Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DIOGO AGUM DE ANDRADE A CIDADE E O AUTOMÓVEL Ensaio Teórico 1º/2008 DIOGO AGUM DE ANDRADE A CIDADE E O AUTOMÓVEL [versão integral] Orientadora: Prof. Maria Elaine Kohlsdorf Ensaio Teórico 1º/2008 Universidade de Brasília - UnB Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU Departamento de Teoria e História – THAU SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 02 2. IMPACTOS NEGATIVOS DO AUTOMÓVEL 04 2.1. Impactos ambientais 04 2.1.1. Consumo de energia 05 2.1.2. Poluição atmosférica 05 2.1.3. Poluição sonora 06 2.2. Impactos sociais 06 2.2.1. “Acidentes de trânsito” 09 2.3. Impactos econômicos 09 2.4. Problemas funcionais 10 3. A CIDADE DO AUTOMÓVEL 13 3.1. O modelo progressista 14 3.1.1. A Carta de Atenas (1933) e o automóvel 15 3.2. Crítica à cidade do automóvel 17 4. CIDADES PARA PESSOAS 20 4.1. Transporte coletivo 20 4.1.1. Ônibus 20 4.1.3. Bonde 21 4.1.2. Metrô 22 4.2. Transporte não-motorizado 23 4.2.1. Bicicleta 23 4.3. Planejamento orientado para o pedestre 25 4.3.1. Medidas de indução à redução de velocidade 25 4.3.2. Ruas e zonas de pedestres 27 4.3.3. Cidades sem carros 28 5. CONCLUSÃO 30 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 31 2 1. INTRODUÇÃO Há quase cinqüenta anos, a escritora Jane Jacobs, pioneira na crítica aos ideais urbanísticos modernos, fez a seguinte a afirmação: “A atual relação entre cidades e automóveis corresponde, em síntese, a uma das peças que às vezes a história prega no progresso.”1 Nas décadas seguintes, chegando até os dias atuais, a situação por ela descrita praticamente só apresentou agravamentos. Um problema que era exclusivo dos países industrializados desenvolvidos foi e continua sendo reproduzido nas nações em desenvolvimento, onde os efeitos nocivos da elevação das taxas de motorização mostram-se ainda mais acentuados. Os impactos causados às cidades pela superabundância dos automóveis continuam a figurar entre os temas mais relevantes para os habitantes dos grandes centros urbanos. Afinal, ao falarmos da presença dos carros nas grandes cidades, tratamos diretamente do sistema viário urbano, que ocupa, em média, de 20 a 25% da superfície das cidades, representando normalmente mais de 50% dos custos totais de urbanização2. Isso sem levar em consideração as amplas áreas de estacionamentos, postos de gasolina e demais usos destinados a suprir as necessidades dos automóveis. Trata-se, portanto, de um tema que não pode ser ignorado. A mobilidade baseada nos veículos motorizados individuais traz para as cidades uma série de prejuízos, dos quais a poluição e os congestionamentos são apenas os mais facilmente constatados à primeira vista (e talvez nem sejam os mais graves). As dificuldades do trânsito são basicamente um sintoma da pressão que o carro exerce sobre si mesmo. Para a cidade como um todo, e para a população urbana em geral, os problemas são bem mais amplos, com conseqüências das mais diversas, sejam elas de ordem econômica, ambiental, social, funcional, estética ou cultural. Se, por um lado, a indústria e os interesses financeiros detêm boa parte da culpa pela multiplicação desenfreada dos carros, por outro, o urbanismo do século XX também compartilha dessa responsabilidade. Várias teorias urbanas do último século cometeram um grave equívoco ao idealizarem cidades para os carros, em detrimento das necessidades das pessoas que iriam habitá-las. Ainda hoje persiste a idéia de que, se o problema do trânsito for resolvido, então o desempenho da cidade será satisfatório. Simplesmente, essas idéias ignoram o fato de que a circulação de pessoas e bens constitui apenas uma das muitas funções da cidade, e que os veículos motorizados somente são um dos agentes dessa função, juntamente com pedestres, ciclistas e a frota dos sistemas públicos de transportes. Freqüentemente as soluções adotadas para os conflitos na circulação urbana têm sido no sentido de acomodar um número cada vez maior de veículos, por meio de duplicações de vias, ampliações de estacionamentos, mesmo que, para isso, os demais usos e funções da cidade sejam prejudicados. Na maioria dos casos, é o pedestre que se vê privado da parte da cidade que lhe cabe. Em resposta a essa postura, surgiram inúmeros grupos e movimentos organizados em favor da redução do número de carros nas cidades. Alguns dos que têm recebido maior destaque no cenário internacional são: Critical Mass (São Francisco, 1992), Reclaim the Street 1 JACOBS, 2007, p.382 2 MASCARÓ e YOSHINAGA, 2005, p.13 3 (Londres, 1995), Car Busters (1997) e Car-Free Network, uma rede global formada por cidades que, entre outras ações, instituíram o Dia Sem Carro (Car-Free Day), celebrado no dia 22 de setembro. No Brasil, a adesão a esses movimentos é ainda muito baixa, mas várias cidades já têm conseguido organizar “bicicletadas” e outros eventos que contam com um número crescente de participantes. No campo da prática do planejamento urbano, há algum tempo as políticas de privilégios aos carros deixaram de ser hegemônicas e várias cidades, em diferentes países, tornaram-se referências internacionais no combate à proliferação descontrolada dos automóveis. As soluções empregadas, algumas das quais serão apresentadas na última seção deste trabalho, são bastante variadas, passando pela implantação de sistemas eficientes de transporte coletivo até a eliminação completa dos carros. 4 2. IMPACTOS NEGATIVOS DO AUTOMÓVEL O automóvel está tão presente em nossa sociedade, que nos é necessário um certo esforço para conseguirmos imaginar como viveríamos sem ele. Desde que foi iniciada sua produção em série e sua utilização em larga escala, ele deixou de ser apenas um meio de transporte. Tornou-se algo tão natural quanto a própria vida nas cidades, com forte e, muitas vezes, imperceptível influência sobre os usos e costumes da população urbana, de forma que podemos identificar a existência de uma “cultura do automóvel”. E, assim como qualquer elemento que faça parte de um sistema cultural, o carro é hoje normalmente aceito sem questionamentos e sua presumida eficiência é poucas vezes contestada. Não só por força de expressão, mas pela real impossibilidade de contabilizá-los, são inúmeros os problemas que o carro traz à sociedade. Para a maioria das pessoas, contudo, raramente a origem dos problemas é identificada no modelo de mobilidade que adotamos, que privilegia o veículo motorizado individual, em detrimento dos meios de transporte coletivos, dos não-motorizados e, principalmente, dos pedestres. Mesmo no caso dos sintomas mais evidentes (como os congestionamentos e os acidentes de trânsito), é mais conveniente atribuir a culpa à insuficiência de faixas de rolamento e de vias de trânsito rápido, ao excesso de semáforos e cruzamentos, à lentidão dos ônibus, à imprudência de ciclistas e pedestres, enfim, a tudo o que possa funcionar como um obstáculo à livre circulação dos carros. É como se a cidade fosse um grande circuito de corrida e o motorista, o dono das ruas, como normalmente sugerem as campanhas publicitárias. Os transportes não podem ser tratados por políticaspontuais, dissociadas da realidade da cidade em sua totalidade. Apesar da complexidade do tema, a fórmula básica é simples: mais carros, mais problemas de organização espacial da cidade. No entanto, é necessário que os males causados pelos carros sejam corretamente identificados e analisados, pois, sem um diagnóstico adequado, as soluções propostas terão pouca ou nenhuma eficácia, contribuindo para a perpetuação das situações problemáticas. Uma dificuldade que se apresenta na execução da tarefa de identificação e análise de problemas reside na impossibilidade de classificá-los em categorias estanques. Os impactos que o carro provoca têm implicações espaciais e, ao mesmo tempo, sociais, econômicas, políticas, ambientais, etc, e estas são mútua e intrinsecamente relacionadas. O que segue é um esforço de sistematização sucinta dos tipos de problemas advindos da dependência do automóvel, o que não significa que estes não possam ser classificados de outras maneiras ou que não haja ainda outros tipos de problemas advindos do uso intensivo deste meio de transporte. 