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Edwin H. Sutherland CRIME DE COLARINHO BRANCO Versão sem cortes Editora Revan Coleção Pensamento Criminológico Edwin H. Sutherland CRIME DE COLARINHO BRANCO Versão sem cortes Tradução, apresentação e notas: Clécio Lemos Auxiliares: Júlia Bragatto e Hélio Peixoto Júnior Editora Revan Direção Prof. Dr. Nilo Batista © 2012 Instituto Carioca de Criminologia Rua Senador Dantas, 75 Cob. 2 – Centro – Rio de Janeiro – RJ Tel: (21) 3970-3383 – criminologia@icc-rio.org.br Produção gráfica e distribuição Editora Revan Av. Paulo de Frontin, 163 CEP: 20260-010 – Rio de Janeiro – RJ tel: (21) 2502 7495 fax: (21) 2273 6873 editor@revan.com.br – www.revan.com.br Projeto de capa Luiz Fernando Gerhardt Revisão Cristina Freixinho Roberto Teixeira Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj S967c Sutherland, Edwin H. Crime de colarinho branco: versão sem cortes / Edwin H. Sutherland; tradução Clécio Lemos. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2015. 416 p. ; 21 cm. Tradução de: Withe collar crime: the uncut version ISBN 9788571065291 1. Corrupção na política. 2. Suborno. 3. Crime do colarinho branco. I. Título. 15-20496 CDU: 343.37 02/03/2015 03/03/2015 Sumário APRESENTAÇÃO / 7 PARTE I – Introdução / 25 Capítulo 1: O problema do crime de colarinho branco / 27 PARTE II – Registros de setenta grandes empresas / 39 Capítulo 2: As estatísticas / 41 Capítulo 3: Histórias de três casos / 57 Capítulo 4: O “crime de colarinho branco” é crime? / 83 Capítulo 5: Restrição de comércio / 109 Capítulo 6: Rebates / 151 Capítulo 7: Patentes, marcas e direitos autorais / 159 Capítulo 8: Propaganda enganosa / 191 Capítulo 9: Violação de direitos trabalhistas / 209 Capítulo 10: Manipulações financeiras / 235 Capítulo 11: Crimes de guerra / 263 Capítulo 12: Diversas violações da lei / 289 6 PARTE III – Empresas prestadoras de serviço de utilidade pública / 297 Capítulo 13: Registros de quinze empresas de energia e luz / 299 PARTE IV – Interpretação / 331 Capítulo 14: Crime de colarinho branco como crime organizado / 333 Capítulo 15: Uma teoria dos crimes de colarinho branco / 351 Capítulo 16: Variações nos crimes empresariais / 377 NOTAS / 387 APRESENTAÇÃO Fui convidado pelo professor Nilo Batista a realizar a tradução do livro White Collar Crime ainda no mês de março de 2012, quando ele e a querida Vera Malaguti Batista esta- vam em Vitória por advento de uma mesa de palestras sobre criminologia que eu estava coordenando na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Nilo foi meu orientador de dissertação no mestrado em Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janei- ro (UERJ), e um convite de tal magnitude, vindo da minha maior referência acadêmica, foi absolutamente irrecusável. Já no final do ano de 2012 a Editora Revan sinalizou a autori- zação para que fosse realizada a tradução, de forma que me pus a encarar o desafio. Dada a complexidade da obra e da tradução, con- videi dois dos meus melhores alunos da disciplina de Cri- minologia para que realizassem o trabalho comigo. Assim foi que eu, Júlia Bragatto e Helio Peixoto Júnior passamos a compartilhar a grande responsabilidade de trazer ao pú- blico brasileiro uma obra tão importante para a história dos pensamentos criminológicos. A tradução foi produzida ao longo dos anos de 2013 e 2014, tendo contado ainda com os auxílios fundamentais de Gabriel Rocha Venturim quanto aos termos de Economia. 8 Ler e traduzir a obra-prima de Sutherland significou também adentrar o mundo do autor. Logo, parece-me im- portante situar historicamente a criatura e o criador, para o bem do próprio entendimento da genuína contribuição que o livro efetivamente realizou. 