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Antropologia da Religião

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Antropologia da Religião
Apresentação
Você foi convidado a cursar a disciplina Antropologia da Religião. Talvez você já tenha se perguntado ou perguntado a algum dos seus colegas por que estudar religião na Universidade? O que isso tem a ver com o curso? Ou o que será que a Universidade pretende com isso?
Pois bem, você está numa Universidade, e ‘universidade’ tem a ver com ‘universalidade’. Logo, toda universidade tem o dever de estudar fenômenos relativos à humanidade. Ela não pode permanecer indiferente diante de nenhum fato, nem mesmo a religião, que é um fato que marca profundamente a existência humana desde seu início.
Uma universidade que se recuse a estudar o fenômeno religioso estará deixando de cumprir seu papel. Sendo assim, a Universidade Católica de Brasília – UCB sente-se na obrigação de oferecer a seus estudantes de graduação, por meio da disciplina Antropologia da Religião, não só uma reflexão séria sobre o ser humano e a cultura, mas também uma análise antropológica do fenômeno religioso. Assim, na disciplina Antropologia da Religião, você vai ter a oportunidade de conhecer, de modo científico, o fenômeno religioso e os aspectos antropológicos dele decorrentes (FILORAMO & PRANDI, 2003).
A UCB propõe está disciplina aos seus estudantes porque tem a convicção de que a religião contribui para a libertação das pessoas. E isso não só na dimensão pessoal, psíquico-terapêutica, mas também na dimensão social (KUNG, 2003). Por essa razão, a UCB propõe o entendimento do fenômeno religioso por meio de uma abordagem do saber, que se caracteriza pelo diálogo, pelatransdisciplinaridade e pela integração.
Há outra questão importante. Você já deve ter ouvido a seguinte afirmação: “Futebol, religião e política não se discutem”. Como afirma Zilles (2004),  todos que dizem isso pensam que sabem o que se quer dizer com a palavra ‘religião’ e com o termo ‘religioso’. Isso pode até ser verdade quando se trata de manifestações mais visíveis do fenômeno religioso, mas, quando a questão é definir a essência da religião, logo surgem dificuldades. Muitos de nós não sabemos distinguir os limites entre o que é verdadeiramente expressão religiosa e o que é puramente expressão cultural, folclórica ou social.
Se nos voltarmos com profundidade e honestidade para o fenômeno religioso, vamos descobrir que lá se encontra a referência aos fundamentos do ser humano. Lá estão perguntas que nenhuma pessoa pode deixar de fazer e que se relacionam com a origem, o fim e o futuro da humanidade. Você, pelo menos uma vez na vida, já deve ter se perguntado ou perguntado a alguém para que serve a vida e ou o que há depois da morte. Certamente, percebendo a complexidade das coisas, do mundo e do universo, você deve ter se perguntado também  sobre a possibilidade ou não da existência de um ser superior que criou e mantém toda essa complexidade.
Tudo isso mostra que o fenômeno religioso não é algo superficial, mas um aspecto relacionado à própria constituição do ser humano. O religioso, mesmo quando a pessoa não quer, atinge sua existência. E a Antropologia nos mostra que o religioso atinge também a história da humanidade e do mundo.
Você percebe, então, que para entender plenamente o ser humano é preciso estudar o fenômeno religioso e a religião? Tal estudo nos ajuda a compreender como as pessoas orientam sua existência e sua presença no mundo. Veja o que nos ensinam dois estudiosos da religião: “A religião dá forma e ensaia no ritual nossos mais importantes laços, uns com os outros e com a natureza, e provê alógica tanto ao ‘porquê’ desses laços serem importantes como ao ‘o quê’ significa estar comprometido com eles” (NEVILLE & WILDMAN apud NEVILLE, 2005, p. 37).
Há, ainda, outra questão que mostra a importância do estudo da religião no atual momento. Cresce no mundo aquilo que se costuma chamar de ‘fundamentalismo religioso’. O fundamentalismo religioso é aquela atitude pela qual a pessoa “confere caráter absoluto ao seu ponto de vista” (BOFF, 2002, p. 25). A pessoa fundamentalista, independente da religião que professe, não aceita a opinião dos outros e acredita que só ela tem razão.
Você, por acaso, já encontrou uma pessoa assim? Ora, a pessoa fundamentalista não é capaz de descobrir a riqueza das outras religiões e a compreensão que elas têm do ser humano. Assim sendo, o fundamentalismo não contribui para a construção da paz, pois “quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância” (BOFF, 2002, p. 25). O fundamentalismo, com frequência, leva ao acirramento entre as religiões, gerando ódio e alimentando violência. Por esse motivo, o fenômeno religioso precisa ser analisado de maneira científica, a fim de que se possa contribuir para a superação desse risco.
A disciplina Antropologia da Religião procura responder a essas inquietações. Ela parte de uma reflexão sobre a humanidade e sobre a cultura como realidades complexas, buscando compreender como o ser humano foi e continua sendo visto por ele mesmo, com base em uma das suas mais significativas e originais manifestações: a religião.
E então, vamos começar? Mas, antes, leia o texto “Antropologia da religião”, de Robson Stigar, para ter uma visão mais ampla da disciplina Antropologia da Religião. Leia também o artigo de Otávio Velho “A Antropologia da Religião em tempos de globalização” para entender a atualidade desta disciplina.
Aula 01 - O Estatuto Científico do Estudo da Religião
Você sabia que religião foi e ainda é objeto de estudo de muitas ciências? A Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Medicina, a Pedagogia e tantas outras ciências estudam religião. No âmbito da Física, cientistas como Albert Einstein escreveram sobre a relação entre ciência e religião.
A religião não é mais objeto exclusivo da Teologia. Se você pesquisar na rede de computadores, por exemplo, encontrará uma infinidade de artigos científicos sobre o tema. Você terá indicações de diversos estudos sobre religião.
Como e quando começou o interesse dos cientistas pela religião será o assunto desta aula. Antes de começar o estudo, porém, leia o texto de Albert Einstein “Ciência e Religião”.
1.1 Da História das Religiões à Ciência da Religião
Tudo começou no século XVI com dois grandes estudiosos: Benedito Spinoza e Giambattista Vico (CIPRIANI, 2007, p. 21-39). Esses pensadores defenderam uma posição crítica contra a religião. Você já ouviu falar deles? Spinoza, por exemplo, afirmou a superioridade do Estado sobre a Igreja. Vico, por sua vez, afirmou que a história do mundo começa, em todos os povos, com as religiões. Vico falou de três fases ou eras da história, sendo que a primeira fase corresponde à era dos deuses. Em seguida, vieram outros estudiosos, como David Hume (1711-1776), conhecido por suas críticas impiedosas à religião.
A partir do século XIX, o estudo da religião foi influenciado pelo processo de ramificação das ciências naturais e humanas. Além disso, o declínio da hegemonia cristã no Ocidente contribuiu significativamente para a revisão de muitos parâmetros. O cristianismo teve de se confrontar com outras tradições religiosas que se tornavam cada vez mais conhecidas. Surgiu, a partir de então, a disciplina História das Religiões nas universidades. A finalidade desta disciplina era fazer um estudo comparado das diferentes tradições religiosas, em vista de uma reconstituição da evolução da trajetória religiosa da humanidade. A partir desse fato, dentro do contexto iluminista da época, foi se afirmando a necessidade de substituir a disciplina História das Religiões por outra disciplina, chamada Ciência da Religião, cuja finalidade era unificar as diversas contribuições provenientes dos diferentes estudos feitos e da observação de muitos estudiosos.
No final do século XIX, com a crise do Positivismo, os pressupostos da Ciência da Religião começaram a ser seriamente questionados. Mas somente no início do século XX aconteceu uma mudança substancial: passou-se, aos poucos, da pretensão de querer explicar areligião para o princípio da compreensão. A consequência disso foi que a religião passou a ser vista a partir de uma estrutura própria e de uma verdade que ia sendo aos poucos desvelada, de acordo com o desenrolar das pesquisas.
No momento atual, busca-se a superação da contraposição entre o método da explicação e aquele da compreensão. Os dois modelos contraditórios vão sendo hoje substituídos pelo modelo de integração. Segundo esse modelo, procura-se valorizar, por um lado, a necessidade de um pluralismo metodológico e, por outro, os aspectos subjetivos decisivos no resultado de pesquisas.
1.2 O Objetivo do Estudo da Religião
Você certamente cursa várias disciplinas na Universidade e já deve ter percebido que todas elas têm definido o seu próprio objeto de estudo. No caso da disciplina Antropologia da Religião, o objeto de estudo será a religião, ou melhor, o fenômeno religioso, e terá como objetivo, a partir do estudo do fenômeno religioso, favorecer o conhecimento mútuo, fomentar o diálogo respeitoso e contribuir para a construção da paz entre as pessoas e as religiões. Além de estudar o fenômeno religioso, a disciplina pretende também perceber a relação que existe entre os diversos fenômenos religiosos, a cultura e a história da sociedade. Para chegar a isso, é indispensável conhecer a lógica e a estrutura do fenômeno religioso e, mais particularmente, da religião como sistema.
Nesse momento, surge então uma pergunta muito importante: será possível estudar uma disciplina sem gostar dela? Sem cultivar pelo menos um pouco de simpatia pelo objeto de estudo? Filoramo e Prandi (2003, p. 21) recordam que no “estudo de qualquer realidade humana, a ‘simpatia’ pelo objeto de estudo é uma condição psicológica que facilita sua inteligibilidade e sua interpretação”. Portanto, somente a simpatia nos possibilita uma convergência para o diálogo e o entendimento mútuo.
Desse modo, o convidamos, agora, a ter simpatia pela disciplina Antropologia da Religião. O estudo dessa disciplina vai ser muito interessante, pois você vai agregar novos conhecimentos e saberes a tantos outros que você já possui.