2.1. IMPACTOS AMBIENTAIS Ao lado dos congestionamentos, os impactos ambientais causados pela utilização dos automóveis são os mais alardeados pelos veículos de comunicação. Em uma época em que o fenômeno do aquecimento global é um tema recorrente e motivo de preocupação generalizada, os males produzidos pelas emissões veiculares tornam-se cada vez mais evidentes. Da escala local à global, os veículos motorizados são importantes agentes causadores de desequilíbrios nas condições ambientais naturais. 5 2.1.1. Consumo de energia Nos últimos dez anos, o consumo de energia pelo setor dos transportes aumentou em taxas superiores a qualquer outra atividade econômica. Além disso, o setor de transportes se diferencia dos demais pela dependência quase exclusiva de apenas um tipo de combustível, o derivado do petróleo, não-renovável e altamente poluente. Ele representa cerca de 95% da energia consumida pelos transportes, enquanto as atividades residenciais e industriais já dispõem de diversas fontes energéticas alternativas3. Dos meios de transporte mais comumente utilizados em áreas urbanas, o carro é aquele que mais consome energia (Gráfico 01). Uma pessoa que se desloca de automóvel gasta, por exemplo, quase cinco vezes a quantidade de energia consumida por um passageiro de ônibus comum4. Essa relação tende a ser ainda maior nos países em desenvolvimento, onde a frota é composta majoritariamente por carros mais velhos e menos eficientes. 0,0 0,0 3,2 3,5 4,1 4,3 11,0 19,3 0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 25,0 A pé Bicicleta Ônibus articulado Ônibus biarticulado Ônibus comum Metrô Motocicleta Carro * GEP = gramas equivalentes de petróleo para mover um passageiro por quilômetro EN ER G IA (G EP /p a ss - km * ) GRÁFICO 01: Consumo energético dos modos de transporte Fonte: ALQUÉRES e MARTINES, 1999, in VASCONCELLOS, 2005 Na busca de soluções para a produção de “energias limpas”, o caso brasileiro constitui uma exceção, devido à utilização do etanol, derivado da cana-de-açúcar. Na maioria dos países, mesmo nos mais desenvolvidos, ainda não se verifica uma significativa competitividade dos combustíveis alternativos em relação àqueles provenientes do petróleo. A produção dos biocombustíveis, por exemplo, além dos altos custos, apresenta o grande inconveniente de transformar extensas áreas agrícolas produtivas em monocultura. 2.1.2. Poluição atmosférica As emissões poluentes tendem a ser abundantes nos grandes centros urbanos, particularmente naquelas cidades com altas taxas de motorização, onde existem longos engarrafamentos e maior quantidade relativa de carros antigos (mais poluentes). Em escala 3 IPCC, 2007, p.328 4 VASCONCELLOS, 2005, p.71 6 mundial, os veículos motorizados constituem a maior causa isolada da poluição atmosférica, respondendo por aproximadamente 23% das emissões de combustíveis fósseis5. O processo de queima de combustíveis fósseis para obtenção de energia no setor de transportes tem como produto principal o dióxido de carbono (CO2), o maior agente causador do chamado efeito estufa, além de outros gases, como o metano (CH4), o dióxido de nitrogênio (N2O), e clorofluorcarbonos (CFC), que também contribuem para o processo de aquecimento climático do planeta. Além de induzirem significativas transformações no clima, os veículos motorizados produzem também diversas substâncias potencialmente danosas à saúde humana, como o ozônio (O3), monóxido de carbono (CO), dióxido de enxofre (SO2), dióxido de nitrogênio (NO2), chumbo (Pb) e diversas partículas sólidas, que permanecem em suspensão na atmosfera. Especialistas têm alertado que, se no prazo de dez anos não for alterada toda a matriz energética do planeta, o processo de aquecimento global poderá ser irreversível. No setor de transportes, o desafio é enorme: não basta que as indústrias produzam carros mais eficientes e menos poluentes, pois os modelos antigos continuarão em circulação, sobretudo nos países mais pobres. Seria necessária a substituição ou até mesmo a desativação da maior parte da frota de veículos, o que geraria outro grave problema: a produção de um grande volume de resíduos sólidos. 2.1.3. Poluição sonora Em cidades com grande concentração de veículos, os ruídos causados pelos automóveis normalmente chegam a níveis prejudiciais à saúde humana e interferem na produtividade dos trabalhadores. A exposição prolongada aos ruídos do tráfego de veículos, além de provocar defeitos auditivos, pode causar estresse, insônia e elevados índices de irritação e agressividade. Em matéria publicada no dia 18 de abril de 2008 no jornal The New York Times, a cidade do Cairo é descrita como um local onde as pessoas não conseguem ouvir sua própria voz. Na capital egípcia, onde convivem milhões de pessoas e veículos, o nível médio de ruído é de 85 dB, muito acima do limite recomendado pelas autoridades médicas6. Este é apenas um exemplo, não muito diferente do que ocorre na maioria das grandes cidades, em vários países. 2.2. IMPACTOS SOCIAIS O trânsito de uma cidade pode ser visto como um complexo sistema do qual participam diversos agentes, cada um com seus papéis definidos. Eduardo Vasconcellos (2005) classifica esses papéis em função do modo de transporte utilizado, como no quadro a seguir: 5 IPCC, 2007, p.328 6 A Organização Européia (OEDC) recomenda que o ruído do tráfego não exceda 65 dB. 7 TIPO DE TRANSPORTE RELAÇÃO COM TRÂNSITO PAPEL Pedestre sozinho Ativo Pedestre acompanhado Residente Visita / convidado Proprietário de loja Freguês de loja Não mecanizado Passivo Usuário de equipamento público Ativo (não-motorizado) Ciclista Motociclista Motorista de auto Motorista de táxi Motorista de ônibus Motorista de caminhão Passageiro de auto Passageiro de táxi Ativo (motorizado) Passageiro de ônibus Mecanizado Fiscalização Policial Planejador urbano Planejador de transporte Planejamento Planejador de trânsito Indústria da construção Indústria automotiva Indústria imobiliária Papéis especiais indiretos Atividade interessada Comércio QUADRO 01: Papéis desempenhados no sistema de trânsito Fonte: VASCONCELLOS, 2005 A mecanização do transporte gera uma clara mudança na capacidade de locomoção dos indivíduos, mais ainda quando entram em cena os veículos motorizados. “Quando essas tecnologias são introduzidas, o acesso a elas não é igualmente distribuído. Isto vale para qualquer sociedade, a qualquer tempo.”7 Em nossa sociedade, possuir um automóvel transformou-seem regra, ou, pelo menos, em uma meta a ser por todos alcançada. Aqueles que não têm acesso a esse bem passam por desvantagens econômicas e sociais. É evidente a força que o carro possui como símbolo de status social, o que é reafirmado constantemente pelo imenso aparato publicitário formado em torno do automóvel (como se sabe, a propaganda da indústria automotiva cria a ilusão de liberdade do motorista, promove a segregação e incentiva o desrespeito às normas de trânsito). Nesse sentido, o carro é claramente um elemento de exclusão social, na medida em que será sempre privilégio para alguns. Segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), menos de 30% da população brasileira faz seus deslocamentos com a utilização do automóvel (Gráfico 02). Se os motoristas são minoria, então não é socialmente justo que as cidades sejam adaptadas às necessidades dos carros, e nem que os cidadãos que não usam esse meio de locomoção vejam seus impostos gastos em melhorias para a circulação de veículos. Também não é justo que, pelos mesmos impostos pagos, um carro estacionado ocupe cerca de 7 VASCONCELLOS, 2005, p.24 8 10m² de área pública, que poderia ser utilizada por um maior número de pedestres e ciclistas. Para acomodar os carros, são criados nas cidades verdadeiros “mares” de estacionamento, que invariavelmente acabam por eliminar a vida social das ruas. Existe uma profunda relação entre as estruturas espaciais e a vida social das cidades e, uma vez que estas se adaptem preponderantemente às necessidades dos automóveis, haverá sérios prejuízos quanto ao nível de urbanidade. Os espaços destinados aos carros fragmentam o tecido urbano, causando segregação entre as diferentes partes da cidade. As vias e estacionamentos atuam como barreiras ao movimento de pedestres e resultam em espaços impessoais, impróprios ao florescimento da vida urbana. A pé 35%Bicicleta3% Coletivo 32% Moto 2% Automóvel 28% GRÁFICO 02: Divisão modal dos transportes no Brasil Fonte: ANTP / Ministério das Cidades, 2003 Além da exclusão social, existem evidências de que, para o indivíduo, o carro funciona como uma “bolha”, um ambiente selado onde o motorista se isola do ambiente e das pessoas que o envolvem. Já é lugar-comum afirmar que o processo de suburbanização das grandes cidades, com a imposição de longas distâncias entre as residências e os locais de trabalho, enfraqueceu sobremaneira as relações sociais e os vínculos comunitários de vizinhança. Se o individualismo moderno é filho do capitalismo, então ele pode ser considerado irmão do automóvel. No trânsito congestionado das grandes cidades, todos os dias parece delinear-se uma guerra de todos contra todos. A disputa por espaço é capaz de induzir significativas mudanças comportamentais nos indivíduos, que afetam tanto outras pessoas (agressividade, descortesia) como ele próprio (irritação, estresse). A pretensa liberdade dos motoristas tem como complemento o cerceamento da liberdade de outros, não só pedestres e ciclistas, que são obrigados a ceder espaço, mas também dos demais motoristas, presos em longos engarrafamentos. 