1. O autor e suas obras Edwin Hardin Sutherland (1883-1950) iniciou seus estudos de graduação com o objetivo de se tornar um histo- riador, sob nítida influência do fato de que seu próprio pai era professor de História. No ano de 1906 decidiu mudar o foco de estudo e conseguiu ingressar no prestigiado curso de Sociologia da Universidade de Chicago. Sua atividade como docente teve o seguinte percur- so: William Jewell College de Missouri (1913-1919), University of Illinois (1919-1926), University of Minnesota (1926-1929), University of Chicago (1930-1935) e Indiana University (1935- 1949), tendo sido também professor visitante em universida- des de outros estados, tais como Kansas e Washington.* O objeto de seus estudos científicos não tinha ini- cialmente ligação com a questão criminal, bastando lembrar que sua tese de doutoramento foi sobre desemprego (Unem- ployment and Public Employment Agencies), finalizada na Universidade de Chicago no ano de 1913. Seu primeiro trabalho sobre sociologia da delinqu- ência chamou-se “Criminologia” (Criminology – 1924), obra escrita a pedido do catedrático E. C. Hayes, quando já estava trabalhando em Illinois. Hayes era o editor-chefe dos livros de sociologia da J. B. Lippincott e foi o principal responsável * Disponível em: <http://www2.asanet.org/governance/suther- land.html>. Acesso em: 27 fev. 2014. (N. do T.) 9 pela mudança do foco de estudo de Sutherland em direção à questão penal.* No verão de 1930, Sutherland teve a experiência de visitar presídios na Europa (principalmente Inglaterra e pe- nínsula escandinávia), o que acabou surtindo efeitos em seu pensamento e resultou em um artigo intitulado “A prisão como um laboratório criminológico” (The Prison as a Crimi- nological Laborary – 1931). A comparação com a realidade dos presídios estadunidenses parece ter assumido grande relevância para seu entendimento político da realidade cri- minal. A obra que reúne suas principais concepções na tentativa de explicar os processos de formação delinquente recebe o nome de “Princípios de Criminologia” (Principles of Criminology), cuja primeira edição é de 1934. Havia ali nitidamente a semente do que seria sua grande teoria. Os rumos de sua pesquisa passaram a se relacionar com a criminalidade dos ricos sobretudo a partir de um estudo biográfico, aparentemente influenciado pelo sucesso do livro The Jack-Roller (1930), escrito por Clifford R. Shaw. Em 1932 a Universidade de Chicago decide pagar US$ 100 mensais, pelo período de três meses, para que Broadway Jones narrasse a Sutherland sua carreira criminosa. Sob o pseudônimo de Chic Conwell, as falas desse homem bem- -vestido, portador da melhor etiqueta de sua sociedade e de oratória eloquente, seriam então a base para que Sutherland escrevesse o livro “O Ladrão Profissional” (The Professional Thief – 1937). Sutherland anuncia seu interesse por uma investiga- ção de maior fôlego sobre crimes das classes poderosas no momento em que assume a cadeira de presidente da Socie- * Ver no site da Florida State University dedicado ao autor. Dis- ponível em: <http://criminology.fsu.edu/ crimtheory/suther- land.html>. Acesso em: 20 fev. 2014. (N. do T.) 10 dade Sociológica Americana (American Sociological Society), entidade máxima que congregava os sociólogos do país.* No momento de sua posse em 1939, o autor profere uma his- tórica palestra perante seus pares sob o título “O criminoso de colarinho branco” (The White Collar Criminal), que seria publicada na forma de artigo no ano seguinte pela revista American Sociological Review com o nome de “Criminalida- de de colarinho branco” (White-collar Criminality**). Foi neste mesmo ano de 1939 que Sutherland lançou a terceira edição do seu livro “Princípios de criminologia”, obra que organiza as bases fundamentais da sua principal premissa científica: Teoria da Associação Diferencial. Os es- tudos sobre a criminalidade dos poderosos produziram forte influência na sua mudança deperspectiva teórica, e desco- brir o desvio criminoso em meio ao colarinho branco forçou uma remodelagem de sua visão geral da delinquência. Finalmente, Sutherland lança para a comunidade científica o que seria seu último livro: “Crime de colarinho branco” (White Collar Crime – 1949). Resultado de 17 anos de