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1 I ALGO DISPARA 2 Há poucos anos, na sala de recepção de uma das clínicas-escola onde atuo como psicóloga, vi chegar uma senhora de cerca de 60 anos. Aparentemente muito deprimida, vinha com os cabelos despenteados, a tintura por refazer, arrastando os pés, envolta num xale que mal segurava. Disse à recepcionista que necessitava de atendimento porque se sentia muito mal e sem vontade de fazer coisa alguma. Seguindo o procedimento usual, a secretária informou-lhe que deveria retornar em um outro dia da semana para uma entrevista de triagem. Observando aquela senhora de corpo curvado, andar lento, fala monocórdia, necessitando visivelmente de ajuda, em um movimento espontâneo, resolvi atendê- la. Contou-me que perdera a vontade de fazer coisas, que não se arrumava, passava o dia todo deitada e que descuidara da casa. Era viúva e morava com dois filhos adultos que se preocupavam muito com ela. Procuravam animá-la e saiam para o trabalho intranquilos por deixá-la sozinha. Mostrou-se culpada em relação a eles, que chegavam cansados do trabalho e não encontravam a casa arrumada nem comida pronta. Preocupada com o que poderia fazer naquele atendimento, sentia-me contaminada pela sensação de impotência e depressão, à medida que ela me relatava a sua vida. Certo desânimo foi tomando conta de mim. Sabia que não teríamos outro encontro e por isso sentia-me pressionada a encontrar alguma solução. A mais fácil seria encaminhá-la para psicoterapia. Mas teria ela forças para buscar este atendimento? Ocorriam-me diversas possibilidades teóricas de intervenção para a situação; os nomes de vários colegas passavam-me pela cabeça e eu me perguntava qual deles poderia atendê-la, se ela teria condições de arcar com um atendimento particular ou se seria necessário encaminhá-la para um atendimento gratuito? Criou-se uma situação triangular: sentia-me mais preocupada com este terceiro personagem, o futuro terapeuta, do que com a cliente que estava à minha frente. 3 Em algum momento, porém, minha atitude mudou. Percebi-me totalmente voltada para ela, despreocupada com minha atuação e com o possível encaminhamento. A partir daí, minha escuta modificou-se. No mesmo relato desanimado e fechado comecei a perceber outros ângulos. Disse-me que costumava ser ótima dona de casa, que cozinhava bem, que gostava de se cuidar, e que apenas ultimamente não tinha forças nem vontade de fazer nada. Contou-me que seus filhos eram maravilhosos e trabalhadores. Sentia que os estava prejudicando e que precisava fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Passamos então a conversar sobre o que ela era capaz de fazer. Aos poucos pude percebê-la reagindo. Endireitou-se, começou a sorrir e a contar sobre os sucessos dos filhos e como costumava ter iniciativa e era caprichosa no que fazia. Mostrei-lhe que, mesmo deprimida, ela tinha tido forças para sair e buscar ajuda, e que poderia usar esta energia para reagir contra a inércia que a dominava. Ela, que até então não via saída para sua situação, passou a considerar a possibilidade de mudança. Passamos a discutir sobre o que poderia ser feito. Conversamos desde pintar os cabelos, ouvir música e fazer um bom almoço para os filhos, até iniciar um atendimento que a auxiliasse a manter a “depressão” sob controle. Concordando, pediu-me uma indicação. Eu a sentia lutando contra alguma coisa que a ultrapassava, que era mais forte do que ela, o que a levou a pensar que uma medicação poderia auxiliá-la a prosseguir na direção da mudança. Encaminhei-a, pois, a um colega que trabalhava associado a um psiquiatra. Visivelmente aliviada, agradeceu-me muito. Senti-me satisfeita com minha atuação e, mais tarde, tive o retorno de que nosso contato havia sido realmente significativo. O psicólogo que passou a atendê-la disse-me que ela frequentemente comentava que eu havia salvado sua vida. Reassegurada na minha atuação, percebi que de certo modo tinha apontado um caminho para aquela senhora, ajudando-a a ressignificar o momento que vivia. 4 Foi a primeira vez que atendi um cliente no preciso instante em que este havia vindo em busca de ajuda. Essa importância se traduziu não só pela experiência em si, como também pelas reflexões que suscitou. Retomando o acontecido, notei que minha atuação se caracterizara por ser do tipo compreensivo, de apoio e de resgate dos aspectos positivos da cliente, além de algo muito pessoal ligado à minha feminilidade e ao meu papel de mãe.1 Porém, várias coisas me intrigavam: estas formas de atuação justificariam a mudança ocorrida na cliente? Teria acontecido algo mais para que, repentinamente, minha escuta se tivesse modificado? Quais teriam sido as transformações ocorridas naquele campo relacional que geraram o desabrochar de algo inusitado, provocando uma surpreendente mudança de rumo, num diálogo até então fechado em si mesmo? O que, naquele processo, me intimou a ser?2 O que, na minha fala, a partir daquele momento, igualmente, intimou minha cliente a ser, levando-a a modificar sua atitude? O que nos chamou à presença uma da outra naquela situação e naquele momento? Não posso, retrospectivamente, retomar nossas falas e expressões para saber quais teriam, conforme expressão de Figueiredo3, forçado passagem para dentro de nossas histórias interiores, criando um espaço de sentido que se incorporaria a essas histórias.4 Posso, no entanto, lembrar a quais impressões fui sensível: enquanto escutava a fala fechada, desanimada e depressiva daquela mulher, percebi que o fato de ela estar na clínica destoava de seu discurso, o que me provocou certa estranheza. Ao mesmo tempo em que a escutava e me deixava contaminar pela sua falta de energia, havia certa descrença em mim, como se eu não pudesse confiar no 1 Pude notar, também, que a satisfação e a sensação de missão cumprida se deviam ao fato de ter podido encaminhá-la para a psicoterapia, o que garantia a continuidade imediata do atendimento. Isto, por outro lado, só foi possível porque ela tinha alguns recursos financeiros que permitiam um tratamento particular. O tema do encaminhamento dos clientes será alvo de reflexão mais adiante. 2 Feliz tradução feita por Martha C. GAMBINI da expressão “...nous mettent en demeure d’être.”, usada por Henry MALDINEY em Evénement e Psychose (1991) p 257 3 Luis Cláudio FIGUEIREDO ao comentar o artigo acima citado de Maldiney (1991). Comunicação pessoal 4 História interior é a expressão que Binswanger usa para diferenciar a história temporal de uma pessoa (história exterior, que pode ser contada numa seqüência lógica) da história interior que é a história que está ligada à constituição do Si (Self). A história interior seria o espaço “...intencional – ou espiritual – constituído pela ‘seqüência de conteúdos’ ou, mais exatamente, pelo encadeamento dos momentos de sentido que confere às vivências sua dimensão” Henry MALDINEY(s/d) pp 5-6. 5 que ela falava. Eu estava defronte de uma pessoa que me assustava e me desorganizava por estar tão desorganizada. Seu mundo sem viço, sem brilho colocava em cheque o meu mundo. Esta mulher ambígua me aparecia como um enigma e me mandava mensagens cifradas. Era uma estranha diante de mim, que me causava desconforto e me desafiava. De início permanecera, ali, ouvindo uma mulher cansada e deprimida, que me falava de suas impossibilidades, enquanto eu me colocava na posição distante de quem apenas faz a mediação entre alguém que se queixa e um hipotético terapeuta futuro. Quando me dei conta de que estava menos preocupada em ouvi-la do que em elencar os profissionaisque conhecia para decidir a quem encaminhá-la, minha postura modificou-se: passei a escutá-la e a partir daí fiquei sensível à sua história, ao seu desprezo pela estética, ao seu abandono do papel de mulher e mãe. Comecei a sentir que a sua presença ali, ao contrário das suas palavras, dizia-me que a depressão não era tão profunda, e que lampejava nela um desejo de mudança. A essa incongruência outras se somaram quando passou a relatar habilidades passadas, mas... habilidades! Durante grande parte da sessão ela me falou de suas incapacidades atuais, comparando-as às suas capacidades passadas. De início só tive ouvidos para as primeiras, até que, de algum modo sua fala me empurrou para apontar as segundas. Assim, ela tinha vindo buscar a confirmação de que era capaz de continuar e que, embora o negasse, ela PODIA! Deixei-me levar pela fala daquela mulher, submeti-me a sua presença e, através do que ela dizia, foi ficando mais claro que havia nela uma força que superava o que antes me parecera uma depressão profunda. (Se o fosse, ela não teria vindo buscar ajuda!) A partir daí, pude entender que ela estava mostrando do que era capaz e que, por si só, já havia iniciado um processo de mudança. Havia nela uma energia que precisava ser redescoberta; era necessário acionar um disparador para que ela pudesse retomar seu lugar no mundo. Eu poderia, talvez, pôr em ação esse mecanismo, devolvendo-lhe o que lhe pertencia, o que, na verdade, já estava presente entre nós (pois ela o mostrava com sua presença) mas que, de início, eu não pudera perceber. 