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>16 an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > Luciana Gageiro Coutinho A adolescência na contemporaneidade: ideal cultural ou sintoma social* ar tig os > p. 13 -19 Partindo da construção histórica do conceito de adolescência no Ocidente, mostramos que a consolidação da adolescência enquanto um ideal cultural articula- se ao hiper-individualismo contemporâneo, marcado por um ideal de liberdade individual extrema, que ameaça as bases sobre as quais se sustenta o laço social. Dito isso, supomos que o ideal cultural da adolescência nada mais é do que a expressão de um sintoma social relativo a um impasse na transmissão da Lei sob a qual se sustenta a sociedade, diante da pulverização dos grandes ideais sociais que dão consistência ao laço social, o que, por sua vez, afeta particularmente os sujeitos adolescentes. Enfim, refletimos sobre as formações fraternas na adolescência como uma tentativa fazer face a este impasse, através da reafirmação e validação da Lei nesses pequenos grupos. > Palavras-chave: ????????????????????????? >Key words: *> Este trabalho é parte integrante da tese de doutorado Ilusão e Errância: Adolescência e Laço Social Con- temporâneo na Interface entre a Psicanálise e as Ciências Sociais, defendida em fevereiro de 2002 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio, com auxílio financeiro da Capes e com bolsa-sanduíche do Cnpq em Paris 7. O artigo deriva, mais especificamente, de um trabalho apresentado originalmente no colóquio Adolescência e Construção de Fronteiras, APPOA /UFRGS, Porto Alegre, agosto de 2002. >17 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 ar tig os Introdução O conceito de adolescência enquanto um processo relativo a um período particular na vida de um indivíduo, situado entre a infân- cia e a idade adulta, tem uma origem bas- tante recente na história social do Ocidente, e seu sentido atual só foi defini- tivamente consolidado no final do século XIX (Ariès, 1973). Segundo o dicionário etimoló- gico Larousse (Pechon, 1964), o termo ado- lescência vem do latim adulescens ou adolescens, particípio passado do verbo adolescere, que significa crescer. Entretan- to, nas línguas derivadas do Latim, o termo apresentou durante um longo tempo um sentido sobretudo depreciativo e satírico, sendo somente por volta de 1850 que a pa- lavra adolescência entrou para os dicioná- rios e adquiriu um sentido mais próximo ao que tem atualmente. Assim, a adolescência é um conceito construído historicamente na Modernidade, que adquire vários desdobra- mentos até o momento atual. No mundo contemporâneo, a adolescência torna-se um ideal cultural, que todos dese- jam alcançar e nele permanecer eterna- mente, como apresenta Calligaris (2000), de modo que já se discute até mesmo a hipóte- se relativa ao fim da adolescência atrelada a uma faixa etária específica da vida. Par- tindo da hipótese de Calligaris, levantamos a seguinte questão: de que forma o ideal cul- tural da adolescência poderia nos ajudar a pensar a respeito de nossa cultura e da ma- neira pela qual se constitui o laço social no mundo contemporâneo? Para pensar sobre essa questão, retomare- mos brevemente a construção social do conceito de adolescência, para em seguida discutirmos a hipótese do ideal da adoles- cência como um fenômeno revelador do sintoma social contemporâneo. Em seguida, analisaremos de que forma esse ideal afe- ta os sujeitos adolescentes em nossa cultu- ra, e tentaremos pensar sobre alguns dos possíveis modos encontrados por eles para lidar com essa situação ao inventar novos meios de elaboração do laço social junto aos seus pares. Adolescência: uma invenção moderna Considerando a construção social e históri- ca do conceito de adolescência, podemos di- zer que a adolescência é fruto de um enigma relativo à passagem da infância para a vida adulta na sociedade ocidental moderna. Os adolescentes são obrigados a suportar um tempo de espera, de adiamen- to da entrada no mundo público, justamen- te porque não há um lugar predeterminado a ser ocupado por cada indivíduo na socie- dade, tendo em vista a complexificação do processo de formação profissional, o declí- nio da ética do trabalho e da produção, bem como dos ideais ligados ao casamento e à família. Portanto, o que ocorre com a ado- lescência é justamente o oposto daquilo que outras culturas ritualizam coletivamente através dos rituais iniciáticos (Calligaris, 2000), nos quais o jovem deve passar por certas provas e ensinamentos até que pos- sa