pesquisa, o livro congregou dados cuidadosamente reco- lhidos sobre as práticas criminosas das 70 maiores empresas norte-americanas da época. A larga coleta das evidências que deram suporte ao trabalho, tais como a pesquisa de decisões judiciais e administrativas, só foi possível mediante * Tal interesse de Sutherland teve forte influência em Thorstein Veblen, sociólogo que escreveu The Theory of Business En- terprise (A teoria dos negócios comerciais – 1904). Este autor é inclusive citado logo no início do título 4 (Interpretação) do presente livro para estabelecer uma comparação entre empre- sários criminosos e o ladrão clássico. (N. do T.) ** American Sociological Review, Vol. 5, Nº 1 (Feb., 1940), p. 1-12. (N. do T.) 11 a concessão de bolsas no valor de US$ 60,00 mensais pela Universidade de Indiana a alguns alunos da graduação.* Um drama especial deve aqui ser destacado. Nas vés- peras da tão esperada publicação da obra, a Editora Dryden Press convocou o autor e pediu para que a obra omitisse os nomes das empresas investigadas, naturalmente por conta do receio de ações judiciais. O mesmo pedido acaba vindo da Universidade de Indiana, supõe-se pelo medo de que a repercussão da obra pudesse afetar as doações privadas que custeavam a universidade.** Por esse motivo, o autor se vê praticamente forçado a consentir com a censura, e a edição é publicada substituindo os nomes das empresas por números, ou por vezes sim- plesmente suprimindo os nomes das empresas no corpo do texto, retirando alguns parágrafos e excluindo por completo o capítulo 3 (Three Case Histories). Talvez para justificar tal supressão, consta na versão original da obra um breve prefácio do autor indicando su- postamente dois motivos pelos quais os nomes das empre- sas foram ocultados, são eles: 1) a necessidade de se ocultar em trabalhos científicos a identidade de delinquentes vivos; 2) que o objetivo do livro era desenvolver a teoria da con- duta delitiva, e tal intento seria mais bem alcançado sem dirigir atenção de forma acusatória contra as condutas das empresas analisadas.*** * Narro esse fato especialmente para que o leitor não esqueça que grandes obras geralmente possuem direta ligação com in- vestimento econômico em pesquisa dentro das universidades, algo raro na Criminologia brasileira. (N. do T.) ** Ver na introdução da edição norte-americana de 1983, feita por Gilbert Geis e Colin Goff, p. 10. (N. do T.) *** SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crime. Nova York: Dry- den Press, 1949. (N. do T.) 12 Tal censura durou até o ano de 1983, quando a Yale University Press decide quebrar o sigilo e publicar “a versão sem cortes” (the uncut version), sobre a qual recai a presente tradução. A versão completa é dividida em quatro partes: 1) Introdução; 2) Registros de setenta grandes empresas; 3) Em- presas de utilidade pública; 4) Interpretação. Cerca de 75% do livro se concentram na Segunda e Terceira partes, que são justamente os responsáveis por indicar os números con- cretos que comprovam o volume e o estilo da criminalidade de colarinho branco no país. A Quarta parte é uma conclu- são teórica que invoca sua percepção sobre as mudanças de paradigmas às quais a Criminologia teria que se submeter a partir das constatações que ele estava apresentando. Cabe alertar o leitor de que o conceito de “crime de colarinho branco” proposto pelo autor não está exclusiva- mente relacionado a crimes econômicos. A definição por ele apresentada é composta por dois elementos cumulativos: a condição pessoal do agente (deve ser “pessoa de respeita- bilidade e alto status social”) e o caráter do ato criminoso (deve ser praticado “no curso de sua atividade”).* Sutherland faleceu em 1950, no ano posterior à pu- blicação da 1ª edição da presente obra, deixando um claro legado para os criminólogos do porvir. 