9 2.2.1. “Acidentes de trânsito” O relatório publicado em 2004 pela Organização Mundial da Saúde8 indicou que, naquele ano, 1,2 milhão de pessoas morreram em acidentes de trânsito e mais de 50 milhões ficam feridas. No Brasil, estima-se que, anualmente, cerca de 35 mil pessoas sejam vítimas fatais de acidentes envolvendo veículos, e outras 400 mil sejam feridas9. Com cifras tão elevadas, o próprio uso do termo “acidente” de trânsito parece inadequado. Um acidente é sempre algo imprevisto e, a partir do momento em que as mortes no trânsito tornam-se dados estatísticos mais ou menos constantes, elas podem ser consideradas uma conseqüência natural e inerente a um sistema de mobilidade que privilegia o veículo motorizado individual, ainda que essa conseqüência não seja desejada. No caso brasileiro, essa conseqüência indesejada é ainda mais injusta, pois a maior parte dos mortos no trânsito são pedestres e ciclistas (28,9% e 4%, respectivamente), os agentes mais vulneráveis do sistema de trânsito10. Em entrevista coletiva concedida no dia 22 de janeiro de 2008, em Brasília, o Ministro da Saúde José Gomes Temporão declarou que o Brasil vive atualmente uma epidemia de acidentes de trânsito, opinião da qual compactuam muitos especialistas. No dia anterior, a imprensa brasileira dava destaque a um suposto surto de febre amarela, que, segundo os registros oficiais, já havia levado a óbito, do início do ano até aquela data, oito pessoas. No mesmo período, os acidentes de trânsito tiraram a vida de cerca de 1.900 pessoas, mas o fato continua a ser tratado como se não fosse um assunto de saúde pública. 2.3. IMPACTOS ECONÔMICOS Com as inovações introduzidas por Henry Ford, na década de 1920, a indústria automotiva transformou-se em um modelo a ser seguido por boa parte dos produtores de bens de consumo duráveis e um dos principais agentes do sistema capitalista. Baseado na linha de produção em massa de bens de consumo padronizados, o fordismo se tornou possível com a substituição do trabalhador qualificado por trabalhadores semi-qualificados nas linhas de montagem automatizadas, o que possibilitou um controle minucioso sobre o processo de produção e um aumento extraordinário na produtividade industrial. A influência da indústria automotiva se mostra também pelo fato de estarem atreladas a ela diversas outras indústrias, que vão desde os produtores de matérias-primas (borracha, aço, plástico, vidro, material elétrico, etc), passando pelos derivados do petróleo, até as empreiteiras (infra-estrutura para comportar o tráfego de veículos), entidades financeiras de seguros, agências de publicidade, entre outras. Assim, se a indústria automotiva vai mal, os prejuízos são sentidos em vários outros setores da economia. Prova-o a lista das maiores empresas do mundo, elaborada anualmente pela revista Fortune (Quadro 02). Na edição de 2007, das dez primeiras colocadas no ranking, seis são do ramo petroleiro e três, da indústria automotiva. O topo da lista é ocupado por uma rede varejista cuja clientela é quase exclusivamente formada por motoristas, haja vista os imensos estacionamentos de que suas lojas dispõem. 8 WHO, 2004, in VASCONCELLOS, 2005, p.81 9 Ministério da Saúde, 2007 10 Dados relativos ao ano de 2004, segundo levantamentos do Ministério da Saúde. 10 EMPRESA PAÍS SETOR 1 Wal-Mart EUA Varejo 2 Exxon-Mobil EUA Petróleo 3 Shell Inglaterra / Holanda Petróleo 4 BP Inglaterra Petróleo 5 GM EUA Automóveis 6 Toyota Japão Automóveis 7 Chevron EUA Petróleo 8 DaimlerChrysler Alemanha / EUA Automóveis 9 ConocoPhillips EUA Petróleo 10 Total França Petróleo QUADRO 02:Maiores empresas do mundo em 2007 Fonte: Fortune Magazine Além dos impactos macroeconômicos, quase todos os demais aspectos considerados (sociais, funcionais, ambientais, etc) trazem, de certa forma, implicações econômicas. Por exemplo, os acidentes de trânsito no Brasil geram anualmente um custo estimado em quase R$ 30 bilhões11, o que corresponde a cerca de 1,6% do PIB brasileiro. Os cálculos envolvem custos diretos e indiretos, associados ao atendimento médico-hospitalar e reabilitação, atendimento policial e de agentes de trânsito, congestionamentos, danos ao equipamento urbano e propriedade de terceiros, perda de produção e ao custo previdenciário, entre outros. Só na Grande São Paulo, os acidentes de trânsito causam prejuízos da ordem de R$ 1,4 bilhão ao ano, valor suficiente para construir 803 escolas de ensino fundamental e 1.600 creches bem equipadas.Por outro lado, a construção de autopistas e estacionamentos transforma amplas parcelas do solo urbano em áreas improdutivas, onerando toda a população. Uma vez que os carros eliminam a vida das ruas, todo o comércio tradicional das ruas é prejudicado, sendo favorecidos os grandes estabelecimentos comerciais e poucos grupos associados aos hipermercados e shopping centers, que oferecem grandes áreas de estacionamento. 2.4. PROBLEMAS FUNCIONAIS Os problemas funcionais do uso do automóvel decorrem basicamente da demanda de espaço para ocupação pelos veículos, tanto para circulação como para estacionamento, e de sua baixa capacidade para transportar pessoas (Gráfico 03). É possivelmente nesse ponto que o carro se mostra mais ineficiente, se comparado aos demais modos de transporte, inclusive os não-motorizados. 11 IPEA / DENATRAN, 2006 11 GRÁFICO 03: Número de pessoas que circulam por hora em uma faixa de tráfego. Fonte: Ministério das Cidades, 2007. A respeito da ocupação do solo urbano pelos automóveis, Eduardo Vasconcellos (2005), nos dá um exemplo bastante elucidativo: Nos horários de pico, a ocupação média de um carro é de 1,5 pessoas, enquanto um ônibus é capaz de transportar 70 passageiros. Em outras palavras, seriam necessários 46 carros para transportar as mesmas 70 pessoas que poderiam utilizar o ônibus, sem contar a área requerida para estacionamentos. Trata-se de um cálculo primário: uma pessoa viajando de carro ocupa, em média, um espaço 23 vezes maior do que um passageiro de ônibus. Além disso, os transportes coletivos deslocam somente pessoas, que se tornam pedestres em seu local de destino. Os carros, além de carregarem pessoas, precisam de espaço para eles mesmos, que passam cerca de 90% do tempo estacionados. Tráfego congestionado Motoristas sem carros “Ônibus invisível” Tráfego fluido FIGURAS 01 a 04: Como transportar 35 pessoas? Fonte: ROBERT, 2005 Além disso, a mobilidade proporcionada pelos carros foi um dos fatores que contribuíram para o espraiamento das cidades, mediante a ocupação de amplas áreas residenciais com baixa densidade. Este fato tornou-se um problema cíclico: ao passo que o carro oferecia flexibilidade nos deslocamentos e possibilidade de percorrer maiores distâncias, uma significativa parte da população urbana decidiu se mudar para longe dos centros das cidades, muitas vezes barulhentos, sujos e violentos. Por outro lado, a baixa ocupação dos 12 subúrbios torna economicamente inviável a implantação de um sistema eficiente de transporte público, o que faz do carro uma necessidade para a locomoção diária até o local de trabalho. Existe uma relação biunívoca do uso do solo com o trânsito e os transportes urbanos: cada edificação gera, em maior ou menor escala, uma necessidade de deslocamento que precisa ser atendida; por outro lado, os deslocamentos de veículos, pessoas e cargas interferem na forma como as edificações são implantadas e utilizadas. Se a maior parte das atividades econômicas e dos empregos está concentrada no centro das cidades e as habitações, em regiões periféricas, é evidente que haverá, pelos menos em dois períodos do dia, enorme volume de deslocamentos simultâneos, um centrípeto e outro centrífugo. Prevalecendo a opção pelo automóvel para realizar esses deslocamentos, a demanda por espaço será elevadíssima. Esta, sempre que não atendida, terá como conseqüência lógica a ocorrência de congestionamentos cada vez mais longos. 