6 Foram percepções, sensações, pensamentos vagos e fugazes que configuraram um campo ao qual reagi falando. Um campo que me obrigou a dizer alguma coisa, a não me eximir e que me convidou a prestar atenção, não no futuro (criado exclusivamente por mim), mas no que acontecia naquele momento entre nós e que me mostrava o que poderia advir. Assim, no decorrer da sessão, alguma coisa foi se construindo até que o campo se organizou de tal forma que, intimada a ser, tive que me fazer presente, abrindo-me ao que estava por vir. Ao me fazer presente (pré-sente), pressenti novas possibilidades de intervenção. Sua aparência desleixada incitou-me a “chamá-la em brios”. Algum tipo de linguagem subliminar e sussurrante parecia dizer-me que uma mulher (uma pessoa) não pode mostrar-se assim ao mundo. O que mais me incomodou foi imaginar os dois rapazes preocupados com a mãe, chegando do trabalho, cansados e tendo que cuidar dela e da casa. Pensei que eram bons moços e que ela os estava atrapalhando ou, mais do que isso, atormentando. Pensei também, que se eram tão atenciosos era porque ela se fizera amar por ter sido uma boa mãe. Imaginei meus filhos na mesma situação e me senti, ao mesmo tempo, irritada e comovida. Vagava em mim o desejo de sacudi-la. Não eram pensamentos elaborados e nem muito claros, mas um conjunto de impressões dispersas que se organizaram, levando-me a buscar energias para provocá-la e acionar o movimento de mudança: “Vá pintar esses cabelos! Você não percebe o quanto está atrapalhando seus filhos? Se você foi competente, provavelmente ainda pode sê-lo! Levante-se e ande, mulher!” E mais suavemente, quase carinhosamente:”Que filhos bons que você tem! Veja de quantas coisas você é capaz.” Na verdade, não foram estas as palavras que usei, mas isto deve ter aparecido de algum modo no que eu disse. Por um momento, fomos duas mães querendo o bem estar dos filhos. Lembro-me que minha fala produziu uma reação positiva que se manifestou em um certo brilho no olhar e em um aprumar-se na cadeira. Ela pareceu ter percebido que não estava morta, que tinha energia e que era capaz de acioná-la. O mundo pequeno e fechado em que se colocara abriu-se repentinamente e sentindo-se chamada a apropriar-se de suas possibilidades, decidiu tratar-se. A partir daí estabelecemos um novo campo de diálogo, onde era possível compartilharmos nossas idéias e impressões. Ela já não se distinguia como 7 um outro assustador, mas se mostrava como uma pessoa com coragem para enfrentar suas dificuldades e as questões envolvidas. Ao terminar a sessão, ambas saímos conscientes de que algo se passara entre nós, sabíamos que naquele encontro alguma coisa importante acontecera. O atendimento em sessão única no momento mesmo em que o cliente procura um profissional não é comum na clínica psicológica5, embora ocorra em situações de crise e em instituições de atendimento gratuito, onde o cliente passa por uma entrevista de triagem. Neste último caso, a preocupação maior costuma ser estabelecer o contrato para o trabalho posterior ou colher dados para um encaminhamento adequado6. A atividade de triagem é uma etapa necessária e obrigatória nas instituições, mas, na maioria das vezes, restringe-se a uma seleção de clientes para as diferentes áreas de atendimento. Frequentemente segue-se um prolongado período de espera até a efetivação do encaminhamento. Atuo em clínicas-escola7 há 15 anos e sempre me mantive afastada da atividade de triagem. Parecia-me impossível suportar o pedido de alguém sem poder atendê-lo de imediato. E “atendê-lo de imediato” significava, mais uma vez, fazer um encaminhamento para algum tipo de atendimento psicológico (psicoterapia, psicodiagnóstico), etc. 5 Faço aqui uma distinção com o cliente de consultório particular que faz uma entrevista inicial já prevendo um atendimento longo. Acontece, às vezes, deste tipo de cliente não retornar ou de ser encaminhado para outro profissional, mas a situação é diferente do cliente de instituição, na maioria das vezes, mais submisso e desinformado. Há o relato da experiência de atendimento em “consultas avulsas” por um grupo de psicólogos denominado Kairós Assessoria Psicológica, que procura atender a “uma faixa considerável da população que não tem o psicoterapeuta no repertório” (Kairós,1991,p59) com o objetivo de “assessorar pessoas no momento em que desejarem ou necessitarem” (idem, p61), sem o comprometimento de estar se engajando em uma psicoterapia. 6 Tenho conhecimento de um atendimento diferenciado no Plantão Psicológico oferecido pelo Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP. 7 Clínica Psicológica São Marcos, da Universidade São Marcos / UNIMARCO. 8 Trabalhava a minha ansiedade com as longas listas de espera (LARRABURE, 1966)8 destas instituições buscando alternativas de atendimento, mas mantendo-me de algum modo distanciada do momento crucial de receber o cliente pela primeira vez, e me defrontar com um problema que, talvez, não soubesse ou não pudesse resolver. Uma inesperada viagem da colega que coordenava as entrevistas de triagem em uma clínica escola onde trabalho, levou-a a indicar-me para substitui-la. Preocupada, de início pensei em recusar o convite para finalmente aceitá-lo, resolvida a enfrentar o desafio. O encontro que relatei acima e que, coincidentemente, ocorreu nesta época, mostrou-me que era possível obter sucesso neste tipo de atendimento e me deu o empurrão necessário. Decidida a enfrentar meus temores, procurei definir o objetivo da tarefa que iria iniciar. Surpreendi-me ao perceber que isto era bastante claro para mim: as entrevistas de triagem deveriam ser entendidas como uma intervenção psicológica significativa por si, independentemente da preocupação com o eventual encaminhamento do cliente para qualquer outro tipo de atendimento. Nas palavras de Mahfoud, deveria ser um “momento significativo ante sua problemática” que tendesse a se tornar uma “referência-existencial9, portas abertas que podemsignificar facilitação para um novo pedido de ajuda ou facilitação para suportar a espera do início de um outro processo” (MAHFOUD, M. 1987 p 82). A partir daí, passei a preocupar-me em tentar compreender como uma entrevista de triagem poderia tornar-se uma intervenção psicológica significativa. Penso que antes de abordar esta aspecto do meu interesse, é necessário refletir sobre esta modalidade de atendimento psicológico e suas especificidades. 8 Minha dissertação de Mestrado versou sobre trabalho (Grupos de Espera) com clientes já triados, que aguardavam diagnóstico psicológico para seus filhos. 9 O autor não se detém na expressão referência-existencial, mas a interpreta como significando que a sessão com a cliente pode se transformar em um momento significativo, um marco na vida do cliente, ao qual ele poderá ‘retornar’ como ponto de referência para orientar-se no decorrer de sua existência 9 II PRATIQUEMOS! 10 Triagem, do francês triage, significa “seleção, escolha; separação”1 e tradicionalmente esta tem sido a finalidade destas entrevistas. Seus objetivos costumam ser : - verificar se o cliente se adequa aos tipos de atendimento que a instituição oferece; - inscrevê-lo no setor apropriado; - encaminhá-lo para outra agência de atendimento, se for o caso. Em instituições de atendimento gratuito, normalmente a população que as procura não tem condições de arcar com os gastos de um acompanhamento psicológico particular. O encaminhamento, portanto, torna-se extremamente difícil, pois o problema da demanda excessiva é antigo e geral2. Nestas instituições, as entrevistas de triagem costumam ser a porta de entrada do cliente. É o momento em que eles vêm, necessitados de ajuda, querendo obter algum resultado imediato ou ter a garantia de que algo será feito rapidamente. Paralelamente, porém, há certo desânimo e desesperança porque, com freqüência estas pessoas viveram atendimentos ineficientes, encaminhamentos inúteis e esperas intermináveis. Por sua vez, os psicólogos os atendem frequentemente carregados de ansiedade por saberem de antemão que terão dificuldades em dar-lhes o encaminhamento adequado, porque a procura é muito maior do que as vagas disponíveis . Esta realidade que, no Brasil, atinge níveis dramáticos (seis meses a dois anos de espera),3 também não deixa de existir em países do primeiro mundo, como atestam trabalhos de Freund, Russel e Schweitzer (1991), Folkins (1980), e Schueman(1980). Nestes casos, porém, fala-se em dias de espera! Em levantamento feito em clínicas-escola de São Paulo que, acredito, refletem a situação geral das instituições de saúde, Ancona-Lopez, M. (1986) coloca: 1 BUARQUE DE HOLANDA (1987, p 1417). 2 Conforme pesquisa realizada por Marília ANCONA-LOPEZ (1986) 3 I nf or m aç ão ob t i da at ravés de levan t am ent o in form al , já que não é esse o pr opósi t o dest e t rabalho. 