2. O legado de Sutherland para a Criminologia Segundo os autores da apresentação da versão norte- -americana de 1983, o presente livro trouxe três grandes * Na introdução da edição norte-americana, os autores recordam que Sutherland chegou a indicar num artigo denominado “Cri- me e Negócios” (Crime and Business, 1941) que um homicí- dio praticado por um empresário em certo conflito envolvendo greve em sua empresa também poderia ser considerado crime de colarinho branco (p. 19). (N. do T.) 13 contribuições para o campo criminológico: 1) ajudou a re- finar o conceito de crime de colarinho branco a partir das novas descobertas; 2) atraiu a atenção de estudiosos para investigar essa nova área de pesquisa; 3) trouxe um vigoroso debate sobre as causas da criminalidade, elevando o nível de sofisticação das teorias sobre a conduta criminosa.* Inegavelmente, foi Sutherland quem tornou popular a expressão “crime de colarinho branco”, e isso por si só já pode ser considerado uma contribuição, na medida em que trouxe ao público (pesquisadores ou não) uma percepção que não poderia ser mais ignorada sobre as práticas perpe- tradas pelos poderosos. O autor não indica na obra, nem nos artigos que o precederam o motivo da expressão “colarinho branco”. Todavia, historicamente sabe-se que as indústrias possuíam uma divisão entre os portadores de colarinho azul (trabalha- dores braçais, operários) e os de colarinho branco (trabalha- dores intelectuais, da classe social mais privilegiada). Assim, a linguagem cotidiana passou a relacionar tais cores como representação das duas classes envolvidas. Os estudos sobre crimes de colarinho branco foram os principais responsáveis pela modificação de alguns limi- tes da mais famosa teoria sociológica de Sutherland. Na 4ª edição da obra Princípios de Criminologia** (1947), Edwin Su- therland reformou suas considerações sobre o aprendizado criminoso, dando vazão aos seus famosos nove princípios da Teoria da Associação Diferencial: * Introdução da edição norte-americana de 1983, feita por Gil- bert Geis e Colin Goff, p. 29. (N. do T.) ** A obra atualmente se encontra na 11ª edição, contando com a contribuição também de David F. Luckenbill, publicada pela Editora General Hall. (N. do T.) 14 1. A conduta criminosa se aprende, como qualquer outra atividade. 2. O aprendizado se produz por interação com outras pes- soas em um processo de comunicação. 3. A parte mais importante do aprendizado tem lugar den- tro dos grupos pessoais íntimos; 4. O aprendizado do comportamento criminoso abrange tanto as técnicas para cometer o crime, que às vezes são muito complicadas e outras, muito simples, quanto a direção específica dos motivos, atitudes, impulsos e racionalizações. 5. A direção específica dos motivos e impulsos se aprende de definições favoráveis ou desfavoráveis a elas. 6. Uma pessoa se torna delinquente por efeito de um exces- so de definições favoráveis à violação da lei, que predo- minam sobre as definições desfavoráveis a essa violação. 7. As associações diferenciais podem variar tanto em frequ- ência como em prioridade, duração e intensidade. 8. O processo de aprendizagem do comportamento cri- minoso por meio da associação com pautas criminais e anticriminais compreende os mesmos mecanismos abrangidos por qualquer outra aprendizagem. 9. Se o comportamento criminoso é expressão de necessi- dades e valores gerais, não se explica por estes, posto que o comportamento não criminoso também é expres- são dos mesmos valores e necessidades.* A teoria é altamente impactante na comunidade cri- minológica. Se fosse possível sintetizarsua contribuição, de- veríamos afirmar que o mesmo enfrentou basicamente dois grandes paradigmas das ditas “causas patológicas” da crimi- * SUTHERLAND, Edwin. Principles of criminology. 