13 3. A CIDADE DO AUTOMÓVEL A dependência do automóvel não é simplesmente uma questão de escolha de um modo de locomoção. Mais do que isso, ela possui estreitas relações com o tipo de cidade em que vivemos, como bem expressado por Jane Jacobs: “Os automóveis costumam ser convenientemente rotulados de vilões e responsabilizados pelos males das cidades e pelos insucessos e pela inutilidade do planejamento urbano. Mas os efeitos nocivos dos automóveis são menos a causa do que um sintoma de nossa incompetência no desenvolvimento urbano. (...) Os planejadores, inclusive os engenheiros de tráfego (...) não sabem o que fazer com os automóveis nas cidades porque não têm a mínima idéia de como projetar cidades funcionais e saudáveis – com ou sem automóveis.”12 Os antigos romanos definiam a cidade como a união indissociável entre urbs (território físico da cidade) e civitas (comunidade dos cidadãos que nela habitam). A entrada na era industrial e as concentrações demográficas sem precedentes por ela induzidas causaram o divórcio dessa associação ancestral e, em pouco mais de um século, em várias partes do mundo, as cidades passaram por transformações tão profundas, que nem se pode chamá-las de evolução, mas de uma verdadeira mutação.13 É no contexto das primeiras reflexões sobre o impacto espacial da revolução industrial, ainda no século XIX, que surge a noção de urbanismo, “uma disciplina que se diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e crítico, e por sua pretensão científica”.14 Porém, a reflexão inicial realizada por indivíduos de diversas áreas de conhecimento (políticos, médicos, economistas, biólogos, donos de indústria) não foi capaz de dar forma prática aos questionamentos propostos, situando-se na dimensão da utopia. O urbanismo, propriamente dito, aparece um pouco mais tarde, como uma atividade de especialistas, quando as idéias e intenções passam a aplicar-se a uma tarefa prática. Segundo CHOAY (2005), as idéias subjacentes ao pré-urbanismo e ao urbanismo, conforme se orientem para o futuro ou para o passado, podem ser classificadas basicamente em duas correntes. A primeira, denominada progressista, tem o conceito de modernidade como idéia-chave, visa o progresso e a produtividade, baseada na crença de que a industrialização significa uma ruptura histórica radical e benéfica. Os progressistas concebem o indivíduo humano como tipo, “independente de todas as contingências e diferenças de lugares e tempo, e suscetível de ser definido em necessidades-tipo cientificamente dedutíveis”15. A segunda corrente, chamada culturalista, tem objetivos humanistas e ponto de partida ideológico não mais na idéia de progresso, mas de cultura. Os que assumem essa postura apontam para o “desaparecimento da antiga unidade orgânica da cidade, sob a pressão desintegradora da industrialização”16, formando uma imagem nostálgica da cidade que já não existe. 12 JACOBS, 2007, p.06 13 CHOAY, 1994, p.26 14 Idem, 2005 15 Ibidem, p.08 16 Ibidem, p.11 14 Ao modelo culturalista correspondem as idéias de Camillo Sitte, Ebenezer Howard e Raymond Unwin. O modelo progressista é representado, principalmente, por Le Corbusier, cujas formulações doutrinárias são materializadas na Carta de Atenas, redigida na ocasião da realização do quarto encontro do CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), em 1933. Apesar das evidentes diferenças, os dois modelos têm em comum o método que parte da “análise crítica da cidade existente e elaboração a contrario de um modelo de cidade passível de ser construída e reproduzida ex nihilo”.17 Em termos de realizações concretas, nunca houve equilíbrio quantitativo entre os dois modelos, o que se verifica pela grande superioridade numérica de cidades com características correspondentes ao ideário progressista, sobretudo na segunda metade do século XX. São os planos inspirados neste modelo que produzirão o que, de acordo com o ângulo de abordagem do presente trabalho, se pode chamar de cidade do automóvel. 3.1. O MODELO PROGRESSISTA O próprio termoutilizado define o pensamento urbanístico progressista como fascinado e dominado pela idéia de progresso. É orientado para o futuro e com forte viés racionalista, apostando na ciência e na técnica para resolver os problemas decorrentes da relação dos homens com seu meio e entre si. Menos analítica e crítica do que o culturalismo, a corrente progressista é fortemente ideologizada e, por isso, traz pouca contribuição ao entendimento do fenômeno urbano. A este pensamento corresponde um modelo de cidade e de espaço urbano que pode ser caracterizado por: espaço amplamente aberto (Figuras 05 e 06), rompido por vazios e verdes; traçado urbano segundo supostas funções da cidade e regido por uma geometria rígida e elementar; aglomerações pouco densas, fragmentadas e atomizadas. Todas essas características contribuem conjuntamente para que não haja, na cidade progressista, uma atmosfera propriamente “urbana”, tal como exercitado ao longo da história das cidades. FIGURAS 05 e 06: Dois exemplos de projetos progressistas: a Cité Industrielle, de Tony Garnier (à esquerda), e o Plan Voisin de Paris, de Le Corbusier (à esquerda) 17 CHOAY, 1994 15 A excessiva abertura do espaço progressista surgiu, inicialmente, como uma exigência de cunho higienista, garantindo acesso universal à luz, ao ar e à água, justificando a existência de vazios e áreas verdes em abundância. Porém, a conseqüência disto foi o alto grau de indefinição do espaço público, que se tornou meramente fundo neutro e impessoal, sobre o qual se distribuem os edifícios isolados. A ordem do espaço progressista é regida pela geometria simples e a ausência de identidade provém, em grande parte, da recusa de qualquer herança artística do passado e, paradoxalmente, a cidade progressista nasce igualmente na prancha de desenho, como uma composição do urbanista, da mesma forma como faria um artista de tradição nas belas-artes. O projeto progressista se compõe de formulações que desconsideram qualquer comportamento social que se desvie da tipicidade característica de sua idéia de indivíduo, fazendo preponderar a urbs sobre a civitas. No conjunto das práticas urbanas, a circulação é concebida como uma função dissociada das demais atividades, pois a antiga ligação entre as vias de circulação e as edificações é considerada um resquício da antiga cidade e incompatível com os novos tempos. A esse respeito, Françoise Choay afirma que: “a rua não é, portanto, somente abolida em nome da higiene, na medida em que ‘simboliza em nossa época a desordem circulatória’. A ordem circulatória, aliás, corre muitas vezes o risco de terminar em submissão incondicional ao poder do automóvel, do qual se opõe dizer, não sem alguma justiça, que sozinho terminaria por determinar a posição de um grande número de projetos”.18 A submissão à ordem maquinista e o desprezo pelas realidades concretas dão às aglomerações progressistas um caráter claramente limitador e repressivo, ignorando o fato de ser a cidade uma entidade viva, produto de uma cultura e sensível à dinâmica social. E não se trata de algo que se poderia chamar de “lado oculto” do modelo, uma vez que a Carta de Atenas abertamente o declara em seu programa: “A cidade adquirirá o caráter de uma empresa estudada de antemão e submetida ao rigor de um planejamento geral. Sábias previsões terão esboçado seu futuro, descrito seu caráter, previsto a amplitude de seus desenvolvimentos e limitado, previamente, seu excesso.”19 3.1.1. A Carta de Atenas (1933) e o automóvel O documento produzido pelo CIAM em 1933 pode ser considerado uma espécie de cartilha do urbanismo moderno e, por isso, um dos mais elevados níveis de expressão do pensamento urbanístico progressista. Em diversos trechos, podem ser extraídos alguns princípios que confirmam a tese de que a cidade moderna se confunde com a cidade do automóvel: a) Exaltação à supremacia da máquina: “Sobreveio a era do maquinismo. A uma medida milenar, que se poderia crer imutável, a velocidade do passo humano, somou-se uma medida em plena evolução, a velocidade dos veículos mecânicos.”20 