adquirir o estatuto de adulto, definido em função de alguma atividade valorizada e predeterminada pela sociedade. O conceito de adolescência surge na cultu- ra ocidental no contexto da consolidação do individualismo – cujo marco histórico funda- mental é a Revolução Francesa – articula- do à constituição dos limites entre as >18 an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > ar tig os esferas pública e privada da vida social. Nesse sentido, pensamos que só é válido falar em adolescência se nos referimos a um contexto sociocultural individualista, onde a cada indivíduo é delegada a respon- sabilidade de administrar seu próprio des- tino, encontrando seu lugar no social da maneira que lhe for preferível ou possível (Coutinho, 2002). Entretanto, se o fenômeno da adolescência irrompe bem antes da virada do século XX, o que pode ser constatado através dos per- sonagens românticos cujos dramas privados evocam muitas das “questões adolescentes” diante de um novo encontro com o Outro da cultura, é somente a partir da década de 60 que o adolescente ganha a cena definitiva- mente. Desde os movimentos libertários propriamente ditos, cujo protótipo é a con- tracultura americana, a difusão do rock’and’roll, o advento da pílula, até o sur- gimento da calça jeans; tudo isso contribui para uma verdadeira revolução nos modos e costumes que regulam as trocas entre as gerações, anunciando profundas alterações no laço social e nos ideais que o sustentam. Nesse novo contexto cultural, a adolescên- cia ganha um lugar de destaque, apresen- tando-se como um conceito peculiar e específico de uma cultura em que a liberda- de e a autonomia tornaram-se os valores hegemônicos. A respeito disso, como obser- va Calligaris, a adolescência nada mais é do que ... um mito, inventado no começo do século XX, que vingou sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. A adolescência é o prisma pelo qual os adultos olham os adolescentes e pelo qual os próprios adolescentes se contemplam. Ela é uma das formações culturais mais pode- rosas de nossa época. Objeto de inveja e de medo, ela dá forma aos sonhos de liberdade ou de evasão dos adultos e, ao mesmo tempo, a seus pesadelos de violência e desordem (Calligaris, 2000, p. 9) Assim, o surgimento da adolescência articu- la-se ao ideal de liberdade presente de for- ma cada vez mais dominante na cultura ocidental desde a Modernidade, de modo que Calligaris é levado a supor que o século XX faz da própria adolescência um ideal cul- tural (Calligaris, 2000), quando todos dese- jam ocupar essa posição eternamente. A consolidação da adolescência como um ide- al cultural ancora-se basicamente no hiper- individualismo disseminado na cultura ocidental a partir dos anos 60/70, quando o ideal social da liberdadetorna-se um ele- mento central em torno do qual se organi- za o laço social, em detrimento dos outros ideais modernos relativos à fraternidade e igualdade que entraram em decadência, como já anunciava Simmel (1971[1957]) em meados do século passado. Portanto, a idealização da adolescência é bastante compatível com a ascensão da cultura do consumo e do liberal ismo, também so- lidários do ideal máximo de liberdade indi- vidual (Coutinho, 2002). Trata-se da “teenagerização da cultura ocidental”, tal como também discute Kehl (1998), o que leva outros autores a supor ainda um fim da adolescência como tal (Reymond, 2000). Adolescência: entre o ideal e o sintoma Tendo em vista a teoria freudiana do soci- al e a importância atribuída ao ideal na sus- tentação do laço social através das identificações (Freud [1921]1976), somos in- >19 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 ar tig os citados a levantar as seguintes questões: o que o ideal cultural da adolescência, que pre- sentifica a prevalência do ideal da liberdade na cultura contemporânea, pode nos reve- lar a respeito do laço social contemporâneo? Não seria este ideal um “ideal-sintoma”, que revela justamente os impasses relativos à cultura ocidental contemporânea? O ideal cultural da adolescência nos faz pensar, efetivamente, num sintoma social típico da contemporaneidade, articulado à pulverização das referências simbólicas a serem transmitidas e compartilhadas. Numa cultura que exalta a liberdade individual a qualquer custo, o lugar dos ideais sociais fica muitas vezes esvaziado e resta pouco a ser compartilhado. Por outro lado, se estamos supondo, an- corados na trilha deixada por Freud ([1909]1976; [1914]1974; [1921]1976), que a sa- ída da infância impõe ao sujeito um traba- lho intensivo