11 (...) o fato é que os clientes são encaminhados para outras instituições porque não podem ser atendidos naquelas que procuraram, mas sem nenhuma garantia de que a situação que encontrarão no novo local será diferente. O sucesso das indicações não é verificado por quem as faz. Será o encaminhamento realizado na crença de que poderá ser efetivo? (p 55). Prossegue a autora (...)parece-nos que o encaminhamento é a saída que o profissional encontra diante da impossibilidade de responder satisfatoriamente ao pedido de atendimento: indicar outro local funcionaria como forma de apaziguamento, deixando o profissional com a sensação de ter feito algo pelo cliente. (idem p 56) Uma mudança de atitude dos psicólogos que atuam em instituições que enfrentam o problema da demanda pode levá-los a ver nas entrevistas de triagem uma oportunidade de engajarem os clientes no seu próprio atendimento, tornando- os responsáveis pelo seu problema e não iludi-los com a possibilidade, que vai se mostrar irreal para a maioria, de encaminhamento para um atendimento de longa duração. Além disso, facilitar, propiciar ou estar disponível para que algo aconteça durante estas entrevistas poderá torná-las um momento importante na vida do cliente, influenciando inclusive seu percurso e seu destino dentro e fora da instituição. A atitude usual4 nas entrevistas de triagem é considerar esta atividade pouco mais que uma coleta de dados sobre os quais se organiza um sumário – raciocínio clínico que vai orientar o encaminhamento. Nas palavras de Vilarinho: (...) os pedidos de atendimento distribuem-se em duas categorias distintas: os pedidos elegíveis que atendem aos critérios institucionais – as pessoas serão inscritas como clientes, como num ritual de passagem – e aguardarão a chamada para início do atendimento, e os não-elegíveis, que não atenderam aos critérios estabelecidos e, portanto, serão encaminhados ou reencaminhados para outras instituições. (1992). A escuta e o olhar do psicólogo triador tornam-se selecionadores e ele ficará ocupado, fazendo um levantamento das práticas psicológicas oferecidas pelas instituições que conhece (a sua e as outras), para poder decidir em que fila de espera colocará a pessoa que está à sua frente. Ele não consegue ver o novo que 4 No início deste ano, 1996, um grupo de profissionais que atua nas instituições de atendimento psicológico vem se reunindo para discutir os procedimentos de triagem. Estes encontros organizados pelo Dr. Mauro Hergemberg, no Sedes Sapientiae, denominados “Reunião de Triadores”, mostram as inquietações que cercam esta atividade e que a atitude em relação a ela está mudando. 12 lhe é trazido, pois habituou-se a pensar de forma fragmentada, privilegiando mais as especialidades que tem a oferecer do que as necessidades do cliente. Pode-se, aqui, fazer um paralelo com o que Jurandir Freire da Costa relata em seu livro História da Psiquiatria no Brasil (1989): O psiquiatra não mais se dispõe a ouvir. Ele passa a falar antes de escutar, a buscar, antes de ser procurado. Não mais acompanha a loucura, antecipa-a. Corre em frente, monta o hipogrifo5 e promete reconduzir, a todos quantos o seguirem, ao lugar onde se encontra a razão perdida. (p64) Evidentemente, dedicando-se a esta contabilidade mental, o pobre psicólogo não terá oportunidade de acolher o pedido do cliente e a entrevista terá pouco sentido ou interesse para este último. Assim, a situação de triagem é um momento de transição, passaporte para o atendimento posterior, este sim, tido como significativo, no qual o cliente encontrará acolhida para suas dúvidas ou sofrimento. Deste modo, a relação que se estabelece nestas entrevistas estará mediada pelo profissional ausente (aquele a quem o cliente será encaminhado), o que prejudicará a aproximação entre psicólogo e cliente durante o atendimento. Na medida em que o psicólogo entender que o papel de entrevistador é diferente do de terapeuta, tenderá a se distanciar durante a entrevista de triagem, evitando uma intervenção mais eficaz, mantendo uma atitude investigativa e resguardando suas impressões sobre o cliente. Neste caso, acredito que o processo perderá muito de seu sentido e mesmo de interesse ou utilidade para o cliente. Como tive a oportunidade de desenvolver em trabalho anterior (Ancona- Lopez, S., 1995), a meu ver, toda atuação psicológica é uma ação de intervenção cujo significado será dado pelo campo relacional que se estabelece entre as partes e que é exclusivo e peculiar àquele momento e àquela relação. No entanto, de acordo com o pensamento psicológicotradicional, para que a relação psicológica – se assim a podemos chamar – se transforme em uma relação significativa, pressupõe-se que deva ser longa e duradoura. Paralelamente, há também nesta tradição a idéia de que um caso só é rico e interessante para o psicólogo se for difícil e necessitar de muitas horas de acompanhamento. 5 “Animal fabuloso, monstro alado, metade grifo” BUARQUE DE HOLANDA (A967 p732) Grifo = “animal fabuloso de cabeça de águia e garras de leão” (idem, p703) 13 Esta postura, que começa a ser repensada, tem a influência da psicanálise, embora o próprio Freud (em Analise Terminável e Interminável, 1937), se tenha questionado sobre o tema da duração da psicanálise. Escreveu ele: A experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica – a libertação de alguém dos seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticos – é um assunto que consome tempo. Daí, desde o começo, tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das análises“(p 247).”Eu mesmo adotei outro modo de acelerar um tratamento analítico, inclusive antes da guerra (...)Nesse dilema, recorrI à medida heróica de fixar um limite de tempo para a análise. (p248). Neste trabalho, as reflexões do autor se estendem pelos temas complexos do “término da análise” e das possibilidades profiláticas da psicanálise. Todo o texto é permeado por certo ceticismo quanto à eficácia da psicanálise no sentido de provocar mudanças pertinentes, alertando para a ingenuidade dos que esperam que seus clientes atinjam “um nível de normalidade psíquica absoluta” (p251), mesmo após muitos anos de terapia. As citações acima, no entanto, não negam que , com relação à psicanálise:”.se quisermos atender às exigências mais rigorosas feitas à terapia analítica, nossa estrada não nos conduzirá a um abreviamento de sua duração, nem passará por ele”, como lembra Freud no mesmo texto (p255). Paralelamente, no entanto, o autor demonstra claramente seu desconforto: “Partimos da questão de saber como podemos abreviar a duração inconvenientemente longa do tratamento analítico...”(p267). Assim como no caso da psicanálise, na literatura que trata das psicoterapias, de modo geral as questões sobre alta, duração e mudanças ocorridas no decorrer de um atendimento psicológico referem-se sempre a processos psicoterapêuticos, raramente mencionando as entrevistas ou consultas. Portanto, não é fácil relacionar mudança psicológica com entrevistas de triagem. Como lembra Mahfoud (1987, no momento de uma primeira entrevista, confrontado com as dificuldades do cliente ‘a resposta padrão’ é (encaminhar para) psicoterapia...” (p76), pois não lhe ocorre posicionar-se de outra forma frente ao cliente, percebendo que alguma coisa pode ser feita de imediato. Esta mesma idéia é expressa por Carvalho da Silva (1992): 14 Por identificar a prática psicoterapêutica como sinônimo de atuação clínica é que o modelo tem sido mantido (...)a psicologia tem tentado exercer um único modo de atuar através dos atendimentos psicoterápicos de seguimento contínuo e/ou prolongado. (p31). Mas mudanças estão ocorrendo. As psicoterapias breves ( PB) – que procuram resolver o dilema da duração apontado por Freud – tentam romper com a força desta tradição. Partem do princípio que mudanças são possíveis em um curto período de tempo. Trabalhos recentes, como os de Gilliéron (1990) falam em curar (guérir) em quatro sessões. Uma das principais preocupações do autor é mostrar a necessidade de modificar a prática de psicanálise no que diz respeito ao enquadre e propor uma lógica interpretativa que leve a uma mudança psíquica. Guilliéron diz, ainda, que o momento em que o cliente procura o atendimento costuma refletir uma crise na situação existencial, crise que o terapeuta deve reconhecer. É, portanto, um momento que favorece rearranjos no equilíbrio intrapsíquico e interpessoal, pois o cliente, impulsionado pelas suas dificuldades, vem em busca de transformações. Do mesmo modo, Spoerl (apud Peter,1992) propõe que se aproveite a carga emocional particularmente forte da primeira consulta, por considerá-la como uma psicoterapia de intervenção única, focalizando a sessão sobre o problema principal, segundo o conceito do enriquecimento da personalidade graças à crise. Peter(1992) diz que na sua abordagem (PB de inspiração psicanalítica), se a primeira entrevista levar o cliente a ressignificar algum(uns) momentos de sua vida e apropriar-se de seu sintoma, serão eliminadas as fronteiras entre o diagnóstico e a psicoterapia e estará criado o enquadre necessário para que uma psicoterapia possa se instalar. O mesmo autor conclui que “se a primeira sessão e as intervenções psicoterapêuticas breves permitirem criar as condições preliminares para a mudança (...) elas terão preenchido seus objetivos” (p363).6 Não pretendo falar em cura numa entrevista de triagem, mas refletir sobre o fato de que se acontecimentos significativos podem ocorrer no decorrer de uma sessão, por que não buscar as condições que possam facilitar seu aparecimento para transformar estas entrevistas em uma referência existencial? Além disso, se o 6 Tradução livre. 