18 Ibidem, p.22 19 CIAM, 1933, p.32 16 b) A circulação é uma função urbana independente e deve estar dissociada dos demais usos da cidade: “A casa então não estará mais unida à rua por sua calçada. A circulação de desdobrará por meio de vias de percurso lento para uso de pedestres, e de vias de percurso rápido para o uso dos veículos. Cada uma dessas vias desempenhará sua função, só se aproximando ocasionalmente da habitação.”21 c) A locomoção não-motorizada é um anacronismo da cidade moderna: “As grandes vias de circulação foram concebidas para receber pedestres ou coches; hoje elas não correspondem aos meios de transporte mecânicos. (...) Aquilo que era admissível e até mesmo admirável no tempo dos pedestres e dos coches pode ter-se tornado, atualmente, uma fonte de problemas constantes.”22 d) A cidade moderna prescinde do espaço e das distâncias físicas: “Graças ao aperfeiçoamento dos meios mecânicos de transporte, a questão da distância não desempenha mais, no caso, um papel preponderante.”23 e) O desenho da cidade moderna deve ser feito em função dos veículos mecanizados: “As vias de circulação devem ser classificadas conforme sua natureza, e construídas em função dos veículos e de suas velocidades. (...) Os cruzamentos das ruas atuais, situados a 100, 50, 20, ou mesmo 10 metros de distância uns dos outros, não convêm à boa progressão dos veículos mecânicos. Espaços de 200 a 400 metros deveriam separá-los.”24 f) A cidade não deve oferecer obstáculos à livre circulação dos veículos motorizados: “Os veículos em trânsito não deveriam ser submetidos ao regime de paradas obrigatórias a cada cruzamento, que torna inutilmente lento seu percurso. Mudanças de nível, em cada via transversal, são o melhor meio de assegurar-lhes uma marcha contínua.”25 g) A técnica urbanística é capaz de compatibilizar a circulação dos automóveis com a cidade: “A circulação tornou-se hoje uma função primordial da vida urbana. Ela pede um programa cuidadosamente estudado, que saiba prever tudo o que é preciso para regularizar os fluxos, criar os escoadouros indispensáveis e chegar, assim, a suprimir os engarrafamentos e o mal- estar constante de que são causa.”26 Após ter traçado as diretrizes para a construção da cidade do automóvel, a Carta de Atenas, traz, em sua parte final, sem pudor algum, uma contradição insuperável: “O dimensionamento de todas as coisas no dispositivo urbano só pode ser regido pela escala humana. (...) A medida natural do homem deve servir de base a todas as escalas que estarão relacionadas à vida e ás diversas funções do ser. Escala das medidas, que se aplicarão às superfícies ou às distâncias: escala das distâncias, que serão consideradas em sua relação com o ritmo natural do homem.”27 20 Idem, p.04 21 Ibidem, p.08 22 Ibidem, p.22 23 Ibidem, p.23 24 Ibidem, p.24 25 Ibidem, p.24 26 Ibidem, p.25 27 Ibidem, p.29 17 Esta última declaração, demasiadamente genérica, soa mais como se os signatários da Carta antecipassem suas desculpas por terem excluído os pedestres (as pessoas) de suas cidades e decretado o fim da vida urbana. 3.2. CRÍTICA À CIDADE DO AUTOMÓVEL Os princípios progressistas exerceram considerável influência sobre o planejamento de cidades na maior parte do mundo, em grande parte devido à sua servidão à sociedade industrial e ao modo de produção capitalista, em consolidaçãode maneira planetária. A título de exemplo, podem ser citados casos tão diferentes entre si quanto a reconstrução das cidades européias arrasadas pela 2ª Guerra Mundial, o remodelamento das grandes cidades na ascensão do capitalismo norte-americano e a construção de novas cidades em países em desenvolvimento, como, por exemplo, Brasília e Chandigarh. Figuras 07 e 08: Brasília (à esquerda) e Los Angeles (à direita): exemplos de cidades feitas para o automóvel Assim como a nascente cidade industrial do século XIX, a cidade do século XX, concebida sob os ideais progressistas, é alvo de severas críticas. Antes mesmo que os carros invadissem as cidades, vários autores já alertavam para os perigos que ele poderia significar para a vida urbana. Lewis Mumford percebeu que “o essencial do que foi realizado em matéria de extensão urbana e de construção de auto-estradas traduz uma curiosa tendência a privilegiar as exigências da máquina em detrimento das aspirações humanas”28. O mesmo autor fez a seguinte previsão: “Estaremos diante da imensa massa de um tecido urbano indiferenciado e medíocre que, para poder realizar suas funções mais elementares, exigirá a participação de um máximo de veículos particulares (...).”29 As primeiras contestações consistentes desse modelo de urbanismo surgiram após a Segunda Guerra Mundial, sendo a obra de Jane Jacobs, Morte e Vida de Grandes Cidades, publicado em 1961, um marco referencial. A essa obra seguiram-se várias outras, de autores urbanistas e não-urbanistas, em defesa de uma vida urbana genuína, que resultaria 28 MUMFORD, 1960, in CHOAY, 2005, p.288 29 Idem 18 principalmente da diversificação de usos do solo urbano e de áreas centrais densamente ocupadas. Um ponto comum da crítica reside na questão da reabilitação da rua, abolida pela cidade moderna. Como observa Jan Gehl30, as ruas e praças, indissociavelmente ligadas às edificações, sempre foram, por excelência, o local de desenvolvimento da vida social da cidade. Com o advento do funcionalismo moderno, foram substituídas por autopistas e passeios traçados aleatoriamente no meio de infindáveis áreas de gramado. A importância das ruas para o florescimento da vida urbana é sublinhada por Jane Jacobs no seguinte trecho: “As ruas das cidades servem a vários fins além de comportar veículos; e as calçadas (...) servem a muitos fins além de abrigar pedestres. Esses usos estão relacionados à circulação, mas não são sinônimos dela, e cada um é, em si, tão fundamental quanto a circulação para o funcionamento adequado das cidades.”31 Os outros usos a que o trecho acima se refere constituem outro ponto da crítica ao tipo de urbanismo dominante no século XX. O ordenamento da cidade segundo zonas monofuncionais é quase unanimemente apontado como um dos fatores mais prejudiciais ao desenvolvimento daquela como meio de interações sociais. Há quase cinco décadas, Jane Jacobs alertava: “A inexistência de uma diversidade ampla e concentrada pode levar as pessoas a andarem de automóvel por praticamente qualquer motivo. O espaço que as ruas e os estacionamentos requerem faz com que tudo fique ainda mais espalhado e provoca um uso ainda mais intenso de automóveis.”32 Na paisagem da cidade do automóvel reina a monotonia, tanto para motoristas como para pedestres. Os edifícios são grandes e pobres em detalhes, uma vez que estes não podem ser percebidos pela velocidade do carro33. Em vários pontos da cidade, a paisagem é tomada pelas placas e anúncios publicitários, que precisam ser grandes e largos o suficiente para serem vistos de dentro dos carros em movimento. A cidade do automóvel passa também por um processo de desertificação de seu centro, acompanhado da formação de grandes áreas residenciais de baixa densidade. A relação entre o automóvel e o surgimento das áreas de subúrbio é descrita por Jean-Louis Harouel nas seguintes palavras: “Com a vulgarização do automóvel, o subúrbio transforma-se num imenso espaço difuso, em perpétuo crescimento, devorando os campos mais distantes. (...) O subúrbio moderno, uma vez que se baseia freqüentemente no automóvel, apresenta graves inconvenientes: desperdício de espaço, de energia, de tempo, quase inexistência de vida urbana verdadeira.”34 O processo que ocorre é cíclico e em cadeia: “quanto mais espaço se der aos carros nas cidades, maior se tornará a necessidade do uso dos carros e, conseqüentemente, de ainda 30 GUEHL, 2001, p.47 31 JACOBS, 2007, p.29 32 Idem, p.253 33 GEHL, 2001, p.73 34 HAROUEL, 1998, p.107 19 mais espaço para eles.”35 Uma intervenção urbana que favoreça as condições de circulação de veículos geralmente só tem efeitos positivos em um prazo curtíssimo. A tendência é que as melhorias incentivem ainda mais o uso do carro, o que gerará congestionamentos cada vez maiores e causará o esvaziamento dos transportes públicos, que terão suas tarifas aumentadas, o que encorajará o uso do automóvel... Além disso, as duplicações e alargamentos das vias para o tráfego de veículos obrigam pedestres e ciclistas a cederem a sua parcela do solo urbano. As ruas são transformadas em “espaços imprecisos, sem sentido e vazios para qualquer pessoa a pé”36. Em vez de congregar, o espaço público dispersa; em vez de convidar, repele; em vez de integrar, segrega. É esse o resultado do processo que Jane Jacobs chama de “erosão da cidade pelos carros” 35 JACOBS, 2007, p.391 36 Idem, p.377 20 4. CIDADES PARA PESSOAS Nos últimos trinta anos, várias cidades, especialmente na Europa, têm passado por algum tipo de processo de renovação urbana. Em grande parte, são cidades tradicionais cujo centro foi invadido pelos automóveis, tendo como conseqüência o esmorecimento da vida urbana e uma queda sensível na qualidade de vida da população. Nesses lugares, a retirada dos carros do centro da cidade é freqüentemente encarada como uma medida prioritária, imprescindível à tarefa de requalificação e revitalização dos espaços públicos. O que se segue é uma breve seleção de exemplos bem sucedidos de planejamento e gestão urbana, em cidades que têm se empenhado em reduzir o tráfego de veículos e em promover o bem estar de seus cidadãos. As soluções empregadas variam de acordo com as peculiaridades e as possibilidades de cada cidade, variando desde melhorias efetivas dos transportes públicos até a completa eliminação do carro. 