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Pesquisa em Serviço Social III Aula 02 Online

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Aula 02 – Paradigma Qualitativo em Ciência, a Pesquisa Qualitativa e o Trabalho de Campo
Introdução
A pesquisa qualitativa e o trabalho de campo são emblemáticos da pesquisa sem serviço social. Nesta aula, você estará acompanhando uma apresentação do contexto em que surge o paradigma qualitativo e especialmente sua relação com as limitações do método positivista quando aplicado às ciências sociais. Estará também refletindo sobre o problema da interpretação e compreensão dos dados qualitativos no contexto de uma pesquisa científica.
Premissa
Principalmente ao longo do século 20, surgem diversas críticas ao ideal de um método científico único, aplicável a todo e qualquer objeto. 
Essas críticas emergem principalmente na medida em que se verifica a pobreza dos resultados obtidos através do método científico tradicional quando aplicado às ciências humanas e sociais.
Um tanto genericamente, ataca-se com essas críticas o dito modelo positivista.
Contudo tal formulação do problema é inadequada, pois jamais fica bem claro o que se quer designar com o termo (modelo positivista, positivismo). Se o que está sob mira é a crença de que o pesquisador através do método positivo pretende mostrar como a realidade é em si mesma, independentemente do pesquisador e do contexto científico e cultural de onde ele necessariamente parte para conhecer o mundo, então está se fazendo muito barulho por pouco, uma vez que tal modelo já não vigora sequer entre as próprias ciências chamadas naturais ou exatas.
A questão ultrapassa a disputa em torno da impossibilidade de fazer surgir a verdade como uma fotografia exata da realidade. 
A questão é que não é possível abandonar o esforço de fazer ciências humanas e sociais e as comunidades científicas percebem muitas vezes que há “dados” que devem ser levados em conta embora não sejam facilmente assimiláveis às exigências da pesquisa experimental e suas quantificações sem dúvida maravilhosas.
Que um homem, através da tecnologia tenha conseguido mandar uma sonda a marte é realmente extraordinário e isso não seria possível sem a física e a matemática.
Porém, será que conhecemos melhor alguém ouvindo a pessoa falar, ou fazendo exames neurofisiológicos completos e acessando seu genoma?
Os dados neurofisiológicos e genéticos são mais afeitos a medidas exatas enquanto os dados colhidos pela entrevista junto à pessoa nem tanto. 
Mas por isso deveríamos admitir que o que as pessoas dizem não faz parte do que pode ser estudado pela ciência? Uma pesquisa qualitativa tipicamente leva em conta o que as pessoas dizem, enfrentando o desafio de interpretar seus dizeres sem a certeza absoluta de que esta interpretação seja a mais exata ou a única possível.
Papel do pesquisador neste contexto
Mas isso não é tudo.
Quer-se levar em conta o que as pessoas dizem em meio ao seu ambiente natural, ou seja, sem o controle de variáveis que pode ser alcançado em pesquisas experimentais feitas em laboratório. 
Finalmente considere que o próprio pesquisador é uma das variáveis de difícil controle na pesquisa!  
O pesquisador que uma vez no campo não observa sem interferir, mas, ao contrário, participa do meio em questão e isso não apenas por estar sendo percebido pelos outros, mas pelo que ele introduz de sua subjetividade, com suas ações verbais e não verbais.
Na pesquisa qualitativa, não haverá recuo em relação a estas interferências aos ideais do método científico tradicional e nem tampouco recuo em relação à exigência de rigor.
Este é o desafio a ser enfrentado na execução de sua pesquisa e para isso você vem trabalhando em etapas tendo na última delas (pesquisa em serviço social II) dado um formato inicial ao seu projeto que servirá como um mapa na execução de seu trabalho.
A ciência moderna
Mas contra o quê o paradigma qualitativo se rebela?
Tudo que se passa hoje em dia no campo da ciência é marcado pela grande virada em que consistiu o aparecimento da chamada ciência moderna. 
