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Érica Negreiros de Camargo Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado Tese de Doutorado Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Área de concentração: Hábitat Orientadora: Profa. Dra. Suzana Pasternak São Paulo 2007 À minha mãe, Ao Rainer, A Leo, Por eles serem o meu lugar; a minha casa Antes de mais nada… Esta pesquisa, tal como a minha casa, contém muito de mim, da minha alma e da minha dedicação; e está pronta para receber bem os amigos e todos aqueles que venham visitá-la com alegria no coração. Com isto, cito Roberto DaMatta, que tão bem versou sobre essa arte de “receber”: “Um livro é como uma casa. Tem fachada, jardim, sala de visitas, quartos, dependência de empregada e até mesmo cozinha e porão. Suas páginas iniciais, como aquelas conversas cerimoniais que antigamente eram regadas a guaraná geladinho e biscoito champanhe, servem solenemente para dizer ao leitor (esse fantasma que nos chega da rua) o que se diz a uma visita de consideração. Que não repare nos móveis, que o dono da morada é modesto e bem-intencionado, que não houve muito tempo para limpar direito a sala ou arrumar os quartos. Que vá, enfim, ficando à vontade e desculpando alguma coisa...” (DaMatta, 2000; p. 11). Ah, sim! A música e a poesia que encontrarão aqui foram especialmente providenciadas para entreter as visitas. Pois, fiquem à vontade, que a casa é sua! Érica Agradecimentos Este é o momento de lembrar de todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para que este trabalho fosse feito. Dentre essas pessoas há algumas que sequer sabem de sua imensa contribuição. Porque suas palavras e feitos muitas vezes estiveram apenas na minha memória, enquanto ecoavam na minha postura de investigação, nas inúmeras escolhas que tive que fazer, na forma de contornar as dificuldades; e que, por isso, devo-lhes meus agradecimentos. Há outras que estiveram constantemente ao meu lado, dando suas opiniões, criticando, sugerindo, acrescentando; a quem, por isso, também devo meus agradecimentos. E há aquelas pessoas que, com suas histórias de vida a mim presenteadas de forma tão sincera e generosa, não só ajudaram a dar corpo a este trabalho, mas, de fato, são a sua alma. A essas, também, devo meus tão sinceros agradecimentos. Dessas pessoas, nomeio aquelas que considero representantes de uma lista extensa, a cujos componentes devo dizer muito obrigada. Muito obrigada... À minha orientadora, Professora Susana Pasternak, que, antes de mais nada, acreditou no meu projeto; e que esteve à disposição para ajudar a moldá-lo e redirecioná-lo sempre que foi preciso. Ao querido Rainer, marido, conselheiro, enfermeiro, revisor, editor e rei da paciência... A Leo, filho querido, que acompanhou de perto as atribulações de uma mãe doutoranda, sempre com comentários alegres e encorajadores. E que ainda criou a linda capa deste trabalho. À minha mãe, que, além de mãe, foi enfermeira, revisora, conselheira, orientadora; e correspondente direta com Santo Antônio. À minha irmã, Anamaria, e à D. Carminha, pela preocupação, no momento em que minha saúde mandou um aviso de “calma”. Às amigas Ana Maria Lacerda, pelos livros que vieram em tão boa hora; Maria Celeste Wanner, pelas dicas para a defesa; Monika Krugmann, pelos esclarecimentos lingüísticos; Célia Gomes, pelo carinho e pela torcida. Aos amigos Mônica e Marcos Percário, pelo acompanhamento carinhoso e alegre que tornou essa fase mais leve de ser levada. Ao amigo e Professor Isaías Neto, pelos conselhos, e por ter participado do começo desta história, lá atrás, ainda no mestrado. Ao Marcus Ramos, pela linda foto da capa. Ao Thomas Henke, por ter feito a ponte entre um dos entrevistados. Ao Dr. Aldrighi, muito mais que meu médico, amigo sempre disponível. À Professora Yvonne Mautner, pelas valiosas dicas de condução do discurso final dadas em minha Qualificação, e pela generosa dedicação e disponibilidade em me receber em sua casa, e emprestar livros, sempre que precisei. À Professora Eda Tassara, pelas utilíssimas sugestões de organização do discurso final, dadas em minha Qualificação. Aos professores Celso Lamparelli, Maria Ruth Amaral de Sampaio e José Lira, por terem jogado luz no percurso metodológico que tive que percorrer até chegar aqui. Ao professor Massimo de Felice, cujo foco contemporâneo de ver o habitar veio trazer equilíbrio a uma visão, talvez, demasiado tradicional, para os dias em que vivemos. À querida Professora Ecléia Bosi, cujos ensinamentos sobre História Oral foram fundamentais não só para o registro das entrevistas que trago aqui, mas para a compreensão da importância de se conhecer um fato sob a ótica de quem o viveu. E, principalmente, ao entrevistados, cujas identidades me comprometi em não revelar: obrigada, de coração! Ainda gostaria de agradecer ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, cujo auxílio foi essencial para a realização deste trabalho. Resumo O objetivo desta investigação foi analisar o tema Hábitat, especificamente no sentido de como o lugar do habitar doméstico é percebido e vivenciado por seus habitantes, em termos tanto objetivos – das relações estabelecidas com a fisicalidade da moradia –, quando subjetivos – das questões pessoais específicas que intervêm nessas relações. Como instrumento para esta investigação, foram tomados depoimentos de pessoas a respeito das relações que estabelecem no e com o espaço de suas moradias, os quais, embasados em abordagens teóricas pertinentes ao tema, definiram a linha condutora da análise. Para a investigação, estabeleceram-se cinco dimensões, através das quais foram examinados os particulares processos de atribuição de significados ao habitar doméstico; sejam elas: a casa física, usos objetivo e subjetivo da casa, privacidade e intimidade domésticas, o cotidiano doméstico e o lugar do habitar doméstico. Estas cinco dimensões permitiram entender que o habitar doméstico é algo tão amplo quanto a própria vida do indivíduo, não se dando isoladamente ou independente das interferências externas, as quais permeiam a vida cotidiana doméstica. Ao lado disto, é o caráter da particularidade do habitar doméstico que o legitima como uma prática do indivíduo per se. Abstract In this study, the author investigates the home environment in the sense of how a private dwelling is perceived and experienced by its users, both in objective terms, regarding physical usage, and subjective terms, regarding individual issues that influence this usage. To carry out this investigation, the author interviewed individuals regarding relations they hold within and with their dwellings. A literature review on this subject combined with data collected via interviews provided the framework for this investigation. The author defined five dimensions through which private dwellings can be examined, and through which particular meanings are attributed to one’s home: the physical house, objective and subjective uses of the dwelling, domestic privacy and intimacy, private everyday life, and the place of private dwelling. These five dimensions help us understand that the home dwelling is as broad as our life and does not take place apart from, and regardless of, external interferences, which permeate one’sprivate, everyday life. Moreover, it is the singularity of private dwelling, in terms of how it is perceived by each dweller, which renders private dwelling an individual’s act per se. Lista de figuras Parte I – O habitar doméstico Figura 1 Diagrama da origem etimológica da palavra “habitar”, segundo referência de Heidegger, p. 22 Parte II – Dimensões do habitar doméstico Capítulo 1 ‐ A casa física Figura 2 Sistema de segurança instalado no portão de edifício em São Paulo, p. 47 Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas Figura 3 O personagem Folke (do filme “Histórias de Cozinha), em seu posto de observação, observa Izak em sua cozinha, p. 119 Figura 4 Aviso na porta do quarto de um pré-adolescente: necessidade de estar a sós, p. 123 Figura 5 Vista da fachada de loja de decoração em São Paulo, p. 131 Figura 5.1 Detalhe do cartaz: o que se vendem não são produtos, mas as sensações que eles proporcionam, p. 131 Figura 6 Exemplo de planta de apartamento lançado na década de 1980 em São Paulo trazendo o padrão tipológico setorizado (setores representados em cores diferentes), p. 135 Figura 7 Interior do trailer de Marly: cozinha, p. 136 Figura 8 Interior do trailer: sala de visitas (à frente) e quarto dos filhos (ao fundo), p. 136 Figura 9 Fundos do trailer: área de serviço, p. 136 Figura 10 Zona íntima: explicitação formal da privacidade doméstica, p. 138 Figura 11 Quarto: sobreposição de funções: dormir, vestir, trabalhar, ouvir e tocar música, ver televisão, p. 139 Figura 12 Área de serviço: intimidade não revelada a estranhos, p. 148 Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico Figura 13 Cena do filme “Mon Oncle” (1958) [...], p. 180 Figura 14 Esquema apresentado por um site brasileiro de vendas de equipamentos para a instalação de “cinema em casa”, p. 210 Parte III – Casa: um lugar sagrado? Figura 15 O habitar doméstico e a experiência do sagrado, p. 236 Sumário Introdução.............................................................................................................10 Parte