15 cliente não se sentir mobilizado pelo primeiro atendimento, ao ser encaminhado provavelmente não conseguirá dar prosseguimento ao seu pedido de ajuda. Como as entrevistas de triagem se dão no âmbito das instituições, isto lhes imprime um caráter particular e as diferencia, dificultando a comparação com qualquer primeira entrevista que se dê nos atendimentos particulares, embora nestas últimas também ocorra uma avaliação informal, uma ação interventiva ou um encaminhamento. Segundo Maida(1991), Para que o atendimento nas instituições se torne realmente efetivo, é necessário promover uma espécie de desaprendizagem voltada para o exercício da prática em cada situação específica” e “para que o profissional esteja preparado para o trabalho nas instituições (é necessário) evitar a repetição mecânica do conhecimento teórico estabelecido (p6). Na verdade, estamos tratando aqui de uma visão ampla da psicologia, visão que não limita a intervenção psicológica a situações determinadas, nem mesmo apenas à prática clínica. É uma maneira de pensar a psicologia como uma atuação que exige uma atitude flexível, inventiva e responsável por parte do psicólogo que deverá transitar entre a teoria e a prática com certa desenvoltura. À medida que o profissional acreditar que todo contato com um cliente pode (e a meu ver, deve) ser um momento significativo, sem dúvida, ele se verá obrigado a rever muitos dos conceitos que norteiam sua prática. O relacionamento psicológico será significativo quando criar um campo favorável para o deflagrar de impulsos mobilizadores que podem resultar em questionamentos, elaborações ou mesmo mudanças de atitude ou de perspectivas vivenciais. Como aponta Bleger (1979) “na entrevista se configura um campo e com isto queremos significar que entre os participantes se estrutura uma relação da qual depende tudo o que nela acontece” (p14).7 Este campo favorável surge na e da experiência vivida na relação psicólogo/cliente, qualquer que seja a denominação dada a este atendimento (triagem, psicodiagnóstico, psicoterapia). Quando o cliente vem à procura de um psicólogo, ele quer ser atendido em suas necessidades, pouco 7 Tradução livre. 16 importando sob que nome este atendimento se efetue.8 Na prática, no entanto, o que acontece com freqüência é que, por nomear sua prática, o psicólogo deixa de fazera sua parte, postergando sua intervenção e empobrecendo um encontro rico de possibilidades. Dentre todas as modalidades de atendimento em instituições de atendimento psicológico gratuito, as entrevistas de triagem como as que proponho, parecem-me ser as que exigem maior flexibilidade e inventividade por parte do psicólogo. A variedade dos casos a serem atendidos, as situações inesperadas que ocorrem e o fato de que, muito provavelmente, aquela sessão será única, levam o psicólogo a um constante questionamento teórico, obrigando-o a buscar os mais variados recursos técnicos e, principalmente, pessoais. No entanto, como lembra Figueiredo (1993a), não é possível confiar apenas no conhecimento pessoal, já que este, “pela sua natureza pré-reflexiva é muito vulnerável à rotinização e à repetitividade” (p93). Por outro lado, ater-se a uma teoria como esteio dentro de um campo movediço pode afastar o psicólogo de suas experiências e vivências, bloqueando sua sensibilidade. A tarefa do psicólogo consiste em permitir não que a teoria atue como camisa de força limitante, o que desumanizaria o contato, mas encontrar seu estilo pessoal, como propõe Figueiredo (1993a), usando a teoria como fonte de questionamentos, incorporando-a como instrumento e não como condição para compreender e determinar uma ação no mundo. Uma descrição poética deste tipo de situação pode ser encontrada em Fernando Pessoa: Emissário dum rei desconhecido, Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêem Soam-me a um outro e anômalo sentido... 8 Esta idéia foi expressa com muita felicidade por Tereza Mito no I Encontro Estadual Sobre Psicodiagnóstico, promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas das Práticas Clínicas da PUCSP e UNIP/Objetivo, em Março de 1992. 17 Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu rei dá-me o desdém Por este humano povo entre quem lido... (...)9 E uma pista de como enfrentá-la em Alberto Caeiro, seu heterônimo: Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras Desembrulhar-me e ser eu,(...)10 Como lembra Schmidt (1991), “as relações oriundas de um campo clínico praticado com liberdade” (p22) exigem uma atitude de disponibilidade interna maior do que aquela exigida pelas práticas formalizadas. Estas entrevistas costumam ser, portanto, situações tensas de forte colorido emocional e com características muito especiais. A partir da minha primeira experiência e das posteriores, em conjunto com meus alunos-estagiários, passei a sentir claramente que, mais do que qualquer outra atividade, a entrevista de triagem, nos moldes como a entendo, é uma oportunidade especial de crescimento pessoal e desenvolvimento profissional. Nestas entrevistas, é freqüente nos perguntarmos: como adequar os conceitos teóricos às exigências do momento e ao inusitado da situação que escapa ao enquadre tradicional? Este é um nível da prática psicológica que leva a “teorizar com liberdade” e a “desorganizar o 9 FERNANDO PESSOA – Ele Mesmo XIII (trecho) 1965 (p22) 10 Poema,,s de ALBERTO CAEIRO Caieiro XLVI (trecho) 1965 (p62) 18 campo instituído” (Schmidt, idem p1), criando e inovando de acordo com o campo inédito de cada relação. O processo parece-me tão intenso e rico que o considero um campo privilegiado para perceber o acontecimento transformador, o algo que torna aquele encontro diferente dos outros. Descrição do atendimento Conforme já mencionei, a atividade de triagem é característica das instituições de atendimento gratuito como consequência dos vícios estruturais da organização dos serviços de saúde, da pouca flexibilidade da maioria dos profissionais que neles atuam, da pressão da demanda e da impossibilidade de absorvê-la. Como meu tempo de pesquisa e reflexão se dará no âmbito destas entrevistas, cabe-me aqui descrever como elas ocorrem na instituição onde atuo.11 Esta instituição é uma clínica-escola. Como tal, tem a dupla finalidade de dar atendimento gratuito à população que a procura, propiciando, paralelamente, estágio supervisionado aos alunos do último ano de Psicologia da Universidade à qual está ligada. Oferece atendimento a adultos e crianças, sendo que, em todos os casos, o primeiro passo é uma entrevista de triagem. Tais entrevistas ocorrem no momento em que o cliente procura a instituição ou, após algum tempo, a partir do contato pessoal ou telefônico, quando é informado sobre a data e o horário em que deve comparecer. Por atuar na área infantil, minha clientela é composta pelos responsáveis (na grande maioria, mães) que buscam atendimento para as crianças. No dia da entrevista, o procedimento é o que se segue: O cliente preenche uma ficha na recepção com seus dados pessoais e os da criança que quer inscrever para atendimento. Em seguida, por ordem de chegada, é chamado por um dos estagiários de psicologia para a entrevista. 11 Clínica Psicológica São Marcos da Universidade São Marcos/UNIMARCO em São Paulo – SP. 19 A sessão não tem duração determinada, podendo variar de 30 a 60 minutos, de acordo com seu desenrolar. O meu papel é o de acompanhar os atendimentos, supervisionando os alunos estagiários; no entanto, a fim de obter as entrevistas para esta pesquisa, passei a atender alguns clientes. O que ocorre com freqüência nestes encontros é que o cliente inicia relatando o motivo que o levou a procurar a clínica – o que se convencionou chamar de queixa manifesta (em contraposição à queixa latente712. Como a procura é para o atendimento de crianças, com freqüência estas queixas estão relacionadas a problemas escolares ou a distúrbios de comportamento. É comum os clientes virem encaminhados pela escola, médicos ou outra instituição ...sem estarem realmente motivados para o atendimento visto não compreenderem sua necessidade e desconhecerem o que é um serviço psicológico, uma vez que esse tipo de trabalho não tem repercussão em seu universo cul tural e educacional (LARRABURE,1986, p63). Nesse primeiro relato centralizado na criança, frequentemente o adulto se exime da responsabilidade de assumir a decisão de um atendimento psicológico para seu filho, deixando esta tarefa para o psicólogo que o atende. No decorrer da sessão, outras queixas vão surgindo e, normalmente, ligam-se mais diretamente àquele que fala. Ou seja, mesmo que o problema se refira à criança . o significado que o adulto – que o está expressando – lhe dá, passa a ter mais importância. Assim é que, do ponto de vista do psicólogo, o trabalho se desenvolve, novamente, sobre duas vertentes: - A criança – motivo primeiro ( ou pretexto) da procura – evidentemente que não pode ser esquecida: é preciso pensar que tipo de ajuda ela necessita e como pode conseguí-la. - O cliente adulto que esta presente à sessão, e que tem um problema, podendo ser o seu ou algo mais. Na verdade, o que deve 12 Termos que a tradição psicológica emprestou da psicanálise e que costumam ser empregados independentemente da orientação adotada 20 ser captado é como seu filho ou o problema de seu filho aparece para esta pessoa e como isto se insere em sua vida. Ou ainda, qual é a real demanda da pessoa naquele momento: que tipo de ajuda ela veio buscar que, muitas