1.3 Ausência do Termo ‘Religião’ nas Culturas Religiosas
Você sabia que a primeira grande discussão sobre o termo ‘religião’ aconteceu no final do século XVIII com o filósofo alemão Schleiermacher? Ele tratou do assunto nos seus célebres discursos Sobre a Religião. O filósofo manifestava uma certa insatisfação com a tendência da maioria dos estudiosos do fenômeno religioso, que identificavam o termo ‘religião’ apenas com o cristianismo. Convidava-os, então, a ampliar o conceito, vendo o cristianismo como uma entre tantas religiões existentes no planeta (FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 253-54).
A mais simples e, ao mesmo tempo, mais interessante definição de religião foi dada por Tylor: religião é “a crença em seres espirituais” (apud MARCONI & PRESOTTO, 2006, p. 151). Há, porém, uma coisa muito curiosa. Será que você já sabe o que é? É que o termo ‘religião’ (do latim, religio)é totalmente estranho à quase totalidade das culturas religiosas. Elas não usam tal expressão para se autodefinirem. A palavra ‘religião’, por exemplo, não aparece na Bíblia judaica e cristã. Nas demais religiões, existem outros conceitos para indicar a autocompreensão que elas têm de si mesmas.
Para facilitar a compreensão e o bom aproveitamento dessa disciplina, é muito importante entender o conceito de ‘religião’. Então, vamos prosseguir?
1.4 O Significado Cristão de Religião
A palavra ‘religião’ vem, pois, do latim, que era a língua falada no Império Romano. Antes da chegada do cristianismo, a palavra religio (religião) estava associada aos comportamentos que expressavam escrúpulo, consciência, exatidão e lealdade, indicando um estilo de comportamento marcado pela rigidez e pela precisão. Não tinha, portanto, a conotação que passou a ter mais tarde.
No século V d.C., o escritor latino Macróbio afirmou que o termo ‘religião’ deriva do verbo latino relinquere, isto é, deixar, abandonar. Religião seria, então, o ato de abandonar-se nas mãos de Deus. Mas essa explicação não teve muita repercussão. Preferiu-se continuar com a definição proposta por Cícero, por volta do ano 45 a.C., em sua obra De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses). Para esse pensador, o termo ‘religião’ vem do verbo latino relegere e significa uma observância escrupulosa do rito, acompanhada de uma precisão repetitiva de atos devocionais dirigidos à divindade. Afirmou Cícero: “os que consideravam com cuidado e, por assim dizer, reliam tudo o que se referia ao culto dos deuses eram chamados de religiosos, de relegere” (apud FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 255-56).
Entre os séculos III e IV d.C., o pensador africano Lactâncio rejeitou a leitura ciceroniana, afirmando que o termo religio vem do verbo latino religare. Nesse caso, a religião seria um vínculo que nos une a Deus. Lactâncio afirmava o caráter de dependência gerado pela religião: a criatura depende do seu Criador.
A questão foi retomada, mais tarde, por outro pensador africano, Agostinho, especialmente no De civitate Dei (A Cidade de Deus) e no De vera religione (A verdadeira religião). Agostinho buscava um significado intermediário: do termo relegere para a expressão religere, isto é, ‘reeleger’, entendendo a religião como movimento humano de retorno a Deus. A partir de Agostinho, a religião passou a ser definida como ligação feita de submissão e de amor entre a pessoa humana e Deus.
Mais tarde, durante a Idade Média, Tomás de Aquino, na sua monumental obra Suma Teológica, unificou os diversos conceitos, afirmando que tanto faz que religio venha de relegere como dereligere. O importante, na opinião dele, é entender que ela implica uma relação com Deus. Tal concepção passou de forma definitiva para a cultura cristã.
Para Saber Mais
Antes de prosseguir, você precisa aprofundar o conceito de ‘religião’. Para tanto, estude o texto “Religião, diversidade e valores culturais: conceitos teóricos e a educação para a cidadania”, de autoria de Eliane Moura da Silva.
1.5 Os Conceitos Substantivado e Funcional de Religião
Você já compreendeu o significado etimológico da palavra ‘religião’? Viu quantas definições foram dadas? Isso tudo mostra que a religião precisa ser bem compreendida!
O conceito de ‘religião’ de Tomás de Aquino só sofreu alguma alteração quando se iniciaram as reflexões sobre a visão de mundo, provocadas pelas descobertas científicas que se seguiram à viradacopernicana. Nesse período, o debate deslocou-se da questão filológica para a dimensão funcional da religião, isto é, do substantivo para o adjetivo: para que serve a religião?
Recuperou-se, assim, um pensamento do poeta latino Lucrécio (século I a.C.), o qual afirmava que se as pessoas encontrassem uma saída segura para seus problemas e tribulações, elas certamente esqueceriam e até se oporiam à religião.
A) A Crítica Iluminista
A crítica iluminista radicalizou esse debate, contrapondo-se com nitidez à concepção das igrejas cristãs da época. E, se você tiver a curiosidade de pesquisar, vai encontrar umas ideias muito interessantes.
Voltaire, por exemplo, no seu Dicionário filosófico, dizia, entre outras coisas, que a melhor religião é aquela mais simples, com pouquíssimos dogmas, que ajude a pessoas a serem mais justas, que não as obrigue a crer em absurdos e em coisas contraditórias e impossíveis; que ensine apenas a adoração a Deus, bem como a justiça, a tolerância e a humanidade. Voltaire resumia na sua definição de religião os dois elementos que na época estavam em discussão: o substantivo (adoração a Deus) e o funcional (exercício da justiça e humanização das pessoas).
No período do pós-iluminismo e das grandes revoluções, a crítica contra a religião se intensificou, retomando a afirmação de Lucrécio.
Você está curioso para saber mais?
Então veja só alguns detalhes (o restante você vai encontrar nos textos indicados; vale a pena pesquisar!):
Os críticos, entre outras coisas, questionavam as religiões sobre sua indiferençadiante da situação das classes mais pobres, particularmente do proletariado. Feuerbach, por exemplo, dizia que o cristianismo tinha se reduzido a uma ideia, e que Deus seria apenas uma projeção do ser humano. Karl Marx via a religião como o suspiro da criatura oprimida, mas acreditava que ela tinha se tornado o ópio do povo. Para Marx, a religião anestesiava as pessoas, tirando-lhes a capacidade de resistir e de lutar. Weber mostrou a relação existente entre determinadas formas de economia e certos conteúdos de fé religiosa. Freud chegou a falar de uma semelhança entre neurose e devoções religiosas, fazendo acreditar que existia uma relação entre a religião e o estado patológico de algumas pessoas.
B) Início de um Caminho Bipolar
	No final do século XIX e início do século XX os diferentes conceitos de ‘religião’ foram se aglutinando em torno de uma bipolaridade:
Uma do tipo substantivada, isto é, teológica, filosófica, tentando dizer o que é religião com referência a entidades transcendentes;
Outra do tipo funcional, que procurava discutir a finalidade da religião – prevalece a ideia de que a religião é uma concepção humana que desenvolve um papel específico, sem necessariamente se referir a uma entidade meta-histórica.
De acordo com Cipriani (2007, p. 8), a definição substantivada de religião refere-se “a elementos justamente substantivos, como o culto, o sobrenatural, o invisível, o rito”. Já a definição funcional salienta “a conotação funcional, o papel da religião na sociedade”.
A partir da segunda metade do século XX, alguns autores começaram a juntar os dois conceitos. Passaram a sustentar, na definição substantivada, um aspecto também funcional da religião. Ao dizer que a religião é o fundamento dos laços sociais, esses autores incluíram também nessa definição o aspecto funcional (CIPRIANI, 2007).
Mas qual é a importância do estudo do conceito funcional de religião? É que mesmo reconhecendo que a experiência religiosa é um fenômeno antropológico universal, os estudiosos concentram suas pesquisas em torno da influência ou ingerência da religião na construção social da realidade e na concepção de mundo.
Analisando a capacidade que as experiências religiosas têm de reduzir a incerteza, de determinar o que parece indeterminado, de representar o que não pode ser representado, os teóricos buscam perceber de modo científico a forma como a religião interfere na formação da complexa estratificação e diferenciação que vigoram nas sociedades (CIPRIANI, 2007).
C) A Religião como Empreendimento Humano
Os estudiosos passaram, então, a afirmar que a religião é “um empreendimento humano”, ou seja, “a temerária tentativa de conceber o universo como algo humanamente significativo” (FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 266). Eles insistiam em afirmar que a perspectiva funcional era a única forma de compreender cientificamente a religião: uma obra humana por meio da qual é construído um cosmosagrado.
Para os teóricos funcionalistas, a religião refere-se ao que chamam de ultimate concern, isto é, preocupação última. O termo ‘último’, segundo esses estudiosos, não se refere a algo metafísico ou transcendente e nem pretende negá-lo. O cientista da religião não precisa afirmar ou negar essas realidades. Apenas insistem em dizer, na perspectiva funcional, que a expressão ‘última’ refere-se a uma preocupação que, num determinado contexto histórico, social e cultural, é a coisa mais importante para uma determinada pessoa naquele momento (FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 267-268).
E você sabe que, sob certos aspectos, eles têm razão? Se você observar bem, vai ver que, ainda hoje, a técnica e a ciência não conseguiram eliminar certos problemas da humanidade, como o sofrimento, o mal, a hostilidade, as injustiças. A religião, então, teria o papel de buscar uma solução definitiva para tais problemas. Esquecer esse aspecto é cair na abstração.
Se o estudo científico da religião esquece o papel de legitimação social que ela sempre exerceu, esvazia-a de seu real e verdadeiro conteúdo. Até hoje, a religião ainda é vista como um modo último de resposta e de adaptação; como uma tentativa de explicar o que não pode ser explicado, de recuperar o vigor quando todas as outras forças falham, de instaurar o equilíbrio e a serenidade diante de tantos males e de tantos sofrimentos (FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 267).