4.1. TRANSPORTE COLETIVO Seja com ônibus ou com veículos sobre trilhos (trens, bondes e metrôs), o sistema público de transporte coletivo desempenha um papel fundamental na rede de mobilidade urbana. Sua capacidade de transportar pessoas é muito maior do que a dos automóveis e ainda possui a vantagem de causar relativamente pouco impacto sobre o uso do solo urbano, pois dispensa grandes áreas de estacionamento. 4.1.1. Ônibus O ônibus é o meio de transporte público mais utilizado na maioria das cidades brasileiras. Muitas vezes, no entanto, as frotas sucateadas e a ausência de um planejamento específico tornam os ônibus pouco atrativos. Mas, dependendo das condições que sejam dadas à circulação dos ônibus, estes podem representar um grande potencial para a melhoria da mobilidade da população, atingindo níveis de eficiência comparáveis aos veículos sobre trilhos. Em muitos casos, os ônibus se mostram a única solução economicamente viável para o problema dos transportes coletivos urbanos. E, de fato, é justamente no baixo custo de implantação e operação que reside uma das grandes vantagens dossistemas integrados de ônibus. A criação de faixas e corredores exclusivos geralmente pode se efetivar a partir de algumas adaptações relativamente simples no sistema viário já existente. Devido às vantagens de ordem econômica, os ônibus têm sido o elemento-chave do sistema público de transportes de várias cidades de países em desenvolvimento, como é o caso de Curitiba e de Bogotá, duas referências internacionais. Em Curitiba, os primeiros ônibus expressos começaram a funcionar já na década de 70, no período em que o urbanista Jaime Lerner exercia seu primeiro mandato como prefeito da cidade. Em 1980, entram em circulação os ônibus articulados, substituindo os antigos ônibus expressos. Logo no início da década de 90, são criadas as Linhas Diretas, servidas pelos veículos apelidados pela população de “ligeirinhos”. A adoção de algumas medidas torna 21 ainda mais eficiente o sistema: o pagamento da tarifa é efetuado antes do embarque; os pontos de parada (estações-tubo) são plataformas elevadas e os passageiros embarcam e desembarcam através de rampas no mesmo nível do piso dos veículos. Hoje a Rede Integrada de Transportes (RIT) possui 1.980 ônibus, mais de 70 km de canaletas, vias e faixas exclusivas, e atende a 2 milhões de passageiros diariamente. Figura 09: “Ligeirinho” e estação-tubo em Curitiba Figura 10: Corredor exclusivo do TransMilenio, em Bogotá Na capital colombiana, funciona desde o ano 2000 o sistema TransMilenio (Figura 10). Inspirado no modelo curitibano, foi criado durante a administração do prefeito Enrique Peñalosa e implantado num período de apenas três anos. Na prática, o sistema funciona como um metrô, mas com a utilização de ônibus articulados e estações elevadas, algumas com acesso através de pontes de pedestres. As estações servem às linhas que operam nos dois sentidos e as canaletas com pistas duplas permitem a ultrapassagem entre os veículos. Estas e outras melhorias conferem ao TransMilenio uma maior capacidade e maiores velocidades em relação ao RIT de Curitiba. 4.1.3. Bonde Até o início do século XX, várias cidades possuíam bondes puxados a cavalo, que foram logo substituídos por bondes elétricos. Com a concorrência de novas formas transporte (ônibus, carros, motocicletas, metrô), os bondes foram, na maioria dos casos, progressivamente abandonados, até serem completamente desativados em alguns lugares. Porém, desde meados da década de 80, tem surgido um novo interesse por esse meio de transporte. Uma nova geração de bondes, mais sofisticados e confortáveis, tem aparecido em diversas cidades, geralmente acompanhando medidas de restrição ao uso do automóvel. De certa forma, o bonde pode ser considerado um meio-termo entre o ônibus e o metrô e, sob diversos aspectos, sua utilização no interior das cidades produz resultados bastante vantajosos. Além de silencioso e não-poluente, o bonde oferece poucos riscos aos pedestres, pois circula em velocidades relativamente baixas, entre 20 e 30 km/h (ainda assim, maiores que a velocidade média de um carro em uma cidade congestionada). Por isso, é comum que as linhas de bonde passem no meio de praças e ruas em que o tráfego de veículos não é permitido, sem criar barreiras aos pedestres e ciclistas (Figura 11). 22 Dentre muitos outros, pode-se citar a cidade de Estrasburgo, na França, como um exemplo do papel central desempenhado pelo bonde no processo de renovação urbana. Após algumas medidas restritivas ao tráfego de veículos no centro da cidade, foi inaugurada, em 1994, a primeira linha de bonde, com 12,6 km de extensão. Vários espaços públicos em contato com a linha do bonde foram requalificados e destinados prioritariamente ao bonde e à circulação de pedestres e ciclistas. Hoje a cidade já conta com cinco linhas de bonde, que totalizam 55 km. Recentemente, uma pesquisa realizada em Estraburgo revelou 63% dos habitantes consideram que o automóvel na cidade está ultrapassado e, dos entrevistados, 80% concordam que, para melhorar a circulação na cidade, é necessário limitar a utilização do automóvel. Figura 11: Bonde circulando em Rua de pedestres em Estrasburgo Figura 12: Mapa das linhas de bonde de Estrasburgo 4.1.2. Metrô Atualmente, mais de 160 cidades no mundo possuem redes de metrô. O primeiro começou a funcionar em 1863, em Londres, cidade que possui hoje a mais extensa rede do mundo, com mais de 400 quilômetros. É o mais eficiente veículo de transporte de passageiros. Em Moscou, por exemplo, o metrô é responsável pelo deslocamento diário de 9 milhões de passageiros. Várias cidades destacam-se pela eficiência de seus sistemas metroviários, como Nova York, Paris e Tóquio. Nesta, um emaranhado de túneis permite rápido acesso a praticamente qualquer ponto da cidade, como se vê no mapa da figura 13. Um ponto negativo dos metrôs é o seu alto custo, o que inviabiliza sua utilização por mais pobres e naquelas de baixa densidade populacional. 23 Figura 12: Mapa do metrô de Tóquio 4.2. TRANSPORTE NÃO-MOTORIZADO Os meios de locomoção não-motorizados são representados principalmente pelas bicicletas, apesar de existirem outros, como os patins, skates e patinetes, além dos tradicionais riquixás, em alguns países asiáticos. Se oferecidas boas condições de segurança e trafegabilidade, esses meios de transporte podem ser perfeitamente integrados à rede urbana de mobilidade. Entretanto, em muitos países, nos quais o Brasil se inclui, esse tipo de transporte ainda é quase sempre visto unicamente como forma de lazer ou equipamento desportivo. Sua aceitação como meio efetivo de locomoção não depende apenas da implantação de infra-estrutura adequada, mas também de uma mudança de mentalidade e nos hábitos da população. 