vezes,se encontra mascarada no pedido de atendimento à criança. É este segundo ponto que enfatizo seja na minha atuação seja ao falar com meus alunos estagiários.13 Se a atuação se ativer apenas à primeira vertente, as opções serão poucas e o caminho será mais fácil de vislumbrar, ou seja: encaminhar a criança para psicodiagnóstico, terapia ou qualquer outro tipo de atendimento na própria instituição ou em outro local. A atuação psicológica será, portanto, postergada e delegada ao profissional que atuará no futuro. Repete-se aqui a situação – ocorrida inicialmente no meu atendimento – em que a relação com o cliente fica mediada por um profissional ausente, criando-se, assim, a possibilidade de distanciamento entre as pessoas presentes. Sobre o futuro psicólogo serão depositadas todas as fantasias e ônus ligados à solução das dificuldades. Evidentemente, mesmo quando a ênfase é colocada sobre a criança e o seu problema, o adulto estará de algum modo envolvido no atendimento. O simples fato de ter ido em busca da ajuda mostra o quanto a sua vida e a da criança estão interligadas. Contudo, tanto este adulto quanto o psicólogo podem atuar nesta situação buscando atender apenas a primeira solicitação (queixa manifesta), diminuindo ansiedade de ambos e, aparentemente, solucionando a dificuldade. Neste caso, coloca-se a questão da responsabilidade do psicólogo em relação a quem veio pedir ajuda, confiando em seus conhecimentos. Quando apenas encaminha o cliente, o profissional estará kafkianamente14 eliminando o seu problema, podendo até mesmo sentir-se feliz com a sensação de dever cumprido. Esta postura tarefeira traz ainda as implicações já mencionadas e sobre as quais não me estenderei, mas que se referem à demanda excessiva de clientes, à cadeia 13 A inserção dos alunos-estagiários na atividade de triagem é um tema muito rico e com inúmeros aspectos a serem discutidos. Mas que não cabem no âmbito deste trabalho. 14 Em A metamorfose de KAFKA (1996) o homem-barata é eliminado por que os outros, mormente sua família, não sabem como lidar com o diferente. 21 de encaminhamentos ineficientes, à superlotação das agências que oferecem atendimento gratuito e à estrutura viciada da organização dos serviços de saúde em geral. Por si só estes pontos (a meu ver) devem levar o psicólogo a refletir e buscar uma nova atitude frente à entrevista de triagem. A outra maneira de atuar, que não exclui necessariamente o encaminhamento da criança, é que pretendo compreender e explicitar através de minha própria vivência e a de meus clientes. Como já mencionei anteriormente, focalizar o atendimento no cliente presente permitirá transformar a entrevista de triagem em um momento psicológico significativo. 22 III Já ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: 23 A partir da minha atuação com as entrevistas de triagem passei a interessar- me por entender como se dá o momento significativo - ou acontecimento - em um atendimento psicológico e se é possível aguçar a sensibilidade do psicólogo para que perceba as mudanças que estão ocorrendo naquele campo que o inclui. Pude perceber que minhas preocupações poderiam ser resumidas em duas questões. A primeira abrangeria uma vertente social que passa pela prática institucional, enquanto a segunda diria respeito aos estatutos da psicologia. Assim, considerando que: as entrevistas de triagem são uma etapa necessária nas instituições; frequentemente estas entrevistas são pouco significativas para o cliente; os atendimentos de curta duração parecem atender melhor à nossa realidade e às necessidades de nossa clientela; os encaminhamentos na maioria das vezes são ineficientes; pergunto: Como dar novo sentido às entrevistas de triagem tornando o primeiro contato com o psicólogo significativo para o cliente? Esta primeira pergunta, de natureza técnica, conduz a uma segunda, mais abrangente, de cunho teórico: Como se dá o acontecimento que transforma o encontro com o psicólogo em um encontro significativo? Estas questões poderiam levar à resposta de outras duas: 24 É possível identificar o acontecimento transformador? É possível facilitar a eventualidade de encontros significativos? O objeto de estudo desta pesquisa é, portanto, a entrevista de triagem. Seu objetivo é descrever como se dá o acontecimento que faz a entrevista psicológica ser percebida como significativa pelo cliente e pelo psicólogo. Retomando minha vivência como cliente de psicoterapia e minha atuação enquanto psicóloga clínica, devo reconhecer que raros foram os momentos, tanto em uma quanto em outra situação, em que consegui perceber um acontecimento reconhecendo-o como tal. No entanto, frequentemente, pude captar diferentes movimentos em mim ou em meus clientes. Isto me leva a crer que existam variações na magnitude do acontecimento. Penso aqui em clientes de instituições gratuitas, que se descobrem como “pessoa” ao terem um atendimento respeitoso e interessado: “eu até me comovo. Aqui me senti tratada como gente”, disse-me uma senhora, após sua entrevista de triagem. Em outro patamar, o acontecimento parece ocorrer de forma mais profunda: “... eu só tô com medo que... ela (psicóloga-estagiária) está me mostrando um caminho... está acendendo uma luzinha que era apagadinha, sabe? E é isso que eu tô com medo, de explodir essa luz e eu me perder no caminho”, disse outra, um tanto assustada.1 Seriam acontecimentos de importância diferente na vida do cliente? Evidentemente, estas reflexões não são pertinentes apenas às entrevistas de triagem, mas a toda atuação clínica. Naquelas, porém, pelo fato de se circunscreverem a uma ou no máximo, quatro sessões2 e pelas suas peculiaridades que parecem concentrar os aspectos que se encontram diluídos nos atendimentos a longo prazo, talvez se possa perceber, com maior facilidade, o acontecimento significativo. 1 Entrevistas obtidas em pesquisa piloto com alunos estagiários na Clínica Psicológica São Marcos em 1993. 2 As reflexões desencadeadas por este trabalho influenciaram diretamente os atendimentos e a organização das entrevistas de triagem na Clínica Psicológica São Marcos, que atualmente dirijo. A Primeira mudança se deu no número de encontros iniciais com o cliente que procura a instituição pela primeira vez . Raramente é feita apenas uma entrevista, mas usualmente são feitas duas, podendo chegar até a quatro sessões. Houve também uma modificação no modo de nomear esses atendimentos pelos diferentes supervisores: de “Entrevistas de Triagem”, passaram a chamar-se “Entrevistas de Acolhimento”. “Pronto Atendimento” e “Intervenções Breves”, sendo que essa última nomeação tornou-se oficial. A atuação passou a ser claramente a de buscar uma intervenção imediata. 25 Deste modo, descrever e compreender o acontecimento significativo permitirá expandir as reflexões para além de tais entrevistas (já que tal acontecimento não é exclusivo desse tipo de atendimento), podendo estender-se a todas as entrevistas, sessões ou consultas que um psicólogo possa ter com seu cliente. É preciso notar que, embora eu esteja utilizando a expressão “entrevista de triagem” parece-me mais adequado, a partir deste momento, substituí-la por “primeira entrevista” ou “consulta psicológica”, expressão mais genérica e abrangente, já que minha proposta é a de eliminar as entrevistas que pretendem triar os clientes no conceito tradicional. Retomando, pois, uma das vertentes do trabalho aque me proponho, no que concerne às entrevistas de triagem propriamente ditas, estas reflexões, como lembram Amatuzzi e col. p8 (1991), visariam “estabelecer modificações na forma de agir (ou pelo menos, na forma de conceber a ação), em decorrência de algum tipo de discussão ou procedimento reflexivo que venha a implementar a compreensão do próprio processo. Isso significa acompanhar a atuação terapêutica ao longo do processo, com um procedimento reflexivo que venha a implementar a compreensão do próprio processo.” Na outra vertente, a possibilidade de explicitar e refletir sobre o acontecimento significativo abordaria, como lembra Figueiredo (1993b), um aspecto fundamental da situação terapêutica, já que são esses momentos que apontam caminhos e impulsionam o cliente (seja no decorrer do processo psicoterápico ou de uma entrevista). O acontecimento significativo pode constituir- se na verdadeira “porta de entrada” para um mundo de novas possibilidades. Cabe-me, portanto, refletir sobre as questões que coloquei acima. Proponho- me a isto, tomando como ponto de partida e de apoio os trabalhos de M. Heidegger e algumas idéias elaboradas por L.C. Figueiredo a partir da fenomenologia heideggeriana, mais especificamente suas observações sobre o acontecimento em análise. 26 IV Como o disparo pode ocorrer, se não for eu que o fizer acontecer? 