4th ed. Fila- délfia: Lippincott, 1947. (N. do T.) 15 nalidade: 1) as patologias sociais, e 2) as patologias pessoais (biológica ou psicológica). As descobertas advindas de seus estudos sobre cri- mes de colarinho branco foram o toque final na produção de sua teoria da conduta criminosa, que pretendia explicar os motivos da adesão a todo e qualquer tipo de crime. Por isso, investigar o criminoso de alto status social proporcio- nou um giro necessário nas pesquisas tradicionais, que es- tavam restritas aos crimes praticados por pessoas da classe socioeconômica mais desfavorecida. Uma das primeiras constatações que ele apresenta no livro é que seu estudo sobre a prática criminosa não ficaria limitado às pessoas efetivamente processadas e con- denadas, tal como o senso jurídico exige. Era preciso fugir do perigo que é vincular o estudo do criminoso ao estudo dos selecionados pelo sistema, pois obviamente a prática criminosa existe mesmo quando o agente permanece fora das estatísticas oficiais. Aliás, tal propósito de explorar a cifra oculta é um grande mérito da obra de Sutherland, possibilitando a refle- xão sobre os processos de criminalização. O autor descobre que a criminalidade dos poderosos era tão ou mais frequen- te que a criminalidade dos pobres, produzindo-se em regra de forma contínua e organizada. Organizada a ponto de ter uma série de maneiras de escapar das garras do sistema penal. A pobreza era um dado constante em todas as pes- quisas da gênese criminosa. Mesmo os estudos ecológicos da Escola de Chicago, que já tinham a vantagem de superar as clássicas pesquisas envolvendo os reclusos do sistema penitenciário, ainda sustentavam o fato de que a criminali- dade era bem mais frequente nos cinturões de pobreza das grandes metrópoles. Preservavam, de alguma forma, a ideia de patologia social. 16 A quebra de tais perspectivas só foi possível com uma mudança metodológica. A pesquisa de Sutherland utili- zou também como base de dados os acordos extrajudiciais, as decisões administrativas, os processos extintos sem jul- gamento de mérito, os comunicados internos das empresas, enfim, todas aquelas informações que levavam à existência de práticas criminosas mesmo que não oficialmente declara- das por meio de sentenças definitivas. Logo ele percebeu que havia uma longa estratégia de poder que excluía o colarinho branco da etiqueta penal. A começar pela forma com que são elaboradas as leis, pas- sando pela atuação parcimoniosa das atividades policiais, até chegar à análise diferenciada do poder judiciário. Os dados não podiam levar a outra conclusão senão a de que o sistema como um todo funcionava para tratar de forma completamente distinta o criminoso das altas cifras. O crime da “high-society” não era objeto de censura social e oficial, ainda que sua atuação fosse formalmente criminosa e afe- tasse de forma bem relevante a organização econômica e ética do país. Fugindo dos estudos criminológicos que sempre gra- vitaram em torno de crimes patrimoniais, tráfico de drogas e homicídios, o autor se concentra principalmente em sete tipos de crimes: restrição de comércio, uso de rebate, viola- ção de direitos autorais, propaganda enganosa, violação de direitos trabalhistas, manipulação financeira e violação das leis de guerra. Nenhum desses crimes está relacionado com con- dições econômicas negativas. Muito pelo contrário, tais condutas conduziram as empresas investigadas ao ápice do sucesso no mercado, e foram praticadas por pessoas que não passavam por penúria financeira ou qualquer necessi- dade especial de dinheiro. Era o fim, portanto, da relação etiológica entre crime e pobreza. 17 Mas a pesquisa também afronta o paradigma crimi- nológico da patologia pessoal. Veja-se que todos os crimi- nosos envolvidos representavam o mais alto status pessoal desejado, tidos como figuras de alta performance perante o povo estadunidense. Enfim, não apresentavam traços de inferioridade moral ou déficit biopsicológico. No livro em que Sutherland foi escolhido como um dos 50 principais pensadores da história da Criminologia, ressalta-se que ele se preocupava especialmente com a necessidade de superar as tentativas de explicação da cri- minalidade por meio da patologia nata, tendo escrito dois artigos sobre a questão: “Deficiência mental e crime” (1931) e “As leis do psicopata sexual” (1950). Ambos os trabalhos reforçam o pressuposto sociológico do autor, fixando suas premissas de que a debilidade mental não pode ser o fator determinante das práticas criminosas.