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A adolescência na contemporaneidade: ideal cultural ou sintoma social*

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Luciana Gageiro Coutinho
A adolescência na contemporaneidade:
ideal cultural ou sintoma social*
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-19
Partindo da construção histórica do conceito de adolescência no Ocidente,
mostramos que a consolidação da adolescência enquanto um ideal cultural articula-
se ao hiper-individualismo contemporâneo, marcado por um ideal de liberdade
individual extrema, que ameaça as bases sobre as quais se sustenta o laço social.
Dito isso, supomos que o ideal cultural da adolescência nada mais é do que a
expressão de um sintoma social relativo a um impasse na transmissão da Lei sob a
qual se sustenta a sociedade, diante da pulverização dos grandes ideais sociais que
dão consistência ao laço social, o que, por sua vez, afeta particularmente os sujeitos
adolescentes. Enfim, refletimos sobre as formações fraternas na adolescência como
uma tentativa fazer face a este impasse, através da reafirmação e validação da Lei
nesses pequenos grupos.
> Palavras-chave:
?????????????????????????
>Key words:
*> Este trabalho é parte integrante da tese de doutorado Ilusão e Errância: Adolescência e Laço Social Con-
temporâneo na Interface entre a Psicanálise e as Ciências Sociais, defendida em fevereiro de 2002 no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio, com auxílio financeiro da Capes e com
bolsa-sanduíche do Cnpq em Paris 7. O artigo deriva, mais especificamente, de um trabalho apresentado
originalmente no colóquio Adolescência e Construção de Fronteiras, APPOA /UFRGS, Porto Alegre, agosto
de 2002.
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Introdução
O conceito de adolescência enquanto um
processo relativo a um período particular na
vida de um indivíduo, situado entre a infân-
cia e a idade adulta, tem uma origem bas-
tante recente na história social do
Ocidente, e seu sentido atual só foi defini-
tivamente consolidado no final do século XIX
(Ariès, 1973). Segundo o dicionário etimoló-
gico Larousse (Pechon, 1964), o termo ado-
lescência vem do latim adulescens ou
adolescens, particípio passado do verbo
adolescere, que significa crescer. Entretan-
to, nas línguas derivadas do Latim, o termo
apresentou durante um longo tempo um
sentido sobretudo depreciativo e satírico,
sendo somente por volta de 1850 que a pa-
lavra adolescência entrou para os dicioná-
rios e adquiriu um sentido mais próximo ao
que tem atualmente. Assim, a adolescência
é um conceito construído historicamente na
Modernidade, que adquire vários desdobra-
mentos até o momento atual.
No mundo contemporâneo, a adolescência
torna-se um ideal cultural, que todos dese-
jam alcançar e nele permanecer eterna-
mente, como apresenta Calligaris (2000), de
modo que já se discute até mesmo a hipóte-
se relativa ao fim da adolescência atrelada
a uma faixa etária específica da vida. Par-
tindo da hipótese de Calligaris, levantamos
a seguinte questão: de que forma o ideal cul-
tural da adolescência poderia nos ajudar a
pensar a respeito de nossa cultura e da ma-
neira pela qual se constitui o laço social no
mundo contemporâneo?
Para pensar sobre essa questão, retomare-
mos brevemente a construção social do
conceito de adolescência, para em seguida
discutirmos a hipótese do ideal da adoles-
cência como um fenômeno revelador do
sintoma social contemporâneo. Em seguida,
analisaremos de que forma esse ideal afe-
ta os sujeitos adolescentes em nossa cultu-
ra, e tentaremos pensar sobre alguns dos
possíveis modos encontrados por eles para
lidar com essa situação ao inventar novos
meios de elaboração do laço social junto aos
seus pares.
