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para quem quer reflectir sobre a nova questão comunista, de livros tão diversos como Une certaine idée du communisme, de Denis Berger e Henri Maler (Éditions du Félin, 1999) [Uma Certa ideia do Comunismo], cujo primeiro objecto consistia em dar uma réplica de fundo (e de maneira aperitiva) a François Furet, ou ainda Communisme, un nouveau project, de Robert Hue (Stock, 1999) [Comunismo, um Novo Projecto], que diz com calor o que são, a seu ver, as áreas de trabalho essenciais para uma superação do capitalismo, ou ainda Le Communisme, autrement, de Roger Martelli (Syllepse, 1998) [Comu- nismo, de Outro Modo], cujo conteúdo crítico e prospectivo está tão próximo do que eu próprio penso sobre o tema anunciado pelo título. A que acrescento tudo o que as nossas reflexões devem às elaborações colectivas que começam a multiplicar-se em diversos locais: dos congressos e seminários da Actuel Marx, até aos dossiers da "Fondation Copernic", passando pelas análises plurais de Futurs, pelas mesas-redondas de Regards, os contributos da Attac ou as iniciativas de Espaces Marx. Todavia, parece-me que há qualquer coisa de absolutamente essencial que fica em grande parte por pensar, se trabalhamos, como é desde longa data o meu caso, para re-constituir teoricamente ,um desígnio comunista do nosso tempo. A meu ver, essa qualquer coisa é, para além de qualquer conteúdo programático algo pormenorizado, o conjunto coerente de tal desígnio, dos conceitos estruturantes que mobiliza e, ainda mais a montante, dos considerandos primordiais que ele pressupõe. Investigação de certo modo erudita, mas de que o essencial deve ser dito em linguagem de todos, para fazer frente a esta pergunta que todos se põem: que pode significar hoje a palavra comunismo, na sua dupla acepção de combate político presente e de forma social futura? Convenhamos que está ainda por fazer um difícil trabalho que possa propor uma resposta simples para esta simples e premente questão. Assim, lancei-me à água para nadar à minha maneira de filósofo. Isto significa que a única coisa de que me vou ocupar aqui de uma ponta à outra é do sentido claramente pronunciado de que deverá preencher- se no século XXI a palavra comunismo, que muitos desejariam tornar completamente impronunciável. É claro que, não sendo o universal outra coisa senão o singular coniderado na sua essência, tocaremos forçosamente, durante o nosso percurso, em temas específicos tão desmesurados quanto o mercado e a propriedade, o trabalho e o indivíduo, o Estado e a política... Mas previno o leitor: estas realidades não ficarão com contornos muito mais precisos - serão até talvez mais discutivelmente tratadas - do que as pessoas e as árvores dos desenhos de arquitecto. É que não é esse o objecto do livro - sem o que nem sequer teria certamente começado a redigi-lo. O seu único propósito, insistamos, é a hipotética consistência geral de um projecto comunista renovado, tal como a ele nos conduzem ao mesmo tempo as experiências terríveis do século XX e as exigências fabulosas do século XXI, vistas na óptica revolucionária de Marx em todo o seu vigor e o seu rigor. Por isso, não se trata de fazer avançar dossiers, mas de fazer com que os que não desistem da transformação social profunda reencontrem pontos de referência: é esta a sua finalidade. E como a essencial liberdade crítica que se oferece ao leitor, face aos pontos de referência que se lhe propõem, depende também dos pontos de que dispõe para situar a demarche própria do autor, não receio aqui e ali referir algumas experiências políticas pessoais, por vezes ásperas, mas que pouco contam na concepção renovada de comunismo para a qual me orientei. É por isso que ao ler este livro se sentirá certamente, não o nego, mais o calor de uma exortação do que a frieza de uma tese. Abril-Setembro de 1999 1 - O futuro tem um nome? Na reunião do Comité Central do PCF, em