* Algumas crenças em torno da patologia pessoal, tí- picas do positivismo criminológico, eram tão presentes na- quela época (quiçá ainda hoje) que o autor chegou mesmo a testar a hipótese de variações entre os tipos de homens de negócios e os tipos de condutas criminosas praticadas pelas empresas. Suas conclusões sobre esse ponto são bem claras: 1) empresas praticavam certos crimes e se abstinham de outras práticas criminosas a variar com o ramo em que atuavam, mesmo quando seus gestores eram exatamente os mesmos; 2) executivos com personalidades distintas acaba- vam praticando os mesmos crimes quando estavam num mesmo ramo empresarial. Conclusão: as variações entre os crimes praticados estavam relacionadas principalmente com a posição que a empresa ocupava na estrutura econômica, e não com os tipos de pessoas que estavam na sua dianteira. * Hayward, Keith; Shadd, Maruna; Mooney, Jayne (org.). Fifty key thinkers in criminology, Nova York: Routledge, 2010, p. 69. (N. do T.) 18 Nenhum homem de negócios é reconhecido como portador de desvio de caráter, seja nato ou adquirido, eis que ocupa posição de alta aceitação social e é valorizado como alguém profundamente capaz no mercado de traba- lho. Todavia, segundo os dados de Sutherland, raros eram aqueles que não praticavam crimes no exercício de suas ati- vidades rotineiras. A demonstração do alto volume de crimes praticados pela classe alta, e o consequente corte no amálgama entre pobreza e gênese criminosa, também repercutiu nas teorias da patologia pessoal, pois o imaginário em torno da figura delinquente não raro indicava que a pobreza era propria- mente uma decorrência de condições individuais inferiores. Em outras palavras, faz parte dos discursos legitimantes po- sitivistas certa relação de causalidade entre sucesso profis- sional e perfil biológico, de maneira que o sujeito em tese só se encontra na condição de penúria financeira justamente porque não traz consigo uma estrutura nata que o torne ca- paz de se destacar no mercado. Enfim, a descoberta de Sutherland faz cair por terra mais um dos capítulos do ideário capitalista do estilo “que vença o melhor”, segundo o qual a mão invisível do merca- do produz a seleção natural das mentes mais socialmente úteis. Os mais ricos da sociedade também estavam inteira- mente implicados em atos criminosos, e a divulgação de tal evidência eliminava a ligação entre delinquência – fracasso profissional – inferioridade pessoal. Vale lembrar que uma das principais premissas da teoria de Sutherland está em que o comportamento ilícito é aprendido exatamente da mesma forma que o comporta- mento lícito (teses nº 8 e 9). Assim sendo, nada há no campo estritamente individual que possa diferenciar o criminoso do não criminoso, pois ambos partem dos mesmos mecanis- 19 mos humanos, apenas assumindo papéis em conformidade com as influências comunicativas que recebem.* Há vários indicativos ao longo do livro informando que os crimes de colarinho branco geravam graves conse- quências na organizaçãosocial dos EUA. São citados crimes cujo valor isolado do prejuízo causado ao Estado ou a uma empresa representava cifra superior à somatória de todos os crimes patrimoniais ordinários (roubos, furtos, extorsões, estelionatos) cometidos no mesmo ano. Considerando que a criminologia tradicional explicava tais delitos clássicos como decorrentes de perversões advindas de uma insensibilidade para com a vítima ou a sociedade, como então explicar que a maioria dos homens de negócios estampados nas capas das revistas também trazia em si tal “germe criminoso”? A investigação dos mecanismos relacionados às prati- cas aceitas dentro das principais empresas norte-americanas permitiu verificar que seus agentes compartilhavam defi- nições e técnicas favoráveis ao crime que não guardavam relação com