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A CIDADE E O AUTOMÓVEL

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DIOGO AGUM DE ANDRADE 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A CIDADE E O AUTOMÓVEL 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ensaio Teórico 
1º/2008 
 
 
 
 
 
 
 
 
DIOGO AGUM DE ANDRADE 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A CIDADE E O AUTOMÓVEL 
[versão integral] 
 
 
 
 
 
Orientadora: Prof. Maria Elaine Kohlsdorf 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ensaio Teórico 
1º/2008 
 
 
Universidade de Brasília - UnB 
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU 
Departamento de Teoria e História – THAU 
SUMÁRIO 
 
 
1. INTRODUÇÃO 02 
2. IMPACTOS NEGATIVOS DO AUTOMÓVEL 04 
 2.1. Impactos ambientais 04 
 2.1.1. Consumo de energia 05 
2.1.2. Poluição atmosférica 05 
2.1.3. Poluição sonora 06 
2.2. Impactos sociais 06 
2.2.1. “Acidentes de trânsito” 09 
2.3. Impactos econômicos 09 
2.4. Problemas funcionais 10 
3. A CIDADE DO AUTOMÓVEL 13 
3.1. O modelo progressista 14 
3.1.1. A Carta de Atenas (1933) e o automóvel 15 
3.2. Crítica à cidade do automóvel 17 
4. CIDADES PARA PESSOAS 20 
4.1. Transporte coletivo 20 
4.1.1. Ônibus 20 
4.1.3. Bonde 21 
4.1.2. Metrô 22 
4.2. Transporte não-motorizado 23 
4.2.1. Bicicleta 23 
4.3. Planejamento orientado para o pedestre 25 
4.3.1. Medidas de indução à redução de velocidade 25 
4.3.2. Ruas e zonas de pedestres 27 
4.3.3. Cidades sem carros 28 
5. CONCLUSÃO 30 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 31 
 
 
 
 
 2 
1. INTRODUÇÃO 
 
Há quase cinqüenta anos, a escritora Jane Jacobs, pioneira na crítica aos ideais 
urbanísticos modernos, fez a seguinte a afirmação: “A atual relação entre cidades e 
automóveis corresponde, em síntese, a uma das peças que às vezes a história prega no 
progresso.”1 Nas décadas seguintes, chegando até os dias atuais, a situação por ela descrita 
praticamente só apresentou agravamentos. Um problema que era exclusivo dos países 
industrializados desenvolvidos foi e continua sendo reproduzido nas nações em 
desenvolvimento, onde os efeitos nocivos da elevação das taxas de motorização mostram-se 
ainda mais acentuados. 
Os impactos causados às cidades pela superabundância dos automóveis continuam a 
figurar entre os temas mais relevantes para os habitantes dos grandes centros urbanos. Afinal, 
ao falarmos da presença dos carros nas grandes cidades, tratamos diretamente do sistema 
viário urbano, que ocupa, em média, de 20 a 25% da superfície das cidades, representando 
normalmente mais de 50% dos custos totais de urbanização2. Isso sem levar em consideração 
as amplas áreas de estacionamentos, postos de gasolina e demais usos destinados a suprir as 
necessidades dos automóveis. Trata-se, portanto, de um tema que não pode ser ignorado. 
A mobilidade baseada nos veículos motorizados individuais traz para as cidades uma 
série de prejuízos, dos quais a poluição e os congestionamentos são apenas os mais facilmente 
constatados à primeira vista (e talvez nem sejam os mais graves). As dificuldades do trânsito 
são basicamente um sintoma da pressão que o carro exerce sobre si mesmo. Para a cidade 
como um todo, e para a população urbana em geral, os problemas são bem mais amplos, com 
conseqüências das mais diversas, sejam elas de ordem econômica, ambiental, social, 
funcional, estética ou cultural. 
Se, por um lado, a indústria e os interesses financeiros detêm boa parte da culpa pela 
multiplicação desenfreada dos carros, por outro, o urbanismo do século XX também 
compartilha dessa responsabilidade. Várias teorias urbanas do último século cometeram um 
grave equívoco ao idealizarem cidades para os carros, em detrimento das necessidades das 
pessoas que iriam habitá-las. Ainda hoje persiste a idéia de que, se o problema do trânsito for 
resolvido, então o desempenho da cidade será satisfatório. Simplesmente, essas idéias ignoram 
o fato de que a circulação de pessoas e bens constitui apenas uma das muitas funções da 
cidade, e que os veículos motorizados somente são um dos agentes dessa função, juntamente 
com pedestres, ciclistas e a frota dos sistemas públicos de transportes. 
Freqüentemente as soluções adotadas para os conflitos na circulação urbana têm sido 
no sentido de acomodar um número cada vez maior de veículos, por meio de duplicações de 
vias, ampliações de estacionamentos, mesmo que, para isso, os demais usos e funções da 
cidade sejam prejudicados. Na maioria dos casos, é o pedestre que se vê privado da parte da 
cidade que lhe cabe. 
Em resposta a essa postura, surgiram inúmeros grupos e movimentos organizados em 
favor da redução do número de carros nas cidades. Alguns dos que têm recebido maior 
destaque no cenário internacional são: Critical Mass (São Francisco, 1992), Reclaim the Street 
 
1
 JACOBS, 2007, p.382 
2
 MASCARÓ e YOSHINAGA, 2005, p.13 
 3 
(Londres, 1995), Car Busters (1997) e Car-Free Network, uma rede global formada por 
cidades que, entre outras ações, instituíram o Dia Sem Carro (Car-Free Day), celebrado no dia 
22 de setembro. No Brasil, a adesão a esses movimentos é ainda muito baixa, mas várias 
cidades já têm conseguido organizar “bicicletadas” e outros eventos que contam com um 
número crescente de participantes. 
No campo da prática do planejamento urbano, há algum tempo as políticas de 
privilégios aos carros deixaram de ser hegemônicas e várias cidades, em diferentes países, 
tornaram-se referências internacionais no combate à proliferação descontrolada dos 
automóveis. As soluções empregadas, algumas das quais serão apresentadas na última seção 
deste trabalho, são bastante variadas, passando pela implantação de sistemas eficientes de 
transporte coletivo até a eliminação completa dos carros. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4 
2. IMPACTOS NEGATIVOS DO AUTOMÓVEL 
 
O automóvel está tão presente em nossa sociedade, que nos é necessário um certo 
esforço para conseguirmos imaginar como viveríamos sem ele. Desde que foi iniciada sua 
produção em série e sua utilização em larga escala, ele deixou de ser apenas um meio de 
transporte. Tornou-se algo tão natural quanto a própria vida nas cidades, com forte e, muitas 
vezes, imperceptível influência sobre os usos e costumes da população urbana, de forma que 
podemos identificar a existência de uma “cultura do automóvel”. E, assim como qualquer 
elemento que faça parte de um sistema cultural, o carro é hoje normalmente aceito sem 
questionamentos e sua presumida eficiência é poucas vezes contestada. 
Não só por força de expressão, mas pela real impossibilidade de contabilizá-los, são 
inúmeros os problemas que o carro traz à sociedade. Para a maioria das pessoas, contudo, 
raramente a origem dos problemas é identificada no modelo de mobilidade que adotamos, que 
privilegia o veículo motorizado individual, em detrimento dos meios de transporte coletivos, 
dos não-motorizados e, principalmente, dos pedestres. Mesmo no caso dos sintomas mais 
evidentes (como os congestionamentos e os acidentes de trânsito), é mais conveniente atribuir 
a culpa à insuficiência de faixas de rolamento e de vias de trânsito rápido, ao excesso de 
semáforos e cruzamentos, à lentidão dos ônibus, à imprudência de ciclistas e pedestres, enfim, 
a tudo o que possa funcionar como um obstáculo à livre circulação dos carros. É como se a 
cidade fosse um grande circuito de corrida e o motorista, o dono das ruas, como normalmente 
sugerem as campanhas publicitárias. 
Os transportes não podem ser tratados por políticaspontuais, dissociadas da realidade 
da cidade em sua totalidade. Apesar da complexidade do tema, a fórmula básica é simples: 
mais carros, mais problemas de organização espacial da cidade. No entanto, é necessário que 
os males causados pelos carros sejam corretamente identificados e analisados, pois, sem um 
diagnóstico adequado, as soluções propostas terão pouca ou nenhuma eficácia, contribuindo 
para a perpetuação das situações problemáticas. 
Uma dificuldade que se apresenta na execução da tarefa de identificação e análise de 
problemas reside na impossibilidade de classificá-los em categorias estanques. Os impactos 
que o carro provoca têm implicações espaciais e, ao mesmo tempo, sociais, econômicas, 
políticas, ambientais, etc, e estas são mútua e intrinsecamente relacionadas. O que segue é um 
esforço de sistematização sucinta dos tipos de problemas advindos da dependência do 
automóvel, o que não significa que estes não possam ser classificados de outras maneiras ou 
que não haja ainda outros tipos de problemas advindos do uso intensivo deste meio de 
transporte. 
 
