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senhores da Terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade de nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes. (MACHADO DE ASSIS, 1899 p549). O que me pareceu importante naquele momento e que acreditei ser fundamental para Lucilene era mostrar-lhe que ela era capaz de se tornar independente da mãe, da irmã, além da professora e da diretora da escola. Acreditando na sua percepção, e dizendo-lhe isto, tentei levá-la a vislumbrar sua força interior para poder fazer suas opções e não desqualificar suas impressões e sua forma de raciocinar. Minhas intervenções visavam, também, mostrar que ela poderia, nas suas decisões com relação à educação da filha, colocar a mesma competência (da qual se mostrou tão orgulhosa) que utilizava na vida profissional. Quis mostrar a Lucilene que ela não precisava vir perguntar o que já sabia e, atuando no meu papel profissional (atendendo sua filha), e lhe dando minha opinião, confirmei que ela estava certa. Paralelamente, mostrei-lhe que, além de seus acertos, ela conhecia seus erros no trato com Patrícia (excesso de mimo, infantilização) e que, se assim o quisesse, poderia corrigí-los. No entanto ela parecia negar o que sabia sobre si e sobre sua filha. É como se precisasse ser reapresentada a si mesma para que pudesse responder às suas próprias questões para não se colocar na situação descrita com muito humor por Luís Fernando 108 Veríssimo: “Às vezes me pergunto _ e não me respondo, porque não falo com desconhecidos - ...” (1995). Finalmente percebo que o tempo todo me pareceu que Lucilene viera buscar um contato que não retaliasse sua auto-imagem, o que vinha ocorrendo sistematicamente em sua vida familiar. Minha postura, em alguns momentos diretiva, contou com aspectos pessoais, mas também com certo cacoete profissional moldado pela prática do psicodiagnóstico que exerço há mais de 15 anos e pelo tipo de população que mais frequentemente atendo, menos favorecida sócio-econômico-culturalmente, que muitas vezes se beneficia de intervenções informativas ou pedagógicas. Já na época de minha dissertação de mestrado (Larrabure, 1986) eu citava Reiff e Reiessman (1976 ), e volto a fazê-lo, pois considero suas reflexões atuais: ...os pobres, freqüentemente, vêem seus problemas de modo diferente dos clientes da classe média, A tensão psicológica é sentida menos como devida a suas inadequações pessoais que pelas condições difíceis impostas a eles. Seus problemas não residem no seu interior, mas surgem de fora. O paciente pobre está orientado para a ação, epera ver as coisas serem feitas e tem pouca paciência para conversar” (p482)51 Compreendo agora que minha insatisfação, durante a sessão, se deveu ao fato de que eu sentia que Lucilene queria ir além do que eu estava lhe oferecendo. Pode ser, também, que ela quisesse alguma outra coisa que não cheguei a captar. No entanto, acredito que teve espaço para colocar, nas palavras de Amatuzzi (1989), sua “intenção significativa”52 pois quando sentiu que a sessão terminava me intimou a enfrentar com ela a delicada questão de seu relacionamento com a irmã. Penso que eu poderia ter sido mais rápida, ter ido além ou, talvez, ter abordado um outro ângulo de suas vivências. Procurei aqui descrever como a sessão ocorreu a partir dos pressupostos que me guiavam e que me levaram a atuar como atuei embora não estivessem tão claros para mim na ocasião. Vários aspectos não foram mencionados pois, como diz Safra (1994): “Muitos são os fenômenos que se passam entre analista-analisando impossíveis de serem 51 Tradução livre. 52 Por intenção significativa o autor entende a significação simbólica da fala ou “a experiência original que com essas palavras se faz presente”. (p162) 109 registrados. Como registrar por qualquer meio disponível as inúmeras associações realizadas, silenciosamente, pelo analista diante do comportamento e verbalizações do paciente ou mesmo as diversas reações psíquicas ocorridas no analisando ao ouvir uma intervenção do analista?” (p123). E, como escreve Yehia (1995): “Mas não sejamos onipotentes, nem pensemos que o psicólogo pode e deve perceber tudo que está acontecendo com o outro. Sempre existem limitações, seja do paciente, seja do psicólogo. O importante é estar disponível para percebê-las e procurar lidar com elas.” (p134) Não é tema desta tese discutir a maneira como foi conduzida a sessão, mas, a partir do modo como ela ocorreu, procurar descrever como se deu o acontecimento e refletir sobre ele. Quanto à segunda questão que me coloquei: Como essa escolha se relaciona com o acontecimento significativo? a resposta a ela está relacionada à configuração do campo relacional, o que discutirei mais aprofundadamente adiante. O fato de eu ter atuado de determinada maneira e de Lucilene ter reagido como reagiu tornou possível o acontecimento conforme o relatei. Foi uma irrupção abrupta que nos envolveu a ambas, mas que, provavelmente, provocou uma ruptura maior em mim, pois naquele momento foi ela quem tomou as rédeas da sessão e me surpreendeu. Este acontecimento inicial permitiu que, mais adiante, uma nova abertura surgisse delineando um caminho pelo qual seguimos por algum tempo. Penso que nosso encontro poderia ter sido mais claramente significativo se eu tivesse dado um espaço maior para o tema que despontou parecendo tão importante. A abertura que se iniciou poderia ter sido ampliada e Lucilene sensibilizada para uma mudança mais expressiva (se é que é possível qualificar este acontecimento). Como lembra Amatuzzi (1989):“se eu não tiver a quem falar e que me ouça totalmente, eu não me expresso e, consequentemente, não atualizo meu ser. Nos termos da relação, esse ouvir total, sem esquemas seletivos de escuta, só se realiza quando o outro se sente plenamente ouvido; o que significa na prática, por exemplo, que se lhe dê o tempo necessário, que ele não seja interrompido e que 110 não tenha de mudar de assunto em relação a sua intenção original por interferências pouco empáticas de nossa parte.”(p 172)53 Ocorre que, quando se configurou o acontecimento, o tempo se esgotara e a sessão já se estendia muito além do horário. Disse a Lucilene que poderia voltar se assim o desejasse, mas não cheguei a convidá-la explicitamente para retomar, com mais profundidade, o que parecia ser um dos pontos cruciais na sua maneira de se situar no mundo. Além disso, há um momento em que “é preciso também decidir terminar,54pois há sempre algo que poderia ainda ser dito.” (Amatuzzi, 1989 p195) 53 Grifos do autor 54 Grifo do autor. 111 VIII Vanessa 112 Vanessa55, uma jovem mãe de 32 anos, veio à clinica psicológica encaminhada por uma amiga que é psicóloga e conhece a instituição onde atuo. Ela traz como queixa a preocupação com seu filho Caio, de 7 anos, que tem medo à noite. No decorrer do atendimento, no entanto, fica claro que Vanessa precisa falar dela própria: de seu relacionamento com o pai, o ex-marido, o namorado atual e, principalmente, do fato de não se aceitar como uma mulher separada. Ela percebe que no filho se refletem suas dificuldades e que é mais importante, inicialmente, falar delas. Concluímos, juntas, que não há necessidade,