Adolescência:
uma invenção moderna
Considerando a construção social e históri-
ca do conceito de adolescência, podemos di-
zer que a adolescência é fruto de um
enigma relativo à passagem da infância
para a vida adulta na sociedade ocidental
moderna. Os adolescentes são obrigados a
suportar um tempo de espera, de adiamen-
to da entrada no mundo público, justamen-
te porque não há um lugar predeterminado
a ser ocupado por cada indivíduo na socie-
dade, tendo em vista a complexificação do
processo de formação profissional, o declí-
nio da ética do trabalho e da produção, bem
como dos ideais ligados ao casamento e à
família. Portanto, o que ocorre com a ado-
lescência é justamente o oposto daquilo que
outras culturas ritualizam coletivamente
através dos rituais iniciáticos (Calligaris,
2000), nos quais o jovem deve passar por
certas provas e ensinamentos até que pos-
sa adquirir o estatuto de adulto, definido em
função de alguma atividade valorizada e
predeterminada pela sociedade.
O conceito de adolescência surge na cultu-
ra ocidental no contexto da consolidação do
individualismo – cujo marco histórico funda-
mental é a Revolução Francesa – articula-
do à constituição dos limites entre as
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esferas pública e privada da vida social.
Nesse sentido, pensamos que só é válido
falar em adolescência se nos referimos a
um contexto sociocultural individualista,
onde a cada indivíduo é delegada a respon-
sabilidade de administrar seu próprio des-
tino, encontrando seu lugar no social da
maneira que lhe for preferível ou possível
(Coutinho, 2002).
Entretanto, se o fenômeno da adolescência
irrompe bem antes da virada do século XX,
o que pode ser constatado através dos per-
sonagens românticos cujos dramas privados
evocam muitas das “questões adolescentes”
diante de um novo encontro com o Outro da
cultura, é somente a partir da década de 60
que o adolescente ganha a cena definitiva-
mente. Desde os movimentos libertários
propriamente ditos, cujo protótipo é a con-
tracultura americana, a difusão do
rock’and’roll, o advento da pílula, até o sur-
gimento da calça jeans; tudo isso contribui
para uma verdadeira revolução nos modos
e costumes que regulam as trocas entre as
gerações, anunciando profundas alterações
no laço social e nos ideais que o sustentam.
Nesse novo contexto cultural, a adolescên-
cia ganha um lugar de destaque, apresen-
tando-se como um conceito peculiar e
específico de uma cultura em que a liberda-
de e a autonomia tornaram-se os valores
hegemônicos. A respeito disso, como obser-
va Calligaris, a adolescência nada mais é do
que
... um mito, inventado no começo do século
XX, que vingou sobretudo depois da Segunda
Guerra Mundial. A adolescência é o prisma pelo
qual os adultos olham os adolescentes e pelo
qual os próprios adolescentes se contemplam.
Ela é uma das formações culturais mais pode-
rosas de nossa época. Objeto de inveja e de
medo, ela dá forma aos sonhos de liberdade
ou de evasão dos adultos e, ao mesmo tempo,
a seus pesadelos de violência e desordem
(Calligaris, 2000, p. 9)
Assim, o surgimento da adolescência articu-
la-se ao ideal de liberdade presente de for-
ma cada vez mais dominante na cultura
ocidental desde a Modernidade, de modo
que Calligaris é levado a supor que o século
XX faz da própria adolescência um ideal cul-
tural (Calligaris, 2000), quando todos dese-
jam ocupar essa posição eternamente. A
consolidação da adolescência como um ide-
al cultural ancora-se basicamente no hiper-
individualismo disseminado na cultura
ocidental a partir dos anos 60/70, quando
o ideal social da liberdadetorna-se um ele-
mento central em torno do qual se organi-
za o laço social, em detrimento dos outros
ideais modernos relativos à fraternidade e
igualdade que entraram em decadência,
como já anunciava Simmel (1971[1957]) em
meados do século passado. Portanto, a
idealização da adolescência é bastante
compatível com a ascensão da cultura do
consumo e do liberal ismo, também so-
lidários do ideal máximo de liberdade indi-
vidual (Coutinho, 2002). Trata-se da
“teenagerização da cultura ocidental”, tal
como também discute Kehl (1998), o que leva
outros autores a supor ainda um fim da
adolescência como tal (Reymond, 2000).