1.6 A Religião como Fato Antropológico Universal
Na Antropologia da Religião, buscamos não apenas refletir sobre o fenômeno religioso, mas também visamos a uma compreensão do ser humano presente em tais manifestações culturais e religiosas. Por isso, cabe ressaltar ainda dois aspectos.
A) Ser Aberto à Transcendência
O primeiro refere-se a uma constatação fantástica, que não há como negar. O ser humano é uma realidade complexa e tal complexidade se acentua ainda mais quando se passa do plano da ação ao plano do ser.
Uma manifestação tipicamente humana é a religião. Ela não está presente nos outros seres vivos. Os antropólogos nos informam que o ser humano desenvolveu a atividade religiosa desde sua primeira aparição na terra:
A religião é um aspecto universal da cultura e, juntamente com a magia, tem despertado o interesse de vários cientistas, desde o século passado. Todas as populações estudadas pelos antropólogos demonstraram possuir um conjunto de crenças em poderes sobrenaturais de alguma espécie (MARCONI & PRESOTTO, 2006, p. 151).
Portanto, o ser humano é um ser religioso, isto é, aberto ao infinito, insaciável, que busca a ponto de ir até realidades fora de si mesmo. Por isso ele é um ser auto transcendente, capaz de superar a si mesmo. Diferente dos outros animais, apresenta uma realidade profunda e singular que não pode ser totalmente conhecida pelos outros, uma interioridade que não pode ser violada. Portanto, é um ser que possui algo a mais, além daquilo que aparece. Um ser que traz em si um elemento de espiritualidade: consciência de que nele habita um ‘Si mais profundo’ (Radhakrishnan), uma ‘luz’ que nenhuma potência pode extinguir.
A experiência nos faz perceber que, ainda hoje, os seres humanos, por meio dos cultos e rituais religiosos, tanto públicos como privados, “tentam conquistar ou dominar, pela oração, oferenda, sacrifícios, cantos, danças etc., a área do seu universo não submetida à tecnologia”. A Arqueologia nos mostra que os “registros arqueológicos mais antigos sobre religião datam do PaleolíticoSuperior, com o Homem de Neandertal, que enterrava seus mortos com oferendas, demonstrando uma crença em algo sobrenatural” (MARCONI & PRESOTTO, 2006, p. 151). Portanto, temos registros arqueológicos que nos asseguram que há pelo menos 150 mil anos o ser humano já era religioso.
B) Retomando o Ponto de Partida
A outra questão nos leva de volta ao início desta nossa conversa: a religião não pode ficar de fora da universidade. Não podemos, no âmbito acadêmico, deixar de lado um dado antropológico tão significativo. E, olhando o caso do Brasil, basta lembrar que, no Censo de 2000, 92,74% da população brasileira se definiu adepta de uma religião. Apenas 7,26% disse não ter religião. Mas isso não quer dizer necessariamente que a pessoa não acredite em algo transcendente, sobrenatural, espiritual.
Portanto, o fato incontestável de um tão grande número de pessoas religiosas em nosso país merece um estudo sério. Trata-se de algo que marca a quase totalidade da população e que, sem dúvida, interfere no dia a dia das pessoas e na vida social, política, econômica e cultural do País. Por isso, pretendemos, por meio da Antropologia da Religião, contribuir para que você mergulhe nesse contexto tão marcado pela religiosidade e seja capaz não só de dialogar com essa realidade plural, mas também de contribuir efetivamente para que essa cultura religiosa seja um verdadeiro espaço de construção de um mundo mais justo, mais humano e mais solidário.
Aula 02 - A Antropologia no Campo das Ciências Sociais
Na aula anterior você pôde entender por que o estudo da Antropologia da Religião é importante no âmbitoda Universidade. Agora, nesta aula, você vai aprender o que é Antropologia. Para tanto, você vai contar com a ajuda de alguns personagens. Trata-se de um grupo de alunos da Universidade Católica de Brasília. Acompanhe-os nessa jornada!
Universidade Católica de Brasília, Campus I
2.1 A Antropologia no Quadro das Ciências
É início das aulas e Pedro desceu lepidamente do ônibus, caminhou alguns passos e se encontrou com seus amigos antes de chegar aos jardins verdes e ensolarados da universidade. Todos eram calouros, com exceção de Laura e João, que haviam iniciado o curso no ano anterior.
O grupo se mostrava ansioso por iniciar as aulas e conversava sobre as disciplinas que iriam cursar. Pedro adiantou-se e disse:
- Tenho uma disciplina chamada ‘Antropologia da Religião’. Esse termo “antropologia” é novo; não sei bem do que se trata.
Maria, com os olhos atentos, mencionou que também cursaria a disciplina, mas na modalidade de educação a distância.
João, imediatamente, falou:
- É uma disciplina da área das Ciências Sociais.
Laura, sorrindo, acrescentou:
- Você ajudou muito! A Sociologia, a História, a Psicologia Social, a Economia e tantos outros cursos, além de serem da área, têm muitas de suas disciplinas no campo das Ciências Sociais. Mas, afinal, o que são as Ciências Sociais?
Pedro olhava para um e para outro, querendo entender melhor essas novas palavras, já que iria cursar “Antropologia da Religião”, que faz parte da “Antropologia” que, por sua vez, é da área das Ciências Sociais. Balançou a cabeça e disse, de supetão:
- E daí?
João, como sempre muito sistemático, falou pausadamente:
- Vamos por partes.
Enquanto caminhavam em direção à biblioteca, o jovem dizia:
- O conhecimento científico é um tipo de conhecimento que é relativamente recente na história da humanidade, não é mesmo?
Perguntou como se quisesse apenas criar uma sequência em sua argumentação. Antes não havia propriamente uma hierarquia entre as várias formas de conhecimentos científicos de diferentes povos, como os chineses, árabes, maias e outros. Contudo, com a expansão colonial europeia, a partir dos séculos XV e XVI, iniciou-se um processo de criação de uma ‘ciência central’, abrangente e excludente. A ideia de ciência que temos hoje, em grande parte, é fruto desse modelo que partiu da Europa e depois se fez presente em outros continentes.
2.2 Ciências Naturais e Ciências Sociais
Universidade Católica de Brasília, Biblioteca
Quando chegaram à biblioteca, Pedro, ainda interessado no assunto, perguntou:
- E a Antropologia nisso tudo?
Já dentro da biblioteca, dirigiam-se para uma sala de estudo em grupo. Maria, também caloura, que até o momento permanecera apenas ouvindo, disse:
- O assunto está interessante! Que tal buscarmos informações em alguns livros e em algum sítio acadêmico na Internet?
O grupo concordou, mas antes de se dispersarem para a pesquisa, João disse:
- Acho uma boa ideia, mas seria melhor acordarmos primeiro o que queremos pesquisar, qual nosso objetivo de pesquisa, para depois nos dividirmos. Então, retomando o que estava falando, acrescento que nesse modelo de ciência desenvolvido na Europa há uma divisão entre aquilo que chamamos hoje de ‘ciências da natureza’ e ‘ciências humanas’. Recordo-me das anotações que fiz das ideias de um famoso antropólogo brasileiro chamado Roberto Damatta, não lembro bem do livro, mas ainda deve estar aqui no meu pendrive.
Damatta menciona algo sobre essa distinção:
Nossas reconstruções, assim, diferentemente daquelas realizadas pelos cientistas naturais, são sempre parciais, dependendo de documentos, observações, sensibilidade e perspectivas. (...) O problema não é o de somente reproduzir e observar o fenômeno, mas substancialmente o de como observá-lo. (DAMATTA, 1983, pp.21-22)
Enquanto caminhava em direção à entrada da sala de estudos em grupo, João vasculhava sua mochila procurando o pendrive. Ao sentarem nas cadeiras ao redor de uma mesa circular, Maria abriu sua mochila, retirou seu notebook e disse para João procurar o arquivo que continha as ideias desse antropólogo Roberto Damatta. João prontamente conectou o dispositivo e procurou o mencionado arquivo. Disse, logo em seguida:
- Está aqui! Vejam o esquema que montei das ideias da primeira parte do livro Relativizando: uma introdução à antropologia social, intitulada “A Antropologia no quadro das Ciências”:
	Fonte: DAMATTA (1983, pp.17-22).
	Ciências Naturais
	Ciências Sociais
	Estudo de fenômenos e fatos que se repetem, têm uma constância e, nesse sentido, podem ser considerados fenômenos simples e isoláveis. São fenômenos que estão perto de nós, mas radicalmente diferente de nós (o objeto de estudo é completamente diferente do pesquisador).
	Estudo de fenômenos complexos, situados em planos de causalidade e determinação complicados. São fenômenos que estão bem perto de nós (muitas vezes é difícil, senão impossível, separar realmente o objeto de estudo do pesquisador).
	Geralmente, os fenômenos observados são reproduzidos em laboratórios ou similares em vista de uma comprovação empírica.
	Não é fácil isolar causas e motivações exclusivas.
	Seus resultados são, na maior parte, materializados em tecnologias que trazem, com relativa agilidade, consequências e impactos na sociedade.
	Seus resultados, por não poderem ser reproduzidos ‘em laboratório’, não trazem de imediato tanto impacto quanto os resultados das Ciências da Natureza, mas tendem a produzir modificações no comportamento social. Em geral, seus resultados práticos são vistos fora do campo científico e tecnológico: filmes, teatro, novelas romances etc.
	Pode-se presenciar, por exemplo, os modos de reprodução de formigas, pois o fenômeno pode ser criado em laboratório.
	Não é possível reproduzir a matéria-prima das Ciências Sociais. Mas pode ser observada (por exemplo, funerais, aniversários, rituais de iniciação, trocas comerciais etc.).
Maria e Pedro coçaram a cabeça e olharam o esquema de um lado e de outro. Pensavam apenas, sem falar, mas seus gestos corporais expressavam bem as dúvidas e inquietações. Pedro rompeu com o silêncio e perguntou:
- Quer dizer então que a Antropologia é uma disciplina das Ciências Sociais, e que esta área difere das Ciências Naturais, mas ambas formam o conhecimento científico?