4.2.1. Bicicleta Uma pesquisa realizada pela Comissão Européia (2000) revelou que, dos deslocamentos efetuados em automóvel, cerca de 30% cobrem distâncias de até 3 km e, em média, 50% são inferiores a 5 km. Nesses trajetos urbanos curtos e médios, a bicicleta pode, com muitas vantagens, substituir o carro, desde que aos ciclistas sejam oferecidas condições mínimas de segurança e infra-estrutura apropriada. Na maioria dos casos, a bicicleta se mostra, quanto ao tempo gasto nos deslocamentos, um meio de transporte melhor ou, no mínimo, tão 24 eficiente quanto o automóvel (Gráfico 04). Além disso, ainda gera outras economias e benefícios consideráveis, tanto para o indivíduo como para a coletividade urbana: - ausência quase total de impacto sobre a qualidade de vida na cidade (nem ruído, nem poluição); - menor espaço ocupado no solo, tanto para se deslocar como para estacionar; - reforço do poder de atração do centro da cidade (lojas, cultura, lazer, vida social); - diminuição dos congestionamentos e das perdas econômicas a que estes dão origem; - maior poder de atração dos transportes públicos; - redução das despesas médicas graças aos efeitos do exercício físico regular; - democratização da mobilidade. Existem poucas situações objetivamente incompatíveis com a utilização da bicicleta. A cidade sueca de Västerås (115 000 habitantes), por exemplo, tem 33% de seus deslocamentos feitos de bicicleta, apesar do frio intenso. Em Basiléia (230 000 habitantes), na Suíça, onde o relevo não é plano, as bicicletas respondem por 23% dos deslocamentos da população. Várias cidades da Dinamarca e da Holanda são grandes exemplos de como a bicicleta pode ser efetivamente incorporada ao dia-a-dia da população, a partir de políticas públicas e planejamento urbano voltados para esse fim. Nesses lugares, até mesmo ministros de Estado, membros do Parlamento e outras figuras ilustres podem ser vistas pedalando até o local de trabalho. GRÁFICO 04: Comparação dos tempos de deslocamento num trajeto de 5 kmFonte: Comissão Européia, 2000 Na Holanda, a bicicleta é o meio utilizado por 27% da população e, das cidades holandesas, Groninger (180 mil habitantes) é a que apresenta maior índice de utilização de bicicleta, cerca de 40%. Vale lembrar que a Holanda é um dos países mais densamente povoados do mundo, o que mostra a relação existente entre cidades compactas e maiores oportunidades para os indivíduos viverem sem carros. 25 Figura 13: Estacionamento para bicicletas em Amsterdã Figura 14: Ciclistas em Groninger A cidade de Paris também tem se destacado quanto ao incentivo da utilização da bicicleta por parte de seus habitantes. Em 1995, a cidade possuía 8,2 km de ciclovias. Pouco mais de uma década depois, as vias cicláveis já somavam mais de 370 km. No período de 2001 a 2007, a utilização de bicicletas cresceu 48% e, acompanhando essa tendência, a Prefeitura de Paris lançou, em julho de 2007, o programa Vélib', um sistema de locação de bicicletas públicas, semelhante ao já existente em outras cidades européias. O sistema funciona durante as 24 horas do dia e conta com uma estrutura admirável: são cerca de 20.600 bicicletas e mais de 1.400 estações (em média, uma a cada 300 metros), onde o usuário retira e devolve a bicicleta. A intenção do programa é mudar radicalmente a forma de locomoção do parisiense, que já conta com um eficiente sistema metroviário. 4.3. PLANEJAMENTO ORIENTADO PARA O PEDESTRE Caminhar é uma faculdade humana natural. Assim, uma cidade planejada para pessoas, e não para carros, deve oferecer todas as condições para que os pedestres se locomovam com conforto e segurança, o que é impossível quando as ruas são tomadas pelos automóveis. Uma cidade que privilegie o tráfego de pedestres será conseqüentemente uma cidade mais humana e mais democrática, pois a caminhada é o único meio de transporte igualmente acessível a todos, com exceção dos que possuem algum tipo de limitação em sua capacidade de locomoção. Privilegiar o pedestre não significa necessariamente eliminar os carros por completo. Na língua inglesa, emprega-se o termo “car-free” (traduzido literalmente, “livre de carros”) para designar uma grande variedade de restrições impostas ao uso dos veículos motorizados. As ações podem variar desde as mais simples medidas para a redução das velocidades dos carros (lombadas, radares, etc) até o verdadeiro banimento dos automóveis de algumas áreas da cidade. 4.3.1. Medidas de indução à redução de velocidade As altas velocidades desenvolvidas pelos veículos motorizados representam uma grande ameaça à segurança dos pedestres. Convencionalmente, a solução adotada para amenizar este problema consiste na imposição de limites de velocidade legalmente 26 estabelecidos e na vinculação dos infratores ao pagamento de multas. Normalmente, esse tipo de medida surte pouco ou nenhum efeito, pois os motoristas só se submetem aos limites sob rigorosa fiscalização. Métodos mais eficientes de controle de velocidade são aqueles que criam obstáculos e barreiras físicas à circulação dos carros. Há inúmeras maneiras para se obter bons resultados, das quais citam-se três exemplos: a) Traffic calming Aplica-se o termo traffic calming a um conjunto de técnicas utilizadas para reduzir a velocidade dos carros, principalmente em áreas residenciais, a partir da introdução de alterações no desenho das ruas: deflexões horizontais e verticais, estreitamento de vias. Essas técnicas já são usadas há aproximadamente quatro décadas, principalmente nos países do norte da Europa, Estados Unidos e Canadá. Com o êxito das ações, as técnicas tornaram-se instrumentos de uso corrente pelos departamentos municipais de engenharia de tráfego. b) Woonerf Criação holandesa, uma woonerf é geralmente uma rua recreativa onde, embora compartilhem o mesmo espaço, pedestres e ciclistas têm prioridade sobre os veículos. Nessas áreas, a legislação de trânsito holandesa limita a velocidade dos automóveis àquela atingida por uma pessoa caminhando (cerca de 7 km/h) e restringe o número de vagas de estacionamento. Além da redução das velocidades, essas áreas obtêm uma significativa diminuição do volume de tráfego. Figura 15: Desenho esquemático de uma woonerf Figura 16: Espaço compartilhado por carros e pedestres c) Espaços compartilhados Nos chamados espaços compartilhados (no original, shared spaces) não existem barreiras físicas à circulação de veículos motorizados e nem separação entre carros e pedestres. Com a presença destes, os motoristas são obrigados a dirigir em baixas velocidades. A origem dos shared spaces é atribuída ao holandês Hans Monderman, que os introduziu nas 27 cidades de Drachten e Oosterwolde. Em pouco tempo, várias cidades dinamarquesas, inglesas e norte-americanas também começaram a empregar essa medida. 4.3.2. Ruas e zonas de pedestres As ruas das cidades tradicionalmente servem a três funções básicas: lugar de encontro, comércio e circulação37. Com a invasão das cidades pelos carros, as duas primeiras funções tendem a diminuir e até desaparecer. A “pedestrianização” de ruas, prática que, nos últimos trinta anos, tem sido comum em várias cidades européias, consiste no fechamento de ruas ao tráfego de automóveis, com vistas ao restabelecimento do equilíbrio e da complementaridade entre as três funções. A proibição dos carros em áreas urbanas centrais vem normalmente acompanhada de melhorias consideráveis nos sistemas de transporte coletivo e nas condições de circulação de pedestres e ciclistas. Obviamente, quase sempre existe inicialmente uma forte resistência por parte dos motoristas e de alguns comerciantes. Contudo, a médio e longo prazo, as ruas “pedestrianizadas” invariavelmente se mostram benéficas para toda a população envolvida e os espaços públicos revitalizados voltam a desempenhar sua função de local de encontro de pessoas. Apesar de não ter sido o primeiro, um dos casos mais emblemáticos dessa prática ocorreu em 1962, em Copenhague, quando a rua principal da cidade (Strøget), antes tomada pelos carros, foi convertida em rua para pedestres. A partir daí, iniciou-se um processo gradual que, ao longo de quatro décadas, transformou a capital dinamarquesa em um caso exemplar de renovação urbana. A cidade possui hoje uma rede de ruas de pedestres interligadas, abrangendo uma área total de cerca de 100.000 m², ao longo das quais se localizam os principais estabelecimentos comerciais da cidade, além de cafés, restaurantes e praças liberadas da presença de veículos (figura 17). Figura 17: Evolução das ruas de pedestre no centro de Copenhague 37 GEHL e GEMZØE, 2002 28 Dentre milhares de outros exemplos de ruas de pedestres existentes, podem citar ainda as Ramblas (Figura 19), em Barcelona; a Avenue de la Republique, em Lyon e o centro de Estrasburgo, na França; a cidade belga de Gent; vários centros urbanos alemães, como Friburgo e