Adolescência:
entre o ideal e o sintoma
Tendo em vista a teoria freudiana do soci-
al e a importância atribuída ao ideal na sus-
tentação do laço social através das
identificações (Freud [1921]1976), somos in-
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citados a levantar as seguintes questões: o
que o ideal cultural da adolescência, que pre-
sentifica a prevalência do ideal da liberdade
na cultura contemporânea, pode nos reve-
lar a respeito do laço social contemporâneo?
Não seria este ideal um “ideal-sintoma”,
que revela justamente os impasses relativos
à cultura ocidental contemporânea?
O ideal cultural da adolescência nos faz
pensar, efetivamente, num sintoma social
típico da contemporaneidade, articulado à
pulverização das referências simbólicas a
serem transmitidas e compartilhadas. Numa
cultura que exalta a liberdade individual a
qualquer custo, o lugar dos ideais sociais
fica muitas vezes esvaziado e resta pouco a
ser compartilhado.
Por outro lado, se estamos supondo, an-
corados na trilha deixada por Freud
([1909]1976; [1914]1974; [1921]1976), que a sa-
ída da infância impõe ao sujeito um traba-
lho intensivo de elaboração do laço social a
partir das referências simbólicas transmiti-
das pela cultura e representadas pelos
ideais, podemos observar que o adolescen-
te é particularmente afetado pelos impasses
relativos a essa transmissão. Considera-
mos, então, que o ideal cultural da adoles-
cência nada mais é do que um sintoma
social que diz respeito aos impasses na
transmissão e na elaboração dos ideais em
nossa cultura, impasse esse que afeta par-
ticularmente os adolescentes no mundo
contemporâneo (Coutinho, 2002).
Tais problemas ligados à questão do laço so-
cial e à transmissão na sociedade contem-
porânea talvez expliquem o crescente
interesse teórico pela questão da filiação,
convocando psicanalistas e antropólogos
para um debate interdisciplinar. Trabalhan-
do na tensão entre esses dois saberes
Cadoret (1993), nos ajuda a reunir mais ele-
mentos para sustentar nossas hipóteses re-
lativas ao sintoma social contemporâneo e
suas implicações para o sujeito adolescen-
te. Como observa Cadoret:
O modelo tradicional de uma iniciação linear
não está mais em voga nos dias de hoje. Não
se trata de se deslocar em bloco ao longo de
um cenário pré-estabelecido, para passar de
um lugar a um outro. Hoje em dia trata-se de
ocupar e desocupar todos os lugares, de expe-
rimentar todas as posições, de passar inces-
santemente do geral ao particular, sem
possibilidade de saber quais serão as conse-
qüências nem quando o jogo se interromperá.
O período adolescente é justamente uma en-
trada na incerteza (....) a incerteza de toda sub-
jetivação. (ibid., 1993, p. 160)1
Partindo dessa argumentação, a apropria-
ção do laço social por parte dos adolescen-
tes se complica bastante no mundo
contemporâneo, na medida que a socieda-
de ocidental deixa a encargo de cada um a
tarefa de elaborar sua própria filiação. As-
sim, como também observa Cadoret, na cul-
tura contemporânea, o adolescente deixa
de ser um porta-voz dos anseios sociais,
1> “Le modèle traditionnel d’une initiation linéaire n’est plus de mise aujourd’hui: Il ne s’agit plus de se
déplacer en bloc au fil d’un scénario pré-établi, pour passer d’une place à une autre. Aujourd’hui, il s’agit
de prendre et de quitter toutes les places, d’essayer toutes les positions, de passer sans cesse du géneral
au particulier, sans possibilité de savoir comment se fera la retombée ni quand le jeu s’arretera. La période
adolescent est bien une entrée dans l’incertitude (...) l’incertitude de toute subjetivation”. (ibid.)