I – O habitar doméstico................................................................................20 Parte II – Dimensões do habitar doméstico...........................................................36 Capítulo 1 ‐ A casa física................................................................................................38 Capítulo 2 ‐ Os usos objetivo e subjetivo da casa.........................................................64 Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas .....................................................104 Capítulo 4 – O cotidiano doméstico............................................................................149 Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico .................................................................164 Parte III – Casa: um lugar sagrado? .....................................................................230 Considerações finais............................................................................................260 Notas ...........................................................................................................................268 Referências bibliográficas e obras consultadas ..........................................................273 Apêndice – Transcrição das entrevistas......................................................................290 Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 10 Introdução A) Gênese da questão Antes de falar especificamente do objeto de investigação deste trabalho, considero apropriado traçar o caminho que me conduziu a ele. A pesquisa aqui apresentada deriva de questões inquietantes com as quais me deparei ao longo da minha pesquisa de mestrado (Camargo, 2003)1. Na época, investiguei a evolução tipológica dos espaços habitáveis de apartamentos de dois dormitórios lançados na cidade de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990, assim como as relações funcionais estabelecidas nesses espaços domésticos. O objetivo daquela pesquisa não era a proposição de novas soluções projetuais, mas uma avaliação diagnóstica da adequação do desenho dos espaços habitáveis às funções de uso do habitar doméstico, considerando, no cenário observado, as transformações dos modos de vida nas últimas décadas do século 20, para as quais contribuíram a modificação dos grupos familiares e o largo uso de novas tecnologias – especialmente de novas mídias – nas funções do habitar doméstico. Como observa Suzana Pasternak, a família mudou. Nas últimas décadas do século 20, o habitante das metrópoles parece ter tendido a viver sozinho ou a se agrupar em tipos familiares que diferem da família nuclear burguesa estabelecida nos séculos 18 e 19. E as transformações dessa família privatizada passaram a criar novas demandas de moradia (Taschner, 1997; p. 243; 253). Ou, lembrando o ponto de vista de Manuel Castells sobre o consumo de mídia combinado ao desempenho das tarefas domésticas, temos hoje um ambiente audiovisual com o qual interagimos constante e 1 Apresentada em março de 2003 na FAU-USP. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 11 automaticamente, funcionando, mesmo, como um “tecido de nossas vidas” (Castells, 2000; p. 358-359). Diante da constatação de uma realidade doméstica em constante transformação, outra verificação, aparentemente antagônica à primeira, veio a partir da observação dos usos dos espaços domésticos: a apenas relativa incorporação dessa contemporaneidade dos modos de viver ao habitar doméstico. Por um lado, as novas configurações dos grupos familiares e os efeitos das novas tecnologias sobre o cotidiano doméstico, que alteram, por exemplo, os padrões de sociabilidade entre os membros do grupo doméstico e a relação público/privado, são incontestáveis. Entretanto, em meio a essa contemporaneidade, traços de flagrante tradicionalidade ainda fazem parte do atual habitar doméstico, sendo que o maior ou o menor grau com que ela é incorporada ao uso dos espaços habitados, assim como à própria percepção desses espaços, é uma questão específica de cada usuário ou grupo de usuários. Um exemplo disto seria o rigor formal com que ainda são tratadas as salas de visitas de hoje. A despeito do pouco tempo deixado pela vida agitada de São Paulo para o “receber” em casa, constatei que, na maioria dos casos observados2, as salas permaneciam decoradas como verdadeiros cenários, montados e guardados para serem admirados por eventuais visitantes, refletindo, assim, uma certa tradicionalidade tanto na percepção quanto no uso desse cômodo. Como lembra Roberto DaMatta, a respeito da casa brasileira,“o ritual de receber uma visita tinha (e ainda tem) requintes quase barrocos, pois significa abrir o espaço da casa para um estranho” (DaMatta, 2000; p.52). Ao lado das “transformações” e “permanências” verificadas de forma não uniforme nas relações do habitar doméstico – ainda que se tratando de contextos socioeconômicos tão semelhantes, como foi o caso de minha pesquisa de mestrado –, passou-me a ser especialmente arrebatadora a constatação da impossibilidade de se empregar um único discurso quando se pretende analisar os usos dos espaços domésticos ou as próprias concepções dos usuários a respeito seus espaços. Com isto, concluí que a adequação do espaço habitado aos modos de vida ali praticados só é verificada através das efetivas relações cotidianas que se dão no e com o espaço habitado; ou, conformea reflexão do Professor Celso Lamparelli, “nenhuma das 2 Como estudo de caso, tomei um edifício de apartamentos de dois dormitórios na cidade de São Paulo para investigar as relações de usos aplicadas ao espaço habitado de cada apartamento. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 12 soluções espaciais é totalmente adequada, pois as necessidades, expectativas e aspirações com relação à moradia manifestam-se a partir do ato de morar”3. B) Justificativa A partir dos fatos observados, surgiu a reflexão de que a análise das relações do uso do espaço doméstico deve estar conectada à observação de uma necessidade prioritária – e sujeita a julgamentos particulares de cada usuário ou grupo de usuários –, que é a do bem-estar doméstico; a necessidade, muitas vezes difícil de descrever, de nos sentirmos acolhidos, abraçados, por nossas casas. Mantendo-me, assim, na questão do habitar doméstico, proponho, aqui, enfocar as relações estabelecidas no e com o espaço doméstico sob o ponto de vista daquele(s) que habita(m) domesticamente um determinado lugar. Para isto, levo em consideração tanto os aspectos concretos da relação de fisicalidade com o lugar habitado, quanto os que envolvem questões menos objetivas e palpáveis, tais como os valores, as influências socioculturais, as memórias e referências de domesticidade vividas no passado, etc.: componentes aplicados individualmente, ou pelo grupo doméstico, às suas práticas diárias do habitar doméstico. Com isto, acrescento a consideração de Peter King, segundo a qual ao mesmo tempo em que a questão do Hábitat deve ser tratada como um tema de interesse social – “um bem”, em um nível coletivo –, devemos estar conscientes de que este tema também envolve a consideração de que cada habitação encerra o espaço no qual, individualmente, praticamos nossa privacidade, e através do qual buscamos atingir nossos próprios objetivos. Segundo vê o autor, desconsiderar a habitação como o local do indivíduo, por excelência, seria uma má percepção – ou a não observação – da função existencial do habitar doméstico (King, 2003; p. 81, 82). 3 Esta reflexão advém das longas discussões sobre o tema habitar doméstico, juntamente com o professor C. Lamparelli, durante o curso de sua Disciplina AUH-5704 - Metodologia Aplicada à Arquitetura e ao Urbanismo, em 2003, na FAU-USP. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 13 C) Objetivo Uma vez definido o foco a ser dado ao tema Hábitat, estabeleço como principal objetivo desta investigação analisar a questão do habitar doméstico segundo o modo como esse habitar é percebido e vivenciado por seus usuários. Procuro, assim, identificar as necessidades, expectativas e aspirações que acompanham o entendimento individual de bem-estar doméstico, assim como os mecanismos formais e emocionais que são aplicados cotidianamente nas relações estabelecidas nos e com os espaços privados da habitação, na busca subjetiva desse bem-estar. Para isto, baseei minhas reflexões na análise de entrevistas e de dados teóricos pertinentes ao tema, buscando identificar entre os aspectos universais, socioculturais e individuais levantados ao longo desta investigação, aqueles através dos quais se dá a atribuição dos significados particulares tanto ao espaço habitado domesticamente, quanto ao próprio ato de habitá-lo. É importante ressaltar que a análise que aqui proponho não tem como objetivo estabelecer padrões definitivos para o entendimento das relações entre moradores e suas casas. Isto porque analisar o habitar doméstico sob a ótica do “habitante”, tendo como instrumento seus depoimentos a respeito de suas relações com o espaço habitado, implica considerar esse habitar doméstico nos aspectos próprios e particulares de cada entrevistado, levando-se em consideração toda e qualquer impressão relatada por eles – sejam essas impressões baseadas em fatos reais ou produto