de elaboração do laço social a partir das referências simbólicas transmiti- das pela cultura e representadas pelos ideais, podemos observar que o adolescen- te é particularmente afetado pelos impasses relativos a essa transmissão. Considera- mos, então, que o ideal cultural da adoles- cência nada mais é do que um sintoma social que diz respeito aos impasses na transmissão e na elaboração dos ideais em nossa cultura, impasse esse que afeta par- ticularmente os adolescentes no mundo contemporâneo (Coutinho, 2002). Tais problemas ligados à questão do laço so- cial e à transmissão na sociedade contem- porânea talvez expliquem o crescente interesse teórico pela questão da filiação, convocando psicanalistas e antropólogos para um debate interdisciplinar. Trabalhan- do na tensão entre esses dois saberes Cadoret (1993), nos ajuda a reunir mais ele- mentos para sustentar nossas hipóteses re- lativas ao sintoma social contemporâneo e suas implicações para o sujeito adolescen- te. Como observa Cadoret: O modelo tradicional de uma iniciação linear não está mais em voga nos dias de hoje. Não se trata de se deslocar em bloco ao longo de um cenário pré-estabelecido, para passar de um lugar a um outro. Hoje em dia trata-se de ocupar e desocupar todos os lugares, de expe- rimentar todas as posições, de passar inces- santemente do geral ao particular, sem possibilidade de saber quais serão as conse- qüências nem quando o jogo se interromperá. O período adolescente é justamente uma en- trada na incerteza (....) a incerteza de toda sub- jetivação. (ibid., 1993, p. 160)1 Partindo dessa argumentação, a apropria- ção do laço social por parte dos adolescen- tes se complica bastante no mundo contemporâneo, na medida que a socieda- de ocidental deixa a encargo de cada um a tarefa de elaborar sua própria filiação. As- sim, como também observa Cadoret, na cul- tura contemporânea, o adolescente deixa de ser um porta-voz dos anseios sociais, 1> “Le modèle traditionnel d’une initiation linéaire n’est plus de mise aujourd’hui: Il ne s’agit plus de se déplacer en bloc au fil d’un scénario pré-établi, pour passer d’une place à une autre. Aujourd’hui, il s’agit de prendre et de quitter toutes les places, d’essayer toutes les positions, de passer sans cesse du géneral au particulier, sans possibilité de savoir comment se fera la retombée ni quand le jeu s’arretera. La période adolescent est bien une entrée dans l’incertitude (...) l’incertitude de toute subjetivation”. (ibid.) >20 an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > ar tig os como já foi em outros momentos da história, e passa a ser um “porta-sintoma” (ibid., 1993, p. 161) dos impasses específicos da nossa sociedade, que não oferece a ele nada além de laços sociais frágeis e tran- sitórios. Nesse sentido, os adolescentes experimentam de maneira radical o desam- paro decorrente da crise cultural à qual es- tão submetidos todos os sujeitos no mundo atual. Rassial (2000) também tenta pensar sobre a maneira pela qual os adolescentes são afetados pelo sintoma social, supondo que o declínio da função paterna, trabalhado aqui sobretudo enquanto pulverização do simbó- lico e dos ideais sociais, torna particular- mente difícil a operação adolescente, e, ao mesmo tempo, exige que a mesma comece a se fazer cada vez mais precocemente. De fato, o declínio da função paterna, confir- mado no laço social, torna particularmente di- fícil a efetivação da operação adolescente, ao mesmo tempo em que impõe a sua necessidade cada vez mais precocemente. Assim, a clínica do adolescente nos informa imediatamente sobre a clínica do sujeito moderno (...). É à adolescência que vai se validar a aptidão do sujeito a se inventar novos nomes-do-pai (por exemplo, a profissão que o nomeia), ou, ao contrário a se aniquilar diante da injunção de responder a isso” (ibid., 2000, p. 90. Tradução original)2 Assim, como podemos de fato constatar na clínica com adolescentes, a pulverização do simbólico na sociedade contemporânea complexifica bastante a apropriação do laço social pelo adolescente, seja a partir do pai como referência interna à família, seja a partir de outras figuras de referência sim- bólica no plano da cultura. Sem pontos de ancoragem evidentes para o ideal do eu, que propiciem novas identificações, torna- se mais difícil para o adolescente fixar para si próprio um ideal que lhe sirva de referên- cia para encontrar possíveis meios de es- coamento libidinal. Isso pode ser observado, por exemplo, no que diz respeito à identi- dade profissional, cada vez mais complexa