Laura, como já havia cursado Antropologia da Religião e Metodologia Científica, e, portanto, estava por dentro da formação do conhecimento científico, sorriu e disse:
- É isso mesmo. O fato de haver essa divisão é mais didática, pois no fundo pergunto-me se há alguma ciência que não seja humana ou social. Mesmo os cursos com disciplinas majoritariamente da área das Ciências da Natureza e Exatas também não são cursos que nascem e desenvolvem-se a partir do ser humano e de suas relações, da busca de melhor viver? Certamente que sim!
Maria olhou para Laura, e Pedro e fez uma observação:
- Mas tem muita gente que pensa e age como se o seu curso fosse melhor e mais importante que os outros. Como se fosse mais científico que outros. A ideia de que essas áreas são interdependentes e que na verdade formam um único conhecimento, o conhecimento científico, é muito importante, pois evita comparações ingênuas e preconceituosas que de nada ajudam na formação de um ambiente acadêmico sério e aberto à interação entre diferentes áreas e, consequentemente, entre diferentes cursos.
Para Refletir...
O conhecimento humano expresso nas duas imagens abaixo deve ser hierarquizado frente ao critério do bem viver coletivo e individual? Por que em algumas relações sociais ainda se insiste em tais hierarquizações?
Laura retomou a palavra e disse:
- Lembram do que o João falou sobre a história do conhecimento científico? Que é relativamente novo? Então, não vamos nos esquecer de que existem outros importantes tipos de conhecimentos que também nos ajudam ou podem nos ajudar no bem viver, assim como a Ciência. São eles: a Filosofia, a Teologia, o conhecimento mítico, o conhecimento artístico.
João ouvia a conversa e olhavaconcomitantemente a tela do computador, que apresentava, além do esquema, outras anotações sobre o referido assunto, com base no antropólogo Damatta. Numa tentativa de síntese mencionou:
- Concordo com você Laura. Nesse mesmo capítulo, o Roberto Damatta chama nossa atenção para o fato de que a distinção entre as ‘Ciências Naturais’ e as ‘Ciências Sociais’ é que na primeira a natureza não pode falar diretamente com o pesquisador, ao contrário da segunda: cada sociedade humana conhecida é um espelho em que nossa própria existência se reflete. Para ele, as ‘Ciências da Natureza’ são mais simples e se repetem, já as ‘Ciências Sociais’ são mais complexas e complicadas, por dependerem de vários aspectos. O fato de a Antropologia Social lidar com a dimensão cultural e simbólica nos informa da complexidade de seu objeto de estudo, bem como da importância de seus estudos, que podem nos ajudar a compreender e propor mudanças de comportamento social. Embora este último aspecto seja, para o autor, algo difícil, pois é mais fácil para os grupos sociais mudarem ou trocarem de objetos e bens do que trocarem de valores simbólicos e políticos.
Pedro e Maria ouviam atentos, e Pedro disse:
- De fato, é mais fácil trocar de aparelho celular do que, por exemplo, mudar de hábitos politicamente incorretos como beber uma cerveja e depois dirigir um carro. A ‘Lei seca’ serve de exemplo do que você está falando. Os estudos da  Antropologia, dos costumes de um povo ou grupo, nos ajudam a melhor compreendê-lo e, se for o caso, modificar esses costumes, não é?
João confirmou, dizendo que estudar ‘objetos’ como os hábitos e costumes de um grupo humano é extremamente desafiante, pois depende de uma série de fatores sociais e individuais que se modificam conforme o contexto e o momento em que ocorrem as ações.
Laura pediu a palavra e afirmou:
- É isso mesmo João! Destaco ainda, conforme o antropólogo Damatta, que os fatos de as ‘Ciências Sociais’ não produzirem resultados que possam ser generalizados, tal como as ‘Ciências Naturais’, e de não terem consequências práticas na mesma proporção não tornam um tipo de conhecimento inferior ao outro. A Antropologia envolve fatos complexos que dependem de condições de percepção e interpretação do pesquisador. Os seres humanos não se separam por espécies, mas pela organização de suas experiências, por sua história e pelo modo como classificam suas realidades internas e externas. Desse modo, quando vemos um costume diferente, acabamos reconhecendo-o pelo contraste em relação ao nosso próprio costume.
Os fatos sociais são irreproduzíveis em condições controladas e, por isso, quase sempre fazem parte do passado. São eventos a rigor históricos e apresentados de modo descritivo e narrativo, nunca na forma de uma experiência. (DAMATTA, 1983, p. 21)
2.3 O que é Antropologia?
Maria sorriu e exclamou:
- Puxa! Vejam como discutir academicamente um assunto nos obriga a ver diversos ângulos de uma questão! Diante da simples pergunta do Pedro – o que é Antropologia –, afirmamos isso, afirmamos aquilo. Tudo para preparar uma resposta. Mas até agora não dissemos, afinal, o que é Antropologia!
Pedro também sorriu e disse:
- Tô curioso e até entendo que, para uma melhor compreensão, é necessário, academicamente falando, ver as relações de algo com o todo e como essa parte se constitui nesse todo, senão teremos uma visão muito parcial e ingênua das coisas. Mas agora acho que já temos uma visão panorâmica para falar especificamente sobre o que é Antropologia. Não é mesmo?
João e Laura também sorriram, dizendo:
- É isso mesmo! Bem vindos à universidade! Bem vindos ao debate acadêmico!
- Ok, galera! Vamos fazer o seguinte – disse Pedro– a Maria tinha proposto que buscássemos informações aqui na biblioteca em alguns livros e em algum sítio acadêmico na Internet, e o João nos advertiu que antes seria melhor acordarmos o que queremos pesquisar, qual nosso objetivo de busca e depois nos dividirmos. Acho que já temos mais claro o que queremos. Então vamos lá?
Maria disse que procuraria sobre “o que é Antropologia” na Internet. Pedro disse que procuraria no ‘pai dos burros’ (que na verdade significa o contrário do que aparentemente quer dizer, isto é, só quem quer aprender mesmo é que consulta e pesquisa no dicionário, logo a expressão mais exata seria ‘pai dos sábios’).
Laura tomou a palavra e disse:
- Em que dicionário você irá procurar, Pedro?
Ele respondeu:
- Em qualquer um que eu encontrar, como o Aurélio, o Houaiss... Qualquer um.
Mas Pedro percebeu que aquela pergunta tinha uma razão de ser. Quem explicou foi o João:
- Na universidade, precisamos consultar, sempre que possível, a fonte bibliográfica apropriada, isto é, que tenha um caráter científico comprovado. Assim, no caso dos dicionários, embora esses dois que você citou sejam boas fontes, há dicionários especializados em algumas áreas, como dicionários de Filosofia, Botânica etc. E para o caso específico que estamos discutindo, há dicionários de Ciências Sociais.
Laura complementou:
- Isso vale não só para livros, revistas ou qualquer material impresso, mas também para consultas virtuais, para materiais encontrados na Internet. Cada área e curso, geralmente, conta com livros clássicos, periódicos e outros que têm o aval da comunidade científica. O material publicado nessas fontes é previamente apreciado por uma equipe de especialistas na área. Nas revistas, também chamadas de ‘periódicos’, a gente pode ver quem são esses especialistas no ‘Conselho Editorial’. Geralmente são doutores ou reconhecidos pesquisadores. Um estudo acadêmico deve ter, direta ou indiretamente, referência a essas obras, pois são o que há de mais legitimado no momento. Na Internet, alguns sítios na área de Ciências Sociais, especialmente na Antropologia, são o do DAN – UnB; o do Museu Nacional – UFRJ; o da Associação Brasileia de Antropologia – ABA, e de forma geral, o Scielo. O Google é uma ferramenta de busca muito usada, mas para esses fins que mencionamos sugiro que busque o Google acadêmico.
Enquanto ouvia, Maria rapidamente acessou o verbete ‘antropologia’, e inúmeros links abriram-se em sua tela. Ela disse:
- Vejam só! Como escolher entre essas dezenas de links? Que critério utilizar? Vocês têm razão. Precisamos ter referências acadêmicas.
Pedro e Laura afastaram-se para procurar, na estante de dicionários, um dicionário especializado. Enquanto isso, Maria conversava com João:
- Veja só o que diz o dicionário Houaiss sobre ‘antropologia’: “ciência do homem no sentido mais lato, que engloba origens, evolução, desenvolvimentos físico, material e cultural, fisiologia, psicologia, características raciais, costumes sociais, crenças etc.”
Nesse momento, chegaram Pedro e Laura com o Dicionário de Ciências Sociais (1986). No verbete ‘antropologia’, encontraram sete páginas sobre o termo e suas divisões, como ‘antropologia cultural’, ‘antropologia política’ etc.
Após lerem todo o verbete sobre antropologia, destacaram as seguintes partes:
Inicialmente a antropologia era uma disciplina global, singularizada pela junção de traços biológicos e características históricas e sócio-culturais. Ou estava inteiramente voltada para o passado, como revela a importância das técnicas arqueológicas; ou inteiramente dominada pelo biologismo, que tipificava o cientificismo reinante na época. Assim, as especulações sobre a vida social e cultural do homem se subordinavam ao plano biológico (ou plano natural), o que conduzia as reduções indiferenciadas de tudo o que era cultural a uma questão de biologia ou clima. A antropologia geral, deste modo, era uma ciência na medida em que especulava e afirmava em suas teorias uma origem e uma explanação cabal e irredutível para os fenômenos de diferenciação entre homens e sociedades, reduzindo tudo a um problema de meio geográfico e de traços genéticos dados em grandes unidades biológicas, as raças (SILVA, 1986, p. 58).