de sua imaginação; sejam coerentes ou contraditórias em relação às suas atitudes como moradores. D) Metodologia de pesquisa Para a elaboração do processo metodológico e das etapas desta pesquisa, tive, como principal referência, o texto do Prof. Celso Lamparelli, “Metodologia Aplicada à Arquitetura e Urbanismo” (Lamparelli, 2000). Uma vez estabelecidas as especificidades que definiram o objeto da pesquisa, o processo de investigação voltou- se, inicialmente, para o levantamento dos elementos já conhecidos, segundo três aspectos – tal como propõe Lamparelli (ibidem, p. 23): o prático da experiência – resultado de observações empíricas e do conjunto de impressões pessoais quanto ao Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 14 habitar doméstico; o científico – obtido com a pesquisa prévia realizada para o Mestrado; e o da reflexão filosófica – ao retomar reflexões sobre os aspectos anteriores, com a formulação de hipóteses a respeito do caráter de especificidade que define o habitar doméstico – aspectos, que passariam a serem investigados na etapa seguinte. Uma vez constatada a insuficiência de conhecimento para responder as questões surgidas do desdobramento da problemática em torno do tema habitar doméstico, foi desenhada uma estratégia metodológica voltada, ao mesmo tempo, ao preenchimento sistemático das lacunas abertas na etapa anterior, e o gradual trajeto do conhecido para o desconhecido, cujas etapas descrevo a seguir: a) Revisão bibliográfica. Considerando que a idéia de habitar doméstico envolve uma relação entre aspectos que se interpenetram e compartilham significados, não há como explicitá-los e defini-los sem que se busquem os seus referenciais teóricos específicos. Assim, nesta etapa foi feito um levantamento da produção bibliográfica que pudesse subsidiar as questões desde o início levantadas. b) Elaboração do quadro de referência com as questões que surgiram para iluminar a problemática. Do conjunto de questões teóricas – pertinentes ou não ao recorte estabelecido –, foram adotadas algumas para “iluminar” a questão do habitar doméstico proposta. É nesta etapa que, por exemplo, o conceito do habitar universal é adotado no sentido de ter seus aspectos aplicados ao habitar doméstico. Pressupostos teóricos como este – ou como o da casa como campo do emocional e da subjetividade, ou ainda, da casa como local de interação entre o físico e o emocional – serviram para indicar direções para a continuidade das investigações. c) Coleta de dados e informações: pesquisa de campo. Com o intuito de investigar as relações do habitar doméstico sob o prisma do morador, iniciei a etapa de coleta de depoimentos, realizada através de entrevistas. Inicialmente, foram feitas algumas entrevistas-piloto, com o objetivo de definir a linha de conduta das entrevistas a serem aplicadas imediatamente a seguir. O critério de escolha das pessoas a serem entrevistadas levou em consideração o requisito de pertencerem a diferentes contextos econômicos, profissionais, culturais e sociais. Como resultado das entrevistas-piloto, percebi a dificuldade com que se obtém depoimentos a respeito de impressões subjetivas sobre o habitar doméstico; Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 15 pois, ao se colocar “a casa”, como tema da entrevista, inevitavelmente, os entrevistados – talvez, sugestionados pelo fato de a entrevistadora ser uma arquiteta – passavam a falar das características físicas de suas casas. Empiricamente, observei que ao nos vermos fisicamente afastados da nossa casa – em uma viagem,por exemplo –, passamos a pensar nela não mais, exclusivamente, como um invólucro com estas ou aquelas características físicas, mas como um lugar que abriga outras relações, além das objetivas. Assim, percebi que mudar a perspectiva das narrativas, no sentido de focar as experiências do habitar doméstico de uma posição distanciada do contexto imediato das relações objetivas com os espaços habitados, seria uma forma de fazer com que os entrevistados passassem a relatar impressões pessoais e subjetivas relativas às suas experiências de habitar doméstico. Assim, passaram a compor um grupo de vinte e um entrevistados pessoas que, por alguma razão, estavam na iminência de deixar suas casas; ou que, por razões profissionais, estavam constantemente hospedadas em hotéis; ou que deixaram uma forma convencional de moradia e passaram a experimentar formas alternativas de morar; idosos que deixaram suas casas para viver em asilos; jovens que moravam em pensões para estudantes; ex-moradores de rua; profissionais de circo que vivem em barracas ou em trailers. Esses entrevistados tiveram suas identidades preservadas através de nomes fictícios. A condução das entrevistas foi realizada de maneira a obter impressões sobre o habitar doméstico de cada entrevistado. Cabe observar que, para a obtenção dos depoimentos, não houve direcionamento das perguntas no sentido de serem aplicadas especificamente a cada aspecto que me propunha a investigar. Pelas próprias razões que justificam esta pesquisa, os entrevistados tiveram a liberdade de falar do que, pessoalmente, lhes parecia mais relevante, em termos de sua relação com seu habitar doméstico. Uma vez informada e aceita a proposta dos depoimentos, deixei que os entrevistados assumissem o direcionamento do discurso, e as perguntas propostas não foram mais do que ênfases ou estímulos a o quê já desejavam dizer. Assim, ainda que, em algumas vezes, tivesse proposto questões, visando explorar determinado assunto que considerava relevante, os entrevistados só as responderam se – e na medida que – o desejaram. Neste sentido, os depoimentos foram determinantes para a definição da linha condutora da pesquisa, pois a maior freqüência com que alguns desses aspectos surgiram nos depoimentos indicou sua relevância e pertinência ao objeto estudado, Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 16 tornando-se meu critério de escolha das dimensões do habitar doméstico que passaram a conduzir minha investigação, as quais introduzo resumidamente mais adiante, ao descrever, no item E), o “Desenvolvimento em capítulos” deste trabalho. d) Coleta de dados para o embasamento teórico. O acervo de depoimentos fez surgir uma série de questões desconhecidas, as quais, consideradas pertinentes ao objeto em questão, deram origem a “novas lacunas” a serem preenchidas com embasamento teórico. As etapas que se seguiram foram de busca por esse embasamento, acompanhada de consecutivas avaliações quanto à confirmação ou o descarte de hipóteses como pertinentes à elaboração de uma linha lógica do discurso e o conseguinte aprofundamento dos conceitos buscados anteriormente. e) Etapa final. Este, que é o estágio final da pesquisa, teve como foco a elaboração do discurso final. Para isto, a passagem do “concreto focalizado” – o habitar doméstico – para o “concreto pensado” – o modo como esse habitar é percebido e vivenciado por seus usuários, considerado no conjunto das dimensões investigadas – envolveu a definição operacional dos conceitos propostos, de modo a seus atributos serem identificados e distinguidos nos objetos empíricos anteriormente considerados (Lamparelli, ibidem; p. 30). Dito de outra forma, esta etapa consistiu da elaboração do discurso final, por meio da aplicação apropriada dos conceitos desenvolvidos, os quais vêm para subsidiar a análise dos dados e informações obtidos nas entrevistas. E) Desenvolvimento em partes Parte I: O habitar doméstico Antes de entrar na questão do habitar doméstico propriamente dito, apresento aqui algumas considerações teóricas a respeito do conceito de habitar, no sentido de ampliar o seu significado mais corriqueiro e entendê-lo como a própria forma como estabelecemos a nossa existência no mundo. Neste sentido, inicio esta discussão trazendo algumas notas – ainda que breves, por este não se constituir o foco Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 17 desta pesquisa – sobre o conceito universal e humano do habitar trazido por Martin Heidegger – “o estar dos mortais sobre a Terra”; o “permanecer instalado, em paz, em um lugar” (Heidegger, 1971, I) –, as quais me pareceram iluminadoras para o entendimento dos aspectos do habitar doméstico que virão a seguir. A seguir, procuro mostrar em que sentido os aspectos conceituais do habitar, como prática universal e essencialmente humana – e até por esta razão –, podem ser verificados, também, nas atividades e relações cotidianas que ocorrem no espaço privado da moradia. Para isto, proponho passarmos a trabalhar com o conceito de habitar de Norberg-Schulz, que o vê como uma atividade que implica uma relação significativa de identificação e pertencimento entre o ser humano e um determinado lugar (Norberg-Schulz, 1985; p. 13). Com isto, passamos a entender o habitar doméstico como resultado da distinção, no mundo público, de um determinado lugar para a prática do habitar no nível do privado e do pessoal. E o cenário onde essa prática acontece, afastada do habitar público e da intrusão de estranhos, é a casa, ou o lar. Parte II: Dimensões do habitar doméstico Considerando-se a proposta de analisar a questão do habitar doméstico segundo o modo como ele é percebido e vivenciado por seus usuários, os depoimentos colhidos para este propósito foram determinantes para a