanto significantes de identificação e a consciência com seus preceitos morais. Nesta perspectiva teórica, fica estabelecido que, no primeiro tempo, o sentimento de culpa é apenas um medo da perda de amor, uma ansiedade ‗social‘, como se verifica nas crianças. Em muitos adultos, ele só se modifica quando o lugar do pai ou dos dois genitores é ocupado pelas organizações humanas mais amplas. Por conseguinte, tais pessoas habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes prometa prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a respeito, ou não poderá culpá-las por isso; só têm medo de serem descobertas. (FREUD, 1974b, p. 148). Freud prossegue explorando o sentimento de culpa. Quando ele aparece? Ele aparece quando se faz algo que se sabe ser ‗mau‘ mas, mesmo quando a pessoa não faz uma coisa má, mas apenas identifica em si mesma uma intenção de fazê-la, pode encarar-se como culpada, tornando a intenção equivalente ao ato. Em ambos os casos, contudo, o pressuposto é que já se tenha reconhecido que o mau é repreensível. O supereu, portanto, seria essa instância interna pronta para instaurar o julgamento, já que a capacidade original para distinguir o bom do mau não existe. Assim Freud atrela inicialmente a instauração do julgamento de bom e mau à dependência do temor da perda do amor das pessoas primordiais e ao desamparo do sujeito. Nesta discussão, fica necessariamente interrogada a origem da consciência, e a esse respeito, Freud faz inicialmente uma afirmação paradoxal, admitindo que esta resulta da renúncia do instinto agressivo, ou que, a renúncia instintiva imposta de fora cria a consciência, a qual, exige cada vez mais renúncia. Tende a considerar que a consciência surge da repressão do impulso agressivo, sendo subsequentemente reforçada por novas repressões. O supereu tem aí papel importante, pois, quanto mais virtuosa é a pessoa, mais severa e mais desconfiada se torna nos seus comportamentos. Lembra que as pessoas próximas da santidade são aquelas que se censuram da pior pecaminosidade. ―O sentimento de culpa, a severidade do supereu, é, portanto o mesmo que a severidade da consciência moral. (FREUD, 1974b, p. 160).‖ Descontente em explorar o sentimento de culpa como conseqüência exclusiva do desamparo e do temor da perda do amor parental, finalmente Freud apresenta dois extratos do sentimento de culpa: um oriundo do medo da autoridade externa e outro, do medo da autoridade interna, ou seja, do supereu, em suas estreitas vinculações com as exigências de 34 satisfação pulsional, e já não mais representante da consciência moral e da ordem. A postulação freudiana de um tipo de culpa decorrente da consciência moral, dos temores dos ideais do eu e a serviço da civilização será por nós secundarizada nesta pesquisa, privilegiando, contudo, a culpa que advém do supereu enquanto instância primária, correlata da pulsão e do masoquismo primordial. Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. Aprendemos também o modo como a severidade do superego - as exigências da consciência - deve ser entendida. Trata-se simplesmente de uma continuação da severidade da autoridade externa, à qual sucedeu e que, em parte, substituiu. [...] Originalmente, a renúncia ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se à próprias satisfações para não se perder o amor da autoridade [...] Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. [...] Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa - perda do amor e castigo por parte da autoridade externa - foi permutada por uma permanente inferioridade interna, pela tensão do sentimento de culpa. (FREUD, 1974b, p. 151). Inscreve-se, desse modo, mais um importante elemento clínico atribuído ao supereu, que é o ‗sentimento de inferioridade‘ gerado pelo sentimento de culpa. Ao longo do texto vai ficando cada vez mais clara a formulação freudiana que define o supereu como pulsional em vinculação indissociável com a pulsão destrutiva, constituindo um novo substrato para conceber a subjetividade. São quatro os avatares do supereu: sentimento de culpa, necessidade de punição, sentimento de inferioridade e angústia. Em última instância, esses deveriam ser considerados os destinos da pulsão de morte, evidentemente vinculados às manifestações clínicas. Analisada a questão dessa perspectiva, poder-se-ia dizer que as formulações apresentadas por Freud sobre o supereu na segunda tópica, constituem uma ampliação da teoria das pulsões, especialmente da pulsão de morte. Por conseguinte, o mal-estar da cultura está irremediavelmente associado, em primeira instância, às exigências pulsionais do supereu e aos seus avatares. 35 Freud apresenta nova consideração clínica relativa ao enlaçamento da pulsão destrutiva com o supereu: toda neurose oculta uma quota de sentimento de culpa inconsciente que fortifica os sintomas, utilizando-o como punição. ―Agora parece plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência instintiva experimenta a repressão, seus elementos libidinais são transformados em sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de culpa.‖ (FREUD, 1974b, p. 163). Distiguem-se, pois, dois efeitos do ‗recalque‘, que aparece caracterizado como uma espécie de operação-base para as pulsões em seu conjunto. No que tange à pulsão erógena, seu retorno se dá sob a forma de sintoma, como classicamente está consagrado. No que tange
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