e incerta no mundo contemporâneo, ou ainda em relação às identificações de gêne- ro, que se tornam igualmente complexas e nebulosas com a dissolução das fronteiras entre o masculino e o feminino no social. Não se trata aqui de um discurso saudosis- ta ou retrógrado, que propõe o resgate de ideais hegemônicos, ideais esses que, sabe- mos, já foram suporte para muitas formas de opressão e tirania. Cabe, entretanto, apontar as particularidades de nosso mo- mento histórico na construção da subjetivi- dade, com seus efeitos tão constrangedores quanto promissores. Portanto, ser adolescente hoje significa ter que enfrentar os impasses relativos ao laço social contemporâneo, diante da pulveriza- ção das referências identificatórias atrela- da ao enfraquecimento dos grandes ideais. Assim, tomando o adolescente como o sujei- 2> En effect, le déclin de la fonction paternelle, confirmé dans le lien social, rend particuliérement difficile l´effectuation de l´opération adolescente, alors même qu´elle en posela nécessité de plus en plus précocement. Ainsi, la clinique de l´adolescent nous informe immédiatement sur la clinique du sujet modern(...) C’ est à l’adolescence que va s’ évaluer l’aptitude du sujet à s’inventer de nouveaux noms du pére (par exemple la profession qui lui nomme), ou au contraire à s´effondrer devant l’injonction d’en répondre. >21 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 ar tig os to contemporâneo por excelência, talvez possamos melhor apreender os impasses que hoje se colocam à nossa sociedade e aos sujeitos que nela se constituem. Se a adoles- cência expressa claramente sintoma social contemporâneo, os adolescentes experi- mentam de forma paradigmática o mal-es- tar decorrente de uma certa errância vivida por todo sujeito no mundo de hoje. Podemos dizer, então, que a adolescência está no centro dos impasses relativos ao laço social hoje, uma vez que ela ao mesmo tempo revela e é afetada pelo sintoma so- cial contemporâneo. Sendo assim, não é di- fícil imaginar que, em nossa sociedade, a “passagem adolescente” (Rassial, 1997) com- plica-se ou simplesmente não se completa jamais. Vejamos porém de que forma os ado- lescentes podem tentar superar esses im- passes, caminhando na direção de uma possível passagem e atravessamento da adolescência. Adolescência: dos impasses à passagem A adolescência ainda hoje é freqüentemen- te entendida como um momento de desajuste e rebeldia frente aos valores ins- tituídos, o que, obviamente, está em sinto- nia com o ideal cultural que ela representa e veicula. Devemos notar, porém, que se trata de uma aparente rebeldia, a qual, no entanto, não faz mais do que reproduzir a lógica da sociedade de consumo vigente, re- gida pela lógica do prazer individual absolu- to e da satisfação imediata, onde não há lugar para a castração ou para a falta. Este é o caso das condutas delinqüentes, indivi- duais ou coletivas, das toxicomanias, das condutas de risco em geral e de determina- dos tipos de bandos de adolescentes (Melman, 1997). Mas será que o caso dos bandos delinqüen- tes pode ser generalizado a todo tipo de ex- periência de grupo na adolescência? Como observam os sociólogos e antropólogos que se ocupam particularmente dos jovens, nas metrópoles contemporâneas, predominam os grupos espontâneos, na maioria das ve- zes sem líder e sem leis muito definidas (Fize, 1993), e não mais exclusivamente os bandos delinqüentes ou as galeras que se caracterizam por atos nitidamente anti-so- ciais nos anos 80 (Dubet, 1987). A caracte- rística mais marcante dos grupos de adolescentes contemporâneos é o fato de se constituírem em torno de um laço frater- no socializante, seja para lutar contra o té- dio cotidiano, seja para expressar um determinado ideário, sendo frequentemen- te vinculados a determinadas atividades culturais. Esses adolescentes reúnem-se com o objetivo de praticar alguma atividade esportiva específica, ou para ouvir um de- terminado tipo de música, ambas ligadas a certas práticas e códigos vestimentares pró- prios ao grupo. Nesse sentido, pensamos que os grupos espontâneos formados pelos adolescentes, não podem ser tomados sempre como sim- ples reproduções do sintoma social, seja no sentido de perpetuar a errância do su- jeito, seja no que diz respeito ao tampo- namento da falta que é alimentado pela cultura, mas também podem expressar uma tentativa coletiva de elaborar os im- passes relativos ao laço social contempo- râneo. Nessa perspectiva, certas formações grupais adolescentes podem ser pensadas como tentativas coletivas