condução da linha desta investigação e para a maneira com que o habitar doméstico passa a ser abordado a partir daqui. Uma vez sendo inúmeras as concepções particulares do habitar doméstico refletidas nas escolhas, julgamentos e impressões relatados nas entrevistas, a freqüência com que determinados aspectos foram mencionados serviu de fator revelador da importância e pertinência de alguns deles ao objeto investigado. E foi a maior recorrência desses aspectos nas falas dos entrevistados que definiu o critério de escolha das cinco, entre as inúmeras dimensões do habitar doméstico mencionadas, que passaram a compor minha investigação – sejam elas apresentadas nos seguintes capítulos: Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 18 Capítulo 1 – A casa física A casa, como entidade física, é vista como o local que elegemos para nos recolher do mundo público, para praticar o nosso habitar em segurança e privacidade. Contudo, uma vez considerada a sua inserção nesse mundo, obtemos da casa física não só o apoio e a proteção frente às hostilidades desse mundo, mas também, um meio de nos tornamos familiarizados como ele, obtendo, assim, a base de que precisamos para habitá-lo. Capítulo 2 – Usos objetivo e subjetivo da casa A partir das reflexões sobre a casa física, vemos que se o habitar doméstico implica a materialidade da casa – uma vez que é exatamente a sua condição de abrigo fisicamente palpável que precisamos para o habitar –, implica, também, a interação dessa materialidade com aspectos da alma, do espírito, da memória, das emoções do indivíduo; o que faz com que a casa física passe a incorporar um significado subjetivo para aqueles que a habitam. Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas Procurando relacionar as questõesdo habitar universal com a vida privada doméstica e os próprios sentidos de privacidade e intimidade que ela encerra, definem-se esses conceitos, analisando-os em seus diferentes aspectos, sem deixar de considerar os fatores históricos e culturais que podem explicar sua evolução e a maneira como hoje se apresentam. A partir desses referenciais teóricos, estabeleço a correspondência entre eles e os depoimentos coletados. Capítulo 4 – O cotidiano doméstico Mantendo-nos, ainda, na questão da vida privada doméstica, o cotidiano praticado diariamente nessa privacidade é, por um lado, apresentado como aquela parte de nossas vidas que não nos é marcante por nenhum motivo especial; e por outro lado – e até por este motivo – passa a ser analisado como uma forma importante de confiança, e fonte de estabilidade emocional, que funciona como um meio tanto restaurador físico e emocional, quanto preparador para as próximas incursões pela vida pública. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 19 Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico Aqui, passo a observar a esfera do habitar doméstico, considerando-a não como localidade que é meramente destacada do espaço geral, mas que, ao incorporar as especificidades que lhe atribuímos ao habitá-lo, adquire, para nós, o sentido específico de lugar. Para definir o aspecto que confere ao local habitado o sentido de lugar, são examinadas diferentes abordagens teóricas sobre este conceito – lugar –, buscando enfatizar as que permitem uma relação com a idéia do habitar doméstico trazida nos depoimentos dos entrevistados. Parte III: Casa: um lugar sagrado? Pela análise dos dados e informações obtidos nas entrevistas, esta amparada pelo embasamento teórico e pela aplicação dos conceitos desenvolvidos, justifica-se uma reflexão sobre o sentido de lugar sagrado, muitas vezes atribuído ao lugar habitado, e de como este sentido pode ser (re)definido através do próprio habitar doméstico que ali praticamos diariamente. Aqui, são discutidas algumas considerações sobre este sentido. Considerações finais Nessa seção, teço algumas considerações deixadas por esta investigação e sugiro possibilidades de aplicação e desdobramento deste trabalho em futuras pesquisas. Apêndice Nessa seção estão transcritas as íntegras das entrevistas utilizadas neste trabalho. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 20 Parte I O habitar doméstico Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 21 Parte I O habitar doméstico O habitar: breves notas teóricas Para nos aproximarmos do tema habitar doméstico, sugiro, antes, uma investigação – ainda que breve – do próprio conceito de habitar, em seu sentido mais amplo; que vá além de seu significado mais corriqueiro. Conforme nos fala Christian Norberg-Schulz, estamos acostumados a definir o habitar como sendo “ter um teto sobre nossas cabeças e um certo número de metros quadrados à nossa disposição”; ou seja, entendemos o conceito de habitar “em termos materiais e quantitativos” (Norberg-Schulz, 1985; p. 12). Para ampliar a visão deste conceito, recorro, inicialmente, ao pensamento de Martin Heidegger, e sua análise da essencialidade do conceito de habitar, identificado pelo autor como a ”maneira como os homens fazem seu caminho desde o nascimento até a morte, sobre a Terra, sob o céu”. Este caminhar seria “o aspecto fundamental da habitação, enquanto permanência humana entre o céu e a terra, entre o nascimento e a morte, entre a alegria e a dor, entre a obra e a palavra”4. Considerando este “Entre multiforme” – rico em transformações, em aspectos diferentes – como sendo o mundo, esse mundo pode ser visto como a própria “casa que habitam os mortais” (Heidegger, 1982)5. 4 As palavras “entre” não estão grifadas no original. 5 As referências deste parágrafo estão na conferência “Hebel – O Amigo da Casa”, pronunciada por Heidegger em 1957. In: http://www.heideggeriana.com.ar/textos/hebel.htm. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 22 Por entender que na medida em que respeitamos a natureza da linguagem, será ela a nos falar da natureza das coisas6, Heidegger propõe uma reflexão etimológica para estabelecer a relação do conceito de habitar com a idéia de construir. Nessa análise, vemos que o termo “buan”, do antigo alemão, de onde descende o “bauen” – construir –, significa permanecer, residir. Vemos, ainda, que estes significados também são atribuídos ao termo “wuon”, do antigo saxão, e à palavra gótica “wunian”, dos quais descende o “wohnen” – morar, em alemão. Heidegger dirá, no entanto, que é o termo “Wunian” que explica mais claramente como se experimenta este permanecer, uma vez que “Wunian” significa estar satisfeito, em paz: “ser levado à paz, permanecer em paz”. Ao mesmo tempo, a palavra “Friede” – paz –, que tem como origens “das Frye” e “fry”, traz em seu significado o preservar da injúria, da ameaça; o resguardar, o cuidar (Heidegger, 1971; I)7. Fig. 1 Diagrama da origem etimológica da palavra “habitar”, segundo referência de Heidegger. A relação entre o habitar e o cuidar, ou preservar, também pode ser verificada através do que nos diz Hannah Arendt, ao refletir sobre o conceito de cultura. Arendt assinala que a origem romana deste conceito traz consigo o espírito do 6 Para Heidegger, ainda que o homem aja como moldador e dono da linguagem, é a linguagem que nos fala sobre a natureza de uma coisa, impondo-se, assim, como um mestre sobre o homem (Heidegger, 1971, I). 7 Conferência “Construir, Habitar, Pensar”, proferida por Heidegger em 1951, no Simpósio sobre o Homem e o Espaço, em Darmstadt, Alemanha, 1951. bbuuaann pprreesseerrvvaarr rreessgguuaarrddaarr CCUUIIDDAARR ppeerrmmaanneecceerr eemm PPAAZZ ppeerrmmaanneecceerr rreessiiddiirr bbaauueenn ((ccoonnssttrruuiirr)) FFrriieeddee ((ppaazz)) ffrryy ffrryyee wwuuoonn wwuunniiaann wwoohhnneenn ((mmoorraarr)) Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 23 cultivar, do habitar, do tomar conta, do criar e do preservar, estando a palavra cultura essencialmente relacionada ao “trato [carinhoso] do homem com a natureza, [...] até que ela se torne adequada à habitação humana”8 (Arendt, 1992; p. 265). Assim, se – como vimos com Heidegger – o conceito de habitar se relaciona ao ser/estar/ficar/permanecer do homem sobre a Terra, a preservação e o cuidado – que vemos, agora, com Arendt – visam a viabilidade deste mesmo ser/estar/ficar/permanecer. Ainda segundo Heidegger, o verdadeiro cuidar consiste não apenas em não prejudicar esse algo cuidado, mas em ser algo que acontece quando resguardamos aquilo que é protegido na sua própria essência, com seus próprios valores e princípios, e o livramos, ou libertamos, das “ameaças” contra o “estado de paz”. Tomando os dois sentidos de construir – o construir como cuidar (em latim, colere cultúra) e o construir como levantar edifícios (ædificare) –, Heidegger dirá que ambos compõem o verdadeiro sentido de construir, ou seja de habitar, do “estar sobre a Terra”; sentido que se torna explicitado pelo autor como sendo a própria experiência vivida cotidianamente por nós; aquela que nos é habitual (Heidegger, 1971; I). A partir destas considerações teóricas, ampliamos o conceito de habitar no seu significado maiscorriqueiro, passando a entendê-lo como a própria forma como estabelecemos a nossa existência no mundo. Assim, o sentido do habitar que nos servirá de meio para nos aproximarmos do tema habitar doméstico pode ser sintetizado como a experiência cotidiana de se estar em um lugar, rodeado de proteção, resguardado, em paz; livre, em sua essência, de qualquer ameaça contra essa paz. O local físico do habitar e o habitar doméstico Para passarmos dos aspectos conceituais do habitar, como prática universal e essencialmente humana, para a análise de como esses aspectos são verificados nas 8 Arendt ressalta que é graças à concepção romana – e não grega – que o significado e o conteúdo de cultura que temos em mente ainda hoje estão relacionados ao ato de tornar a natureza um lugar habitável para as pessoas e de cuidar dos monumentos do passado. Os gregos, por sua vez, com seu espírito baseado não na preservação, mas nas artes de fabricação, “não sabiam o que é cultura, pois não cultivavam a natureza, mas, em vez disso, arrancavam do seio da Terra os frutos que os deuses haviam ocultado dos homens” (Arendt, 1992; p. 266). Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 24 atividades e relações cotidianas que ocorrem no espaço privado da moradia, proponho começarmos por localizar esse habitar universal; ou seja, considerá-lo como o vê Norberg-Schulz, como uma atividade que implica uma relação significativa de identificação e pertencimento entre o ser humano e um determinado meio. Para o autor, o habitar tem como propriedade de sua essência “a insolúvel unidade entre vida e lugar” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13). Contudo, antes de partirmos para esta nova abordagem do habitar, lembremos, ainda, que o próprio Heidegger traz o conceito universal do habitar do homem – seu “caminho desde o nascimento até a morte, sobre a Terra, sob o céu” – para o plano concreto da habitação, ao dizer que as construções que fazemos para habitar – nossas cidades, aldeias e casas – agregam a experiência desse caminhar (Heidegger, 1982). Com isto, podemos passar a estabelecer a relação desse habitar como existência – do “estar-no-mundo”, dos mortais – com a experiência dessa existência, agora, em um determinado lugar fisicamente localizado nesse mundo; sendo que, conforme ressalta Heidegger, a segunda experiência só é possível sobre a base dos aspectos que envolvem a primeira (Heidegger, 1927; p. 56). Esta relação se faz no sentido de que esse habitar amplo, universal, é constituído de “orientação” e de “identificação” em relação ao meio habitado, tal como o vê Norberg-Schulz. Ou seja, é quando sabemos onde estamos e como estamos, que experimentamos a existência em todos os seus significados (Norberg-Schulz, ibidem; p. 7). O filósofo Otto F. Bollnow também chega a esta relação, partindo da ligação entre o caráter universal do habitar humano e sua relação com um ponto espacial específico. Colocando-nos como sujeitos de nossa experiência no espaço, o autor proporá que, como seres viventes de forma concreta que somos – tal como nos são dados, em função do nosso corpo, os conceitos, igualmente concretos, de acima e abaixo, à frente e atrás, à direita e à esquerda –, tomamos esse ponto específico em que habitamos como “ponto zero”, ou seja, como nossa referência em relação ao espaço mais amplo em que habitamos em termos universais (Bollnow, 1969; p. 58). Contudo, há que se estabelecer uma distinção em relação ao entendimento desse lugar específico no espaço, a que se refere Bollnow. De um lado, há os lugares onde permanecemos apenas temporariamente; e de outro, há, este sim, o lugar, ou posição, constante em relação a quaisquer situações casuais – o lugar a que “pertencemos”, como dirá o autor; do qual nos afastamos periodicamente para Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 25 experimentar nossa existência no “mundo vasto”, e ao qual retornamos para reencontrar a referência espacial a que estamos enraizados, numa alternância que o autor chamaria de “dinâmica fundamental da vida humana”. Enfim, é a esse lugar específico no espaço que Bollnow se refere quando diz que o homem não pode viver apenas em mundo vasto, pois “perderia todo o apoio”. Segundo o autor, é mediante “um centro de tal índole” que o homem se torna enraizado no espaço (Bollnow, ibidem; p. 58-59, 117). Voltemo-nos, ainda, à idéia do habitar, como o nosso caminhar diário, de que nos falava Heidegger. Segundo vê Norberg-Schulz, é justamente esse fato de estarmos “sempre a caminho” que nos possibilita escolher tanto um lugar, quanto um determinado tipo de companhia para nós. E é ao nos assentarmos em determinado lugar, que nos encontramos a nós próprios, estabelecendo, assim, nosso próprio estar- no-mundo. A partir destas considerações, o autor dirá que há quatro modos de habitar, interrelacionados em seus aspectos essenciais: o habitar natural, o habitar coletivo, o habitar público e o habitar privado (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13)9. O primeiro modo de habitar descrito por Norberg-Schulz, o habitar natural, seria aquele que implica a “domesticação” do meio natural onde se dá esse habitar. Ainda que hoje em dia sejam raras as ocasiões em que o homem passe a viver em um meio ambiente que já não tenha sido previamente “construído”, o autor argumenta que mesmo um lugar que “já existe” também deve ser entendido em termos do desbravamento, ou seja, no sentido de que ainda há a questão original da busca por uma base sólida em um determinado meio para se avançar, com segurança, desbravando outros meios. Os outros modos de habitar ocorreriam quando estivesse superada a fase do “desbravamento” do meio onde nos instalamos. Viriam, então, as formas básicas de relacionamento humano. O meio no qual, então, nos instalamos passa a funcionar como uma espécie de local de intercâmbio, tanto de produtos, quanto de idéias ou sentimentos. Norberg-Schulz lembra-nos que, desde os tempos antigos, o espaço urbano tem sido o palco dos “encontros dos homens”, sendo que “encontros” não significam, necessariamente, “acordos”, mas, sim, o contato entre seres humanos, envolvendo toda a diversidade pertinente a esses homens. Assim, o espaço urbano seria “essencialmente, um lugar de descobertas, uma miríade de possibilidades”. Nele, 9 A descrição dos quatro modos de habitar, a seguir, consta de Norberg-Schulz, ibidem; p. 13. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 26 “o homem ‘habita’, no sentido de experimentar a riqueza do mundo”. Este segundo modo de habitar seria o habitar coletivo. Mas, o nosso “estar sempre a caminho” implica a condição, dentro da imensa variedade de possibilidades que temos no meio coletivo, de fazermos certas escolhas. E, quando essas escolhas são feitas de forma a atender determinados padrões de acordos estabelecidos, experimentamos uma forma mais estruturada de se estar junto a alguém do que um mero encontro. Neste caso, estaríamos falando, de fato, de “acordos”, os quais implicariam interesses ou valores em comum. E para que um acordo possa acontecer, como assinala o autor, há que haver um lugar – um lugar no qual os valores comuns possam ser acolhidos e expressados. Tal lugar pode ser, geralmente, reconhecido em uma instituição ou um edifício público; e o modo de habitar para o qual ele serve pode ser chamado de habitar público – no sentido de se referir a algo partilhado pela comunidade. No entanto, considerando que escolhas também são de natureza pessoal, e que a vida de cada pessoa tem seu curso particular,Norberg-Schulz leva-nos a concluir que o habitar também compreende a escolha de um “pequeno mundo” para nós mesmos, para onde nos retiramos e onde experimentamos o recolhimento de que necessitamos para o desenvolvimento de nossa própria identidade. Assim, o autor passa a falar do habitar privado, referindo-se àquelas ações que ocorrem nesse nosso “pequeno mundo”, afastadas do convívio social e da intrusão de estranhos. E o cenário onde esse habitar privado tem lugar é a casa – ou o lar –, onde experimentamos a chamada “paz doméstica”, e onde reunimos e expressamos as memórias que constituem nosso “mundo pessoal” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13, 91). Desta forma, passamos ver o habitar, que vimos definido mais amplamente por Heidegger como prática universal e essencialmente humana, relacionado à noção trazida por Bollnow, da existência de um ponto de referência fixo que nos apóia em nossa existência no mundo, com o qual estabelecemos uma relação de pertencimento, e ao sentido que Norberg-Schulz dá a esse ponto, como sendo o nosso “pequeno mundo”, designado por nós para ser o lugar aonde nos retiramos e onde, recolhidos e em paz, nos desenvolvemos como indivíduos (Norberg-Schulz, ibidem; p. 7, 13). Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 27 O habitar doméstico e o preservar da vida interior Conforme vimos, a passagem da abordagem do conceito de habitar amplo e essencialmente humano para o habitar privado – ou habitar doméstico, como passarei a chamá-lo – dá-se no sentido de que, ao mesmo tempo em que, como seres humanos inseridos no mundo, habitamos natural, coletiva e publicamente, também habitamos em nosso espaço físico pessoal e privado. É na privacidade nesse âmbito físico, recortado do vasto mundo exterior, que nos recolhemos para nos preservarmos e desenvolvermos como indivíduos. Neste momento, lembremos da relação estabelecida por Heidegger entre o habitar e o cuidar, quando afirma que “o caráter fundamental do habitar é esse cuidar e preservar” algo na sua própria essência, livrando-o das “ameaças” contra o “estado de paz” (Heidegger, 1971, I). Contudo – e, de certa forma, contrapondo-se a este entendimento autêntico do preservar –, isto não significa que passamos a considerar o habitar doméstico como uma prática à parte em relação ao meio em que nos inserimos como habitantes, ou seja, algo que se dá de forma estanque e independentemente das condições encontradas do mundo exterior. Ao contrário, o fato de o homem designar, dentro do mundo em que está inserido como habitante (onde habita natural, coletiva e publicamente), um local para se recolher e habitar privadamente implica uma relação espacial desse meio com seu habitar doméstico; sendo que esse habitar doméstico não ocorre, senão de acordo com as condições do meio em que está inserido. Esta relação, assim como o significado do habitar privado como lugar de recolhimento para o indivíduo, podem ser percebidos através das palavras de Norberg-Schulz: “Para participar do mundo em que estamos inseridos, temos que deixar nossas casas físicas e, no mundo, escolher um caminho. Uma vez cumprida nossa tarefa social, nós nos recolhemos de volta em nossas casas para recuperarmos nossa identidade pessoal. A identidade pessoal é, portanto, um componente do habitar doméstico.” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 89). É neste sentido que o habitar doméstico não deve ser pensado sem que consideremos a conexão entre a vida que se dá no mundo exterior e a vida que Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 28 buscamos preservar desse mundo, no nosso mundo privado e pessoal do habitar doméstico. Neste sentido, nos são úteis algumas reflexões de Alceu Amoroso Lima (1955) e Marshall Berman (1987) que, ao mesmo tempo em que falam da contribuição do mundo exterior à constituição da nossa vida privada – aquela que partilhamos cotidianamente com quem queremos, e que buscamos preservar em nossos ambientes domésticos – falam, também, da importância da preservação da vida interior em relação aos modos de habitar coletivo e público. Ao afirmar que nossa vida interior não é o pólo oposto ao mundo exterior, mas a própria vida exterior – contudo, “transfigurada, transcendentalizada, colocada no plano dos valores supremos, impregnada de eternidade” –, Amoroso Lima dirá que é o mundo exterior que existe para o mundo interior, e não o contrário. Contudo, o autor considera imprescindível estabelecermos a distinção entre a vida social e a vida interior – nossa “vida pessoal” –, esta que tampouco seria “um refúgio dos mutilados ou dos impotentes”, mas, sim, o ápice de tudo o que pudemos receber da vida exterior, da vida psicológica e da vida social: “um aperfeiçoamento, não uma evasão, ou uma mutilação” (Amoroso Lima, ibidem; p. 17, 58). No entanto, dirá o autor, a esfera pública, tanto no âmbito das coisas, quanto das relações sociais, só tem essa qualidade de proporcionar o desenvolvimento de nossa vida interior, na medida em que não perdemos o controle sobre a vida social. Pois, se a deixamos transbordar de suas “margens naturais” e passamos a ser “escravos de seus encantos ou de sua força”, a vida social deixa de ser um mecanismo para nosso aperfeiçoamento e passa a tolher-nos a vida interior, a absorver-nos e a dominar nossos hábitos. Por subverter a hierarquia natural dos valores, este processo representaria, enfim, uma ameaça à própria vida interior (Amoroso Lima, ibidem; p. 58, 59). Assim, é essa vida interior, à qual Amoroso Lima se refere como composta de valores perenes, essenciais, “sobrenaturais” (Amoroso Lima, ibidem; p. 17, 18) –, que buscamos preservar na intimidade privada do nosso espaço doméstico. Berman, por sua vez, em seu amplo painel sobre a modernidade, também estabelece a conexão entre nossa vida interior e o mundo exterior, enfatizando o poder da esfera pública de ingerir-se na esfera privada. Para o autor, o ambiente da modernização, com suas tendências econômicas e sociais, exercem incessantemente uma força transformadora – para o bem ou para o mal – tanto sobre o mundo que nos rodeia, quanto sobre "as vidas interiores dos homens e das mulheres que ocupam Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 29 esse mundo e o fazem caminhar” (Berman, ibidem; p. 330). Segundo Berman, se, por um lado, esse processo de modernização é algo que nos “explora e atormenta”, por outro, ele “nos impele a aprender e a enfrentar o mundo [de ‘incertezas e agitações constantes’] que a modernização constrói, e a lutar por torná-lo o nosso mundo”: para que nele não apenas possamos sobreviver, mas, de fato, nos sentir em casa (Berman, ibidem; p. 94; 330). Contudo, ao concluir sua análise, Berman aponta para os perigos da avidez com que as transformações do contexto desse mundo moderno em que nos inserimos penetram na esfera privada do habitar, assim como para a necessidade de preservarmos a vida que vivemos na intimidade do ambiente doméstico. Ao se referir aos “que são mais felizes na tranqüilidade doméstica” como aqueles que, “talvez”, sejam os mais vulneráveis aos demônios que acediam esse mundo”, o autor dirá da necessidade de nos esforçarmos desesperada e heroicamente para que essa vida privada – “infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária” – seja preservada; ainda que nossa tentativa possa vir a falhar (Berman, ibidem; p. 330, 14). Em sua entrevista, Márcio, 41 anos, diretor de teatro, contou‐me que, ao deixar Curitiba, sua cidade natal, em busca das excitantes possibilidades do mundo cultural da cidade de São Paulo, que julgou ser onde estariaseu futuro profissional, deparou‐ se com a força do espaço público da metrópole, tanto para influir no seu enriquecimento pessoal, quanto para o absorvê‐lo, a ponto de sufocá‐lo. Contou‐me que o alívio da opressão que o mundo público exercia sobre sua vida interior se deu, justamente, através da busca pelo “equivalente” ao habitar doméstico que deixara em Curitiba. Só então, pôde voltar a experimentar o perceber‐se e construir‐se, como indivíduo: “A dificuldade, ao me mudar pra São Paulo, foi justamente que se o espaço público era infinitamente mais estimulante pra minha construção pessoal, pra invenção de mim mesmo, a falta do espaço privado quase me matou... Mesmo! Demorei muito tempo para resgatar algo que, no Paraná, eu nem percebia que tinha; algo preciosíssimo, que é o senso de poder crescer num espaço. Porque eu sinto que tem uma coisa da gente se construir no espaço em que mora... [...] o espaço público das ruas engarrafadas, lugares deteriorados, urbe que não flui, começou a deixar de ser um estímulo e passou a me oprimir. Depois de morar em Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 30 dois ou três lugares diferentes, literalmente, fui em busca do equivalente ao meu apartamento em Curitiba, que por sua vez era o equivalente ao apartamento onde eu tinha passado a adolescência – espaço que foi o primeiro que permitiu essa construção [...]” (Márcio) O habitar doméstico como uma micro‐cultura Partindo das reflexões acima, retomo especialmente a consideração de Norberg-Schulz, que vê o habitar doméstico como um processo que envolve escolhas de natureza pessoal e particular, constituindo, assim, o “pequeno mundo” privado do indivíduo ou grupo de indivíduos que o constituem. Considerando-se que cada habitar doméstico tem, como resultado do conjunto de valores e padrões de comportamento desse(s) indivíduo(s), um caráter também particular e específico, proponho considerar o conjunto das relações estabelecidas no e com o habitar doméstico como uma espécie de micro-cultura – proposta que passo a esclarecer a seguir: Comecemos por examinar a relação feita por Amos Rapoport (1969) entre o conceito de “necessidades básicas” e as questões formais e culturais da moradia. Rapoport dirá que quase todas essas necessidades, ou a maior parte delas, envolvem julgamentos de valores e, portanto, escolhas – sendo, assim, de natureza cultural10. Assim, as decisões/escolhas – sejam elas formais ou funcionais – com relação à moradia estariam submetidas ao contexto cultural de quem as define e sujeitas à definição do que essas culturas consideram como principal componente de uma visão de mundo. Se, por um lado, cada contexto cultural específico poderá destacar um determinado aspecto – como, por exemplo, o conforto, ou utilidade, ou religião, etc. – como principal componente de sua visão de mundo, e as decisões/escolhas, então realizadas, estarão submetidas a essas visões, por outro lado, cabe ressaltar que até mesmo a definição de conceitos que consideramos corriqueiros e familiares, como, por exemplo, o de utilidade ou de conforto, será menos óbvia do que se supõe – não 10 Rapoport esclarece, em nota, que o conceito de necessidades básicas, desenvolvido por ele e usado neste livro, encontra posição similar em Lefèbvre, La Terre et L’évolution Humaine (Paris: La Renaissance du Livre, 1922; p. 287 ff). (Rapoport, ibidem; p. 60). Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 31 apenas na idéia que se faz do que é confortável (ou útil), mas mesmo na busca expressa por essas sensações (Rapoport, ibidem; p. 60-62). Buscando definir a experiência do conforto, por exemplo, Witold Rybczynski pondera que se o conforto fosse algo objetivo, deveria-nos ser possível medi-lo – o que é, segundo ele, mais difícil do que parece. Pois “é mais fácil saber quando sentimos conforto, do que por quê” (Rybczynski, 1996; p. 230). Considerando o contexto cultural como influenciador das escolhas e decisões que envolvem as questões formais e funcionais do espaço do habitar doméstico, assim como o modo como esse habitar é percebido e vivenciado por aqueles que ali habitam, cabe justificar a proposta feita anteriormente – de considerar o contexto das relações do habitar doméstico como uma espécie de micro-cultura –, o que procuro fazer, agora, através de algumas reflexões teóricas sobre o próprio conceito de cultura. O sociólogo David Chaneyi observa que cultura não é um termo neutro, ou auto-evidente, mas que, sim, foi desenvolvido através de uma grande sobreposição de reflexões teóricas, levantamentos descritivos e relatórios etnográficos11; passou a fazer parte da teoria social, mas também a ser aceito no discurso acadêmico como um recurso para o entendimento das diferenças e transformações nos modos de vida, tornando-se uma das principais bases conceituais do pensamento social da era moderna (Chaney, 2002; p. 7-8). O conceito de cultura, ainda conforme Chaney, refere-se ao fato de haver maneiras distintas de se fazerem determinadas coisas – como se realiza um determinado trabalho manual, como se cozinha e como se come, o que se espera do comportamento das crianças, etc.: maneiras estas que, normalmente imbuídas de força moral12, geralmente mantidas através de tradições e reproduzidas ao longo de gerações, caracterizam um determinado grupo social e constituem o elemento central da identidade desse grupo. Representando um grau de vida em grupo que precede, e é mais fundamental, que a própria experiência individual (Chaney, ibidem; p. 8). 11 Em um estudo clássico sobre a cultura, Kroeber & Kluckhohn (1952) encontraram 164 definições para cultura dentro da literatura antropológica e social. Após esse trabalho ter sido lançado, muitas outras definições foram formuladas, sendo que ainda não há um consenso, afirma Richard Seel (2000). 12 O termo “moral”, aqui utilizado por Chaney, é entendido como o “conjunto das regras, preceitos etc. característicos de determinado grupo social que os estabelece e defende” (segundo definição do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2001). Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 32 Segundo definição da UNESCO, “Cultura pode ser considerada como o variado conjunto de características espirituais, materiais, intelectuais e emocionais de uma sociedade ou grupo social, e que engloba, além de arte e literatura, estilos de vida, modos de convivência, sistema de valores, tradições e crenças.”13 Segundo o antropólogo Clifford Geertzii, cultura representa “um sistema de concepções herdadas, expressas de forma simbólica, através das quais as pessoas comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento sobre a vida, assim como suas atitudes perante ela” (Geertz, 1973; Apud Coolen and Ozaki, 2004). E para o geógrafo Milton Santos, além de ser a herança dessas relações profundas entre o homem e o seu meio, cultura é, também, “um reaprendizado” dessas relações, a forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo (Santos, 2004; p. 326). Na mesma direção de Santos, a antropóloga Mary Douglasiii vê cultura como algo que não é estático, mas criado, afirmado e expresso constantemente (Douglas, 1985; Apud Seel, 2000; p. 3). E, ainda, reafirmando o critério de entendimento de cultura como uma constante atualização de padrões das relações entre as pessoas e o meio em que habitam, a antropóloga Eunice Ribeiro Durham também se refere à cultura como o contínuo processo de "criação, transmissão e reformulação” do ambiente habitado pelo homem – ambiente este, que é artificialmenteelaborado, e que está em constante transformação (Apud Homem, 1996; p. 17)14. Para Henny Coolen e Ritsuko Ozakiiv, ainda que não possa ser observada, a cultura é percebida através de manifestações tanto “latentes” quanto “explícitas”. Sendo um sistema de significados compartilhados, ela cria valores e normas, os quais são incorporados às atividades cotidianas – o que pode, parcialmente, justificar as ações das pessoas, suas escolhas e julgamentos em relação ao habitar doméstico, como, por exemplo, preferências por determinadas características em suas casas, ou a opção por usar o espaço doméstico de determinada maneira (Coolen e Ozaki, 2004). Ainda que não haja uma verdade única sobre a definição de cultura, pode- se elaborar, aqui, um entendimento substanciado a partir de idéias-chave contidas nas reflexões acima. Assim, apreende-se o termo cultura como um conjunto partilhado de valores e padrões de comunicação entre indivíduos de um determinado grupo, assim 13 Definição a que se chegou na Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (MONDIACLUT), ocorrida na Cidade do México (26/jul-6/out/1982). In: http://www.jura.ch/acju/Departements/DED/OCC/Documents/pdf/Unesco.pdf. 14 Maria C. N. Homem (1996) refere-se ao “Texto II”, de Eunice Ribeiro Durham, citado por Antônio Augusto Arantes (1984). Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 33 como de entendimento desse grupo em relação ao seu meio. Preservados e transmitidos ao longo do tempo, esses valores e padrões estão em contínuo processo de criação e reformulação, através das relações cotidianas estabelecidas entre os indivíduos desse grupo. Volto, agora, à consideração inicial, de que cada habitar doméstico tem, como resultado do conjunto de valores e padrões de comportamento do(s) indivíduo(s) que o constitui(em), um caráter também particular e específico. Esse conjunto de valores e padrões de comportamento, aplicado à prática do cotidiano doméstico, ao mesmo tempo em que norteia as escolhas formais e funcionais desse(s) indivíduo(s) em relação ao seu espaço doméstico, particulariza e especifica as relações estabelecidas por eles nesse e com esse espaço. É por considerar que essas especificidades passam a servir de meio de identificação do indivíduo, ou grupo de indivíduos, com seu habitar doméstico e a propiciar a forma como esse habitar é percebido e vivenciado por eles, que passo a considerar o contexto das relações do habitar doméstico como uma espécie de micro-cultura. E aqui retomo o fato característico e significante da cultura apontado por Rapoport, que é a escolha, ou a solução específica para determinadas necessidades. Segundo a análise do autor, se aceitamos que o abrigo é uma necessidade básica – “e até isso pode ser questionado”, dirá –, então, a “forma da casa depende de como ‘abrigo’, ‘moradia’, e ‘necessidade’ são definidos pelo grupo usuário”. Essa definição reflete-se em diferentes interpretações dadas a conceitos como o de “lar”, “privacidade”, “territorialidade”, etc. Da mesma maneira, se aceitamos, como necessidade básica, a proteção contra as intempéries e ameaças humanas ou animais, a maneira como esta proteção é atingida sairá de uma gama de escolhas, limitadas por fatores físicos, psicológicos e culturais. Esta impossibilidade de generalização do modo como as pessoas procuram atender às suas necessidades em relação ao habitar doméstico significa que os mesmos objetivos podem ser atingidos de muitas maneiras diferentes; e que o modo como as coisas são feitas poderá ser mais importante do que o quê se faz (Rapoport, 1969; p.60-61). Sob a ótica destas considerações, pode-se verificar o fato de que espaços domésticos, ainda que inseridos em contextos socioeconômicos bem semelhantes, poderão expressar, através de seu habitar doméstico, inúmeros modos de viver, surpreendentemente particulares e distintos. Isto pode ser observado em um edifício habitacional multifamiliar, onde, na maioria das vezes, as unidades habitacionais são Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 34 projetadas com intenções arquitetônicas semelhantes, se não idênticas (Camargo, 2003; p. 78-95). Ainda que se trate de grupos usuários inseridos em faixas de renda relativamente equivalentes, e que esses grupos partilhem não só o mesmo bairro, mas a mesma tipologia de habitação, suas particulares escolhas e julgamentos, resultados de valores e significados específicos de cada grupo usuário, especificam a linguagem estandartizada de seus apartamentos, convertendo o que era padrão em um mundo particular, diferenciado e único. Como bem observa Yi-Fu Tuan, mais útil do que entendermos a casa como local natural ou físico, ou mesmo como um ambiente físico pura e simplesmente construído, devemos começar pelo conceito de que “[casa] é uma unidade de espaço organizada mentalmente e materialmente para satisfazer as – tanto reais quanto percebidas – necessidades básicas biosociais das pessoas e, além disso, suas mais altas aspirações político-estéticas” (Tuan, 1991; p. 102. Apud Cresswell, 2004; p. 109). E, ainda, para David Morleyv, a função e o significado da casa variarão em função do contexto em que esse habitar estiver inserido (Morley, 2000; p. 29). Partindo-se dos argumentos de Tuan e Morley, pode-se associar a idéia do habitar doméstico enquanto micro-cultura ao exemplo específico, trazido por este último, de ser uma função da casa a de “local de resistência”, no caso de o habitar doméstico estar inserido em um meio (público e coletivo) socialmente hostil. Tal como descreve Bell Hooks, diante da condição dos negros, como habitantes de uma sociedade que mantém posturas racistas15, a construção de um habitar doméstico “autônomo”, em termos de sua cultura negra – um “black home” –, é “crucial para o desenvolvimento de qualquer ‘comunidade de resistência’ mais abrangente”. Embora frágeis ou pouco substanciais (ainda que seja uma cabana rústica ou um barraco), observa a autora, esses espaços privados têm uma dimensão política, no sentido de serem o lugar onde, historicamente, seus habitantes sempre puderam afirmar-se e apoiar-se uns aos outros, restaurando, pois, sua dignidade danificada no mundo exterior (Hooks, 1990; p. 47; Apud Morley, 2000; p. 29). ... 