qualquer qualidade intelectual, histórico fami- liar, fator genético ou algo do estilo. Logo, não cabia mais a tentativa de relacionar práticas criminosas com quaisquer patologias natas. Tal superação patológica é também destacada no longo prólogo da atual edição espanhola escrito por Fer- nando Álvarez-Uría, o qual indica que Sutherland foi o mais proeminente sociólogo do desvio do século XX, uma vez * Destaca Alessandro Baratta: “Deste último ponto de vista, a teoria das subculturas constitui não só uma negação de toda teoria normativa e ética da culpabilidade, mas uma negação do próprio princípio de culpabilidade, ou responsabilidade ética individual, como base do sistema penal.” BARATTA, Alessan- dro. Criminologia critica e crítica do direito penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.76. (N. do T.) 20 que produziu um giro definitivo do paradigma individual para o paradigma coletivo na teoria do delito.* Mas há ainda outro legado de Sutherland para a Cri- minologia, apesar de ele aparentemente não ter assim decla- rado. Recordemos que sua pesquisa englobou as 70 maiores empresas dos EUA naquele momento, concluindo rigorosa- mente que todas elas só haviam chegado a esse nível de poder econômico à custa da prática reiterada de crimes. Não foi à toa que seu livro teve de ser censurado, tal afirmação era uma duro golpe ao “american dream” na medida em que demonstrava que os maiores ícones do sucesso capitalista estavam todos envolvidos com ilicitudes penais. Sutherland mostrou que todas as 70 grandes empre- sas reproduziam o discurso em defesa da livre concorrência e livre iniciativa, enquanto suas práticas rotineiras visavam justamente o contrário. São descritos no livro inúmeros cri- mes nesse sentido, confirmando o fato de que ao mercado oculta em si uma ética não declarada, e não tende natural- mente a uma autorregulação. Talvez aí encontremos uma das mais fundamentais críticas produzidas por Sutherland. Se os detentores do “big business” são todos criminosos, significa que o próprio siste- ma é produzido por uma simbiose normalizada entre o lícito e o ilícito. Há, portanto, um jogo cujas regras pressupõem uma quota alta e constante de práticas criminosas aceitas pelo sistema, jogo este que não admite o reconhecimento público da conexão entre “ordem” e “crime”. O silêncio do autor sobre essa óbvia crítica ao pró- prio sistema político é o que mantém sua fala limitada, na * A tradução da 1ª edição (censurada) para a língua espanhola foi feita no ano de 1969 por Rosa del Olmo, servindo de base para as edições posteriores. Para ler o prólogo da versão atual: SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Tradução de Rosa del Olmo. Madrid: La Piqueta, 1999. (N. do T.) 21 medida em que não situa expressamente o fenômeno numa perspectiva macrossociológica e estrutural. O autor não se refere ao conflito de classes ou à presença de qualquer atu- ação funcional nesse sistema de gestão de ilicitudes. É uma das mais potentes contribuições surgidas no século XX so- bre a questão criminal, ainda que não possa ser incluída de forma clara no que denominamos Criminologia Crítica. A tentativa de elaborar uma “Teoria Geral do Com- portamento Criminoso”, a princípio, denuncia sua crença em poder alcançar algo comum entre os criminosos. Todavia, sua própria afirmação de que os processos de aprendizado são idênticos para atos criminosos e atos não criminosos in- dica que ele conseguiu extrapolar a criminologia positivista e encontrar explicações que poderiam ser mais bem desig- nadas como “Teoria Geral do Comportamento Humano”. A abertura para investigar os crimes da elite só pode ser compreendida pelo especial enredo histórico envolvido. O choque provocado pela crise de 1929 gerou um clima de insatisfação popular entre os empresários e feriu a crença de que o poder econômico em vigor poderia conduzir a uma sociedade melhor. O início do Estado de Bem-Estar Social (Welfare Sta- te) também permitiu um ambiente de maior sensibilidade com a questão social; há o despertar de uma preocupação com a acumulação de riqueza nas mãos das empresas e a afetação dos direitos dos trabalhadores.