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como já foi em outros momentos da história,
e passa a ser um “porta-sintoma” (ibid.,
1993, p. 161) dos impasses específicos da
nossa sociedade, que não oferece a ele
nada além de laços sociais frágeis e tran-
sitórios. Nesse sentido, os adolescentes
experimentam de maneira radical o desam-
paro decorrente da crise cultural à qual es-
tão submetidos todos os sujeitos no mundo
atual.
Rassial (2000) também tenta pensar sobre
a maneira pela qual os adolescentes são
afetados pelo sintoma social, supondo que o
declínio da função paterna, trabalhado aqui
sobretudo enquanto pulverização do simbó-
lico e dos ideais sociais, torna particular-
mente difícil a operação adolescente, e, ao
mesmo tempo, exige que a mesma comece a
se fazer cada vez mais precocemente.
De fato, o declínio da função paterna, confir-
mado no laço social, torna particularmente di-
fícil a efetivação da operação adolescente, ao
mesmo tempo em que impõe a sua necessidade
cada vez mais precocemente. Assim, a clínica
do adolescente nos informa imediatamente
sobre a clínica do sujeito moderno (...). É à
adolescência que vai se validar a aptidão do
sujeito a se inventar novos nomes-do-pai (por
exemplo, a profissão que o nomeia), ou, ao
contrário a se aniquilar diante da injunção de
responder a isso” (ibid., 2000, p. 90. Tradução
original)2
Assim, como podemos de fato constatar na
clínica com adolescentes, a pulverização do
simbólico na sociedade contemporânea
complexifica bastante a apropriação do laço
social pelo adolescente, seja a partir do pai
como referência interna à família, seja a
partir de outras figuras de referência sim-
bólica no plano da cultura. Sem pontos de
ancoragem evidentes para o ideal do eu,
que propiciem novas identificações, torna-
se mais difícil para o adolescente fixar para
si próprio um ideal que lhe sirva de referên-
cia para encontrar possíveis meios de es-
coamento libidinal. Isso pode ser observado,
por exemplo, no que diz respeito à identi-
dade profissional, cada vez mais complexa
e incerta no mundo contemporâneo, ou
ainda em relação às identificações de gêne-
ro, que se tornam igualmente complexas e
nebulosas com a dissolução das fronteiras
entre o masculino e o feminino no social.
Não se trata aqui de um discurso saudosis-
ta ou retrógrado, que propõe o resgate de
ideais hegemônicos, ideais esses que, sabe-
mos, já foram suporte para muitas formas
de opressão e tirania. Cabe, entretanto,
apontar as particularidades de nosso mo-
mento histórico na construção da subjetivi-
dade, com seus efeitos tão constrangedores
quanto promissores.
Portanto, ser adolescente hoje significa ter
que enfrentar os impasses relativos ao laço
social contemporâneo, diante da pulveriza-
ção das referências identificatórias atrela-
da ao enfraquecimento dos grandes ideais.
Assim, tomando o adolescente como o sujei-
2> En effect, le déclin de la fonction paternelle, confirmé dans le lien social, rend particuliérement difficile
l´effectuation de l´opération adolescente, alors même qu´elle en posela nécessité de plus en plus
précocement. Ainsi, la clinique de l´adolescent nous informe immédiatement sur la clinique du sujet
modern(...) C’ est à l’adolescence que va s’ évaluer l’aptitude du sujet à s’inventer de nouveaux noms du
pére (par exemple la profession qui lui nomme), ou au contraire à s´effondrer devant l’injonction d’en
répondre.
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to contemporâneo por excelência, talvez
possamos melhor apreender os impasses
que hoje se colocam à nossa sociedade e aos
sujeitos que nela se constituem. Se a adoles-
cência expressa claramente sintoma social
contemporâneo, os adolescentes experi-
mentam de forma paradigmática o mal-es-
tar decorrente de uma certa errância
vivida por todo sujeito no mundo de hoje.
