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de gênero entre 2003 e 2008 (IDS 2003 e MICS 2008). A Educação é um investimento no futuro, que não é valorizado na maioria das famílias que não conseguem ter as suas necessidades básicas asseguradas e a taxa de conclusão do ensino primária é, por isso, baixa, situando-se nos 15%, com uma grande disparidade entre o meio rural e urbano (7% contra 30% em 2008). O relatório supracitado, Carla Ladeira Primeira infância em Moçambique, constatações e desafios 80 refere como barreiras à participação na educação, os custos directos com a educação, a existência de outras prioridades para as famílias pobres, tradições e cultura, impacto da violência e abuso nas escolas, a qualidade da educação e a falta de professores que na generali- dade têm turmas muito numerosas. A questão linguística é outra barreira na aprendiza- gem, pois não existindo uma rede de educação pré-escolar, as crianças têm, na sua maioria, o primeiro contacto com a Língua Oficial, na entrada para a escola primária. Todas estas questões pesam numa balança desequilibrada que gera barreiras à plena realização dos direitos fundamentais a 10 milhões de crianças moçambicanas. Os dados de 2006 para o ensino superior, apontam 16860 alunos matriculados em cursos superiores públicos da área da educação, dos quais 5625 seriam mulheres e 530 em instituições privados, dos quais 165 mulheres (MEC, 2006). Num contexto de pluralidade linguística, a Língua assume uma promíscua relação com a cultura e a história do país. Para Vygotsky “o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento histórico geral da espécie e assim deve ser entendido”. Vygotski (1998), estudou a linguagem enquanto função psíquica superior, que é primeiramente social, resultado da relação entre as pessoas (criança e os adultos), para depois ser interiorizada, como resultado da ação do próprio indivíduo, transformando-se num instrumento regulador do com- portamento. Igualmente, para Marková & Foppa (1990), a linguagem é resultado de um sistema simbólico, concebido como mediador das trocas do sujeito com o mundo social e físico que o envolve. Este sis- tema de mediação simbólica (Mead, 1934; Vygotsky, 1978; Vygotsky & Luria, 1994), que resultou da história cultural da humanidade, constitui o sujeito psicológico humano. A análise sócio cultural indica-nos que o bem-estar é afectado pela qualidade da ligação estabelecida com os outros, onde a evolução humana privilegiou o estabelecimento de laços humanos fortes. Esta ligação é determinante, não apenas pela sensação de bem-estar que proporciona, mas acima de tudo porque contribui para sentimentos de (in)segurança em crianças com vivências de solidão ou abandono. Nestas condições, estão mais susceptíveis a uma regulação deficiente com uma cognição social distorcida, que os torna menos aptos para reconhecer as Carla Ladeira Primeira infância em Moçambique, constatações e desafios 81 perspectivas dos outros. No contacto com as crianças moçambicanas sentimos uma presença de padrões de relação insegura, traços de timidez que se repetem após gerações de incompreensão da infância como uma fase de vida essencial ao desenvolvimento do Eu. A cultura moçambicana, e africana de forma geral, está repleta de tradições e rituais de transição para as dife- rentes fases de vida, sendo o nascimento, a puberdade vs adultez, o casamento e a morte, as mais importantes. A Infância tem estado assim diluída, sendo uma idade de trabalho e contribuição para a sustentabilidade do lar. Às crianças, resultado de uma visão meramente procriadora, se exigia que contribuíssem para a sua sobrevivência, reco- lhendo alimentos, tomando conta dos irmãos mais novos, vendendo ou pedindo esmolas. Numa análise ao desenvolvimento humano aparece a questão do peso entre a educação, o ambiente e os genes. Basicamente a interacção dos genes com o ambiente, os as- pectos intrínsecos e extrínsecos compreendem mais do que uma mera soma de influências. Vygotsky & Luria (1994), descrevem o desenvolvimento como um processo dinâmico e utilizando o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), Vygotsky (1988) refere que existe um nível de desenvolvimento real e uma zona de desenvolvimento proximal correspondente às actividades que o sujeito ainda não consegue realizar sozinho, mas consegue com a ajuda de outra pessoa. Essa pessoa pode ser representada por um cuidador, professor, educador ou terapeuta. Estas evidências sustentam estratégias educativas e de rea- bilitação de crianças com problemas de desenvolvimento, sendo o padrão de relação adulto-criança o responsável pela qualidade das experiências que determinam as respostas das crianças. Estas referências, assim como os pressupostos da abordagem sistémica e a valorização de uma intervenção orientada para a família constituem o núcleo da intervenção realizada nos Centros de Reabi- litação Infantil (CRIs) nos distritos de Chókwè e Chibuto, província de Gaza, Moçambique. Estes centros foram lançados pela Organização Não Governa- mental Douleurs sans Frontières (DSF) que actua em Moçambique desde 1996, com a missão de « contribuir para o bem-estar, para o tratamento da dor e para o alívio do sofrimento das populações em dificuldade, através do reforço das competências dos atores institucionais e da sociedade civil, Carla Ladeira Primeira infância em Moçambique, constatações e desafios 82 bem como do reforço dos mecanismos da coordenação entre eles». O CRI de Chókwè entrou em funcionamento em 2001 e os seus resultados promissores inspiraram para a abertura de um outro CRI em Chibuto no ano de 2007. Os CRIs funcionam com uma equipe composta de 8 Educadores de Reabilitação Infantil, 1 psicólogo e 2 técnicos de psiquiatria que trabalham também nas comu- nidades envolventes. Ao longo de 2010 os CRIs registaram 11.163 frequ- ências mensais de crianças em situação de vulnerabilidade (7572 rapazes e 3591 raparigas) sendo 9093 crianças em Chókwè e 2070 em Chibuto. Nesta população atendida, 234 crianças apresentavam problemas de desenvolvimento, como demonstra a tabela seguinte: Tipos de Casos Atendidos Perturbações Comportamentais 50 Atraso Mental 20 Deficiência Motora 36 Dificuldades de Aprendizagem 80 Dificuldades na fala, linguagem e comunicação 48 Total de casos atendidos 234 Tabela 1: Tipologia de problemas de desenvolvimento nas crianças atendidas Conjugado com estes problemas muitas crianças apresen- tam perturbações psicológicas por sequelas de epilepsia, malária e outras doenças como o HIV/SIDA cuja prevalência é de 26% na província de Gaza. O acompanhamento dessas crianças, nos distritos referidos, teve como base os CRIs com uma equipe especialmente formada no atendimento à criança com necessidades especiais (por deficiência, traumas, malnutrição, pobreza extrema) e uma rede de 256 Agentes de Cuidados Domiciliários (ACDs) para um apoio de proximidade ao sistema familiar dessas crianças e rede de referência aos serviços de educação, saúde e acção social. Estes profissionais verificam que muitas crianças nestas condições de vulnerabilidade precisam de actividades de socialização e de cuida- dos domiciliários associados a actividades de reabilitação psicológica. O problema reveste-se de uma dimensão intrínseca, de vulnerabilidade na condição de saúde, de ânimo psíquico e de uma dimensão extrínseca pelo Carla Ladeira Primeira infância em Moçambique, constatações e desafios 83 estigma social e atitudes dos pares e adultos. A me- todologia de cuidados deve desenvolver-se de forma sistémica, intervindo nos factores internos e externos, ou seja: cuidar do bem-estar clínico da criança e intervir no ambiente que a envolve, para que este seja o mais protector possível. Desta forma é muito importante