* Entretanto, o pró- prio autor denuncia no final da obra que toda tentativa de política social inclusiva era fortemente rejeitada pelos ho- mens de negócios, que as taxavam de “burocratas” ou “co- munistas”. * ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos crimino- lógicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminolo- gia, 2008, p. 494. (N. do T.) 22 Aqui vai uma advertência: a leitura de Sutherland não deve conduzir o leitor ao pecado da “esquerda punitiva”.* Atrair atenção para os crimes da elite não pode servir de suporte a uma tentativa de incremento punitivo contra as classes poderosas. A experiência neoliberal tem demonstra- do quotidianamente que, ainda quando o Estado cria tipos penais de colarinho branco e fortalece seus mecanismos de fiscalização, o sistema penal permanece recaindo de forma drasticamente preferencial sobre a classe pobre, politica- mente mais fraca.** Além disso, os corredores forenses já foram suficien- temente claros em demonstrar que o frágil aumento das pu- nições a empresários e políticos nas últimas décadas não faz mais que criar “bodes expiatórios” para que o grande abra- ço punitivo continue seu volume retumbante de segregação dos consumidores falhos. Como se a punição de meia dúzia de poderosos pudesse legitimar uma suposta isonomia do sistema. Considerando que o sistema punitivo é sempre um reflexo da estrutura de poder que recai sobre determinada sociedade, fica claro que a premissa da punição igualitária é mera retórica para continuar alimentando o Estado de Polí- cia com sua dieta tradicional. É preciso muita atenção para não cair na cilada de acreditar que o aumento da punição aos crimes de colari- nho branco é capaz de produzir uma sociedade mais justa e igualitária. Como foi assinalado, os altos índices de delin- * Sobre a questão, vale conferir: KARAM, Maria Lúcia. A esquer- da punitiva. In: Discursos Sediosos, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996. CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. 5. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 99. (N. do T.) ** ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejan- dro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro vo- lume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 488. (N. do T.) 23 quência dos poderosos são estruturais de nossa organização política, de maneira que não se pode crer no uso do Estado (sistema penal) para minar o grupo que controla o próprio Estado. É uma promessa não factível, verdadeiramente irre- alizável. Se é verdade que punição e estrutura social* estão sempre imbricados, fica fácil concluir que não há caminho para uma organização mais igualitária por meio da sanção penal. Enquanto o desejo por uma sociedade mais justa não decidir abrir mão do próprio quadro socioeconômico, o sis- tema penal continuaráfuncionando como um duplo “feti- che”, segundo o qual: 1) os problemas da sociedade estão individualizados nos criminosos (paradigma do consenso), e 2) punindo-os estaríamos construindo uma realidade mais pacífica (paradigma da defesa social). Para finalizar, gostaria de destacar que, para além das contribuições teóricas acerca da conduta delinquente e da seletividade do sistema, a história do presente livro mere- ce nossas palmas principalmente pela coragem desafiadora que ele representa. Demonstrar a volumosa criminalidade das maiores empresas do líder capitalista planetário, em ple- na Guerra Fria, é façanha sem precedentes, típica de um pensador comprometido a todo custo com a sua ciência. Eis algumas indicações para que o leitor tenha me- lhor proveito da brilhante obra que segue. Com os nossos cumprimentos. Vitória, 25 de agosto de 2014. Clécio Lemos * RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004. (N. do T.)
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