2.1. IMPACTOS AMBIENTAIS 
Ao lado dos congestionamentos, os impactos ambientais causados pela utilização dos 
automóveis são os mais alardeados pelos veículos de comunicação. Em uma época em que o 
fenômeno do aquecimento global é um tema recorrente e motivo de preocupação generalizada, 
os males produzidos pelas emissões veiculares tornam-se cada vez mais evidentes. Da escala 
local à global, os veículos motorizados são importantes agentes causadores de desequilíbrios 
nas condições ambientais naturais. 
 5 
2.1.1. Consumo de energia 
Nos últimos dez anos, o consumo de energia pelo setor dos transportes aumentou em 
taxas superiores a qualquer outra atividade econômica. Além disso, o setor de transportes se 
diferencia dos demais pela dependência quase exclusiva de apenas um tipo de combustível, o 
derivado do petróleo, não-renovável e altamente poluente. Ele representa cerca de 95% da 
energia consumida pelos transportes, enquanto as atividades residenciais e industriais já 
dispõem de diversas fontes energéticas alternativas3. 
Dos meios de transporte mais comumente utilizados em áreas urbanas, o carro é aquele 
que mais consome energia (Gráfico 01). Uma pessoa que se desloca de automóvel gasta, por 
exemplo, quase cinco vezes a quantidade de energia consumida por um passageiro de ônibus 
comum4. Essa relação tende a ser ainda maior nos países em desenvolvimento, onde a frota é 
composta majoritariamente por carros mais velhos e menos eficientes. 
0,0 0,0
3,2 3,5
4,1 4,3
11,0
19,3
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
A pé Bicicleta Ônibus
articulado
Ônibus
biarticulado
Ônibus
comum
Metrô Motocicleta Carro
* GEP = gramas equivalentes de petróleo para mover um passageiro por quilômetro
EN
ER
G
IA
 
(G
EP
/p
a
ss
-
km
*
)
 
GRÁFICO 01: Consumo energético dos modos de transporte 
Fonte: ALQUÉRES e MARTINES, 1999, in VASCONCELLOS, 2005 
 
Na busca de soluções para a produção de “energias limpas”, o caso brasileiro constitui 
uma exceção, devido à utilização do etanol, derivado da cana-de-açúcar. Na maioria dos 
países, mesmo nos mais desenvolvidos, ainda não se verifica uma significativa 
competitividade dos combustíveis alternativos em relação àqueles provenientes do petróleo. A 
produção dos biocombustíveis, por exemplo, além dos altos custos, apresenta o grande 
inconveniente de transformar extensas áreas agrícolas produtivas em monocultura. 
 
2.1.2. Poluição atmosférica 
As emissões poluentes tendem a ser abundantes nos grandes centros urbanos, 
particularmente naquelas cidades com altas taxas de motorização, onde existem longos 
engarrafamentos e maior quantidade relativa de carros antigos (mais poluentes). Em escala 
 
3
 IPCC, 2007, p.328 
4
 VASCONCELLOS, 2005, p.71 
 6 
mundial, os veículos motorizados constituem a maior causa isolada da poluição atmosférica, 
respondendo por aproximadamente 23% das emissões de combustíveis fósseis5. 
O processo de queima de combustíveis fósseis para obtenção de energia no setor de 
transportes tem como produto principal o dióxido de carbono (CO2), o maior agente causador 
do chamado efeito estufa, além de outros gases, como o metano (CH4), o dióxido de nitrogênio 
(N2O), e clorofluorcarbonos (CFC), que também contribuem para o processo de aquecimento 
climático do planeta. 
Além de induzirem significativas transformações no clima, os veículos motorizados 
produzem também diversas substâncias potencialmente danosas à saúde humana, como o 
ozônio (O3), monóxido de carbono (CO), dióxido de enxofre (SO2), dióxido de nitrogênio 
(NO2), chumbo (Pb) e diversas partículas sólidas, que permanecem em suspensão na 
atmosfera. 
Especialistas têm alertado que, se no prazo de dez anos não for alterada toda a matriz 
energética do planeta, o processo de aquecimento global poderá ser irreversível. No setor de 
transportes, o desafio é enorme: não basta que as indústrias produzam carros mais eficientes e 
menos poluentes, pois os modelos antigos continuarão em circulação, sobretudo nos países 
mais pobres. Seria necessária a substituição ou até mesmo a desativação da maior parte da 
frota de veículos, o que geraria outro grave problema: a produção de um grande volume de 
resíduos sólidos. 
 
2.1.3. Poluição sonora 
Em cidades com grande concentração de veículos, os ruídos causados pelos 
automóveis normalmente chegam a níveis prejudiciais à saúde humana e interferem na 
produtividade dos trabalhadores. A exposição prolongada aos ruídos do tráfego de veículos, 
além de provocar defeitos auditivos, pode causar estresse, insônia e elevados índices de 
irritação e agressividade. 
Em matéria publicada no dia 18 de abril de 2008 no jornal The New York Times, a 
cidade do Cairo é descrita como um local onde as pessoas não conseguem ouvir sua própria 
voz. Na capital egípcia, onde convivem milhões de pessoas e veículos, o nível médio de ruído 
é de 85 dB, muito acima do limite recomendado pelas autoridades médicas6. Este é apenas um 
exemplo, não muito diferente do que ocorre na maioria das grandes cidades, em vários países. 
 
2.2. IMPACTOS SOCIAIS 
O trânsito de uma cidade pode ser visto como um complexo sistema do qual participam 
diversos agentes, cada um com seus papéis definidos. Eduardo Vasconcellos (2005) classifica 
esses papéis em função do modo de transporte utilizado, como no quadro a seguir: 
 
 
 
5
 IPCC, 2007, p.328 
6
 A Organização Européia (OEDC) recomenda que o ruído do tráfego não exceda 65 dB. 
 7 
TIPO DE TRANSPORTE RELAÇÃO COM TRÂNSITO PAPEL 
Pedestre sozinho Ativo 
Pedestre acompanhado 
Residente 
Visita / convidado 
Proprietário de loja 
Freguês de loja 
Não mecanizado 
Passivo 
Usuário de equipamento público 
Ativo (não-motorizado) Ciclista 
Motociclista 
Motorista de auto 
Motorista de táxi 
Motorista de ônibus 
Motorista de caminhão 
Passageiro de auto 
Passageiro de táxi 
Ativo (motorizado) 
Passageiro de ônibus 
Mecanizado 
Fiscalização Policial 
Planejador urbano 
Planejador de transporte Planejamento 
Planejador de trânsito 
Indústria da construção 
Indústria automotiva 
Indústria imobiliária 
Papéis especiais indiretos 
Atividade interessada 
Comércio 
QUADRO 01: Papéis desempenhados no sistema de trânsito 
Fonte: VASCONCELLOS, 2005 
 
A mecanização do transporte gera uma clara mudança na capacidade de locomoção dos 
indivíduos, mais ainda quando entram em cena os veículos motorizados. “Quando essas 
tecnologias são introduzidas, o acesso a elas não é igualmente distribuído. Isto vale para 
qualquer sociedade, a qualquer tempo.”7 
Em nossa sociedade, possuir um automóvel transformou-seem regra, ou, pelo menos, 
em uma meta a ser por todos alcançada. Aqueles que não têm acesso a esse bem passam por 
desvantagens econômicas e sociais. É evidente a força que o carro possui como símbolo de 
status social, o que é reafirmado constantemente pelo imenso aparato publicitário formado em 
torno do automóvel (como se sabe, a propaganda da indústria automotiva cria a ilusão de 
liberdade do motorista, promove a segregação e incentiva o desrespeito às normas de trânsito). 
Nesse sentido, o carro é claramente um elemento de exclusão social, na medida em que 
será sempre privilégio para alguns. Segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos 
(ANTP), menos de 30% da população brasileira faz seus deslocamentos com a utilização do 
automóvel (Gráfico 02). Se os motoristas são minoria, então não é socialmente justo que as 
cidades sejam adaptadas às necessidades dos carros, e nem que os cidadãos que não usam esse 
meio de locomoção vejam seus impostos gastos em melhorias para a circulação de veículos. 
Também não é justo que, pelos mesmos impostos pagos, um carro estacionado ocupe cerca de 
 
7
 VASCONCELLOS, 2005, p.24 
 8 
10m² de área pública, que poderia ser utilizada por um maior número de pedestres e ciclistas. 
Para acomodar os carros, são criados nas cidades verdadeiros “mares” de estacionamento, que 
invariavelmente acabam por eliminar a vida social das ruas. 
Existe uma profunda relação entre as estruturas espaciais e a vida social das cidades e, 
uma vez que estas se adaptem preponderantemente às necessidades dos automóveis, haverá 
sérios prejuízos quanto ao nível de urbanidade. Os espaços destinados aos carros fragmentam 
o tecido urbano, causando segregação entre as diferentes partes da cidade. As vias e 
estacionamentos atuam como barreiras ao movimento de pedestres e resultam em espaços 
impessoais, impróprios ao florescimento da vida urbana. 
 