27 Como lembra Yehia (1983), o cliente não é ajudado pela atividade do psicólogo, mas “ se beneficia da relação e da compreensão que este é capaz de lhe oferecer” (p 34) . Pergunto, pois: o que pesa mais: a adequação teórica do psicólogo ou sua postura pessoal? A meu ver, o fazer psicológico acontece em dois níveis: o conceitual, que é reflexivo, teórico e, portanto, transmissível e passível de aprendizagem; o relacional, que é vivencial, pré-reflexivo e não pode ser aprendido pelos métodos usuais de transmissão de conhecimento. Acredito que é no movimento de ir e vir entre estes dois níveis que ocorre o “algo” de que falava o mestre Zen, (mencionado na epígrafe) e que pode transformar aquele determinado encontro entre psicólogo e cliente em uma referência-existencial. Entre estes dois pólos de tensão: o reflexivo/teórico e o pré-reflexivo/vivencial cria-se um espaço vazio, um espaço de perplexidade, já que ambos são insuficientes para que o psicólogo compreenda o outro na sua totalidade. Esta impossibilidade gera um movimento que leva o psicólogo a vagar entre os dois pólos e a soltar-se de ambos. É nesse momento de trânsito que se oferece o espaço para a irrupção do novo, isto é, a emergência de algo ainda não constituído.11 Esta mesma idéia é exposta por Forghieri (1984) com as seguintes palavras: A atuação do terapeuta apresenta, então, um duplo aspecto: o do profissional competente, profundo conhecedor tanto de teorias psicológicas como dos fundamentos do existir humanos; e o da pessoa humana, sensível, que esteja disposta a ficar próxima ao cliente enfrentando o risco de comprometer a sua própria existência na luta pela libertação dele. (...) O psicoterapeuta atua dialéticamente como o profissional competente, que domina os conhecimentos sobre o psiquismo e o existir humanos, mas que também entrega-se ao ser- com o cliente de modo espontâneo (p 28). E ainda: A atuação consciente, racional, no sentido de descobrir e melhorar a patologia do cliente e a comunicação existencial intuitiva, espontânea, são os dois pólos dialéticos, dos quais nenhum pode aparecer sozinho, independente do outro (p 29). 11 Devo esta imagem à colega Martha Gambini que a expressou ao comentar este meu trabalho. 28 Figueiredo (1995c) sugere que há um conhecimento tácito que denomina de “saber do oficio”, artesanal, “de natureza eminentemente pré-reflexiva (...) que oferece certa resistência aos discursos representacionais objetivadores” (p 87) não sendo, portanto, de fácil, ou quiçá possível explicitação, mas que impregna toda a prática psicológica. O mesmo autor acredita que esse tipo de conhecimento construído através das vivências e experiências pessoais (pano de fundo de todas as formas de conhecimento) não se converte totalmente em teoria nem coincide necessariamente com esta. A tensão que decorreria desta não-coincidência entre teoria e prática, quando mantida em um nível ótimo, permitiria “desalojar os conhecimentos tácitos impregnados nas práticas, introduzindo nelas o espaço da reflexão, o espaço da pesquisa, o espaço do pensamento” (1993a), por que não (pergunto eu) o espaço da significação do encontro na prática psicológica? A significação de um encontro é dada pelo campo relacional que se estabelece entre as partes e que é exclusivo e peculiar àquele momento e àquela relação. Figueiredo (1993d) sugere que se pense no psicólogo “como um 'profissional do encontro'” para salientar que “lidar com o outro na sua alteridade” (p93) faz parte da atividade do psicólogo, o que vai exigir um trabalho afetivo e intelectual constante. O termo “encontro” em psicologia tem muitas conotações. Aqui emprego esta palavra para denominar a situação que resulta do (e é concomitante e inseparável do) acontecimento no atendimento psicológico. Isto é, quando o acontecimento irrompe no campo relacional composto pelo cliente e pelo psicólogo, configura-se um novo campo (até então inimaginável) com uma disposição afetiva e um clima relacional particular. É esta situação rara e especial, não traduzível em palavras, que pode ser chamada de encontro e que pretendo mostrar que é possível acontecer nas entrevistas de triagem. Mas - retomando minha questão inicial - o que é este acontecimento, este algo, que provoca o encontro? Para esclarecer o que, no corpo deste trabalho, é entendido como acontecimento é preciso retomar, embora rapidamente, alguns conceitos da analítica existencial heideggeriana. Convém lembrar que estes conceitos baseiam- 29 se, principalmente, na (re)leitura de Ser e Tempo (Heidegger, 1927), feita por Figueiredo12, através da perspectiva das obras posteriores de Heidegger. A pre-sença (dasein) e a analítica-existencial Em Ser e Tempo (1927), Heidegger retoma a questão fundamental que as filosofias e os homens se têm feito no decorrer dos tempos: quem somos nós? O que faz do homem um ser diferente das coisas, dos animais e das plantas? Que ser é este que nós mesmos somos? A resposta parece ser inatingível mas Heidegger nos dá algumas pistas para prosseguir nesta investigação13. O primeiro passo é colocar “ a questão do sentido do ser” (HEIDEGGER, S&T §1 p30) na forma mais clara e transparente possível, tornando o questionamento explícito14. O passo seguinte é reconhecer que temos uma intuição do que é ser, pois estamos mergulhados numa compreensão pré-ontológica, isto é: quando alguém se pergunta alguma coisa é porque tem um conhecimento prévio daquilo que procura. Não posso perguntar por algo que desconheço. Deste modo, ao iniciar a busca, sei que ela é dirigida pelo conhecimento que já tenho sobre o que procuro: “toda procura retira do procurado sua direção prévia” ( HEIDEGGER, S&T §1 p30). Por exemplo, se alguém perde um anel de ouro e pede que eu o ajude a encontrá-lo, mesmo que eu não conheça aquela determinada jóia, tenho uma idéia do que é um anel e do que é ouro, e vou em busca de algo aproximadamente circular, que tenha um certo brilho e um tamanho que pode ser grande ou pequeno mas que não escapa a determinadas medidas. Assim, quando pergunto : “como é o anel?”, é porque tenho algum tipo de conhecimento sobre anéise minha pesquisa se orienta por este conhecimento. Se nunca vi um anel, as pessoas explicarão que é uma espécie de aro, que ouro é um metal amarelo ou avermelhado e eu terei 12 Participo de um grupo de estudos (desde 1991) coordenado pelo Prof. Dr. Luís Cláudio Figueiredo, que vem se dedicando a leitura de Ser e Tempo [1927] e outras obras de Heidegger. 13 À pesquisa do sentido do ser Heidegger denomina ontologia fundamental 14 “Tratando-se de uma e até da questão fundamental, seu questionamento necessita, portanto, de uma transparência conveniente.”(HEIDEGGER, S&T §2 p30) 30 alguma noção do que é aro, metal, cor, etc., dando-me um conhecimento pré- reflexivo sobre aquele anel, o que será fundamental para a minha busca. Se o homem vem, há séculos, se perguntando “quem sou eu?” é porque tem algumas idéias sobre si e parte do princípio de que ele (que faz a pergunta) existe e está em algum lugar. Na verdade, o homem, tem alguma compreensão do que é, mas não é capaz de explicá-lo intelectualmente, tenta de diversas maneiras, mas está sempre insatisfeito, porque sente que alguma coisa lhe escapa. Talvez as pessoas possam dizer o que não são ou escrever poesias ou músicas ou fazer representações artísticas sobre o que é o ser humano, mas não conseguem escrever ou falar explicitamente sobre o que é ser, “... de tudo isto se podendo concluir que os homens são incapazes de dizer quem são se não puderem alegar que são outra coisa...” (SARAMAGO, 1989, p42). Tudo que temos é uma “compreensão vaga e mediana” (HEIDEGGER, S&T §2 p31) do sentido do ser. A investigação da questão fundamental (qual o sentido do ser?) é orientada pela noção prévia do que é ser em geral, tornando circular o estudo desta questão. Este estudo, que Heidegger chama de analítica existencial, propõe-se a explicitar e descrever o fenômeno que é o ser humano. O método de investigação é o da hermenêutica15 fenomenológica: “trata-se de interpretar de forma a trazer à luz o que está presente mas dissimulado e oculto nas experiências” (FIGUEIREDO, 1994a p51). Deste modo, um dos caminhos em direção ao ser se dá procurando conhecer quem é que faz a pergunta, ou seja, quem é este ente que nós mesmos somos (ente ontológico)16 a quem Heidegger chama de dasein, em português ser-aí ou pre- sença17. 15 “Ora bem, posto que o ser das coisas e do próprio Dasein é tal, antes de mais [nada] na linguagem como, por outro lado, a existência é constitutivamente relação com o ser, hermenêutica, isto é, interpretação, encontro com a linguagem, é a própria existência na sua dimensão mais autêntica” (VATTIMO, 1971 p29). O circulo hermenêutico se dá quando após compreender algo, se interpreta esta compreensão; se fala sobre ela. 16 Aos outros entes, que não a pre-sença, Heidegger chama de entes simplesmente dados (entes intramundanos) que podem ser apreendidos através do pensamentos categorial. 17 Adoto aqui o termo pre-sença por ser a tradução de Dasein escolhida por Márcia de Sá Cavalcante na edição de Ser e Tempo (1988) que utilizo. Em nota explicativa a tradutora diz que se decidiu por este termo: 1) para não ficar aprisionada “às implicações do binômio metafísico essência- existência; 2) para superar o imobilismo de uma localização estática que o “ser-aí” poderia sugerir.(...); 3) para evitar um desvio de interpretação que o `ex’ de existência’ suscitaria (...)”