Podemos dizer, então, que a adolescência
está no centro dos impasses relativos ao
laço social hoje, uma vez que ela ao mesmo
tempo revela e é afetada pelo sintoma so-
cial contemporâneo. Sendo assim, não é di-
fícil imaginar que, em nossa sociedade, a
“passagem adolescente” (Rassial, 1997) com-
plica-se ou simplesmente não se completa
jamais. Vejamos porém de que forma os ado-
lescentes podem tentar superar esses im-
passes, caminhando na direção de uma
possível passagem e atravessamento da
adolescência.
Adolescência:
dos impasses à passagem
A adolescência ainda hoje é freqüentemen-
te entendida como um momento de
desajuste e rebeldia frente aos valores ins-
tituídos, o que, obviamente, está em sinto-
nia com o ideal cultural que ela representa
e veicula. Devemos notar, porém, que se
trata de uma aparente rebeldia, a qual, no
entanto, não faz mais do que reproduzir a
lógica da sociedade de consumo vigente, re-
gida pela lógica do prazer individual absolu-
to e da satisfação imediata, onde não há
lugar para a castração ou para a falta. Este
é o caso das condutas delinqüentes, indivi-
duais ou coletivas, das toxicomanias, das
condutas de risco em geral e de determina-
dos tipos de bandos de adolescentes
(Melman, 1997).
Mas será que o caso dos bandos delinqüen-
tes pode ser generalizado a todo tipo de ex-
periência de grupo na adolescência? Como
observam os sociólogos e antropólogos que
se ocupam particularmente dos jovens, nas
metrópoles contemporâneas, predominam
os grupos espontâneos, na maioria das ve-
zes sem líder e sem leis muito definidas
(Fize, 1993), e não mais exclusivamente os
bandos delinqüentes ou as galeras que se
caracterizam por atos nitidamente anti-so-
ciais nos anos 80 (Dubet, 1987). A caracte-
rística mais marcante dos grupos de
adolescentes contemporâneos é o fato de
se constituírem em torno de um laço frater-
no socializante, seja para lutar contra o té-
dio cotidiano, seja para expressar um
determinado ideário, sendo frequentemen-
te vinculados a determinadas atividades
culturais. Esses adolescentes reúnem-se
com o objetivo de praticar alguma atividade
esportiva específica, ou para ouvir um de-
terminado tipo de música, ambas ligadas a
certas práticas e códigos vestimentares pró-
prios ao grupo.
Nesse sentido, pensamos que os grupos
espontâneos formados pelos adolescentes,
não podem ser tomados sempre como sim-
ples reproduções do sintoma social, seja
no sentido de perpetuar a errância do su-
jeito, seja no que diz respeito ao tampo-
namento da falta que é alimentado pela
cultura, mas também podem expressar
uma tentativa coletiva de elaborar os im-
passes relativos ao laço social contempo-
râneo. Nessa perspectiva, certas formações
grupais adolescentes podem ser pensadas
como tentativas coletivas de fazer valer
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um ideal coletivo, e não apenas expressam
a falência de ideais.
Algumas considerações a respeito do papel
desempenhado pela figura do irmão no psi-
quismo nos ajudam a pensar melhor sobre
a função dos grupos na elaboração do laço
social pelos adolescentes. Segundo Assoun,
a relação fraternal proporciona o encontro
do edípico com o narcísico, que possibilita
uma “socialização do narcisismo” (Assoun,
1998, p. 10), cujo protótipo seria a supera-
ção da rivalidade especular e o desenvolvi-
mento da relação de amor ao irmão,
atualizando-se a elaboração edípica no ho-
rizonte da fratria. Partindo de um ponto de
vista semelhante, Marcelli (1993) observa
que, os laços fraternais que sustentam um
grupo de adolescentes, podem servir tanto
a uma reelaboração do complexo edípico
quanto ao aprisionamento na neurose. As-
sim, a identificação a uma ideologia de gru-
po tanto pode, em situações favoráveis,
ajudar o adolescente a se desligar do laço
edipiano, ou, em situações patológicas,
apertar esse laço.