Estamos muito acostumados a pensar o termo moderno como correspondendo à época atual. Isso está errado quando se aplica o termo em relação à história do pensamento filosófico e científico. 
Para essa história, o período em que vivemos hoje é o pós-moderno, enquanto que o período moderno inicia aproximadamente no século 17, durando até meados do século 20 - século de transição do moderno ao pós-moderno.
Quando foi percebida a ciência moderna?
A chamada ciência moderna inaugura-se com o astrônomo Galileu e sua expressão mais simbólica é o ato de Galileu jurando com a mão sobre a bíblia que a terra não se move, ao mesmo tempo em que sussurrava baixinho: 
“E pur si muove”.
Deve ser notado quanto a essa passagem emblemática que, ao insistir que a terra não era o centro do universo, Galileu estava indo contra aquilo que nossos sentidos nos revelam todos os dias. 
Basta olharmos o céu a cada dia para notarmos que o sol se move enquanto a terra permanece parada.
Ora, o passo fundamental da ciência moderna, na esteira de Galileu e Descartes, foi justamente abandonar essa referência fundamental ao que pode ser percebido diretamente na observação. Os dados da sensibilidade são enganosos, principalmente porque se coordenam maravilhosamente com aquilo que desejamos: e como seria bom se a terra fosse o centro do Universo! Teríamos então a certeza de que o criador nos quer de um modo especial!
A ciência moderna condensa rompe com a expectativa de que ao final, entenderemos o sentido do mundo. 
Foi um momento histórico marcante, deve ser entendido no seu contexto. Seu método, suas práticas, são temperadas pela frieza da matemática que mantém ao máximo fora da operação científica o sujeito pesquisador. 
Para a ciência moderna devemos confiar na matemática e buscar conhecer as leis que podem explicar o sensível.
Leis que expliquem aquilo que podemos observar e sem supor nenhum significado fundamental que explique a existência e os eventos do universo.
Partimos do sensível, mas para abandoná-lo em favor do que pode ser matematicamente provado.
Uma fórmula matemática não tem sentido, significado. É vazia. Ninguém pergunta, diante de uma equação matemática, “O que isso quer dizer?”. Uma equação não quer dizer nada. 
Nela o pesquisador acrescenta o valor das variáveis e o resto funciona sozinho. O resultado não é o que se quis dizer, mas o que é. Além disso, a participação do pesquisador é reduzida ao mínimo; ele pode querer o que ele quiser, pois o resultado da equação será sempre o mesmo. É certo que hoje se sabe que uma redução total da interferência do pesquisador, uma plena objetividade, é impossível, mesmo nestas ciências tidas como exatas e, sem dúvida, isso também concorreu para que com o tempo surgissem críticas à ideia de que as ciências sociais e humanas devessem se submeter ao único método que supostamente permitiria a objetividade.
Ciência antiga x Ciência moderna
Para a ciência antiga (Aristotélica), a terra era o centro do universo (Geocentrismo). 
Era um modelo fortemente baseado naquilo que podíamos perceber, pois efetivamente percebemos o sol mover-se no céu a cada dia. Para Copérnico, um dos primeiros críticos deste modelo, o sol ocupava esse lugar (Heliocentrismo). 
Já foi um primeiro choque tanto que o astrônomo foi obrigado pela igreja a recuar em relação a estas teses. 
Mas Copérnico ainda mantinha a confortante ideia de que havia um centro.
Para a ciência moderna, o Universo não tem qualquer centro. A ideia de um universo centrado já faz parte da necessidade do ser humano em dar sentido a tudo que está a sua volta. Uma das mais notórias consequências de nossa necessidade de dar sentido a tudo é a postulação de um criador do Universo, que tinha intenções quando inventou tudo isso.
Para a ciência moderna, se tivesse havido tal criador, seria mais exato dizer que ele “sabia matemática”, uma vez que esta é encontrada em todos os cantos do Universo. Os objetos do universo parecem saber matemática. Dos planetas às abelhas, pois obedecem às leis da matemática, como se o Universotivesse sido escrito em linguagem matemática.