. Explica ainda que: “pre-sença não é sinônimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade 31 Assim como a etologia estuda os animais no seu habitat natural, a melhor maneira para conhecer a pre-sença é estudá-la como ela se mostra no dia a dia “em sua cotidianidade mediana, tal como ela é antes de tudo e na maioria das vezes”. (HEIDEGGER, S &T §5 p44). É fazer a “fenomenologia do cotidiano” (FIGUEIREDO, 1994a p51), descrever como a pre-sença se mostra, não apenas no que é “ visível mas desentranhar o sentido do ser dos fenômenos que se dão espontaneamente a ver”18 (idem, p51). Quais são os modos de ser, de existir, da pre-sença? Quais são, portanto, seus existenciais? É através desta análise que poderemos nos aproximar e intuir ou entrever o ser da pre-sença mas não apreendê-lo, por que o ser “não se deixa capturar, não sendo portanto expressável ” (Figueiredo, 1994a p60) na linguagem corriqueira. Assim a pre-sença: é existindo na sua facticidade (ser-aí), pois foi lançada no mundo e aí está; é um “ter-que-ser sem razão suficiente e circunscrito pelo horizonte finito do tempo originário” (Loparic, 1994 p15)19; é no mundo (ser-em), está sempre interagindo com o mundo; só é na sua relação com o mundo que é o aberto da abertura, portanto uma dimensão da pre- sença; é em contato com os outros (ser-com), o mundo da pre-sença é sempre o mundo da co-presença; é um mundo já compartilhado e antes de tudo e na maior parte das vezes20, compartilhado com o outro de existência plural: o impessoal (“os outros”, “a gente”, “nós”, “todo mundo”) no modo da “de-cadência”21; é um poder-ser (ser-para-a-morte), a possibilidade mais própria da pre- sença é a sua morte. Ao ser lançada no mundo a pre-sença é jogada na mortalidade que não é algo exterior a ela mas faz parte dela própria; está no seu ser. É o seu pré, (seu futuro, o que vai inevitavelmente acontecer), a sua abertura para o vazio. embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade” (p 309) 18 Grifo do autor 19 Grifo do autor 20 Expressão freqüentemente utilizada por Heidegger no decorrer de sua obra Ser e Tempo (1927). 21 Para Heidegger “este termo não exprime qualquer avaliação negativa não tem sentido pejorativo. Pretende apenas indicar que, em primeira aproximação e na maior parte das vezes, a pre-sença está junto e no ‘mundo’ das ocupações”. (S&T §38 p236), ou seja, no mundo do cotidiano, do impessoal, do falatório, da curiosidade, onde todos vivemos mergulhados. 32 A pre-sença se dá existindo no mundo e o termo existência (ek-sistere), em Heidegger, aponta para o estar-fora, estar ex-posto ao inesperado ao acontecimento, ao encontro. A noção de ek-stase “... refere-se ao estar fora, ao estar-no-fora, ao existir da pre-sença (do homem) como abertura e possibilidade. Antes de ser um sujeito minimamente limitado e delimitado de seus objetos, o homem é o seu fora, o seu aí.” 22 (Figueiredo, 1993c p9). A este modo de ser da pre-sença, que sempre tem possibilidades abertas e não realizadas e que, portanto, é um ser sempre pendente em direção às suas possibilidades, Heidegger chama de cura. São tantas e tão variadas as possibilidades do ser humano que ele não poderá realizá-las todas. Tal como nos jogos interativos, sempre que faz uma escolha segue por um caminho e perde a oportunidade de trilhar os que não escolheu. A única possibilidade que, seguramente, se irá concretizar é a da morte e, quando o ser humano se defronta com esta certeza ao ser dominado pela convicção de que poderá “não mais estar pre-sente”(S&T, §50 p32) mergulha na angústia, assustado ante a possibilidade do nada. Estes momentos de angústia são radicalmente de ordem diferente daqueles momentos em que se está pensando na própria morte, ou na dos outros, planejando seu funeral, ou imaginando a vida eterna. Faço uma digressão para relatar que, enquanto escrevia sobre este tema estava também lendo “Paula”, de Izabel Allende (1996). Frente à expectativa da mortede sua filha, Isabel se espanta ao descobrir que apesar da dor ainda tem vontade de viver: “...esta pessoa de olhos desolados sou eu, vivi quase meio século, minha filha está morrendo e, no entanto, ainda quero fazer amor. Penso na sólida presença de Willie, fico arrepiada, e o mínimo que posso é sorrir diante do poder abissal do desejo que me estremece, apesar da tristeza, e é capaz de fazer a morte retroceder ” (p 158). Esta mulher corajosa, que luta ferozmente pela vida da filha, não pode assumir a morte de Paula e apesar de querer morrer por ela, é incapaz de fazer a experiência de sua própria morte. 22 Grifos do autor 33 A angústia existencial se dá quando o ser humano se descobre mortal. É quando, num lampejo, vislumbra que sua existência terminará em algo que ele não pode imaginar, um nada que é indizível. Nesse momento, é possível compreender que a pre-sença fechará o círculo de sua existência na morte: Enquanto possibilidade de ser da pre-sença, a angústia, junto com a própria pre-sença que nela se abre, oferece o solo fenomenal para a apreensão explícita da totalidade originária da presença. Esse ser desentranha-se como ‘cura’”23 (HEIDEGGER, S &T §39 p245). Falar no ser da pre-sença como cura é falar, mais uma vez, que o ser da pre- sença é temporal: é para o fim. A temporalidade é, pois, o modo de ser mais próprio e originário da pre-sença, pois ela está sempre se antecipando a si mesma, projetando-se, pendendo para o futuro. Esse caminhar para diante leva, inexoravelmente, para a morte. O que virá (o que advém a cada instante) é a morte: eis um fato ao qual o ser humano não pode escapar: sua facticidade, seu destino que está incluído na sua condição atual de vivente. Assim, o agora/ser-aí (presente) implica um advir/ser-para-a-morte (futuro) e um já-estar-aí (passado), pelo fato inegável da pre-sença ter sido lançada no mundo. Todo ser humano reconhece a possibilidade de sua própria morte, mas apenas em raros momentos a percebe como verdadeira. Por outro lado, para não viver angustiado perante esta certeza, para ocultar seu destino, ele se volta para a vida cotidiana, ocupando-se e preocupando-se com seu dia a dia, afastando-se do seu mais próprio e mergulhando em um modo impróprio de ser: “ Silêncio antes de nascer, silêncio depois da morte, a vida é puro ruído entre dois silêncios insondáveis” (ALLENDE, 1996 p329) , ou conforme Heidegger: “Imergir no impessoal junto ao ' mundo' das ocupações, revela que a pre-sença foge de si mesma como seu próprio poder-ser propriamente” (S&T, § 40 p247)i. A pre-sença engloba no seu modo de ser mais próprio um não-ser: ela é incompletude, algo não concluído, não fechado: é abertura. A metáfora da clareira (Lichtung), conforme apresentada por Amoroso (1990) a partir de Heidegger, parece- me uma ótima imagem da ideia de pre-sença como abertura. A clareira é um lugar aberto à luz e que só o é por ser/estar rodeada da obscuridade da floresta : “Além disso, esta oposição conjunta de luminosidade e de 23 Grifo do autor 34 obscuridade se manifesta no fato de que a Lichtung, como claro luminoso, está definida por seus contornos, isto é, por estar circundada e quase escondida em um bosque mais espesso e, portanto, também mais escuro” (p195). Assim também a pre-sença é luz e sombra, dentro e fora, circundamento e abertura, limitação e possibilidade. Do mesmo modo como a clareira só é percebida por estar rodeada de sombra, por ser além dela (clareira), além da luz a pre-sença também é por estar lançada para “aquele horizonte escuro que toda experiência humana traz consigo.” (p223), a própria morte. A ideia da pre-sença como abertura pode conduzir-nos à noção de acontecimento, ou seja: a capacidade de esperar o inesperado, de estar exposto ao encontro, tema sobre o qual me deterei mais adiante. Esta disposição da pre-sença para o encontro se dá porque ela está sempre se antecipando a si mesma. É um ser em constante desequilíbrio por estar remetido ao outro que nunca se apresenta simplesmente, mas sempre envolvido em uma rede infindável de remissões. Isto é, o ser não é captável na sua totalidade, nas suas inúmeras possibilidades. Explico: para que uma máquina-de-escrever se configure como tal, para que eu possa entendê-la como máquina-de-escrever, é preciso que eu tenha nascido neste tempo e nesta civilização, que eu tenha aprendido o que é uma máquina-de- escrever, que eu conheça as palavras e esta expressão composta: máquina-de- escrever. Para que aquele objeto (ente) se configure como máquina-de-escrever, para mim, tudo isto deverá estar presente de algum modo. Além disso, as possibilidades do ser máquina-de-escrever são inúmeras: posso escrever com ela, carregá-la, utilizá-la como peso para segurar inúmeros papéis, fazer dela um brinquedo, como fazem as crianças dedilhando suas teclas ou uma arma atirando-a na cabeça de alguém, etc.. Ao olhar para tal objeto sou remetida a algumas das infindáveis possibilidades de ser máquina-de-escrever e percebo que nunca poderei alcançá-las todas. É nas possibilidades da máquina-de-escrever, captando, analisando e interpretando seus aspectos mais visíveis que vou entrevendo o que é ser máquina-de-escrever. Máquina-de-escrever é um ser disperso que ora constituo de uma forma, ora de outra e que nunca poderei constituir na sua totalidade, pois o ser máquina-de-escrever, para mim, está circunscrito a um campo de possíveis que é delimitado pelas minhas possibilidades corporais, temporais e espaciais. 