João comentou as consequências desse trecho, com base nas informações do dicionário. Destacou que essa perspectivaantropológica, em alguns países como a França, a Inglaterra, os Estados Unidos, aAlemanha e a Itália, gerou interpretações racistas ou serviu também para criar interpretações que explicassem os tipos de comportamento criminoso ou desviante. Segundo essas teorias preconceituosas, poderíamos observar nas feições de um criminoso a sua criminalidade.
Laura, tomando a palavra, disse:
- Em uma aula que tive de Direito, a professora mencionou algo nesse sentido. Essas ideias serviram para algumas teorias médicas, como a de Lombroso (1835-1909), que contribuiu para uma antropologia criminal que tinha como base a ideia de que existe uma relação direta entre o atavismo e o delinquente nato. O que distingue criminosos e não-criminosos seriam anomalias e estigmas de origem atávica ou degenerativa.
Pedro, complementou dizendo:
- O conde Gobineau também dizia para D. Pedro II que um dos grandes problemas para o sucesso da sociedade brasileira era ser uma sociedade mestiça. Igual perspectiva era defendida pelo cientista natural da Universidade de Harvard, L. Agassiz, quando visitou o Brasil no século XIX.
Então Pedro leu no Dicionário de Ciências Sociais: “Para os antropólogos racistas europeus e norte-americanos da época, a mistura das raças era um grave perigo a ser evitado, provocando demora na formação da raça pura,que deveria ser a verdadeira espinha dorsal da nação” (SILVA, 1986).
Maria, espantada com essas ideias, disse que compreendia agora o porquê de um trecho mencionar que o desenvolvimento da Antropologia se deu sobretudo a partir do momento em que ela se separou da Biologia ou de uma perspectiva predominantemente biológica. Com base no mesmo dicionário, destacou que essa separação oportunizou “a descoberta da cultura (e da sociedade) como fenômenos humanos singulares, dotados de lógica e autonomia próprias, que poderiam variar independentemente do plano biológico ou geográfico”.
Dando continuidade a seu raciocínio, Maria chamou atenção para outro trecho do dicionário: “costumes antigos” e “exóticos”, como as formas de casamento, as nomenclaturas de parentesco, as leis civis e criminais, os sistemas de organização do poder, as maneiras de enterrar os mortos ou o modo pelo qual a paternidade era assumida, esses estudiosos descobriram a dinâmica de certas formas culturais, formas que, uma vez institucionalizadas como moralidade, regulavam e davam sentido a práticas sociais complexas. Não seriam, portanto, as práticas utilitariamente orientadas pelo estômago ou pela raça que determinavam a invenção de costumes "bizarros" e "primitivos", mas seriam os conjuntos dos costumes como instituições e como fontes de oralidade e valor que orientariam as práticas humanas. Suas variações eram problemas muito mais complexos do que poderiam imaginar os filósofos sociais do período anterior, dominado pelo universalismo típico da Revolução Francesa. Esses estudos indicavam que, se os homens, afinal, não eram mesmo iguais, eles também não eram inteiramente diferentes ou grosseiramente superiores e inferiores (SILVA, 1986, p. 59).
João olhou para o relógio e disse:
- O tempo passa rápido, não é mesmo? Especialmente quando estamos fazendo algo interessante. É fascinante conhecermos mais de nós mesmos e da sociedade. As Ciências Sociais nos ajudam nesse sentido.
Laura sorriu, dizendo:
- Engraçado é que, após lermos e comentarmos esses trechos do verbete de antropologia, começam a aparecer muitas questões.
Maria interrompeu a fala e disse, enfaticamente:
- É isso mesmo! Por exemplo: como iniciaram os estudos da Antropologia? Quais foram os primeiros e principais antropólogos? Em que basearam suas teses? Tudo isso começou a me causar curiosidade. Certamente devo procurar saber mais sobre alguns aspectos da história da Antropologia a fim de compreender melhor essas novas informações que obtivemos.
João, sorriu e completou:
- Não se preocupe que nas aulas de Antropologia da Religião vocês ‘conversarão com’ Malinowski, Mauss, Franz Boas, Durkheim, Margaret Mead, Lévi-Strauss, Geertz e tantos outros.
Então Pedro animou-se:
- Vamos lá!
Caminharam em direção ao bloco da universidade em que se concentra a maior parte dos cursos da área de Ciências Sociais aplicadas.
Universidade Católica de Brasília, bloco M.
Enquanto caminhavam, conversavam e se deleitavam com os horizontes vicejantes e reluzentes que se abriam nas passarelas a serem construídas pelo saber e pelo sabor do conhecimento.
Aula 03 - A Evolução Humana como um Processo Biocultural
Nesta aula, os personagens Maria e Pedro continuarão te conduzindo na exploração do conhecimento antropológico. Aqui, você vai ver a discussão sobre a relação entre Antropologia e evolução humana e refletir sobre a importância do ‘sagrado’ na definição de ‘humanidade’. Boa aula!
3.1 Antropologia e Evolução Humana
Manhã de terça-feira, Maria caminhava apressada para o encontro presencial da disciplina Antropologia da Religião na modalidade virtual. Nos corredores do Bloco C, encontrou-se com Pedro. Cumprimentaram-se jovialmente, e Maria o convidou a participar desse encontro, que teria, no primeiro momento, a palestra de uma renomada professora de uma Pontifícia Universidade Católica. O tema da palestra era “o ser humano a partir de uma perspectiva antropológica”. Pedro aceitou o convite e caminhou com ela para o Auditório Central.
Os estudantes, em grande parte, já se encontravam no auditório quando nossos amigos chegaram e se acomodaram nas cadeiras do fundo. O burburinho no ambiente deixava transparecer a inquietação curiosa da calourada, que em diferentes grupos distinguia-se e se misturava, criando uma pluralidade desafiante e encantadora. A palestra da antropóloga, professora Dra. Margareth Benedict já ia começar.
Maria abriu sua mochila, retirou um bloco e começou a organizar sua anotação. A professora, após as saudações iniciais, introduziu seu objetivo na exposição: apresentar em grandes linhas como a antropologia explica a evolução humana como um processo biocultural.
Vamos acompanhar a palestra? Atenção! A professora já iniciou a explicação!
A antropologia teve início, enquanto ciência moderna, com o estudo de grupos e sociedades tribais que “o processo de expansão do capitalismo trouxe para a esfera do mundo ocidental. Foi a partir do contato com esses grupos que novos problemas foram sendo colocados frente à reflexão dos intelectuais da época, exigindo tratamento específico” (CONSORTE, 1984, p. 43).
Esse contato com o diferente, com o ‘estranho’, foi o berço da construção do pensamento antropológico. As diferenças de costumes, hábitos, língua, organização social etc. levaram os primeiros antropólogos a se perguntarem se esses povos tinham uma origem comum ou não. A partir daí, a antropologia colocou para si a necessidade de desvendar a humanidade.
Para Saber Mais
Assista ao ilustrativo filme O Elo Perdido, do cineasta francês Régis Wargnier. Este filme apresenta uma aventura antropológica de um grupo de estudiosos e de um casal de pigmeus na inexplorada África Equatorial e na promissora Edimburgo (Escócia) em 1879. O filme abriu o Festival de Berlim em 2005.
A questão central colocada para os antropólogos era por que esses povos se apresentavam tão diferentes, tanto do ponto de vista físico, quanto do ponto de vista cultural. Não se tratava apenas de uma diferença na diversidade de modos de ser, dos costumes. Para os europeus daquela época, era uma diferença também física: a cor da pele, dos olhos, a textura do cabelo, a altura etc. Foi nesse contexto de busca de respostas para compreender essas diferenças que foram elaboradas teorias, pensamentos antropológicos de explicação da humanidade.
É importante destacar que foi também aí que os antropólogos iniciaram os estudos sobre as manifestações religiosas. O interesse por essas manifestações, nos estudos antropológicos, é tão antigo como o interesse por outras manifestações culturais da espécie humana. O comportamento religioso dos grupos tribais foi tomado como ponto de partida para a construçãode teorias que tentavam explicar a própria evolução do ser humano.
Um dado importante para contextualizar esse período é lembrarmos que o pensamento hegemônico entre os cientistas daquela época, século XIX, era de que a civilização ocidental era o modelo de desenvolvimento da humanidade, que tinha chegado ao ápice da evolução e, assim, deveria servir de parâmetro para toda a história humana. A teoria que respaldou essa perspectiva foi o evolucionismo, que tentou explicar essa diversidade como fruto de um processo evolutivo natural, em que haveria etapas de evolução inferiores e superiores.
Para justificar o interesse dos antropólogos pelas manifestações religiosas, lembremos que até hoje não se encontrou nenhum grupo humano que não apresentasse alguma forma de manifestação do sagrado. Para a Antropologia, o comportamento religioso é considerado como um dos universais da cultura, ou seja, está presente em todos os grupos humanos estudados.
 Pintura rupestre do Sítio do Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí
3.2 A Humanidade e o Sagrado
Nesse momento da palestra, Pedro cutucou Maria e disse:
- Ela começou a colocar a questão da religião no meio, mas não percebo a relação entre religião e o tema da palestra.
A palestrante fez uma breve pausa para um gole d’água. Ao retomar sua exposição, começou indagando:
- Por que estou mencionando essa questão das manifestações religiosas nesse momento? Qual é sua relação com o processo evolutivo do ser humano? Certamente alguns de vocês devem ter se perguntado. A professora fez, intencionalmente, uma pausa, e perscrutou os estudantes no auditório.
Maria sorriu discretamente e sussurrou para Pedro: “parece que ela adivinhou sua dúvida”. Pedro, com um olhar um pouco surpreso, sorriu em resposta.