A pé
35%Bicicleta3%
Coletivo
32%
Moto
2%
Automóvel
28%
 
GRÁFICO 02: Divisão modal dos transportes no Brasil 
Fonte: ANTP / Ministério das Cidades, 2003 
 
Além da exclusão social, existem evidências de que, para o indivíduo, o carro funciona 
como uma “bolha”, um ambiente selado onde o motorista se isola do ambiente e das pessoas 
que o envolvem. Já é lugar-comum afirmar que o processo de suburbanização das grandes 
cidades, com a imposição de longas distâncias entre as residências e os locais de trabalho, 
enfraqueceu sobremaneira as relações sociais e os vínculos comunitários de vizinhança. Se o 
individualismo moderno é filho do capitalismo, então ele pode ser considerado irmão do 
automóvel. 
No trânsito congestionado das grandes cidades, todos os dias parece delinear-se uma 
guerra de todos contra todos. A disputa por espaço é capaz de induzir significativas mudanças 
comportamentais nos indivíduos, que afetam tanto outras pessoas (agressividade, descortesia) 
como ele próprio (irritação, estresse). A pretensa liberdade dos motoristas tem como 
complemento o cerceamento da liberdade de outros, não só pedestres e ciclistas, que são 
obrigados a ceder espaço, mas também dos demais motoristas, presos em longos 
engarrafamentos. 
 
 
 9 
2.2.1. “Acidentes de trânsito” 
O relatório publicado em 2004 pela Organização Mundial da Saúde8 indicou que, 
naquele ano, 1,2 milhão de pessoas morreram em acidentes de trânsito e mais de 50 milhões 
ficam feridas. No Brasil, estima-se que, anualmente, cerca de 35 mil pessoas sejam vítimas 
fatais de acidentes envolvendo veículos, e outras 400 mil sejam feridas9. Com cifras tão 
elevadas, o próprio uso do termo “acidente” de trânsito parece inadequado. Um acidente é 
sempre algo imprevisto e, a partir do momento em que as mortes no trânsito tornam-se dados 
estatísticos mais ou menos constantes, elas podem ser consideradas uma conseqüência natural 
e inerente a um sistema de mobilidade que privilegia o veículo motorizado individual, ainda 
que essa conseqüência não seja desejada. No caso brasileiro, essa conseqüência indesejada é 
ainda mais injusta, pois a maior parte dos mortos no trânsito são pedestres e ciclistas (28,9% e 
4%, respectivamente), os agentes mais vulneráveis do sistema de trânsito10. 
Em entrevista coletiva concedida no dia 22 de janeiro de 2008, em Brasília, o Ministro 
da Saúde José Gomes Temporão declarou que o Brasil vive atualmente uma epidemia de 
acidentes de trânsito, opinião da qual compactuam muitos especialistas. No dia anterior, a 
imprensa brasileira dava destaque a um suposto surto de febre amarela, que, segundo os 
registros oficiais, já havia levado a óbito, do início do ano até aquela data, oito pessoas. No 
mesmo período, os acidentes de trânsito tiraram a vida de cerca de 1.900 pessoas, mas o fato 
continua a ser tratado como se não fosse um assunto de saúde pública. 
 
2.3. IMPACTOS ECONÔMICOS 
Com as inovações introduzidas por Henry Ford, na década de 1920, a indústria 
automotiva transformou-se em um modelo a ser seguido por boa parte dos produtores de bens 
de consumo duráveis e um dos principais agentes do sistema capitalista. Baseado na linha de 
produção em massa de bens de consumo padronizados, o fordismo se tornou possível com a 
substituição do trabalhador qualificado por trabalhadores semi-qualificados nas linhas de 
montagem automatizadas, o que possibilitou um controle minucioso sobre o processo de 
produção e um aumento extraordinário na produtividade industrial. 
A influência da indústria automotiva se mostra também pelo fato de estarem atreladas a 
ela diversas outras indústrias, que vão desde os produtores de matérias-primas (borracha, aço, 
plástico, vidro, material elétrico, etc), passando pelos derivados do petróleo, até as 
empreiteiras (infra-estrutura para comportar o tráfego de veículos), entidades financeiras de 
seguros, agências de publicidade, entre outras. Assim, se a indústria automotiva vai mal, os 
prejuízos são sentidos em vários outros setores da economia. Prova-o a lista das maiores 
empresas do mundo, elaborada anualmente pela revista Fortune (Quadro 02). Na edição de 
2007, das dez primeiras colocadas no ranking, seis são do ramo petroleiro e três, da indústria 
automotiva. O topo da lista é ocupado por uma rede varejista cuja clientela é quase 
exclusivamente formada por motoristas, haja vista os imensos estacionamentos de que suas 
lojas dispõem. 
 
 
8
 WHO, 2004, in VASCONCELLOS, 2005, p.81 
9
 Ministério da Saúde, 2007 
10
 Dados relativos ao ano de 2004, segundo levantamentos do Ministério da Saúde. 
 10 
 
 
 EMPRESA PAÍS SETOR 
1 Wal-Mart EUA Varejo 
2 Exxon-Mobil EUA Petróleo 
3 Shell Inglaterra / Holanda Petróleo 
4 BP Inglaterra Petróleo 
5 GM EUA Automóveis 
6 Toyota Japão Automóveis 
7 Chevron EUA Petróleo 
8 DaimlerChrysler Alemanha / EUA Automóveis 
9 ConocoPhillips EUA Petróleo 
10 Total França Petróleo 
QUADRO 02:Maiores empresas do mundo em 2007 
Fonte: Fortune Magazine 
 
Além dos impactos macroeconômicos, quase todos os demais aspectos considerados 
(sociais, funcionais, ambientais, etc) trazem, de certa forma, implicações econômicas. Por 
exemplo, os acidentes de trânsito no Brasil geram anualmente um custo estimado em quase R$ 
30 bilhões11, o que corresponde a cerca de 1,6% do PIB brasileiro. Os cálculos envolvem 
custos diretos e indiretos, associados ao atendimento médico-hospitalar e reabilitação, 
atendimento policial e de agentes de trânsito, congestionamentos, danos ao equipamento 
urbano e propriedade de terceiros, perda de produção e ao custo previdenciário, entre outros. 
Só na Grande São Paulo, os acidentes de trânsito causam prejuízos da ordem de R$ 1,4 bilhão 
ao ano, valor suficiente para construir 803 escolas de ensino fundamental e 1.600 creches bem 
equipadas.Por outro lado, a construção de autopistas e estacionamentos transforma amplas 
parcelas do solo urbano em áreas improdutivas, onerando toda a população. Uma vez que os 
carros eliminam a vida das ruas, todo o comércio tradicional das ruas é prejudicado, sendo 
favorecidos os grandes estabelecimentos comerciais e poucos grupos associados aos 
hipermercados e shopping centers, que oferecem grandes áreas de estacionamento. 
 
2.4. PROBLEMAS FUNCIONAIS 
Os problemas funcionais do uso do automóvel decorrem basicamente da demanda de 
espaço para ocupação pelos veículos, tanto para circulação como para estacionamento, e de 
sua baixa capacidade para transportar pessoas (Gráfico 03). É possivelmente nesse ponto que o 
carro se mostra mais ineficiente, se comparado aos demais modos de transporte, inclusive os 
não-motorizados. 
 
 
11
 IPEA / DENATRAN, 2006 
 11 
 
GRÁFICO 03: Número de pessoas que circulam por hora em uma 
faixa de tráfego. 
Fonte: Ministério das Cidades, 2007. 
 
A respeito da ocupação do solo urbano pelos automóveis, Eduardo Vasconcellos 
(2005), nos dá um exemplo bastante elucidativo: Nos horários de pico, a ocupação média de 
um carro é de 1,5 pessoas, enquanto um ônibus é capaz de transportar 70 passageiros. Em 
outras palavras, seriam necessários 46 carros para transportar as mesmas 70 pessoas que 
poderiam utilizar o ônibus, sem contar a área requerida para estacionamentos. Trata-se de um 
cálculo primário: uma pessoa viajando de carro ocupa, em média, um espaço 23 vezes maior 
do que um passageiro de ônibus. Além disso, os transportes coletivos deslocam somente 
pessoas, que se tornam pedestres em seu local de destino. Os carros, além de carregarem 
pessoas, precisam de espaço para eles mesmos, que passam cerca de 90% do tempo 
estacionados. 
 