de fazer valer >22 an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > ar tig os um ideal coletivo, e não apenas expressam a falência de ideais. Algumas considerações a respeito do papel desempenhado pela figura do irmão no psi- quismo nos ajudam a pensar melhor sobre a função dos grupos na elaboração do laço social pelos adolescentes. Segundo Assoun, a relação fraternal proporciona o encontro do edípico com o narcísico, que possibilita uma “socialização do narcisismo” (Assoun, 1998, p. 10), cujo protótipo seria a supera- ção da rivalidade especular e o desenvolvi- mento da relação de amor ao irmão, atualizando-se a elaboração edípica no ho- rizonte da fratria. Partindo de um ponto de vista semelhante, Marcelli (1993) observa que, os laços fraternais que sustentam um grupo de adolescentes, podem servir tanto a uma reelaboração do complexo edípico quanto ao aprisionamento na neurose. As- sim, a identificação a uma ideologia de gru- po tanto pode, em situações favoráveis, ajudar o adolescente a se desligar do laço edipiano, ou, em situações patológicas, apertar esse laço. Dito isso, talvez possamos pensar as expe- riências de grupo de adolescentes como ex- periências fraternais, sustentadas em grande parte pelos laços horizontais entre os seus membros – que muitas vezes se chamam efetivamente de irmãos; que po- dem, em alguns casos, e para alguns sujei- tos, viabilizar a elaboração da reedição edípica e narcísica própria ao momento. De fato, as relações fraternais, como já cons- ta em Freud ([1913]1974), são a condição para a instauração da Lei que sustenta o laço so- cial, ou melhor, para que se efetue a passa- gem da Lei ao regulamento (Assoun, 1998, p. 83). Como observa Kehl (2000), a adoles- cência é o período por excelência das gran- des formações fraternas. Nem só os adolescentes constituem fratrias, mas penso que a melhor representação da fratria é uma turma adolescente: lugar de pas- sagem, de contestação, de simbolização da lei, e legitimação de experiências de liberdade. Ao testar e contestar a autoridade de pais reais, a fratria produz a orfandade simbólica dos seus membros ao mesmo tempo em que lhes fornece algum amparo, alguma pertinência ex- trafamiliar. Até que o próprio trato com a li- berdade possa conduzir os sujeitos, marcados pelas identificações fraternas, para outros cam- pos de experiência, fora da fratria. (ibid., p. 46) Assim, a fratria funciona para o adolescen- te como garantia de reconhecimento dos traços identificatórios, dos quais o sujeito que sai da infância não se sente assegura- do, e como campo de novas identificações exogâmicas. As experiências na fratria vi- sam testar e reforçar a identificação primá- ria que está na base dos ideais, destacando a Lei que regula as relações em sociedade da autoridade encarnada pelo pai biológico ou seu substituto (ibid.). Enfim, o laço fraternal, que está na raiz de todo laço social, parece ser claramente re- afirmado em inúmeras formações grupais constituídas pelos adolescentes nas grandes metrópoles contemporâneas, seja através dos poemas em forma de rap, seja sob a forma de mensagens gráficas pixadas sobre os muros, ou simplesmente por diversas ou- tras experiências cotidianas compartilha- das. Dessa forma, podemos supor que, na fratria, os adolescentes podem contribuir para uma possível renovação e reafirmação do laço social, ainda que em pequenos ni- chos, o que transcende às questões tipica- >23 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > an o XV II, n. 18 1, m ar ço /2 00 5 mente adolescentes. Assim, podemos supor que os adolescentes, em suas fratrias, po- dem assumir diversas posições frente ao sintoma social, ou seja, tanto podem perpe- tuar o encobrimento da castração propa-gado pela cultura através de laços totalitários, quanto podem buscar parceiros para reafirmar e reinventar referências simbólicas mais satisfatórias. Nesse caso, talvez possamos arriscar dizer que, para além do sintoma social, o ideal cultural da adolescência pode ter um destino bem me- nos degradante, o que nos permite também atribuir algo de positivo ao desmoronamen- to dos grandes ideais modernos, que até podiam nos servir de referências, mas, mui- tas vezes, também favoreciam a opressão e o aprisionamento. Referências ARIÈS, P. (1973). L’Enfant et la Vie Familiale sous l’Ancien Régime. Paris: Editions du Seuil, 1973. ASSOUN, P. (1998). Leçons Psychanalytiques sur Frères et Soeurs – Tome 1: Le Lien Inconscient. Paris: Anthropos, 1998. CADORET, M. (1993). 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