O sentido da prática científica
Na contramão dessa grande virada, o paradigma qualitativo e as diversas tendências que se alinham a ele e voltam a dar lugar ao sentido na prática científica.
Correlatas ao sentido, estão a interpretação e a compreensão. Interpreto os acontecimentos, fazendo sentido sobre eles. Interpreto as ações humanas, dando sentido a elas. Ao dar sentido, compreendo. Isso implica pensar uma prática científica da qual a subjetividade é parte inerente.
O termo sentido é em geral utilizado quando se quer enfatizar que não há um significado pré-estabelecido para uma palavra ou uma frase sendo usada; que é preciso interpretar o que está sendo dito, pois somente naquele contexto, no momento em que está sendo dito, terá um sentido e não um significado que pudesse ser colocado no dicionário.
Assim, a palavra “bola” tem alguns significados escritos no dicionário; porém é possível utilizar a palavra “bola” de infinitas maneiras, em diversos sentidos, na medida em que colocamos a linguagem em ação, ou seja, na medida em que participamos de um laço social. Assim podemos dizer que palavra “bola” pode assumir diversos sentidos.
Fácil perceber como essas reflexões tocam em pontos extremamente relevantes para a pesquisa que você propõe seja porque ela envolve a consideração de dados qualitativos, seja porque ela se dá fora do laboratório, em meio ao próprio objeto que ela deve investigar.
O Paradigma qualitativo
O termo paradigma ficou consagrado pelo trabalho do epistemólogo americano Thomas Kuhn. 
Não enxergamos a realidade como ela é, e nem os cientistas. Estes partem sempre de um lugar feitos de valores culturais e conceitos científicos. Quando muda um paradigma, outros problemas são colocados e outras soluções. 
Durante muito tempo vigorou na ciência o paradigma positivista, com a glorificação do método científico
Para Kuhn, um paradigma científico é o campo social e conceitual a partir do qual o cientista pode encontrar tanto as perguntas a fazer quanto as soluções a serem encontradas.
Essencialmente, na pesquisa qualitativa, nos dados qualitativos, trata-se de significações a serem interpretadas e compreendidas. 
Se a ciência moderna supõe um universo vazio de sentido, no qual um conjunto de leis tão econômico quanto possível rege a o maior número possível de fenômenos observáveis, no caso das ciências interpretativas, o sentido é trazido com toda força para o campo da prática científica, assim como o pesquisador é chamado a interpretar e compreender.
Notem que tocamos aqui no problema da observação do comportamento humano, já mencionado na aula anterior. 
Observar seres humanos é observar seres que falam, o que introduz na observação a dimensão da escuta e da compreensão / interpretação.
Tal aspecto é diretamente ligado ao fato de que seres humanos não fazem sempre a mesma coisa, o que torna a discussão sobre o livre arbítrio uma das mais antigas e controversas no campo da filosofia.
Se o ser humano age livremente, isso quer dizer que seu comportamento é imprevisível e / ou que a causa de seu comportamento é sempre redutível às suas intenções?
Clique no ícone abaixo e veja como vários são os pressupostos teórico-epistemológicos e metodologias específicas que permitirão ao pesquisador em ciências sociais não recuar diante do desafio de rigor posto por qualquer prática que se pretenda científica.
Pesquisa qualitativa
A pesquisa qualitativa é definida no Dicionário de Psicologia da APA (2010) como uma “abordagem em ciência que não emprega a quantificação (expressão na forma numérica) das observações feitas” (p.707). 
Importante notar que o paradigma qualitativo aceita a pesquisa quantitativa, bem como que a pesquisa qualitativa pode ser utilizada dentro de um paradigma positivista, genericamente falando.