 
Tráfego congestionado Motoristas sem carros “Ônibus invisível” Tráfego fluido 
FIGURAS 01 a 04: Como transportar 35 pessoas? 
Fonte: ROBERT, 2005 
 
Além disso, a mobilidade proporcionada pelos carros foi um dos fatores que 
contribuíram para o espraiamento das cidades, mediante a ocupação de amplas áreas 
residenciais com baixa densidade. Este fato tornou-se um problema cíclico: ao passo que o 
carro oferecia flexibilidade nos deslocamentos e possibilidade de percorrer maiores distâncias, 
uma significativa parte da população urbana decidiu se mudar para longe dos centros das 
cidades, muitas vezes barulhentos, sujos e violentos. Por outro lado, a baixa ocupação dos 
 12 
subúrbios torna economicamente inviável a implantação de um sistema eficiente de transporte 
público, o que faz do carro uma necessidade para a locomoção diária até o local de trabalho. 
Existe uma relação biunívoca do uso do solo com o trânsito e os transportes urbanos: 
cada edificação gera, em maior ou menor escala, uma necessidade de deslocamento que 
precisa ser atendida; por outro lado, os deslocamentos de veículos, pessoas e cargas interferem 
na forma como as edificações são implantadas e utilizadas. Se a maior parte das atividades 
econômicas e dos empregos está concentrada no centro das cidades e as habitações, em 
regiões periféricas, é evidente que haverá, pelos menos em dois períodos do dia, enorme 
volume de deslocamentos simultâneos, um centrípeto e outro centrífugo. Prevalecendo a 
opção pelo automóvel para realizar esses deslocamentos, a demanda por espaço será 
elevadíssima. Esta, sempre que não atendida, terá como conseqüência lógica a ocorrência de 
congestionamentos cada vez mais longos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 13 
3. A CIDADE DO AUTOMÓVEL 
 
A dependência do automóvel não é simplesmente uma questão de escolha de um modo 
de locomoção. Mais do que isso, ela possui estreitas relações com o tipo de cidade em que 
vivemos, como bem expressado por Jane Jacobs: 
“Os automóveis costumam ser convenientemente rotulados de vilões e responsabilizados pelos 
males das cidades e pelos insucessos e pela inutilidade do planejamento urbano. Mas os 
efeitos nocivos dos automóveis são menos a causa do que um sintoma de nossa incompetência 
no desenvolvimento urbano. (...) Os planejadores, inclusive os engenheiros de tráfego (...) não 
sabem o que fazer com os automóveis nas cidades porque não têm a mínima idéia de como 
projetar cidades funcionais e saudáveis – com ou sem automóveis.”12 
Os antigos romanos definiam a cidade como a união indissociável entre urbs (território 
físico da cidade) e civitas (comunidade dos cidadãos que nela habitam). A entrada na era 
industrial e as concentrações demográficas sem precedentes por ela induzidas causaram o 
divórcio dessa associação ancestral e, em pouco mais de um século, em várias partes do 
mundo, as cidades passaram por transformações tão profundas, que nem se pode chamá-las de 
evolução, mas de uma verdadeira mutação.13 
É no contexto das primeiras reflexões sobre o impacto espacial da revolução industrial, 
ainda no século XIX, que surge a noção de urbanismo, “uma disciplina que se diferencia das 
artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e crítico, e por sua pretensão científica”.14 
Porém, a reflexão inicial realizada por indivíduos de diversas áreas de conhecimento 
(políticos, médicos, economistas, biólogos, donos de indústria) não foi capaz de dar forma 
prática aos questionamentos propostos, situando-se na dimensão da utopia. O urbanismo, 
propriamente dito, aparece um pouco mais tarde, como uma atividade de especialistas, quando 
as idéias e intenções passam a aplicar-se a uma tarefa prática. 
Segundo CHOAY (2005), as idéias subjacentes ao pré-urbanismo e ao urbanismo, 
conforme se orientem para o futuro ou para o passado, podem ser classificadas basicamente 
em duas correntes. A primeira, denominada progressista, tem o conceito de modernidade 
como idéia-chave, visa o progresso e a produtividade, baseada na crença de que a 
industrialização significa uma ruptura histórica radical e benéfica. Os progressistas concebem 
o indivíduo humano como tipo, “independente de todas as contingências e diferenças de 
lugares e tempo, e suscetível de ser definido em necessidades-tipo cientificamente 
dedutíveis”15. 
A segunda corrente, chamada culturalista, tem objetivos humanistas e ponto de partida 
ideológico não mais na idéia de progresso, mas de cultura. Os que assumem essa postura 
apontam para o “desaparecimento da antiga unidade orgânica da cidade, sob a pressão 
desintegradora da industrialização”16, formando uma imagem nostálgica da cidade que já não 
existe. 
 
12
 JACOBS, 2007, p.06 
13
 CHOAY, 1994, p.26 
14
 Idem, 2005 
15
 Ibidem, p.08 
16
 Ibidem, p.11 
 14 
Ao modelo culturalista correspondem as idéias de Camillo Sitte, Ebenezer Howard e 
Raymond Unwin. O modelo progressista é representado, principalmente, por Le Corbusier, 
cujas formulações doutrinárias são materializadas na Carta de Atenas, redigida na ocasião da 
realização do quarto encontro do CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), 
em 1933. Apesar das evidentes diferenças, os dois modelos têm em comum o método que 
parte da “análise crítica da cidade existente e elaboração a contrario de um modelo de cidade 
passível de ser construída e reproduzida ex nihilo”.17 
Em termos de realizações concretas, nunca houve equilíbrio quantitativo entre os dois 
modelos, o que se verifica pela grande superioridade numérica de cidades com características 
correspondentes ao ideário progressista, sobretudo na segunda metade do século XX. São os 
planos inspirados neste modelo que produzirão o que, de acordo com o ângulo de abordagem 
do presente trabalho, se pode chamar de cidade do automóvel. 
 
3.1. O MODELO PROGRESSISTA 
O próprio termoutilizado define o pensamento urbanístico progressista como fascinado 
e dominado pela idéia de progresso. É orientado para o futuro e com forte viés racionalista, 
apostando na ciência e na técnica para resolver os problemas decorrentes da relação dos 
homens com seu meio e entre si. Menos analítica e crítica do que o culturalismo, a corrente 
progressista é fortemente ideologizada e, por isso, traz pouca contribuição ao entendimento do 
fenômeno urbano. 
 A este pensamento corresponde um modelo de cidade e de espaço urbano que pode ser 
caracterizado por: espaço amplamente aberto (Figuras 05 e 06), rompido por vazios e verdes; 
traçado urbano segundo supostas funções da cidade e regido por uma geometria rígida e 
elementar; aglomerações pouco densas, fragmentadas e atomizadas. Todas essas 
características contribuem conjuntamente para que não haja, na cidade progressista, uma 
atmosfera propriamente “urbana”, tal como exercitado ao longo da história das cidades. 
 
 
FIGURAS 05 e 06: Dois exemplos de projetos progressistas: a Cité Industrielle, de Tony Garnier (à esquerda), e o Plan 
Voisin de Paris, de Le Corbusier (à esquerda) 
 
 
 
17
 CHOAY, 1994 
 15 
 A excessiva abertura do espaço progressista surgiu, inicialmente, como uma exigência 
de cunho higienista, garantindo acesso universal à luz, ao ar e à água, justificando a existência 
de vazios e áreas verdes em abundância. Porém, a conseqüência disto foi o alto grau de 
indefinição do espaço público, que se tornou meramente fundo neutro e impessoal, sobre o 
qual se distribuem os edifícios isolados. 
A ordem do espaço progressista é regida pela geometria simples e a ausência de 
identidade provém, em grande parte, da recusa de qualquer herança artística do passado e, 
paradoxalmente, a cidade progressista nasce igualmente na prancha de desenho, como uma 
composição do urbanista, da mesma forma como faria um artista de tradição nas belas-artes. O 
projeto progressista se compõe de formulações que desconsideram qualquer comportamento 
social que se desvie da tipicidade característica de sua idéia de indivíduo, fazendo preponderar 
a urbs sobre a civitas. 
No conjunto das práticas urbanas, a circulação é concebida como uma função 
dissociada das demais atividades, pois a antiga ligação entre as vias de circulação e as 
edificações é considerada um resquício da antiga cidade e incompatível com os novos tempos. 
A esse respeito, Françoise Choay afirma que: 
“a rua não é, portanto, somente abolida em nome da higiene, na medida em que ‘simboliza em 
nossa época a desordem circulatória’. A ordem circulatória, aliás, corre muitas vezes o risco 
de terminar em submissão incondicional ao poder do automóvel, do qual se opõe dizer, não 
sem alguma justiça, que sozinho terminaria por determinar a posição de um grande número 
de projetos”.18 
A submissão à ordem maquinista e o desprezo pelas realidades concretas dão às 
aglomerações progressistas um caráter claramente limitador e repressivo, ignorando o fato de 
ser a cidade uma entidade viva, produto de uma cultura e sensível à dinâmica social. E não se 
trata de algo que se poderia chamar de “lado oculto” do modelo, uma vez que a Carta de 
Atenas abertamente o declara em seu programa: 
 “A cidade adquirirá o caráter de uma empresa estudada de antemão e submetida ao rigor de 
um planejamento geral. Sábias previsões terão esboçado seu futuro, descrito seu caráter, 
previsto a amplitude de seus desenvolvimentos e limitado, previamente, seu excesso.”19 
 