Argenteuil, em 1966 - cujo vasto objecto, «os problemas ideológicos e culturais», abrangia implicitamente um ainda mais vasto debate estratégico -, Jean Kanapa disse-me na pausa seguinte à minha intervenção, naquele tom cáustico que ainda tenho nos ouvidos e, para mim, o caracteriza como o sorriso do gato ausente em Alice no País das Maravilhas: «Ainda acreditas na filosofia...». Frase na qual senti de repente a profundidade de uma divergência cultural entretanto surgida entre nós. Pensando nessa frase tantos anos depois, quase entrava outra vez em combate. Eu, «acreditar ainda» na «filosofia»? Ora essa! Quando alguns anos antes tinha publicado um livro atacado por alguns como sendo demasiado feroz para com toda a filosofia francesa contemporânea? Quando, ainda por cima, sustentava nesse livro expressamente a tese marxiana do fim. da filosofia? Acreditava, seguramente; só que eu acrescentava que este fim da filosofia «no sentido tradicional» era o pontapé de saída para uma «nova etapa» do trabalho filosófico, trabalho de consistência «científica» e já não «especulativa», mas científica num sentido completamente irredutível à sua acepção positivista, na qual filosófico soa mais ou menos como inconsequente. Era precisamente o que acabava de dizer na minha intervenção em Argenteuil, contestando nos seus fundamentos as perspectivas de «orientação positivista» sobre «uma pretensa reabsorção da filosofia na ciência, sobre a inexistência de um nível propriamente filosófico da teoria». Daí, o litígio. Kanapa, por seu lado, falava da teoria marxista, de uma ponta à outra, da sua intervenção, exclusivamente em termos de «ciência», de «atitude rigorosamente científica», parecendo deste modo decretar como obsoleto «o nível propriamente filosófico». Aí está o que me fazia ferver por dentro. Como se se pudesse aprofundar e enriquecer a posição materialista, o tratamento dialéctico na teoria e na prática, poupando uma crítica e uma elaboração especificamente filosóficas - hoje diria com mais precisão: categoriais. Como se poupar este trabalho filosófico pudesse conduzir a algo mais do que uma teoria em saldo - e neste saldo haverá ainda teoria? Litígio grande demais para ser dirimido nas poucas conversas do intervalo de uma sessão. Mas esta frase é daquelas contra as quais muito pensei e durante muito tempo, de maneira que, de caminho, ela foi-se carregando de um sentido muito para além da sua letra. «Ainda acreditas na filosofia», tinha-me dito Jean Kanapa. E sob esta sentença, com a qual de modo algum podia pactuar, acabava por perceber polemicamente a inconsciente confissão de uma renúncia de efeitos seguramente terríveis, qualquer coisa do género: «Eu cá já não acredito na teoria». Será necessário afirmar que poucas vezes este litígio me vem à memória, e ainda menos se fosse caso de esboçar uma apreciação global da personalidade intelectual e do contributo político de Jean Kanapa? O facto do seu papel de primeiro plano junto de Georges Marchais, na renovação estratégica do PCF - O Desafio Democrático em 1973, o Relatório ao XXII Congresso, três anos mais tarde, etc. -, relevar como qualquer outro acontecimento histórico da avaliação crítica, remete-nos para o exame de um conjunto de dados que estão muito para além de episódios como este. Assim, não evoquei aqui este dito de Jean Kanapa para lhe fazer o retrato, nem a minha maneira de reagir para esboçar o meu - o que não teria qualquer interesse para o livro - mas para ir sugerindo através de um exórdio que, como veremos, nos conduz ao âmago do tema, em que estado de espírito me proponho e proponho abordar a nova questão comunista, em que sentido radical aqui se entende a palavra questão, a que nível de exigência se situa o que poderá ser tomado como contributo plausível para a sua resolução: amputada de qualquer uma das suas dimensões teóricas, incluindo a sua dimensão filosófica no sentido marxiano do termo, a questão comunista