A palestrante, após a pausa, disse:
- Para compreendermos cientificamente essa relação, devo fazer um breve resgate da evolução humana, a fim de observarmos como a religião se coloca dentro desse contexto especificamente humano. Para tanto, permitam-me fazer uma breve leitura. Nesse momento, a professora abriu uma pasta e retirou um livro. Após localizar a página desejada, iniciou a leitura:
Todos parecemos convencidos, hoje, de que o homem evoluiu de outras formas, de formas não humanas. Tendo evoluído de formas não humanas, isso significa que a vida é algo contínuo. Existe uma continuidade na vida; se houve uma continuidade, deve ter havido aquilo que, em antropologia, chamamos de transição para a humanidade. Essa transição, para os antropólogos, é marcada pela emergência de alguma coisa nova, qualitativamente nova, que se chama capacidade de simbolização. Essa capacidade parece inexistente entre os animais, pelo menos da forma como é conhecida ou no grau em que é possuída pelos humanos; essa capacidade é que nos permite formular concepções, representar, ou seja, falar de alguma coisa na ausência dela. Essa capacidade de simbolização é nosso apanágio. É também aquilo que marcou o nosso aparecimento no cenário da vida. Essa capacidade permitiu aos seus portadores iniciar todo um processo de criação de comportamentos até então inexistentes no mundo animal. O desenvolvimento desta capacidade, ao longo do tempo, permitiu aos seus portadores aquilo que eu chamarei de “produzir a sua existência”, ou seja, realizar uma adaptação do meio ambiente não mais estritamente em termos biológicos, mas através de coisas inventada, criadas, coisas que os antropólogos chamam de “cultura”. (CONSORTE, 1984, p. 48)
A professora interrompeu a leitura e, mais uma vez, fez uma pausa. Reflexivamente, convidou os estudantes a mergulharem na lógica da evolução humana que está expondo: na transição para a humanidade, a explicitação da insuficiência do fator biológico é evidenciada.
Então disse, enfaticamente:
- Não somos humanos apenas porque biologicamente nos constituímos nessa espécie. Diferentemente dos outros animais, nós humanos não nascemos ‘prontos’, acabados. Somente o componente biológico não nos torna humanos. Temos de nos constituir humanos, ou, em outras palavras, temos de passar por um processo de hominização.
A capacidade de simbolização propiciou aos humanos a possibilidade de criarem, alterarem, produzirem algo novo. Consequentemente, iniciou-se a construção de modos de vida que não estavam inseridos em sua dotação genética, ou seja, não estavam programados geneticamente. Por força do exercício dessa capacidade, “nossa programação biológica foi deixando de ser uma programação específica; os comportamentos daqueles seres em processo se tornaram comportamentos do homo sapiens, cada vez menos instintivos e cada vez mais culturais” (CONSORTE, 1984, p. 49).
Uma obra referencial do pensamento sociológico e antropológico escrita por Peter Berger e Thomas Luckmann (1978), respectivamente professores de universidades estadunidenses e alemãs, menciona explicitamente esse aspecto que quero destacar, de distinção entre o ser humano outros animais. Eles advogam que “o homem ocupa uma posição peculiar no reino animal. Ao contrário dos outros mamíferos superiores não possui um ambiente específico da espécie, um ambiente firmemente estruturado por sua própria organização instintiva.” Atente para esses termos: “um ambiente específico da espécie” e “ambiente firmemente estruturado por sua própria organização instintiva”. O que isso quer dizer? Berger e Luckmann explicam que:
Não existe um mundo do homem no sentido em que se pode falar de um mundo do cachorro ou de um mundo do cavalo. Apesar de uma área de aprendizagem e acumulação individuais, o cachorro ou o cavalo individuais têm uma relação em grande parte fixa com seu ambiente, do qual participa com todos os outros membros da respectiva espécie. Uma consequência óbvia deste fato é que os cachorros e os cavalos, em comparação com os homens, são muito mais restritos a uma distribuição geográfica específica. A especificidade do ambiente desses animais, porém, é muito mais do que uma delimitação geográfica. Refere-se ao caráter biologicamente fixo de sua relação com o ambiente, mesmo se for introduzida uma variação geográfica. Nesse sentido, todos os animais não humanos, enquanto espécies e enquanto indivíduos, vivem em mundos fechados, cujas estruturas são predeterminadas pelo equipamento biológico das diversas espécies animais. Em contraste, a relação do homem com seu ambiente caracteriza-se pela abertura para o mundo. (BERGER & LUCKMANN, 1978, p. 69-70).
3.3 À Guisa de Conclusão
Muitos dos estudantes no auditório ouviam com admiração e curiosidade a exposição. Maria, avidamente, anotava as ideias em seu bloco.
Já encaminhando a conclusão de sua exposição, a palestrante, num gesto de arremate com as mãos, solicitou ao funcionário de áudio-visual que projetasse um esquema-síntese baseado em sua exposição (CONSORTE, 1984, p. 50-51).
Na primeira tela de projeção, os alunos viram:
O interesse pela diversidade da humanidade sempre esteve presente na Antropologia.
É aí que se coloca a necessidade de se entender as manifestações religiosas, que sempre foram objeto de estudo da Antropologia.
Todavia, como a Antropologia surgiu no século XIX, em plena hegemonia do evolucionismo, a diversidade de outros grupos humanos (e suas manifestações religiosas) foi vista a partir do referencial da “civilização europeia”. Consequentemente, os ‘diferentes’ eram vistos como ‘inferiores’.
A Antropologia se aprisionou, nesse momento,
em uma visão etnocêntrica.
Na segunda tela de projeção, Maria e Pedro aprenderam:
Na transição para a humanidade, o ser humano adquiriu algo qualitativamente novo:
A capacidade de simbolização
Permitiu formular concepções, representar,
 ou seja, falar de algo em sua ausência.
Aqui surgiu a cultura = o ser humano realizou uma adaptação do meio ambiente não mais estritamente em termos biológicos, mas por meio de coisas inventadas, criadas.
Com o ‘homo sapiens’, os comportamentos humanos passaram a ser cada vez menos instintivos e cadavez mais culturais. A relação do ser humano com a natureza caracterizou-se por umaabertura para o mundo, diferentemente dos outros animais, para os quais tudo está ‘fechado’ (programado).
Isso deu ao ser humano a condição de criar o seu próprio modo de existir.
Em lugar de uma programação biológica (algo já dado), com o ser humano aconteceu exatamente o oposto.
O que advém como programação biológica é algo muito mais amplo e genérico, nada de específico; o específico, ele precisa criar.
Para concluir a apresentação, a palestrante projetou mais uma tela:
Como criar esse ‘específico’?
Como o ser humano não tinha modelos, referências fixas, deparou com o imperativo de criar, criar-se. Se tudo é criado pelo próprio ser humano (modelos e regras), onde está a verdade, a legitimação, o absoluto? Qual o melhor modo de vida? Qual o perfeito?
 É aqui que se abre a reflexão para o campo religioso: para alguma coisa que possa oferecer um sentido a toda essa criação.
 Para construir sua vida pessoal e social, o ser humano depara com a dimensão da própria liberdade: foram-se nossas certezas, sobraram-nos as dúvidas, porque passou a ser totalmente nossa a responsabilidade de encontrar um sentido para os modos de vida que construímos, um sentido para o nosso absoluto, para a nossa verdade.
No espaço aberto por essa liberdade de criar é que se inseriu o sagrado.
Essa dimensão, para os antropólogos, é algo que constitui o ser humano, na medida em que essa dimensão faz parte integrante do seu modo de vir a ser.
A dimensão do sagrado tem-se manifestado sob formas e com intensidades extremamente variáveis ao longo da história da humanidade.
As transformações que o ser humano realizou na natureza, por meio da cultura – como os instrumentos para caça, as formas de organização familiar e, posteriormente, as artes, as religiões – moldaram-no “somaticamente, sendo, portanto, necessários não só para sua sobrevivência, mas também à sua realização existencial. É verdade que, sem o homem, não haveria formas de cultura; mas também é verdade que sem formas de cultura não haveria o homem” (GEERTZ, 1966, p. 41).
Assim, a professora encerrou sua exposição, e abriu-se o debate no auditório.  Alguns estudantes veteranos iniciaram as perguntas para a palestrante. Blocos de questões foram feitos, a fim de que muitos pudessem expor suas dúvidas e comentários sobre a exposição e o tema da palestra.
Pedro e Maria estavam surpresos e encantados pelas possibilidades apresentadas pela disciplina Antropologia da Religião. Retiraram-se do auditório e decidiram almoçar no restaurante do Bloco L. Logo mais, às 14h, teriam aula e estudo em grupo na biblioteca. Lá, encontraram João e Laura, com quem conversaram sobre a palestra e suas primeiras leituras da disciplina. Estavam todos muito animados!
Aqui, termina esta aula. Antes de prosseguir, porém, leia o texto de TIM Ingold, “Humanidade e animalidade”.
Aula 04 - As Especificidades da Antropologia
Nesta aula, com a ajuda dos personagens Pedro, Maria, João, Laura, Gabi e o professor de Antropologia da Religião, você vai estudar algumas especificidades da Antropologia, como o etnocentrismo, a diversidade e o relativismo cultural.
4.1 Nós e Eles: o Etnocentrismo
Em uma sexta-feira, após as aulas, Pedro e Maria se encontraram com João e Laura em um bar no Pistão Sul de Taguatinga. Conversavam sobre suas leituras e sobre as discussões ocorridas nas aulas e nos fóruns virtuais da disciplina Antropologia da Religião.
Pedro disse:
- Não imaginava que essa disciplina teria um conteúdo e assuntos tão interessantes! Nas primeiras aulas já pude perceber que ela me ajudará a ver com outros olhos temas e aspectos da realidade que não perceberia ou veria de uma forma tradicional, com uma visão não-crítica.
Maria, após refrescar a garganta, sorriu e retirou de sua mochila o bloco de anotações, colocou o bloco sobre a mesa, apontando para um esquema que fez a partir das leituras que tratavam o modo como, ao longo da história, foram construídos os conceitos para explicar e compreender o ‘outro’. Daí vieram conceitos como o etnocentrismo, a diversidade e o relativismo cultural como campo teórico. Ela convidou seus amigos a verem seu esquema-síntese:
	Fonte: adaptado de RUBIM (1999).