35 Mas eis que, subitamente, pode surgir uma possibilidade que não existia para mim, que era impensável, inimaginável. Guto Lacaz24 apresentou, certa vez, a máquina-de-escrever como um artefato para colocar mostarda em uma salsicha!25 No primeiro momento aquilo me desconcerta. Não entendo, acho ridículo, jamais imaginaria tamanho absurdo, não aceito. Sou pega desprevenida pelo humor da proposta. Neste momento está acontecendo algo novo e inesperado: um acontecimento. Uma possibilidade nova se abriu para mim e, mesmo que eu quisesse ignorá-la, ela passaria a fazer parte do meu campo de possibilidades e dali para a frente sempre que visse uma máquina-de-escrever me lembraria desta nova, embora absurda, possibilidade. Mas de que maneira estes conceitos podem ser aplicados à situação da primeira entrevista? Considerando a ocasião em que o cliente vem para uma primeira entrevista como um momento em que, de algum modo, ele se sente limitado em suas possibilidades (pois não consegue superar suas dificuldades), estas entrevistas podem constituir- se em uma oportunidade para que perceba que o campo no qual circunscreveu sua vida não é único nem definitivo. Tendo como pano de fundo a facticidade ( a sua própria morte, ou seja, a noção de que a vida é passageira), pode ser o momento propício para que, mesmo fugazmente, se rompa o campo atual e se vislumbre a abertura para novas possibilidades.26 A percepção de que as imposições do cotidiano não são necessárias, mas contigentes27 pode proporcionar a liberação de certas amarras constituindo-se numa abertura para um novo campo de possíveis. A pre-sença não escolhe o campo de possibilidades que lhe cabe, não escolhe a abertura na qual foi lançada. Diante deste fato, há dois caminhos: entregar-se à abertura, no modo impessoal submetendo-se __ ou apropriar-se dela de forma autêntica, refazendo as escolhas que lhe foram dadas. Um encontro 24 Guto Lacaz é um artista plástico, brasileiro, muito conhecido porsuas “instalações’ bem humoradas. 25 Impossível explicar em palavras. Só vendo! 26 Recordo-me de uma mãe que atendi em grupo de psicodiagnóstico e que, perante sua própria ansiedade diante das dificuldades do filho na escola comentou: "Minha avó sempre me diz: `Que importância vai ter, daqui a 10 anos, se ele fez a primeira série com 8 ou 9 anos?’ " mostrando, com essa fala, que percebia o quanto estava presa ao momento presente e que começava a perceber que o fato de o filho passar ou não de ano não era fundamental no existir dele e dela própria. 27 "O cotidiano transforma em necessário o que é contingente." , comentário bem colocado da colega Elisa Ulhoa Cintra durante o grupo de estudos de Heidegger. 36 psicológico significativo pode ser a oportunidade de apropriação desta abertura que, embora não escolhida, é a pre-sença mesma; é tornar pessoal o impessoal. Ou seja: é uma oportunidade de o cliente aproximar-se do que ele mesmo é, em um modo próprio ou autêntico e, a partir daí, entrever as possibilidades exequíveis e escolher algumas dentre elas. Por exemplo, pode-se passar a vida infeliz por ter nascido em um país do terceiro mundo, sonhando em mudar para uma região mais desenvolvida ou aceitar esta escolha que não foi feita, apropriando-se dela, vivendo-a de forma mais plena. E assim com todas as coisas: “escolher-se” como mulher ou homem, gordo ou magro, mais inteligente ou menos inteligente, tímido ou extrovertido... A cada vista de olhos que lançar sobre seu campo de possibilidades, o cliente se estará reavaliando, interpretando, compreendendo e escolhendo. Antes de mais nada e na maior parte do tempo de uma sessão, o cliente permanecerá relatando suas mazelas, suas preocupações e ocupações, mergulhado no modo impróprio: “Perdendo-se na publicidade do impessoal e no seu falatório, a pre-sença ao ouvir o próprio do impessoal, não dá ouvidos ao próprio de si mesma.” (HEIDEGGER, S&T §55 p56). Quando de uma primeira entrevista com pais, que trazem como queixa algum problema do filho, há uma premência para a resolução de certos aspectos práticos (classe especial ou não; dificuldade de coordenação; agressividade com o irmão, etc.). Neste caso o jogo torna-se mais complexo. O psicólogo também é, constantemente, chamado a voltar-se para o cotidiano. Não pode esquecer a criança. É preciso pensar nela e ocupar-se dela, ou levar o adulto que lá está a fazê- lo. Assim, mais do que em qualquer outro atendimento psicológico, o cotidiano estará em pauta, mas ambos, psicólogo e cliente, deverão procurar desocupar-se para não perder a oportunidade, se ela surgir, de abrir-se para o inusitado, para o acontecimento que pode apontar novos caminhos. O relato da vida cotidiana vai ocultar as possibilidades outras do cliente, mas é neste mesmo relato que está a viabilidade do desocultamento. Dizendo de outro modo: é no modo impróprio que se revela a possibilidade de abertura que já ali está presente. O diferente, o estranho, o inquietante surgem do e estão no familiar. O próprio movimento de ter ido buscar ajuda e de se encontrar em um “fora” do usual, (falando com alguém desconhecido), introduz uma estranheza e origina 37 uma pausa nas ocupações, obrigando o cliente a se manter, momentaneamente, desocupado. Este fato já é uma ruptura no cotidiano que poderá mostrar ao cliente o seu modo mais próprio de situar-se no mundo. É uma oportunidade de ouvir-se a si mesmo. Na proposta que apresento de substituir as entrevistas de triagens por consultas psicológicas que podem ser entendidas como tendo um fim em si mesmas, a própria precariedade do tempo (umas poucas sessões de atendimento) pode ser vista como paradigmática da facticidade. Estabelece-se uma relação já marcada pelo seu final; é “uma morte anunciada”28; um momento único que não permitirá retomadas. Esta temporalidade peculiar pode instalar uma sensibilidade especial, tanto no cliente quanto no psicólogo, para uma experiência que singulariza. Retorno a Isabel Allende que, apesar de saber (como qualquer um de nós) que todos morreremos um dia, é submergida pelo acontecimento da morte iminente de Paula. Era impensável, inimaginável, que sua filha, uma inteligente jovem de 28 anos, permanecesse meses em coma e viesse a morrer antes dela. Em que abertura este acontecimento a lançou? No confronto com o impossível, além da descoberta de que ela sobreviveria à dor e continuaria a ter desejos, a comer, a rir, a dormir, abre-se para ela a possibilidade de falar com Paula, através de um livro, contar sua história, revelar segredos íntimos, desnudar-se. Possibilidades que ela preferiria não ter, que não foram sua escolha, mas que se ofereceram a ela que as assumiu, abrindo-se para esta nova experiência em vez de entregar-se e sucumbir na dor. “...minha filha me deu a oportunidade de olhar para dentro e descobrir os espaços interiores, grandes vazios escuros e estranhamente aprazíveis que eu nunca havia explorado.” (ALLENDE, 1996 p383). Sobre o acontecimento A origem da noção de acontecimento, como apresentada por Maldiney (1991) e retomada por Figueiredo (1994a), encontra-se dispersa na obra de 28 Expressão tirada do título do livro de Gabriel García MARQUEZ: Crônica de uma morte anunciada (1981) 38 Heidegger já a partir de Ser & Tempo em 1927 e conta com a contribuição de autores como Erwin Straus, Viktor Weizsäcker e Ludwig Biswanger29. Em Acontecimento e Psicose (1991), Maldiney coloca: “A presença só é a de um si por sua abertura ao acontecimento. Não por ela estar no mundo com vistas a si sob a forma de um projeto que possibilita sua própria faticidade. Mas sim por sua transpassibilidade aberta ao fora da espera, que exclui todo a priori. Sua abertura ao acontecimento é aquilo pelo qual ela existe, e existe enquanto si. O acontecimento é um existencial.” (p43) O acontecimento é o que “intima a ser”; é uma impressão originária que tem tonalidade e significado singulares. Irrompe na vida de alguém como o convite para uma viagem ao desconhecido, com os dizeres: “Pessoal e intransferível”. É a significação existencial dada a um momento vivido que se apresenta como um enigma, e que não faz sentido, dentro do sistema representacional daquela pessoa. Por um instante cria-se um vazio: o mundo conhecido se desfaz e surge alguma coisa nova, ainda não compreendida, ainda não pensada. O passo seguinte é construir um novo esquema representacional que dê sentido àquela experiência, criando um novo campo, um novo mundo, ou fechando rapidamente a porta que se abriu para poder retornar ao conhecido. O instante do acontecimento é fugaz e tem um caráter de primeira vez que “ não é extrínseco à vivência do acontecimento. Ele é uma sua dimensão constitutiva, configurando interiormente sua incomparável novidade”. (idem, p10) No texto Fala e Acontecimento em Análise Figueiredo (1994a) apresenta a noção de acontecimento apontando suas relações com a psicoterapia. Para o autor, acontecimento é “uma ruptura na trama das representações e da rotina e (...) transição para um novo sistema representacional” (pp151-152) que leva o indivíduo para além do campo dos possíveis. É a realização ou a possibilidade de realização do impossível: abertura para um acontecimento que não poderia ser previsto. Um abalo no campo das possibilidades que, em algum nível, leva a uma transformação. Na maior parte do tempo as pessoas se mantêm no campo do impessoal cotidiano em que vigoram a tagarelice, a ambigüidade, “as falas comunicacionais”, 29 Apud Maldiney(1991)
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