Portanto é importante não confundir o termo “paradigma qualitativo” com “pesquisa qualitativa”
Os dois conceitos querem dizer coisas bem diferentes. Conforme procurei mostrar acima, quando se fala em paradigma qualitativo, quer-se indicar que se está assumido que a realidade social não é singular nem objetiva, mas antes disso é plural e formada pelas experiências humanas e pelos contextos sociais, sendo por isso melhor estudada em seu contexto sócio histórico através da consideração das interpretações subjetivas de seus vários participantes. Isso contrasta com o paradigma positivista que assume que a realidade é relativamente independente do contexto, do qual deve ser abstraída e estudada de maneira analítica (sendo dividida em partes) com a utilização de técnicas objetivas e medidas padronizadas. Um pesquisador utilizará um enfoque interpretativo ou positivista dependendo de considerações quanto à natureza do fenômeno a ser considerado e à melhor maneira de estudá-lo.
Já quanto à polaridade entre pesquisa quantitativa e qualitativa, o que está em jogo remete a considerações relacionadas aos dados e a seu tratamento. 
A pesquisa qualitativa apoia-se, sobretudo em dados não numéricos, obtidos tipicamente em entrevistas e observações, em contraste com a pesquisa quantitativa que emprega dados numéricos. 
Uma pesquisa em ciências sociais pode recorrer a ambos os enfoques (ALVES MAZZOTTI & GEWANDSZNAJDER, 1998, GOLDENBERG 1997). Portanto não se esqueça que você pode utilizar dados qualitativos e quantitativos dentro de um paradigma qualitativo.
Trabalho de campo
O trabalho de campo do assistente social poderá ser dar em diversos contextos de pesquisa que estaremos examinando na próxima aula. De todo modo, destaca-se para o assistente social a coleta de dados qualitativos em meio ao seu trabalho de campo. 
Que se combinem duas características tão tabus para alcançar o rigor exigido pela ciência, só pode se justificar pela riqueza inestimável dos dados que tem sido assim coletados e tratados. Algo cuja importância não pode ser negligenciada e que forçou a busca de princípios metodológicos que pudessem incluir tais práticas e não estigmatizá-las.
O dicionário de psicologia da APA define trabalho de campo como “pesquisa ou prática realizada em ambientes cotidianos do mundo real, e não em laboratório ou sala de aula” (2010, p.967).
Concluindo...
A pesquisa científica nas ciências naturais envolve o exame crítico de informação existente sobre um dado fenômeno natural e, a partir daí, a formulação de uma hipótese que possa ser submetida a um teste experimental. 
O equivalente ao teste experimental, nas ciências sociais, é a Pesquisa de Campo, materializada no trabalho de campo realizado junto com os sujeitos que estão sofrendo todas as ricas tensões com que se apresenta a realidade. 
Conforme dito acima nas ciências sociais os dados colhidos na pesquisa de campo são, sobretudo, qualitativos e exigem a interpretação do pesquisador.
Que tais interpretações estejam atravessadas pela subjetividade do próprio pesquisador e pelas representações sociais que dominam o contexto em que a pesquisa é realizada é considerado como inevitável e, portanto, torna-se parte do processo mesmo de produção do conhecimento.
A riqueza das observações, a possibilidade de repeti-las exaustivamente corrigindo distorções mais sensíveis e o espírito crítico que deve predominar entre os pesquisadores são de certa maneira compensações que se podem evocar em nome do esforço de trabalhar com pesquisa de campo qualitativa. 
A pesquisa de campo é o procedimento básico da antropologia e da etnografia, mas terminou por disseminar-se pelas ciências sociais em geral. O trabalho de campo rompe com a especulação abstrata dos conhecimentos anteriores relativos aos domínios do que hoje se estuda nas ciências sociais.
Conforme diz Lacerda, “A abordagem antropológica de base, a que todo pesquisador considera hoje como incontornável, quaisquer que sejam suas opções teóricas, provém de uma ruptura inicial com qualquer modo de conhecimento abstrato, especulativo ou conjectural, isto é, que não esteja baseado na observação direta dos comportamentos sociaisa partir de uma relação humana” (LACERDA, 2013, p. 3).

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