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O Grupo Somos, a esquerda e a resistência à ditadura James N. Green. No período de 1950 e 1960, gays e lésbicas tinham a necessidade de se esconder caso quisessem garantir para si um pouco de sociabilidade, visto que os estigmas sociais da época marginalizava os homossexuais, sendo considerados por conceitos médicos vigentes como uma doença, e um pecado na ótica da igreja católica. O editorial do jornal Lampião da Esquina veio num período de abrandamento de anos de censura promovida pela ditadura militar, formatando a representação de um apelo à interação com a sociedade brasileira, almejando o debate sobre os relacionamentos homoafetivos. No momento de uma maior abertura política dentro regime militar, surge o grupo Somos, primeira organização politizada de gays e lésbicas no Brasil, cuja fundação em 1978 marcou o começo do ativismo LGBT no país. Eles faziam parte das articulações contra a ditadura, visavam uma sociedade mais pluralista e propunham novos conceitos sobre a sexualidade, comportamento e a própria natureza da política. Tinham uma abordagem trotskistamarxista, e argumentavam em favor de uma maior conexão com os outros movimentos sociais. Assim, o autor relata que o grupo Somos através de uma orientação marxista – visava estabelecer uma ligação com as classes trabalhadoras, visto que existe homossexualidade em todas as classes sociais. Em relação ao florescimento desses movimentos, não pode ser interpretado como um efeito do fechamento dos canais de participação e expressão que era até então promovido por parte da ditadura. Ao contrário, ele é o efeito tardio de décadas de marcante desenvolvimento nacional, com maior integração das camadas populares e criação de um clima favorável aos ventos de mudança que também vinham do exterior. Assim, uma marca importante para compreender a questão LGBT durante a ditadura é essa contradição, pois de um lado houve essa repressão nítida contra setores politizados e outros setores sociais, mas para LGBTs era um momento de expansão social porque o crescimento econômico dos anos 1968 até 1973, criou um novo espaço para as classes médias de consumo e de possibilidade de uma sociabilidade pública que não existia antes. Esse momento de possibilidades de vivência pública para gays e lésbicas criou uma certa noção de liberdade social, visto que havia um acesso maior a outras pessoas, a uma vida social mais pública, contudo,salientase que simultaneamente a essas boates e lugares de sociabilidade, importantes para a comunidade, existiam também outras medidas da própria ditadura contra a homossexualidade nesse período. Com efeito, essa impressão de maior liberdade e do alargamento de espaços de sociabilidade foi desfeita por atos concretos da repressão que ilustram a política de perseguição específica da ditadura em relação à homossexualidade. No entanto, o que proporciona um certo abrandamento por parte dos militares no poder foram oposições de forças que extrapolavam o controle dos generais. Dentre causas para esses abrandamento quanto à repressão, citase a crise de petróleo de 1973 , que provocou uma inflação aguda a partir de 1974, enfraquecendo o apoio ao regime nas classes médias, um setor da sociedade que no período anterior serviu como base de apoio ao governo devido à expansão econômica entre 1968 e 1973. Somado a isso, uma pluralidade de movimentos que lutavam contra o regime vigente, entre eles, o movimento estudantil, as feministas, o movimento negro e os movimentos das classes trabalhadoras. Enfim, toda a demanda represada de duas décadas de repressão passa a assumir a feição de uma sociedade civil pulsante e repleta de pautas na luta pela redemocratização. No curso do movimento, integrantes do grupo passaram por sentimentos de vulnerabilidade por serem homossexuais, pois a revelação de sua vida privada poderia causar problemas nos seus respectivos âmbitos sociais. Somos não era uma organização “subversiva” tradicional e alvo de opressão direta Operação Bandeirantes ou DEOPS, mas, por decidirem enfrentar preconceitos sociais com um projeto político, uma fragilidade se fez presente no grupo, pois para a maioria, inclusive dos homossexuais, era inconcebível a organização política de gays e lésbicas, sob contexto de abertura precária. Membros do Somos e militantes semiclandestinos tiveram desafios na sua abertura, como selecionar lugares seguros para as reuniões sem risco de infiltração dos agentes do estado. Para essas reuniões, recebiam ajuda de simpatizantes, como Zé Celso Martinez Correa. Pesquisas realizadas nos arquivos de repressão apontam que o Estado acompanhava o movimento homossexual. Devido à expansão da sociabilidade LGBT nos ambientes noturnos e o consumismo ligado às diversões voltado para esse público, em 1970 surgiu um público alvo para o ativismo, mas com barreiras para politização: por que expor sua sexualidade quando o estigma social era forte e o ativismo poderia gerar mais problemas com a família, emprego e Estado? A sociabilidade alternativa que o Somos proporcionava era muito importante, mais ainda para quem não tinha recursos para acompanhar a vida noturna de homossexuais. O grupo recebia dezenas de cartas sobre isolamento e necessidade de conversar com outros, e estabelecia “grupos de identificação”, onde recémchegados poderiam relatar o processo de assumir sua homossexualidade e compartilhar seus problemas e discutir através de diálogo interno diversos temas pertinentes à temática gay. A censura da imprensa e meios de comunicação atrapalhou essa reflexão intelectual e politizada. Poucas reportagens relavam o homossexualismo com olhar positivo, assim, o poder moralista da censura e o estado autoritário causavam medo nos interessados em participar do novo movimento político. Somos passou a crescer muito em 1979, após um debate organizado pelo Centro Acadêmico de Ciências Sociais da USP, que propunha um ciclo de debates sobre “minorias”. O debate contou com o Somos e o jornal Lampião, que publicou um artigo sobre esse evento e a polêmica entre ativistas homossexuais e