3.1.1. A Carta de Atenas (1933) e o automóvel 
O documento produzido pelo CIAM em 1933 pode ser considerado uma espécie de 
cartilha do urbanismo moderno e, por isso, um dos mais elevados níveis de expressão do 
pensamento urbanístico progressista. Em diversos trechos, podem ser extraídos alguns 
princípios que confirmam a tese de que a cidade moderna se confunde com a cidade do 
automóvel: 
a) Exaltação à supremacia da máquina: 
 “Sobreveio a era do maquinismo. A uma medida milenar, que se poderia crer imutável, a 
velocidade do passo humano, somou-se uma medida em plena evolução, a velocidade dos 
veículos mecânicos.”20 
 
18
 Ibidem, p.22 
19
 CIAM, 1933, p.32 
 16 
 b) A circulação é uma função urbana independente e deve estar dissociada dos demais usos da 
cidade: 
“A casa então não estará mais unida à rua por sua calçada. A circulação de desdobrará por 
meio de vias de percurso lento para uso de pedestres, e de vias de percurso rápido para o uso 
dos veículos. Cada uma dessas vias desempenhará sua função, só se aproximando 
ocasionalmente da habitação.”21 
c) A locomoção não-motorizada é um anacronismo da cidade moderna: 
“As grandes vias de circulação foram concebidas para receber pedestres ou coches; hoje elas 
não correspondem aos meios de transporte mecânicos. (...) Aquilo que era admissível e até 
mesmo admirável no tempo dos pedestres e dos coches pode ter-se tornado, atualmente, uma 
fonte de problemas constantes.”22 
d) A cidade moderna prescinde do espaço e das distâncias físicas: 
“Graças ao aperfeiçoamento dos meios mecânicos de transporte, a questão da distância não 
desempenha mais, no caso, um papel preponderante.”23 
e) O desenho da cidade moderna deve ser feito em função dos veículos mecanizados: 
“As vias de circulação devem ser classificadas conforme sua natureza, e construídas em 
função dos veículos e de suas velocidades. (...) Os cruzamentos das ruas atuais, situados a 
100, 50, 20, ou mesmo 10 metros de distância uns dos outros, não convêm à boa progressão 
dos veículos mecânicos. Espaços de 200 a 400 metros deveriam separá-los.”24 
f) A cidade não deve oferecer obstáculos à livre circulação dos veículos motorizados: 
“Os veículos em trânsito não deveriam ser submetidos ao regime de paradas obrigatórias a 
cada cruzamento, que torna inutilmente lento seu percurso. Mudanças de nível, em cada via 
transversal, são o melhor meio de assegurar-lhes uma marcha contínua.”25 
g) A técnica urbanística é capaz de compatibilizar a circulação dos automóveis com a cidade: 
“A circulação tornou-se hoje uma função primordial da vida urbana. Ela pede um programa 
cuidadosamente estudado, que saiba prever tudo o que é preciso para regularizar os fluxos, 
criar os escoadouros indispensáveis e chegar, assim, a suprimir os engarrafamentos e o mal-
estar constante de que são causa.”26 
Após ter traçado as diretrizes para a construção da cidade do automóvel, a Carta de 
Atenas, traz, em sua parte final, sem pudor algum, uma contradição insuperável: 
“O dimensionamento de todas as coisas no dispositivo urbano só pode ser regido pela escala 
humana. (...) A medida natural do homem deve servir de base a todas as escalas que estarão 
relacionadas à vida e ás diversas funções do ser. Escala das medidas, que se aplicarão às 
superfícies ou às distâncias: escala das distâncias, que serão consideradas em sua relação 
com o ritmo natural do homem.”27 
 
20
 Idem, p.04 
21
 Ibidem, p.08 
22
 Ibidem, p.22 
23
 Ibidem, p.23 
24
 Ibidem, p.24 
25
 Ibidem, p.24 
26
 Ibidem, p.25 
27
 Ibidem, p.29 
 17 
Esta última declaração, demasiadamente genérica, soa mais como se os signatários da 
Carta antecipassem suas desculpas por terem excluído os pedestres (as pessoas) de suas 
cidades e decretado o fim da vida urbana. 
 
3.2. CRÍTICA À CIDADE DO AUTOMÓVEL 
 Os princípios progressistas exerceram considerável influência sobre o planejamento de 
cidades na maior parte do mundo, em grande parte devido à sua servidão à sociedade 
industrial e ao modo de produção capitalista, em consolidaçãode maneira planetária. A título 
de exemplo, podem ser citados casos tão diferentes entre si quanto a reconstrução das cidades 
européias arrasadas pela 2ª Guerra Mundial, o remodelamento das grandes cidades na 
ascensão do capitalismo norte-americano e a construção de novas cidades em países em 
desenvolvimento, como, por exemplo, Brasília e Chandigarh. 
 
 
 
Figuras 07 e 08: Brasília (à esquerda) e Los Angeles (à direita): exemplos de cidades feitas para o automóvel 
 
Assim como a nascente cidade industrial do século XIX, a cidade do século XX, 
concebida sob os ideais progressistas, é alvo de severas críticas. Antes mesmo que os carros 
invadissem as cidades, vários autores já alertavam para os perigos que ele poderia significar 
para a vida urbana. Lewis Mumford percebeu que “o essencial do que foi realizado em matéria 
de extensão urbana e de construção de auto-estradas traduz uma curiosa tendência a privilegiar 
as exigências da máquina em detrimento das aspirações humanas”28. O mesmo autor fez a 
seguinte previsão: 
“Estaremos diante da imensa massa de um tecido urbano indiferenciado e medíocre que, para 
poder realizar suas funções mais elementares, exigirá a participação de um máximo de 
veículos particulares (...).”29 
As primeiras contestações consistentes desse modelo de urbanismo surgiram após a 
Segunda Guerra Mundial, sendo a obra de Jane Jacobs, Morte e Vida de Grandes Cidades, 
publicado em 1961, um marco referencial. A essa obra seguiram-se várias outras, de autores 
urbanistas e não-urbanistas, em defesa de uma vida urbana genuína, que resultaria 
 
28
 MUMFORD, 1960, in CHOAY, 2005, p.288 
29
 Idem 
 18 
principalmente da diversificação de usos do solo urbano e de áreas centrais densamente 
ocupadas. 
Um ponto comum da crítica reside na questão da reabilitação da rua, abolida pela 
cidade moderna. Como observa Jan Gehl30, as ruas e praças, indissociavelmente ligadas às 
edificações, sempre foram, por excelência, o local de desenvolvimento da vida social da 
cidade. Com o advento do funcionalismo moderno, foram substituídas por autopistas e 
passeios traçados aleatoriamente no meio de infindáveis áreas de gramado. 
A importância das ruas para o florescimento da vida urbana é sublinhada por Jane 
Jacobs no seguinte trecho: 
“As ruas das cidades servem a vários fins além de comportar veículos; e as calçadas (...) 
servem a muitos fins além de abrigar pedestres. Esses usos estão relacionados à circulação, 
mas não são sinônimos dela, e cada um é, em si, tão fundamental quanto a circulação para o 
funcionamento adequado das cidades.”31 
Os outros usos a que o trecho acima se refere constituem outro ponto da crítica ao tipo 
de urbanismo dominante no século XX. O ordenamento da cidade segundo zonas 
monofuncionais é quase unanimemente apontado como um dos fatores mais prejudiciais ao 
desenvolvimento daquela como meio de interações sociais. Há quase cinco décadas, Jane 
Jacobs alertava: 
“A inexistência de uma diversidade ampla e concentrada pode levar as pessoas a andarem de 
automóvel por praticamente qualquer motivo. O espaço que as ruas e os estacionamentos 
requerem faz com que tudo fique ainda mais espalhado e provoca um uso ainda mais intenso 
de automóveis.”32 
Na paisagem da cidade do automóvel reina a monotonia, tanto para motoristas como 
para pedestres. Os edifícios são grandes e pobres em detalhes, uma vez que estes não podem 
ser percebidos pela velocidade do carro33. Em vários pontos da cidade, a paisagem é tomada 
pelas placas e anúncios publicitários, que precisam ser grandes e largos o suficiente para 
serem vistos de dentro dos carros em movimento. 
A cidade do automóvel passa também por um processo de desertificação de seu centro, 
acompanhado da formação de grandes áreas residenciais de baixa densidade. A relação entre o 
automóvel e o surgimento das áreas de subúrbio é descrita por Jean-Louis Harouel nas 
seguintes palavras: 
 “Com a vulgarização do automóvel, o subúrbio transforma-se num imenso espaço difuso, em 
perpétuo crescimento, devorando os campos mais distantes. (...) O subúrbio moderno, uma vez 
que se baseia freqüentemente no automóvel, apresenta graves inconvenientes: desperdício de 
espaço, de energia, de tempo, quase inexistência de vida urbana verdadeira.”34 
O processo que ocorre é cíclico e em cadeia: “quanto mais espaço se der aos carros 
nas cidades, maior se tornará a necessidade do uso dos carros e, conseqüentemente, de ainda 
 