Dito isso, talvez possamos pensar as expe-
riências de grupo de adolescentes como ex-
periências fraternais, sustentadas em
grande parte pelos laços horizontais entre
os seus membros – que muitas vezes se
chamam efetivamente de irmãos; que po-
dem, em alguns casos, e para alguns sujei-
tos, viabilizar a elaboração da reedição
edípica e narcísica própria ao momento. De
fato, as relações fraternais, como já cons-
ta em Freud ([1913]1974), são a condição para
a instauração da Lei que sustenta o laço so-
cial, ou melhor, para que se efetue a passa-
gem da Lei ao regulamento (Assoun, 1998,
p. 83). Como observa Kehl (2000), a adoles-
cência é o período por excelência das gran-
des formações fraternas.
Nem só os adolescentes constituem fratrias,
mas penso que a melhor representação da
fratria é uma turma adolescente: lugar de pas-
sagem, de contestação, de simbolização da lei,
e legitimação de experiências de liberdade. Ao
testar e contestar a autoridade de pais reais,
a fratria produz a orfandade simbólica dos
seus membros ao mesmo tempo em que lhes
fornece algum amparo, alguma pertinência ex-
trafamiliar. Até que o próprio trato com a li-
berdade possa conduzir os sujeitos, marcados
pelas identificações fraternas, para outros cam-
pos de experiência, fora da fratria. (ibid., p. 46)
Assim, a fratria funciona para o adolescen-
te como garantia de reconhecimento dos
traços identificatórios, dos quais o sujeito
que sai da infância não se sente assegura-
do, e como campo de novas identificações
exogâmicas. As experiências na fratria vi-
sam testar e reforçar a identificação primá-
ria que está na base dos ideais, destacando
a Lei que regula as relações em sociedade
da autoridade encarnada pelo pai biológico
ou seu substituto (ibid.).
Enfim, o laço fraternal, que está na raiz de
todo laço social, parece ser claramente re-
afirmado em inúmeras formações grupais
constituídas pelos adolescentes nas grandes
metrópoles contemporâneas, seja através
dos poemas em forma de rap, seja sob a
forma de mensagens gráficas pixadas sobre
os muros, ou simplesmente por diversas ou-
tras experiências cotidianas compartilha-
das. Dessa forma, podemos supor que, na
fratria, os adolescentes podem contribuir
para uma possível renovação e reafirmação
do laço social, ainda que em pequenos ni-
chos, o que transcende às questões tipica-
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mente adolescentes. Assim, podemos supor
que os adolescentes, em suas fratrias, po-
dem assumir diversas posições frente ao
sintoma social, ou seja, tanto podem perpe-
tuar o encobrimento da castração propa-gado pela cultura através de laços
totalitários, quanto podem buscar parceiros
para reafirmar e reinventar referências
simbólicas mais satisfatórias. Nesse caso,
talvez possamos arriscar dizer que, para
além do sintoma social, o ideal cultural da
adolescência pode ter um destino bem me-
nos degradante, o que nos permite também
atribuir algo de positivo ao desmoronamen-
to dos grandes ideais modernos, que até
podiam nos servir de referências, mas, mui-
tas vezes, também favoreciam a opressão e
o aprisionamento.
Referências
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l’Ancien Régime. Paris: Editions du Seuil, 1973.
ASSOUN, P. (1998). Leçons Psychanalytiques sur
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Paris: Anthropos, 1998.
CADORET, M. (1993). Appropriation du lien social
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à la contre-structure anomique. Cliniques
Mediterranéennes, n. 39/40, 1993.
CALLIGARIS, C. (2000). A adolescência. São Paulo:
Publifolha, 2000.
COUTINHO, L. G. (2002). Ilusão e errância: adoles-
cência e laço social contemporâneo na interface
entre a psicanálise e as ciências sociais. Tese
de doutorado. Curso de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Ca-
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Orientadora: Claudia Amorim Garcia.
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Artigo recebido em outubro de 2004
Aprovado para publicação em janeiro de 2005
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