estudantes marxistasleninistas. O Somos defendia a organização apenas contra a discriminação de gays e lésbicas e os outros priorizavam a luta contra a ditadura. Não havia no debate uma perspectiva universal para lidar com os temas. Quando o Somos recebeu um novo impulso de membros, a evidente crise futura se mostrou clara: o grupo que começou com um núcleo pequeno em 1978, recusando meios tradicionais de organização, negando hierarquias e legalização do Somos como entidade civil, pois geraria uma organização burocratizada, possibilitando o controle estatal sobre a organização, que funcionava até então horizontalmente, e mesmo com o crescimento de 1979, manteve o processo. Logo, ausências de cultura política de debate democrático e responsáveis para coordenar os rumos do grupo provocaram paralisia no processo de tomada decisões. Com diferentes perspectivas sobre o encaminhamento do grupo, a falta de experiência democrática gerou muitas tensões. Surgiram três grupos que representavam diferentes maneiras de encarar os rumos do movimento. (i) Um deles defendia uma postura autoritária e libertária, com críticas às esquerdas brasileiras. Trevisan e seu parceirona época eram os articuladores da visão desse grupo. Mesmo após a saída de Trevisan do Somos, no final de 1979, sua influência se manteve devida sua trajetória histórica no movimento e sua capacidade intelectual de articular uma visão coerente e sofisticada sobre questões homossexuais. (ii) O segundo polo dentro do Somos foi o das lésbicas. No começo do grupo poucas mulheres participavam, e devido escassez de lésbicas e misoginia entre alguns membros masculinos acabavam se afastando. Após o debate da USP, uma dúzia de lésbicas incorporaram o grupo e atraíram outras. Muitas delas integraramuma ótica feminista na leitura da homossexualidade feminina e preconceito social. devido predominância de discurso masculinos nas reuniões gerais, formaram grupo de “identificação” só para lésbicas, e em maio de 1980 deixaram o movimento para criar uma organização autônoma, embora algumas lésbicas tenham ficado no Somos. (iii) O autor pertencia ao terceiro polo, juntamente com pessoas de diversos níveis de experiência política, cujo objetivo era dirigir o grupo a um ativismo específico, além da reflexão interna, como a “identificação”. Em 1980 mais de uma dúzia de novos integrantes do Grupo Somos se identificaram como esquerdistas sem filiação partidária. A atuação política desse polo visava politizar o Somos, objetivando a interação do Grupo com a sociedade. Quando editores do Lampião da Esquina foram intimados por violar a Lei da Imprensa, solicitaram o posicionamento de outros jornais da “imprensa alternativa” e circularam um abaixoassinado que editores desses jornais e personalidades públicas assinaram. Levaram a sério o discurso público do jornal Lampião sobre fazer alianças com setores discriminados. Participaram do ato público em 20 de novembro, comemorando o Dia da Consciência Negra. Circularam no ato panfletos do Somos, que explicitavam o porquê da sua participação: a homossexualidade existe em todas as raças. O Grupo Somos participou de diversos atos e momentos da primeira etapa do movimento LGBT brasileiro. Houve resistência na época da tentativa de diálogo com o setor sindical e organizações da classe trabalhadora Os homossexuais estavam em todos os lugares, por que não nesses âmbitos? A crítica estava na possibilidade de controle ou manipulação por parte do movimento sindical. Na época, a Convergência Socialista foi a primeira organização de esquerda a criticar a discriminação homossexual e a Facção Homossexual foi a primeira organização de esquerda brasileira a defender os direitos dos gays, lésbicas e travestis, elaborando o Programa de Libertação Homossexual, que pautava: (I) o direito da organização e expressão homossexual; (ll) fim da discriminação homossexual; (lll) fim da ideologia antihomossexual; (lV) fim da repressão policial; (V) contra a exploração homossexual. Em 1981, Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, outro pioneiro do movimento, encabeçou a campanha exitosa para modificar a classificação médica e psiquiátrica que considerava a homossexualidade uma doença. Apesar dos esforços de Mott e Mascarenhas para incluir na Constituição de 1988 a linguagem da discriminação por orientação sexual, a emenda não passou. Atualmente, o programa “Brasil sem homofobia” tem avançado com um debate nas instituições do governo federal, mas o kit antihomofobia, instrumento de educação sobre homossexualidade nas escolas públicas foi vetado pela pressão da bancada religiosa e conservadora. Hoje, a grande maioria dos elementos do programa de 1980 refletem hoje nos ideias das diversas organizações LGBT. O movimento logrou a união homoafetiva via Poder Judiciário, leis estaduais que sancionam práticas homofóbicas e etc. Quando os integrantes do Grupo Somos resolveram interatuar com o mundo, o jornal Lampião alegou que a Convergência Socialista havia se apoderado do Grupo. Ao invés de criticar a postura do Partido Comunista Brasileiro, Partido Comunista do Brasil e etc, que mantinham posturas claramente homofóbicas e, logo, não apoiaram o movimento, o jornal atacou a única organização de esquerda que estava tentando modificar posturas conservadoras. Atividades acadêmicas contemporâneas debatem a natureza da ditadura militar e sua resistência. Na maioria dessas interpretações se desconsidera a importância da multiplicidade de movimentos sociais e articulações que surgiram em 1970 e que confluíram num sentimento amplo contra a ditadura. Esse processo explica, em parte, como a campanha pelas Diretas em 1983 e 1984 teve tanta força, mobilizando milhões de pessoas pelo direito de eleger um presidente e voltar ao regime democrático O processo de abertura lenta, gradual e segura, o movimento LGBT surgiu e teve que inventar como atuar. No caminho, os ativistas não encontraram solidariedade, mas criaram tradições de resistência, formas de luta e organização que embasaram o movimento LGBT brasileiro.
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