	 
	O “EU” e o “NÓS”
	O “OUTRO” e o “ELES”
	Grécia antiga
	Cidadãos gregos
	Bárbaros
	Idade média
	Cristãos
	Pagãos
	Séc. XVII e XVIII
	Civilizados
	Selvagens
	Século XIX
	Evoluídos
	Primitivos
	Hoje
	Desenvolvidos
	Subdesenvolvidos
João disse:
- É um bom esquema, mas como qualquer esquema apresenta limites e precisa ser explicado, problematizado e pensado. Por exemplo, só para aprofundarmos, pensarmos sobre a antropologia e as ideias desse esquema, vamos analisar alguns dados. Dado 1: Sabemos que a antropologia, enquanto ciência moderna, se constituiu apenas a partir do século XIX; Dado 2: A consciência da identidade de um grupo frente aos outros é antiga, isso demarcou e demarca a diferença entre um grupo e outro. Muitas vezes, a consciência dessa diferença se expressou de forma violenta por meio de preconceitos, discriminações, guerras, perseguições e outros. Não é mesmo? Diante desses dados surge minha questão: Como o pensamento antropológico explica essa recorrência no modo de ver o ‘outro’, em grande parte das vezes, como desvio da ‘normalidade’ ou da humanidade? Ou, em outras palavras, por que o ‘eu’ geralmente vê o diferente, o ‘outro’, como desviante da ‘normalidade’ ou até como não-humano?
Nesse momento, o garçom se aproximou com o cardápio e perguntou o que eles queriam comer. Pedro sugeriu uma pizza e todos concordaram. Laura avistou seu ex-professor de Antropologia da Religião chegar com uma amiga e prontamente levantou-se para cumprimentá-los. Após sondar os amigos da mesa, convidou-os a sentarem com eles.
Após as apresentações do professor e de sua amiga Gabi aos amigos, Laura contextualizou a conversa que estavam tendo sobre o pensamento antropológico a partir das aulas e leituras da disciplina e especialmente do esquema apresentado por Maria e a pergunta formulada pelo João. Os convidados acharam a conversa muito interessante.
Pedro disse que a questão de João era bem complexa e que estava lendo um livro que mencionava essa mesma questão. Disse que esse problema é chamado pelos antropólogos de ‘etnocentrismo’.
Gabi fez uma cara de quem não escutou direito e perguntou:
- Etno o quê?
Maria respondeu:
- Etnocentrismo!
Pedro retomou a palavra e falou:
- O etnocentrismo é caracterizado por distorções que fazemos do outro, daqueles que são diferentes de nós tanto no plano intelectual, expresso na dificuldade de pensarmos o diferente, quanto no plano afetivo, gerando medo, hostilidade, estranheza, por exemplo. Esse fenômeno não é exclusivo de uma determinada época ou de apenas algumas sociedades (ROCHA, 2004). Por isso, podemos observar no esquema da Maria que, em diferentes períodos históricos, há uma forma etnocêntrica de caracterizar o diferente do ‘eu’, isto é, o ‘outro’.
O professor confirmou a fala de Pedro e disse, citando Lévi-Strauss (1993, p.334):
A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, às vezes mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas primitivas se autodesignam com um nome que significa ‘os homens’ (...) implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participam das virtudes ou mesmo da natureza humana mas são, quando muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de “ovos de piolho” (...).
Maria com um ar pensante, disse:
- Ah! É isso mesmo! Isso que o antropólogo observou nessas tribos indígenas nós podemos observar em nossa sociedade, em nosso meio, isto é, em nossas atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades. São ideias e atitudes geralmente repletas de etnocentrismo: ‘as mulheres’, ‘os negros’, ‘os nordestinos’, ‘os gays’, ‘as dondocas’ etc. Isso nos faz rotular e aplicar estereótipos por meiodos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com o diferente, transformando “a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico” (ROCHA, 2004, p. 20).
O professor continuou:
- A partir de pesquisas realizadas em diferentes regiões do mundo e em diversos grupos, nós antropólogos podemos afirmar que se existe algo em comum entre os diferentes grupos humanos seria justamente a capacidade de se diferenciar uns dos outros em suas expressões linguísticas, costumes, instituições etc. Assim, a capacidade de criar, de se diferenciar foi a resposta dos grupos humanos, inclusive o nosso, frente aos desafios e limites existenciais comuns, como por exemplo, o alimentar-se, o relacionar-se, o conhecer etc. Para a antropologia, a diferença pode ser vista como alternativa e não necessariamente como ameaça. Mas para tanto há de se colocar no lugar do outro. Dessa forma, criou-se algo como uma ciência sobre a diferença entre os seres humanos.
Laura, que já havia cursado Antropologia da Religião com o professor, relembrou-se das aulas e leituras sobre essa discussão e disse:
- De fato, a Antropologia, apesar de, em alguns momentos da história, também enveredar por teorias etnocêntricas, foi criando métodos e técnicas de caráter científico para se colocar no lugar do outro, como menciona o professor.
Ela destacou que um dos pilares da antropologia moderna, o polaco Bronislaw Malinowski, orienta que um “trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas” e, de outro, “as interferências do autor, baseadas em seu próprio bom senso e intuição psicológica” (MALINOWSKI, 1984, p. 18).
 Malinowski entre nativos (MALINOWSKI,1997)
João pediu a palavra e disse:
- É isso mesmo, Laura! Os antropólogos, ao desenvolverem suas pesquisas em contato direto com grupos e sociedades diferentes de sua cultura, tiveram de atentar para a relatividade de suas interpretações sobre o que viam, ouviam e vivenciavam. Criaram, assim, a necessidade de distinguir, com rigor acadêmico, em suas pesquisas de campo, o que era observação dos fatos e o que era conclusão a partir do observado.
Citando Laplantine, o professor acrescentou que a abordagem antropológica suscitou “uma verdadeira revolução epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela implica num descentramento radical, uma ruptura com a ideia de que existe um ‘centro do mundo’, e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutação de si mesmo”. Assim, a antropologia fez com que descobríssemos a alteridade, que nos “permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a humanidade e correlativamente deixar de rejeitar o presumido ‘selvagem’ fora de nós mesmos” (LAPLANTINE, 2000, p. 22-23).
A Gabi pegou de sua mochila o livro Um diário no sentido estrito do termo, de Malinowski, que havia tomado emprestado do professor. Ela contou que o livro mostra o diário de pesquisa de Malinowski quando esteve nas Ilhas Trobriand (1917-1918), revelando claramente como um cientista, porque é humano, está sujeito a condicionantes de diversas naturezas e formas. Gabi leu com entusiasmo os seguintes trechos: 21.12.1917. Acordei tarde, às 7. (...) Chuva; uma caganeira violenta perto do matagal. Resolvi nunca mais tomar purgante! Preguiça: gostaria de quebrar a monotonia, de “tirar uma folga”. Esta é uma das minhas piores tendências! Mas farei o contrário: terminarei umas tarefas de rotina, “o diário etnográfico”, reescreverei as minhas anotações do censo e as impressões de ontem. (...) Durante todo aquele dia senti saudades da civilização. Pensei nos amigos de Melbourne. À noite, no bote, pensamento agradavelmente ambicioso: eu certamente serei um eminente estudioso polonês. Essa será minha ultima aventura etnológica. Depois disso, dedicar-me-ei à sociologia construtiva: metodologia, economia política etc., e na Polônia posso concretizar minhas ambições melhor do que em qualquer outro lugar. Forte contraste entre meus sonhos com uma vida civilizada e minha vida com os selvagens. (...). (MALINOWSKI, 1997, p. 184).
25.6.1918. De manhã trabalhei com calma, sem surchauffage, e tirei fotografias. Depois revisei minhas notas e as aumentei. A seguir fui caminhar via Kkabwaku, Okaykoda. Muito cansado. Solucei e fiquei muito triste. À noite tornei a trabalhar. Maravilhosa noite enluarada. Fui a Yourawotu; uma angústia e um pesar irrefreáveis inundaram tudo. Solucei. Ao luar etc., pensamentos lascivos. (p. 310).
27.6.1918. Dia frio, céu encoberto. Trabalhei ate o ponto de total exaustão com técnica excelente, ou seja, sem esforços desnecessários. De manhã, Tokulubakiki e Tokaka'u de Tilakaywa. Depois só Tokaka'u. Depois do almoço, uma conversa rápida com Towese'i, depois fui observar a connstrução de uma grande guguta, e a Kwaybwaga, onde eles estão assando butukwa. Depois, uma caminhada curta com Tokulubakiki. Senti-me debilitado e fiquei imaginando se deveria arriscar uma caminhada longa ou me deitar para dormir. Fui a M' tava, e isso me fez um bem enorme. Quando retornei, escrevi wosi:para escrever e traduzir 8 dísticos raybuta levei 2 horas! Li Papuan Times, e fiquei impressionado com o artigo de Murray. Sentimentos e pensamentos: a tristeza e o pesar tudo permeiam. No momento em que deixo de me controlar, meus pensamentos voltam à Polônia, ao passado. Sei que tenho um abismo negro, um vácuo, na alma, e, com toda a mediocridade emocional peculiar a mim, tento evitar o abismo. Mas minha tristeza é intensa e profunda. Não tenho pensamentos alegres. Uma sensação do mal da existência. Penso constantemente no otimismo superficial das crenças religiosas: daria qualquer coisa para acreditar na imortalidade da alma. O terrível mistério que cerca a morte de alguém querido, próximo a nós. A última palavra não pronunciada – algo que deveria esclarecer é enterrado, o resto da vida se encontra meio oculto na escuridão. Ontem, durante minha caminhada, senti que a felicidade e a alegria de viver, em sua forma verdadeira e completa, fogem de mim sempre que tento aproximar-me delas. Ontem, deliberadamente, afastei as ideias e planos ambiciosos (MALINOWSKI, 1997, p. 311-312).