15 Especificamente, a autora refere-se à condição discriminatória experimentada pela população negra nos Estados Unidos. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 35 Antes de considerar concluída a especificação do habitar doméstico em relação ao habitar universal, considero importante deixar ressaltados três aspectos do habitar doméstico que puderam ser inferidos das considerações vistas neste capítulo. Primeiro, o fato de que este modo de habitar é algo tão amplo quanto a própria existência do indivíduo. Isto, no sentido de que ele não se dá isoladamente, ou independente das interferências do mundo mais vasto em que nos inserimos como seres mortais – as quais não apenas permeiam nossa esfera doméstica, mas se tornam parte de nossa vida cotidiana privada, muitas vezes enriquecendo-a e aprimorando-a, muitas vezes oprimindo-a e sufocando-a. Segundo, que é justamente o caráter de “entidade privada” do habitar doméstico, de cujo respaldo nos valemos para a preservação de nossa vida interior, que legitima este modo de habitar como o habitar do indivíduo per se. E terceiro, o que leva em conta o caráter da particularidade do habitar doméstico – e o fato que daí decorre –, de que esse habitar pode ter muitos, quase que incontáveis, significados particularespara cada indivíduo (ou grupo de indivíduos) que habita domesticamente. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 36 Parte II Dimensões do habitar doméstico Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 37 Parte II Dimensões do habitar doméstico A partir do que vimos a respeito do habitar doméstico, partamos para a proposta feita, inicialmente, para este trabalho, ou seja, analisar o habitar doméstico segundo o modo como ele é percebido e vivenciado por seus usuários: proposta que leva em consideração o fato de o habitar doméstico ser uma prática que, sim, está inserida em um determinado contexto sociocultural; contudo, que porta os significados particulares da “micro-cultura” que ele próprio encerra. Considerando a importância dos depoimentos registrados para a maneira com que essa análise passa a ser conduzida – isto, pelo fato de as impressões, opiniões e escolhas presentes nas falas dos entrevistados representarem suas concepções particulares, ou do próprio grupo doméstico a quem pertencem, a respeito do habitar doméstico –, foi a maior recorrência com que determinados aspectos foram mencionados nessas entrevistas que serviu como fator revelador de sua relevância e pertinência ao objeto investigado, definindo, assim, o critério de escolha das cinco, entre as inúmeras dimensões do habitar doméstico, as quais passo a abordar a seguir: a casa física, os usos objetivo e subjetivo da casa, privacidade e intimidade domésticas, o cotidiano doméstico e o lugar do habitar doméstico. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 38 Capítulo 1 ‐ A casa física “O coração que tem fé não gosta de vagar sem uma moradia. Ele necessita de um ponto fixo para onde retornar, ele quer uma casa de verdade.” (Vesaas, 1971. Apud Norberg-Schulz, 1985, p. 12) Na parte anterior, procurei conectar o habitar, como prática universal e essencialmente humana, à relação específica e significativa de identificação que estabelecemos com o meio em que o praticamos. Ao tratar esse meio como um ponto de referência física em relação ao mundo vasto – mundo este, que habitamos em um sentido amplo e universal –, cheguei especificamente ao lugar que, em nosso errar pela Terra, designamos como nosso “pequeno mundo” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13 e Bollnow, 1969; p. 58), para onde nos recolhemos para praticar um modo de habitar que se caracteriza por seu caráter individual e privado – o nosso habitar doméstico. Passemos, agora, a analisar em que sentido nós nos servimos da instrumentalidade desse lugar como propiciadora do nosso habitar doméstico. Comecemos por considerar a observação de Otto F. Bollnow, segundo a qual, para que possamos viver “com sossego” nesse “lugar fixo no espaço” e que, de fato, experimentemos o pertencimento e o enraizamento a esse lugar, ele não deve ser compreendido como um “simples ponto”, de onde meramente partem nossos caminhos para o mundo. Será preciso que ele possua uma “extensão” por onde possamos nos mover “livres e despreocupados”, e onde possamos encontrar apoio firme, segurança e paz. Relacionando Saint-Exupéry (1948) – “são necessários muros Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 39 sólidos de contenção, sem os quais não se pode viver”16– e Heidegger17 – “a paz […] em que se vive está relacionada com o entorno do domínio do habitado” – Bollnow concluirá que para habitar em paz, tornam-se imprescindíveis “o teto e os muros protetores”, através de cuja presença um mero local de abrigo torna-se casa, em seu “sentido autêntico” (Bollnow, ibidem; p. 121-122). Na mesma direção de Bollnow, atribuindo o caráter da materialidade ao lugar do habitar doméstico, Christian Norberg-Schulz dirá que esse habitar tem suas condições satisfeitas pelo espaço organizado e pela forma construída – os quais, juntos, constituem o lugar concreto do habitar. Por meio das funções arquitetônicas desse lugar – a casa construída – estabelecemos com ele uma relação de “incorporação” e “admissão” do nosso habitar. Ou seja, o meio físico que habitamos passa tanto a incorporar os significados que lhe atribuímos através de nossas ações diárias, quanto a permitir que essas ações, de fato, aconteçam em seu espaço (Norberg-Schulz, ibidem; 7, 15, 25). Também David Chaney refere-se a esse espaço concreto como propiciador e provedor do modo como se dão as relações cotidianas do habitar do homem. Para o autor, o habitar doméstico implica um espaço concreto; sendo que a forma física com que esse espaço é estruturado representa “literalmente, a forma do habitar doméstico ali praticado”, em termos de códigos de usos e funções desse espaço, atribuições de significados e valores partilhados por seus habitantes, etc. (Chaney, 2002; p. 74-75). Assim, como continuação natural do que vimos na Parte I, nesta primeira dimensão do habitar doméstico a ser abordada – a casa física –, passo a enfocar o habitar doméstico como algo materializado e localizado no espaço físico da casa; sendo que a investigação que proponho aqui, terá o sentido não de especificar a natureza física desse espaço – segundo as contingências arquitetônicas que envolvem este tema –, mas de entendê-la como o “âmbito espacial”18 do habitar doméstico: seja ela uma casa convencional, um apartamento na cidade, um flat, um asilo para idosos, um trailer, ou até mesmo uma tenda de circo. Antes, porém, cabe um esclarecimento quanto ao termo “casa”, que passarei a utilizar a partir de agora. O Professor Celso Lamparelli costuma definir 16 Apud Bollnow (ibidem; p. 121). 17 Em “Construir, Habitar, Pensar” (1971). 18 Expressão usada por Bollnow (ibidem; p. 121). Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado 40 claramente os termos casa, moradia e habitação19: “casa é o objeto material construído, com características físicas e localização próprias”; “moradia é a casa habitada, onde se exercem as potencialidades da casa e se recebem as contribuições dos moradores; é insuficiente com relação à infra-estrutura externa (água, eletricidade, etc.)”. Já na habitação, há “o extravasamento das interações da moradia”, envolvendo o contexto externo, como a vizinhança, escolas, clubes, mercados, etc.: é o “meio que ‘aceita’ a relação dos moradores e interage com eles”. No caso desta pesquisa, em que investigo as impressões particulares de indivíduos sobre seu habitar doméstico, verifiquei, nas entrevistas realizadas, que quando as pessoas pretendem se referir ao espaço físico no qual se dão as relações privadas desse habitar – sejam elas físicas ou emocionais –, a palavra corriqueiramente usada é “casa”: “lá, em casa...”; “casa, pra mim, é...”, etc. A palavra “casa”, no contexto que envolve não apenas a sua condição de matéria física, mas a percepção subjetiva advinda da experiência de habitá-la, encerraria a conotação de “lar”, no sentido que damos a esta palavra na Língua Portuguesa. A etimologia ajuda-nos a entender a relação dos sentidos das palavras casa e lar: Lar do Latim lar,aris. m.: Casa, interior da casa, chaminé, fogão. Lara, ae. f.: ninfa, mãe dos lares ou deuses da casa (Cretella e Cintra, 1953) Casa do Latim casa,ae. f.: choupana (ibidem) A palavra casa passou a ser utilizada e difundida pelo latim vulgar com o significado de morada, ao invés da palavra domus, us, que tem o mesmo significado, no Latim clássico20 Diferentemente do que ocorre em outras línguas, nas quais
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