30
 GUEHL, 2001, p.47 
31
 JACOBS, 2007, p.29 
32
 Idem, p.253 
33
 GEHL, 2001, p.73 
34
 HAROUEL, 1998, p.107 
 19 
mais espaço para eles.”35 Uma intervenção urbana que favoreça as condições de circulação de 
veículos geralmente só tem efeitos positivos em um prazo curtíssimo. A tendência é que as 
melhorias incentivem ainda mais o uso do carro, o que gerará congestionamentos cada vez 
maiores e causará o esvaziamento dos transportes públicos, que terão suas tarifas aumentadas, 
o que encorajará o uso do automóvel... 
Além disso, as duplicações e alargamentos das vias para o tráfego de veículos obrigam 
pedestres e ciclistas a cederem a sua parcela do solo urbano. As ruas são transformadas em 
“espaços imprecisos, sem sentido e vazios para qualquer pessoa a pé”36. Em vez de congregar, 
o espaço público dispersa; em vez de convidar, repele; em vez de integrar, segrega. É esse o 
resultado do processo que Jane Jacobs chama de “erosão da cidade pelos carros” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
35
 JACOBS, 2007, p.391 
36
 Idem, p.377 
 20 
4. CIDADES PARA PESSOAS 
 
Nos últimos trinta anos, várias cidades, especialmente na Europa, têm passado por 
algum tipo de processo de renovação urbana. Em grande parte, são cidades tradicionais cujo 
centro foi invadido pelos automóveis, tendo como conseqüência o esmorecimento da vida 
urbana e uma queda sensível na qualidade de vida da população. Nesses lugares, a retirada dos 
carros do centro da cidade é freqüentemente encarada como uma medida prioritária, 
imprescindível à tarefa de requalificação e revitalização dos espaços públicos. 
O que se segue é uma breve seleção de exemplos bem sucedidos de planejamento e 
gestão urbana, em cidades que têm se empenhado em reduzir o tráfego de veículos e em 
promover o bem estar de seus cidadãos. As soluções empregadas variam de acordo com as 
peculiaridades e as possibilidades de cada cidade, variando desde melhorias efetivas dos 
transportes públicos até a completa eliminação do carro. 
 
4.1. TRANSPORTE COLETIVO 
Seja com ônibus ou com veículos sobre trilhos (trens, bondes e metrôs), o sistema 
público de transporte coletivo desempenha um papel fundamental na rede de mobilidade 
urbana. Sua capacidade de transportar pessoas é muito maior do que a dos automóveis e ainda 
possui a vantagem de causar relativamente pouco impacto sobre o uso do solo urbano, pois 
dispensa grandes áreas de estacionamento. 
 
4.1.1. Ônibus 
O ônibus é o meio de transporte público mais utilizado na maioria das cidades 
brasileiras. Muitas vezes, no entanto, as frotas sucateadas e a ausência de um planejamento 
específico tornam os ônibus pouco atrativos. Mas, dependendo das condições que sejam dadas 
à circulação dos ônibus, estes podem representar um grande potencial para a melhoria da 
mobilidade da população, atingindo níveis de eficiência comparáveis aos veículos sobre 
trilhos. 
Em muitos casos, os ônibus se mostram a única solução economicamente viável para o 
problema dos transportes coletivos urbanos. E, de fato, é justamente no baixo custo de 
implantação e operação que reside uma das grandes vantagens dossistemas integrados de 
ônibus. A criação de faixas e corredores exclusivos geralmente pode se efetivar a partir de 
algumas adaptações relativamente simples no sistema viário já existente. 
Devido às vantagens de ordem econômica, os ônibus têm sido o elemento-chave do 
sistema público de transportes de várias cidades de países em desenvolvimento, como é o caso 
de Curitiba e de Bogotá, duas referências internacionais. 
Em Curitiba, os primeiros ônibus expressos começaram a funcionar já na década de 70, 
no período em que o urbanista Jaime Lerner exercia seu primeiro mandato como prefeito da 
cidade. Em 1980, entram em circulação os ônibus articulados, substituindo os antigos ônibus 
expressos. Logo no início da década de 90, são criadas as Linhas Diretas, servidas pelos 
veículos apelidados pela população de “ligeirinhos”. A adoção de algumas medidas torna 
 21 
ainda mais eficiente o sistema: o pagamento da tarifa é efetuado antes do embarque; os pontos 
de parada (estações-tubo) são plataformas elevadas e os passageiros embarcam e 
desembarcam através de rampas no mesmo nível do piso dos veículos. Hoje a Rede Integrada 
de Transportes (RIT) possui 1.980 ônibus, mais de 70 km de canaletas, vias e faixas 
exclusivas, e atende a 2 milhões de passageiros diariamente. 
 
 
 
Figura 09: “Ligeirinho” e estação-tubo em Curitiba Figura 10: Corredor exclusivo 
do TransMilenio, em Bogotá 
 
Na capital colombiana, funciona desde o ano 2000 o sistema TransMilenio (Figura 10). 
Inspirado no modelo curitibano, foi criado durante a administração do prefeito Enrique 
Peñalosa e implantado num período de apenas três anos. Na prática, o sistema funciona como 
um metrô, mas com a utilização de ônibus articulados e estações elevadas, algumas com 
acesso através de pontes de pedestres. As estações servem às linhas que operam nos dois 
sentidos e as canaletas com pistas duplas permitem a ultrapassagem entre os veículos. Estas e 
outras melhorias conferem ao TransMilenio uma maior capacidade e maiores velocidades em 
relação ao RIT de Curitiba. 
 
4.1.3. Bonde 
Até o início do século XX, várias cidades possuíam bondes puxados a cavalo, que 
foram logo substituídos por bondes elétricos. Com a concorrência de novas formas transporte 
(ônibus, carros, motocicletas, metrô), os bondes foram, na maioria dos casos, 
progressivamente abandonados, até serem completamente desativados em alguns lugares. 
Porém, desde meados da década de 80, tem surgido um novo interesse por esse meio de 
transporte. Uma nova geração de bondes, mais sofisticados e confortáveis, tem aparecido em 
diversas cidades, geralmente acompanhando medidas de restrição ao uso do automóvel. 
 De certa forma, o bonde pode ser considerado um meio-termo entre o ônibus e o metrô 
e, sob diversos aspectos, sua utilização no interior das cidades produz resultados bastante 
vantajosos. Além de silencioso e não-poluente, o bonde oferece poucos riscos aos pedestres, 
pois circula em velocidades relativamente baixas, entre 20 e 30 km/h (ainda assim, maiores 
que a velocidade média de um carro em uma cidade congestionada). Por isso, é comum que as 
linhas de bonde passem no meio de praças e ruas em que o tráfego de veículos não é 
permitido, sem criar barreiras aos pedestres e ciclistas (Figura 11). 
 22 
Dentre muitos outros, pode-se citar a cidade de Estrasburgo, na França, como um 
exemplo do papel central desempenhado pelo bonde no processo de renovação urbana. Após 
algumas medidas restritivas ao tráfego de veículos no centro da cidade, foi inaugurada, em 
1994, a primeira linha de bonde, com 12,6 km de extensão. Vários espaços públicos em 
contato com a linha do bonde foram requalificados e destinados prioritariamente ao bonde e à 
circulação de pedestres e ciclistas. Hoje a cidade já conta com cinco linhas de bonde, que 
totalizam 55 km. Recentemente, uma pesquisa realizada em Estraburgo revelou 63% dos 
habitantes consideram que o automóvel na cidade está ultrapassado e, dos entrevistados, 80% 
concordam que, para melhorar a circulação na cidade, é necessário limitar a utilização do 
automóvel. 
 