Stuttgart; antigas cidades italianas, como Siena, e muitas outras cidades do norte da Europa (sobretudo na Holanda, Dinamarca, Suécia e Finlândia). Trata-se, na verdade, de um fato urbano relativamente novo e que tem ganhado cada vez mais força. Em muitos casos, se a iniciativa de retirar os carros das ruas não vem do poder público, é a própria população quem o reivindica. Figura 18: Rua Strøget, em Copenhague Figura 19: Las Ramblas de Barcelona Ainda hoje, é na Europa que se verifica uma maior proliferação de ruas e zonas de pedestres. Porém, em outras partes do mundo os planejadores urbanos e administradores municipais já começaram a despertar para o fato de que a retirada dos carros constitui um importante meio para potencializar o ressurgimento da vida urbana. A exemplo de Copenhague,a rua principal de Melbourne, na Austrália, transformou-se em uma rua de pedestres (Swanston Street Walk). Na Argentina, cidades como Córboda, Mendoza e Rosario têm se esforçado para ampliar suas áreas pedonais. Mesmo nos Estados Unidos, país cujas cidades ainda vivem sob o reinado dos automóveis, algumas áreas urbanas centrais, como a de Portland, por exemplo, já oferecem espaços propícios à caminhada. No Brasil, as áreas exclusivas para pedestres em grandes cidades ainda são pouco numerosas. Seguindo o mau-exemplo norte-americano, o brasileiro criou uma verdadeira devoção pelo automóvel e, por isso, é necessário que primeiramente passemos por um processo de adaptação cultural, para que as limitações ao uso do carro sejam bem aceitas. 4.3.3. Cidades sem carros Existem poucos exemplos de cidades totalmente livres dos carros. Em geral, as que mais se aproximam dessa condição são cidades antigas, onde os carros nem mesmo chegaram a ser introduzidos, como é o caso de Veneza (Itália) e de Fez (Marrocos), esta com mais de 150 mil habitantes. 29 No exemplo marroquino, poucas ruas ultrapassam os 5m de largura e outras são tão estreitas (60 cm), que impossibilitam até a circulação de bicicletas. A maioria das construções possuem 2 ou 3 pavimentos e a densidade populacional é de 550 habitantes por hectare. Figura 20: Cena urbana em Veneza Figura 21: Cena urbana em Fez Além de Fez e Veneza, existem ainda outras cidade menores, em cujo perímetro urbano os carros são proibidos. Tal é o caso de Zermatt (Suíça), Louvain la Neuve (Bélgica) e Capri (Itália). Além do fato de serem livres dos automóveis, essas cidades apresentam outra característica em comum: seus imóveis residenciais estão entre os mais caros do mundo. Em todas elas, chama a atenção a grande quantidade de atividades realizadas ruas e a vida urbana vibrante. O interesse por cidades sem carros permanece atual e se torna cada vez mais comum. Exemplo disso é a nova cidade de Masdar, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Com projeto do inglês Norman Foster, o empreendimento de 6 milhões de metros quadrados promete ser a primeira cidade no mundo neutra em emissões de carbono. Estima-se que a cidade comece a ser ocupada já em 2009, só por pessoas, sem carros. Essas cidades são provas contundentes de que um ambiente urbano sem carros não é algo absurdo ou uma meta inatingível, mas uma possibilidade concreta. Figura 22: Perspectiva aérea de Masdar Figura 23: Rua de Masdar 30 5. CONCLUSÃO Incontestavelmente, a invasão das cidades pelos carros é fonte de muitos problemas. Da poluição aos engarrafamentos, os efeitos maléficos da utilização intensiva dos automóveis são o alto preço pago pela coletividade urbana por décadas de concessões de privilégios ao veículo automotivo individual. Muitas cidades chegaram a uma situação-limite e agora tentam correr contra o tempo, na procura de soluções para o trânsito cada vez mais caótico. Na maioria das cidades brasileiras, porém, parece existir uma miopia que impede as autoridades municipais de perceberem que a solução dos problemas relacionados ao trânsito não está no alargamento das pistas ou na criação de mais áreas de estacionamento. Enquanto a estratégia adotada for a de acomodar um número cada vez maior de carros, os problemas se multiplicarão em uma velocidade muito maior do que as ações de curto e médio prazo possam resolvê-los. Especialmente nos países desenvolvidos industrializados, são numerosos os exemplos de grandes cidades que já tiveram suas ruas tomadas pelos carros e que hoje caminham em direção à redução do número de veículos, ao mesmo tempo em que remodelam seus espaços públicos em função dos pedestres e investem na qualidade dos transportes coletivos. É lamentável que os países em desenvolvimento desperdicem a oportunidade de aprender com a experiência dessas cidades e optem por trilhar o dispendioso caminho que leva à dominação pelos automóveis. Já se demonstrou que o tipo de planejamento urbano tenha por objetivo criar facilidades para os carros possui um enorme poder de minar a vida social das ruas da cidade. Os centros urbanos viram depósitos de automóveis durante o dia e permanecem desertos à noite. Os espaços públicos tornam-se invariavelmente lugares desagradáveis, por onde os pedestres apenas passam rapidamente, já que não há o que ver ou fazer. Ainda assim, muitas pessoas simplesmente não conseguem imaginar como seria viver sem os carros. Mas que culpa têm elas? Suas cidades foram construídas para os automóveis. Na maioria das vezes, a dependência do automóvel não é uma questão de escolha pessoal. Se a cidade não possui espaços adequados para a população caminhar, se os transportes públicos coletivos são de péssima qualidade, então é óbvio que os indivíduos optarão pelo carro. A cidade os obriga a fazer essa escolha. A crítica à dominação da cidade pelo automóvel deve visar, acima de tudo, valores sociais, sob pena de cair em uma nova versão de luddismo. De nada adianta o simples ataque ao automóvel em sua dimensão material, objetiva. A redução do número de veículos nas cidades não deve constituir um fim em si mesmo. A luta pela liberação dos espaços urbanos ocupados pelos carros deve ser, em última instância, a luta pelo resgate da vida urbana, pelo surgimento de uma cidade renovada, que atenda às necessidades das pessoas, e não da máquina. 31 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHOAY, Françoise. Le régne de l’urbain et la mort de la ville. in DETHIER, Jean e GUIHEUX, Alain. La ville, art et architecture en Europe 1870-1933. Paris: Centre Georges Pompidou, 1994. CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 2005. CIAM. Carta de Atenas. 1933. Disponível em <www.iphan.gov.br>, acesso em 31/05/2008 COMISSÃO EUROPÉIA. Cidades para bicicletas, cidades de futuro. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2000. Disponível em <www.ec.europa.eu>, acesso em 28/03/2008 GEHL, Jan e GEMZØE, Lars. Novos espaços urbanos. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. GEHL, Jan. Life between buildings. Copenhagen: Arkitektens Forlag, 2001. HAROUEL, Jean-Louis. História do urbanismo. Campinas: Papirus, 1998. IPCC. Climate change 2007: Mitigation. Contribution of Working Group III to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [B. Metz, O.R. Davidson, P.R. Bosch, R. Dave, L.A. Meyer (eds)]. New York: Cambridge University Press, 2007. Disponível em <www.ipcc.ch>, acesso em 30/05/2008 IPEA e ANTP. Impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas brasileiras: relatório executivo. Brasília, 2003. Disponível em <www.ipea.gov.br>, acesso em 10/04/2008 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2007. MASCARÓ, Juan L. e YOSHINAGA, Mário. Infra-estrutura urbana. Porto Alegre: Masquatro Editora, 2005. MINISTERIE VAN VERKEER EM WATERSTAAT. Cycling in the Netherlands. Rotterdam: Veenman Drukkers, 2007. Disponível em <www.fietsberaad.nl>, acesso em 28/03/2008 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil. Brasília, 2006. Disponível em <portal.saude.gov.br>, acesso em 08/04/2008 MINISTÉRIO DAS CIDADES. Caderno de referência para elaboração de plano de mobilidade por bicicleta nas cidades. Brasília, 2007. Disponível em <www.cidades.gov.br>, acesso em 28/03/2008 ROBERT, Marcel. Pour en finir avec la societé de l’automobile. 2005. Disponível em <http://carfree.free.fr>, acesso em 12/03/2008 VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara de. A cidade, o transporte e o trânsito. São Paulo: Prolivros, 2005. WRIGHT, Lloyd. Car-free development. Eschborn: GTZ, 2005. Disponívelem <www.sutp.org> acesso em 24/03/2008
Compartilhar