Pedro, muito espontaneamente, disse:
- Que barato! O cara era como nós, cheio de dúvidas, pensava ‘naquilo’ e tinha piriri (risos) apesar de ter sido um dos mais célebres e influentes antropólogos do início do século XX. A ciência é realmente uma criação humana, e por isso revela sua grandeza e sua pequenez.
Todos sorriram como uma forma de anuência à fala de Pedro. Nesse momento, chegou o garçom com as pizzas e todos começaram a se servir. João começou a sorrir e todos perguntaram a razão daquele sorriso. Ele disse:
- Vejam como são as coisas: estamos a conversar e pensar sobre as diferenças, o etnocentrismo e o relativismo cultural e agora nos deliciamos com essa pizza! Lembrei-me de uma interessante passagem de um antropólogo estadunidense que afirmava que muito do que temos como desenvolvimento próprio, por exemplo uma culinária original, autóctone, na verdade é fruto de todo um processo de difusão e mistura de padrões culturais de outros grupos e sociedades. Isso me parece evidenciar que o aquilatamento dos grupos humanos tem se dado, ou pode se dar, por uma relação de alteridade dialogal entre diferentes culturas.
Para Saber Mais
Leia o texto “O cidadão 100% norte-americano”, de Ralph Linton. Atente para os detalhes desse interessantíssimo texto sobre as misturas de culturas e costumes no mundo atual.
4.2 O Relativismo Cultural
O professor, depois de se deleitar com uma fatia de pizza, pediu a palavra e disse:
- Acho muito importante estarmos conversando sobre isso. Quero retomar uma questão que esteve presente em nossa conversa quando a Laura falou dos métodos e técnicas da antropologia ao fazer ciência, e a Gabi leu aqueles reveladores trechos do diário de Malinowski. Vejamos: aprópria realidade do etnocentrismo e a reflexão científica sobre ele fizeram com que antropólogos e antropólogas cunhassem outro conceito de grande valia: o relativismo cultural.
O professor fez uma pausa reflexiva, e os estudantes se entreolharam como indicativo de atenção para a explicação que viria a seguir. O professor, então, explicou:
- A história da antropologia, enquanto ciência, demonstra que o contato direto de antropólogos com povos diferentes demandou a criação de métodos e técnicas para se colocar no lugar do ‘outro’, para compreender o ‘outro’. Hoje, está claro para esses estudiosos que se colocar no lugar do ‘outro’ não significa que o antropólogo ou a antropóloga se transformará em um ‘nativo’. O entender, o interpretar o ‘outro’ sempre se dará a partir da cultura própria do pesquisador. Contudo, esse movimento de deslocamento cultural, de se colocar no lugar do ‘outro’ gera um conhecimento científico que relativiza uma tendência do pensamento científico, de pretensões absolutizadoras. É o que a antropologia interpretativa chama de ‘encontros etnográficos’ ou ‘intersubjetividade’. Isso ajuda a depurar o etnocentrismo, que também se faz presente em pesquisas de cientistas de todas as áreas, porque a ciência moderna se desenvolveu a partir de uma ‘“cultura europeia ocidental’.
Laura acrescentou:
- Isso é muito interessante! Na semana passada li um artigo do Boaventura de Souza Santos que menciona o seguinte (Laura rapidamente clicou sobre a tela de seu notebook e iniciou uma breve leitura):
Não é por acaso que no final do milênio boa parte da biodiversidade do planeta existe em territórios dos povos indígenas. Para eles, a natureza nunca foi um recurso natural, foi sempre parte da sua própria natureza enquanto povos indígenas e assim a preservaram preservando-se, sempre que conseguiram escapar à destruição ocidental. Hoje, à semelhança do que ocorreu nos alvores do sistema mundial capitalista, as empresas multinacionais da farmacêutica, da biotecnologia e da engenharia genética procuram transformar os indígenas em recursos, agora não em recursos de trabalho, mas antes em recursos genéticos, em instrumentos de acesso, não ao ouro e à prata, mas, por via do conhecimento tradicional, à flora e à fauna, sobre a forma de biodiversidade (SANTOS, 2008).
Para Saber Mais
Leia na íntegra o artigo “O fim das descobertas imperiais”, de Boaventura de Souza Santos.
4.3 Ciência e Cultura
Laura fez uma pausa na leitura, ao ver Pedro levantar o dedo em sinal de que queria fazer um comentário:
- Que visão crítica! A ciência moderna trouxe muitos benefícios para a humanidade, o que é facilmente visto ao nosso redor, mas, ao mesmo tempo, a forma de produção desse conhecimento também foi condicionada pela cultura, ou, como diz meu professor de Metodologia Científica, por “paradigmas”. No caso do texto lido, falamos de uma ciência que se desenvolveu a partir de um paradigma mecanicista. É isso mesmo?
João respondeu:
- É isso mesmo! O paradigma mecanicista, que é hegemônico em nossa ciência, caracteriza-se por um olhar instrumental sobre o ‘outro’. Isto é, vê o objeto de pesquisa, aqui representado pela natureza (flora e a fauna) ou pelo ser humano (índio), como produtos comerciais, meros objetos, meios para sua utilização, e não se ‘pré-ocupa’ em conhecer, dialogar, saber como se dá o processo de interação entre o ser humano e a natureza, saber o que gera equilíbrio e o que violenta o sistema socioambiental.
O professor, então, complementou:
- Isso é tão recorrente na academia que, em alguns trabalhos de extensão e pesquisa, estudantes e professores, ao terem contato com comunidades pobres, por exemplo, levam seu ‘conhecimento científico’ sem criar um efetivo processo de ‘encontro etnográfico’. A relação entre culturas é esquecida, negligenciada e até negada. Há, assim, a imposição cultural de um conhecimento que não dialoga com outros saberes. Não é à toa que em muitos trabalhos de extensão, por exemplo na área de saúde, não se tem êxito, e muitos ‘doutores’ persistem em uma postura de ausência de diálogo e interação com a comunidade, restringindo suas atividades a palestras e cursos. Nesses casos, não há diálogo, interação, e sim monólogo, mesmo que se façam perguntas e os comunitários respondam. A interação cultural se dá para além de esquemas padronizados, de mero cumprimento de tarefas. A verdadeira interação requer considerar o ‘outro’ em sua completude e complexidade. Daí ouvirmos coisas como “esses pobres não aprendem mesmo, a gente faz tudo e eles continuam na mesma, não querem crescer”.
Para Saber Mais
Leia o texto “Você tem cultura?”, de Roberto Damatta. Este texto apresenta uma perspectiva antropológica do que é cultura e uma análise desse conceito a partir de aspectos da realidade brasileira.
Laura interrompeu e disse:
- Escutem só outro trecho do Boaventura de Souza Santos, que explica essa recorrente estratégia de inferiorização do diferente:
A produção da inferioridade é, assim, crucial para sustentar a descoberta imperial. Para isso, é necessário recorrer a múltiplas estratégias de inferiorização. Neste domínio pode dizer-se que não tem faltado imaginação ao Ocidente. Entre tais estratégias podemos mencionar a guerra, a escravatura, o genocídio, o racismo, a desqualificação, a transformação do outro em objeto ou recurso natural e uma vasta sucessão de mecanismos de imposição econômica (tributação, colonialismo, neocolonialismo, e, por último, globalização neoliberal), de imposição política (cruzadas, império, estado colonial, ditadura e, por último, democracia) e de imposição cultural (epistemicídio, missionação, assimilacionismo e, por último, indústrias culturais e cultura de massas). (SANTOS, 2008)
O professor anunciou que teria de ir embora e pediu a palavra mais uma vez. Ele disse:
- O relativismo apresentado pelo pensamento antropológico é uma espécie de antídoto contra o etnocentrismo, que sempre estará presente, em maior ou menor grau, em todas as culturas. O relativismo questiona nossas próprias premissas como verdades únicas e absolutas. Há um texto clássico de Herskovits, cujo título é “O problema do relativismo cultural”, que complementa e acrescenta muitos outros aspectos a essa nossa conversa. Aliás, a conversa está muito boa e instigante, é pena que eu tenha de ir...
Maria interrompeu e disse:
- Tô lendo esse texto. É muito rico de informações e exemplos. Vale a pena ler!
O professor e sua amiga Gabi se levantaram, anunciando novamente a partida, e se despediram do grupo, cumprimentando cada um.
Pedro se levantou e disse:
- Vamos nessa, galera! Tenho de pegar o metrô, que passa daqui a meia hora. Você me dá uma carona, Maria?
Maria, sorrindo, brincou:
- O que você seria sem mim, Pedro?
Ambos sorriram e se despediram de Laura e João, que decidiram continuar um pouco mais no bar.
Maria deixou Pedro na parada do Pistão Sul, mais próxima da estação do metrô, e Pedro se despediu agradecendo o ‘papo cabeça’ e a carona.
Ao chegar na estação do metrô, sua linha não demorou, e logo ele embarcou. No percurso, seu pensamento seguiu as luzes que, de fora, se distanciavam e se aproximavam, em um movimento dependente do lugar em que ele estivesse. Ou melhor: dependente do lugar em que o trem do metrô, criado pelo ser humano, o levasse.
Sorriu com seu pensamento. Seria assim com a ciência? Com a Antropologia? A proximidade nos ajuda a ver melhor, tornando o ‘estranho’ mais ‘familiar’. E, por outro lado, muita proximidade ofusca a visão, não permitindo o distanciamento metodológico científico do ‘estranhamento’. E o distanciamento excessivo não nos permite ver efetivamente o ‘outro’.
Foram esses os pensamentos que a conversa e a imagem, na janela do metrô, trouxeram-lhe à mente e ao inquieto coração estudante. Ele ia feliz, satisfeito com suas novas descobertas.
Aula 05 – A Religião como Sistema de Representação
Em aulas anteriores, você pôde estudar, por meio do diálogo entre alunos e o professor de Antropologia, o campo de trabalho dessa disciplina e

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