 
 
Figura 11: Bonde circulando em 
Rua de pedestres em Estrasburgo 
Figura 12: Mapa das linhas 
de bonde de Estrasburgo 
 
4.1.2. Metrô 
Atualmente, mais de 160 cidades no mundo possuem redes de metrô. O primeiro 
começou a funcionar em 1863, em Londres, cidade que possui hoje a mais extensa rede do 
mundo, com mais de 400 quilômetros. É o mais eficiente veículo de transporte de passageiros. 
Em Moscou, por exemplo, o metrô é responsável pelo deslocamento diário de 9 milhões de 
passageiros. 
Várias cidades destacam-se pela eficiência de seus sistemas metroviários, como Nova 
York, Paris e Tóquio. Nesta, um emaranhado de túneis permite rápido acesso a praticamente 
qualquer ponto da cidade, como se vê no mapa da figura 13. 
Um ponto negativo dos metrôs é o seu alto custo, o que inviabiliza sua utilização por 
mais pobres e naquelas de baixa densidade populacional. 
 23 
 
Figura 12: Mapa do metrô de Tóquio 
 
4.2. TRANSPORTE NÃO-MOTORIZADO 
Os meios de locomoção não-motorizados são representados principalmente pelas 
bicicletas, apesar de existirem outros, como os patins, skates e patinetes, além dos tradicionais 
riquixás, em alguns países asiáticos. Se oferecidas boas condições de segurança e 
trafegabilidade, esses meios de transporte podem ser perfeitamente integrados à rede urbana 
de mobilidade. Entretanto, em muitos países, nos quais o Brasil se inclui, esse tipo de 
transporte ainda é quase sempre visto unicamente como forma de lazer ou equipamento 
desportivo. Sua aceitação como meio efetivo de locomoção não depende apenas da 
implantação de infra-estrutura adequada, mas também de uma mudança de mentalidade e nos 
hábitos da população. 
 
4.2.1. Bicicleta 
Uma pesquisa realizada pela Comissão Européia (2000) revelou que, dos 
deslocamentos efetuados em automóvel, cerca de 30% cobrem distâncias de até 3 km e, em 
média, 50% são inferiores a 5 km. Nesses trajetos urbanos curtos e médios, a bicicleta pode, 
com muitas vantagens, substituir o carro, desde que aos ciclistas sejam oferecidas condições 
mínimas de segurança e infra-estrutura apropriada. Na maioria dos casos, a bicicleta se mostra, 
quanto ao tempo gasto nos deslocamentos, um meio de transporte melhor ou, no mínimo, tão 
 24 
eficiente quanto o automóvel (Gráfico 04). Além disso, ainda gera outras economias e 
benefícios consideráveis, tanto para o indivíduo como para a coletividade urbana: 
- ausência quase total de impacto sobre a qualidade de vida na cidade (nem ruído, nem 
poluição); 
- menor espaço ocupado no solo, tanto para se deslocar como para estacionar; 
- reforço do poder de atração do centro da cidade (lojas, cultura, lazer, vida social); 
- diminuição dos congestionamentos e das perdas econômicas a que estes dão origem; 
- maior poder de atração dos transportes públicos; 
- redução das despesas médicas graças aos efeitos do exercício físico regular; 
- democratização da mobilidade. 
Existem poucas situações objetivamente incompatíveis com a utilização da bicicleta. A 
cidade sueca de Västerås (115 000 habitantes), por exemplo, tem 33% de seus deslocamentos 
feitos de bicicleta, apesar do frio intenso. Em Basiléia (230 000 habitantes), na Suíça, onde o 
relevo não é plano, as bicicletas respondem por 23% dos deslocamentos da população. Várias 
cidades da Dinamarca e da Holanda são grandes exemplos de como a bicicleta pode ser 
efetivamente incorporada ao dia-a-dia da população, a partir de políticas públicas e 
planejamento urbano voltados para esse fim. Nesses lugares, até mesmo ministros de Estado, 
membros do Parlamento e outras figuras ilustres podem ser vistas pedalando até o local de 
trabalho. 
 
GRÁFICO 04: Comparação dos tempos de deslocamento num trajeto de 5 kmFonte: Comissão Européia, 2000 
 
Na Holanda, a bicicleta é o meio utilizado por 27% da população e, das cidades 
holandesas, Groninger (180 mil habitantes) é a que apresenta maior índice de utilização de 
bicicleta, cerca de 40%. Vale lembrar que a Holanda é um dos países mais densamente 
povoados do mundo, o que mostra a relação existente entre cidades compactas e maiores 
oportunidades para os indivíduos viverem sem carros. 
 
 25 
 
Figura 13: Estacionamento para 
bicicletas em Amsterdã 
Figura 14: Ciclistas em Groninger 
 
A cidade de Paris também tem se destacado quanto ao incentivo da utilização da 
bicicleta por parte de seus habitantes. Em 1995, a cidade possuía 8,2 km de ciclovias. Pouco 
mais de uma década depois, as vias cicláveis já somavam mais de 370 km. No período de 
2001 a 2007, a utilização de bicicletas cresceu 48% e, acompanhando essa tendência, a 
Prefeitura de Paris lançou, em julho de 2007, o programa Vélib', um sistema de locação de 
bicicletas públicas, semelhante ao já existente em outras cidades européias. O sistema 
funciona durante as 24 horas do dia e conta com uma estrutura admirável: são cerca de 20.600 
bicicletas e mais de 1.400 estações (em média, uma a cada 300 metros), onde o usuário retira e 
devolve a bicicleta. A intenção do programa é mudar radicalmente a forma de locomoção do 
parisiense, que já conta com um eficiente sistema metroviário. 
 
4.3. PLANEJAMENTO ORIENTADO PARA O PEDESTRE 
Caminhar é uma faculdade humana natural. Assim, uma cidade planejada para pessoas, 
e não para carros, deve oferecer todas as condições para que os pedestres se locomovam com 
conforto e segurança, o que é impossível quando as ruas são tomadas pelos automóveis. Uma 
cidade que privilegie o tráfego de pedestres será conseqüentemente uma cidade mais humana e 
mais democrática, pois a caminhada é o único meio de transporte igualmente acessível a todos, 
com exceção dos que possuem algum tipo de limitação em sua capacidade de locomoção. 
Privilegiar o pedestre não significa necessariamente eliminar os carros por completo. 
Na língua inglesa, emprega-se o termo “car-free” (traduzido literalmente, “livre de carros”) 
para designar uma grande variedade de restrições impostas ao uso dos veículos motorizados. 
As ações podem variar desde as mais simples medidas para a redução das velocidades dos 
carros (lombadas, radares, etc) até o verdadeiro banimento dos automóveis de algumas áreas 
da cidade. 
 
4.3.1. Medidas de indução à redução de velocidade 
As altas velocidades desenvolvidas pelos veículos motorizados representam uma 
grande ameaça à segurança dos pedestres. Convencionalmente, a solução adotada para 
amenizar este problema consiste na imposição de limites de velocidade legalmente 
 26 
estabelecidos e na vinculação dos infratores ao pagamento de multas. Normalmente, esse tipo 
de medida surte pouco ou nenhum efeito, pois os motoristas só se submetem aos limites sob 
rigorosa fiscalização. Métodos mais eficientes de controle de velocidade são aqueles que 
criam obstáculos e barreiras físicas à circulação dos carros. Há inúmeras maneiras para se 
obter bons resultados, das quais citam-se três exemplos: 
a) Traffic calming 
Aplica-se o termo traffic calming a um conjunto de técnicas utilizadas para reduzir a 
velocidade dos carros, principalmente em áreas residenciais, a partir da introdução de 
alterações no desenho das ruas: deflexões horizontais e verticais, estreitamento de vias. Essas 
técnicas já são usadas há aproximadamente quatro décadas, principalmente nos países do norte 
da Europa, Estados Unidos e Canadá. Com o êxito das ações, as técnicas tornaram-se 
instrumentos de uso corrente pelos departamentos municipais de engenharia de tráfego. 
b) Woonerf 
Criação holandesa, uma woonerf é geralmente uma rua recreativa onde, embora 
compartilhem o mesmo espaço, pedestres e ciclistas têm prioridade sobre os veículos. Nessas 
áreas, a legislação de trânsito holandesa limita a velocidade dos automóveis àquela atingida 
por uma pessoa caminhando (cerca de 7 km/h) e restringe o número de vagas de 
estacionamento. Além da redução das velocidades, essas áreas obtêm uma significativa 
diminuição do volume de tráfego. 
 
Figura 15: Desenho esquemático 
de uma woonerf 
Figura 16: Espaço compartilhado 
por carros e pedestres 
 
c) Espaços compartilhados 
Nos chamados espaços compartilhados (no original, shared spaces) não existem 
barreiras físicas à circulação de veículos motorizados e nem separação entre carros e 
pedestres. Com a presença destes, os motoristas são obrigados a dirigir em baixas velocidades. 
A origem dos shared spaces é atribuída ao holandês Hans Monderman, que os introduziu nas 
 27 
cidades de Drachten e Oosterwolde. Em pouco tempo, várias cidades dinamarquesas, inglesas 
e norte-americanas também começaram a empregar essa medida. 
 
4.3.2. Ruas e zonas de pedestres 
As ruas das cidades tradicionalmente servem a três funções básicas: lugar de encontro, 
comércio e circulação37. Com a invasão das cidades pelos carros, as duas primeiras funções 
tendem a diminuir e até desaparecer. A “pedestrianização” de ruas, prática que, nos últimos 
trinta anos, tem sido comum em várias cidades européias, consiste no fechamento de ruas ao 
tráfego de automóveis, com vistas ao restabelecimento do equilíbrio e da complementaridade 
entre as três funções. 
A proibição dos carros em áreas urbanas centrais vem normalmente acompanhada de 
melhorias consideráveis nos sistemas de transporte coletivo e nas condições de circulação de 
pedestres e ciclistas. Obviamente, quase sempre existe inicialmente uma forte resistência por 
parte dos motoristas e de alguns comerciantes. Contudo, a médio e longo prazo, as ruas 
“pedestrianizadas” invariavelmente se mostram benéficas para toda a população envolvida e 
os espaços públicos revitalizados voltam a desempenhar sua função de local de encontro de 
pessoas. 
Apesar de não ter sido o primeiro, um dos casos mais emblemáticos dessa prática 
ocorreu em 1962, em Copenhague, quando a rua principal da cidade (Strøget), antes tomada 
pelos carros, foi convertida em rua para pedestres. A partir daí, iniciou-se um processo gradual 
que, ao longo de quatro décadas, transformou a capital dinamarquesa em um caso exemplar de 
renovação urbana. A cidade possui hoje uma rede de ruas de pedestres interligadas, 
abrangendo uma área total de cerca de 100.000 m², ao longo das quais se localizam os 
principais estabelecimentos comerciais da cidade, além de cafés, restaurantes e praças 
liberadas da presença de veículos (figura 17). 
 
Figura 17: Evolução das ruas de pedestre no centro de Copenhague 
 
37
 GEHL e GEMZØE, 2002 
 28 
Dentre milhares de outros exemplos de ruas de pedestres existentes, podem citar ainda 
as Ramblas (Figura 19), em Barcelona; a Avenue de la Republique, em Lyon e o centro de 
Estrasburgo, na França; a cidade belga de Gent; vários centros urbanos alemães, como 
Friburgo e Stuttgart; antigas cidades italianas, como Siena, e muitas outras cidades do norte da 
Europa (sobretudo na Holanda, Dinamarca, Suécia e Finlândia). Trata-se, na verdade, de um 
fato urbano relativamente novo e que tem ganhado cada vez mais força. Em muitos casos, se a 
iniciativa de retirar os carros das ruas não vem do poder público, é a própria população quem o 
reivindica. 
 
 
Figura 18: Rua Strøget, em Copenhague Figura 19: Las Ramblas de Barcelona 
 
Ainda hoje, é na Europa que se verifica uma maior proliferação de ruas e zonas de 
pedestres. Porém, em outras partes do mundo os planejadores urbanos e administradores 
municipais já começaram a despertar para o fato de que a retirada dos carros constitui um 
importante meio para potencializar o ressurgimento da vida urbana. A exemplo de 
Copenhague,a rua principal de Melbourne, na Austrália, transformou-se em uma rua de 
pedestres (Swanston Street Walk). Na Argentina, cidades como Córboda, Mendoza e Rosario 
têm se esforçado para ampliar suas áreas pedonais. Mesmo nos Estados Unidos, país cujas 
cidades ainda vivem sob o reinado dos automóveis, algumas áreas urbanas centrais, como a de 
Portland, por exemplo, já oferecem espaços propícios à caminhada. 
No Brasil, as áreas exclusivas para pedestres em grandes cidades ainda são pouco 
numerosas. Seguindo o mau-exemplo norte-americano, o brasileiro criou uma verdadeira 
devoção pelo automóvel e, por isso, é necessário que primeiramente passemos por um 
processo de adaptação cultural, para que as limitações ao uso do carro sejam bem aceitas. 
 
4.3.3. Cidades sem carros 
Existem poucos exemplos de cidades totalmente livres dos carros. Em geral, as que 
mais se aproximam dessa condição são cidades antigas, onde os carros nem mesmo chegaram 
a ser introduzidos, como é o caso de Veneza (Itália) e de Fez (Marrocos), esta com mais de 
150 mil habitantes. 
 29 
No exemplo marroquino, poucas ruas ultrapassam os 5m de largura e outras são tão 
estreitas (60 cm), que impossibilitam até a circulação de bicicletas. A maioria das construções 
possuem 2 ou 3 pavimentos e a densidade populacional é de 550 habitantes por hectare. 
 
 
Figura 20: Cena urbana em Veneza Figura 21: Cena urbana em Fez 
 
Além de Fez e Veneza, existem ainda outras cidade menores, em cujo perímetro 
urbano os carros são proibidos. Tal é o caso de Zermatt (Suíça), Louvain la Neuve (Bélgica) e 
Capri (Itália). Além do fato de serem livres dos automóveis, essas cidades apresentam outra 
característica em comum: seus imóveis residenciais estão entre os mais caros do mundo. Em 
todas elas, chama a atenção a grande quantidade de atividades realizadas ruas e a vida urbana 
vibrante. 
O interesse por cidades sem carros permanece atual e se torna cada vez mais comum. 
Exemplo disso é a nova cidade de Masdar, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Com projeto 
do inglês Norman Foster, o empreendimento de 6 milhões de metros quadrados promete ser a 
primeira cidade no mundo neutra em emissões de carbono. Estima-se que a cidade comece a 
ser ocupada já em 2009, só por pessoas, sem carros. 
Essas cidades são provas contundentes de que um ambiente urbano sem carros não é 
algo absurdo ou uma meta inatingível, mas uma possibilidade concreta. 
 
 
Figura 22: Perspectiva aérea de Masdar Figura 23: Rua de Masdar 
 30 
5. CONCLUSÃO 
 
Incontestavelmente, a invasão das cidades pelos carros é fonte de muitos problemas. 
Da poluição aos engarrafamentos, os efeitos maléficos da utilização intensiva dos automóveis 
são o alto preço pago pela coletividade urbana por décadas de concessões de privilégios ao 
veículo automotivo individual. 
Muitas cidades chegaram a uma situação-limite e agora tentam correr contra o tempo, 
na procura de soluções para o trânsito cada vez mais caótico. Na maioria das cidades 
brasileiras, porém, parece existir uma miopia que impede as autoridades municipais de 
perceberem que a solução dos problemas relacionados ao trânsito não está no alargamento das 
pistas ou na criação de mais áreas de estacionamento. Enquanto a estratégia adotada for a de 
acomodar um número cada vez maior de carros, os problemas se multiplicarão em uma 
velocidade muito maior do que as ações de curto e médio prazo possam resolvê-los. 
Especialmente nos países desenvolvidos industrializados, são numerosos os exemplos 
de grandes cidades que já tiveram suas ruas tomadas pelos carros e que hoje caminham em 
direção à redução do número de veículos, ao mesmo tempo em que remodelam seus espaços 
públicos em função dos pedestres e investem na qualidade dos transportes coletivos. É 
lamentável que os países em desenvolvimento desperdicem a oportunidade de aprender com a 
experiência dessas cidades e optem por trilhar o dispendioso caminho que leva à dominação 
pelos automóveis. 
Já se demonstrou que o tipo de planejamento urbano tenha por objetivo criar 
facilidades para os carros possui um enorme poder de minar a vida social das ruas da cidade. 
Os centros urbanos viram depósitos de automóveis durante o dia e permanecem desertos à 
noite. Os espaços públicos tornam-se invariavelmente lugares desagradáveis, por onde os 
pedestres apenas passam rapidamente, já que não há o que ver ou fazer. Ainda assim, muitas 
pessoas simplesmente não conseguem imaginar como seria viver sem os carros. Mas que culpa 
têm elas? Suas cidades foram construídas para os automóveis. 
Na maioria das vezes, a dependência do automóvel não é uma questão de escolha 
pessoal. Se a cidade não possui espaços adequados para a população caminhar, se os 
transportes públicos coletivos são de péssima qualidade, então é óbvio que os indivíduos 
optarão pelo carro. A cidade os obriga a fazer essa escolha. 
A crítica à dominação da cidade pelo automóvel deve visar, acima de tudo, valores 
sociais, sob pena de cair em uma nova versão de luddismo. De nada adianta o simples ataque 
ao automóvel em sua dimensão material, objetiva. A redução do número de veículos nas 
cidades não deve constituir um fim em si mesmo. A luta pela liberação dos espaços urbanos 
ocupados pelos carros deve ser, em última instância, a luta pelo resgate da vida urbana, pelo 
surgimento de uma cidade renovada, que atenda às necessidades das pessoas, e não da 
máquina. 
 
 
 
 
 31 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
 
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