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1 C u l t u r a R e l i g i o s a Unidade 3 Contextualização existencial e histórico-social do Sagrado A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe. (Mario Quintana) Prof. Camilo de Lelis, teólogo. Departamento de Ciências da Religião – PUC Minas Da Experiência Humana à Experiência de Deus Neste momento precisamos contextualizar a questão religiosa no seu aspecto existencial, ou seja, naquilo que se refere à nossa existência. Caso contrario a religião não teria “pega” na realidade e não poderia acrescentar nada ao ser humano. Vamos entrar agora no nascedouro da experiência religiosa, nas verdadeiras origens do sagrado. I Experiência Humana Muitos fazem da vida uma existência, como se existir fosse viver! A palavra existência mostra o sentido e direção de toda vida presente em nosso planeta. Ex-istir significa “sair para fora” revela o movimento de toda a natureza que é de sair, desabrochar, crescer e ser. Uma planta está saindo assim como um gavião e uma pessoa em processo de maturidade. A vida 2 movimenta-se de dentro para fora em uma grande dança de revelação e transparência. A partir da existência precisamos refletir sobre a aventura do ser humano de experimentar a Deus e a sua própria existência. Nossa reflexão começa a partir da experiência humana, que consideramos ser a experiência de base para toda realidade da experiência de Deus. • Experiência Nossa primeira ocupação será entender o significado da palavra experiência: Ex – peri – ência poderia ser entendido como “sair para aprender fora”, ou seja, seria a maneira ou forma própria do ser humano de sair (existência) com a finalidade de aprendizado. A expressão “sair” aponta para um movimento ou trabalho que exige esforço e luta. Esse movimento demarca um novo perímetro ou período que está “fora” daquilo que conheço. Assim podemos dizer que a experiência é um movimento de aprendizado “fora” daquela área que domino. Essa saída, ao mesmo tempo em que apresenta um perigo ou risco (pois a experiência pode dar errado ou não se concluir), se torna também uma oportunidade de especialização e aprofundamento em uma área antes desconhecida. A pergunta que surge agora é: qual é o “jeito humano” de sair para aprender fora? Um cachorro pode “dar cabeçadas” na rua e voltar mais esperto para seu reduto. Mas o ser humano tem um jeito próprio de aprender que marca profundamente sua existência na história. Destacamos, então, as duas dimensões do “jeito” humano de fazer experiência, ou seja, de aprender. Dimensão relacional A dimensão relacional é o primeiro jeito do ser humano de fazer experiência. É a dimensão de relação com o mundo, com o grupo e com o indivíduo. Na relação com o mundo acontece o contato com a natureza e com todos os seus elementos. Pode ser a relação com a água ao ser ingerida ou ao percorrer o corpo numa ducha refrescante, como ato de comer ou contemplar um lindo pôr do sol, como o simples ato de respirar. A relação com o grupo vai se dar nas diversas interações que demonstram um sentido de pertença ao mesmo. Assim é muito importante a pertença a um grupo de voluntários, a uma família, a um grupo de pessoas que gostam da poesia de Fernando Pessoa, a uma torcida de futebol ou até mesmo ser contado como habitante de uma determinada cidade. Essa 3 relação com grupos é muito importante para o ser humano e leva a vários aprendizados. Há até mesmo uma necessidade desse tipo de relação. Já a relação com o indivíduo acontece de forma específica e unitária. A pessoa se relaciona com um determinado membro de uma família ou com um dos seus colegas em uma grande sala de aula. Essa relação acontece de forma individual e é muito importante para o desenvolvimento social das pessoas. Dimensão pessoal e subjetiva Essa segunda dimensão é a expressão máxima da interioridade humana. É a dimensão dos desejos, da utopia e dos projetos individuais que cada um trás dentro de si. Essa dimensão é intra, ou seja, é um movimento interior que faz de cada pessoa um ser único e indecifrável. Esse mistério da interioridade humana se expressa em um movimento pendular entre a subjetividade e a intersubjetividade. Existe portanto um movimento da pessoa consigo mesma e também com a interioridade de outra pessoa. A relação entre subjetividades se coloca como uma das mais profundas da vida humana. Ela marca toda a existência e pode levar a experiências determinantes para a felicidade humana. Embora esse nível de relação aconteça de forma sutil e menos explícita, sua importância é fundamental no aprendizado humano. Resumindo É assim que o ser humano faz experiência: na dimensão relacional com o mundo, o grupo e o indivíduo; e também na dimensão pessoal de sua interioridade. Chamamos isso de dimensão ad’extra e ad’intra do ser humano. Dimensão para fora da pessoa (ad’extra) e para dentro (ad’intra). Esse é o “jeito” humano de “sair para aprender fora” e de alcançar a maturidade. Conseqüências da Experiência Humana Essa grande experiência humana vai gerar uma nova consciência na pessoa humana. Vai gerar uma maturidade e levar a uma grande tomada de consciência na existência humana. Ao fazer uma boa experiência humana surge a consciência das necessidades básicas e da tríplice limitação, que é próprio de todos, a saber: Necessidades básicas O ser humano tem necessidades básicas que são fundamentais para a maturidade humana. Podem ser as necessidades físicas de comer bem, 4 hidratar, exercitar o corpo, etc. Podem ser as necessidades psíquicas de sentir- se bem e de conseguir lidar com os desafios da vida. Podem ser as necessidades sócio-culturais de organização e cidadania. Podem ser, finalmente, as necessidades espirituais e religiosas de esperança e valores que norteia a existência humana. Todas essas necessidades são fundamentais para uma existência madura e feliz. A Experiência humana ajuda a tomar consciência disso e leva a um maior cuidado consigo mesmo e com os outros. Depois vem a consciência da nossa Tríplice limitação. Tríplice Limitação A consciência dessa tríplice limitação é resultado de um trabalho intenso de experiências que humanizam e deixam as pessoas conscientes de seu papel na existência humana. Finitude A consciência da finitude humana surge a partir de uma boa experiência humana, ou seja, quando se vive profundamente a dimensão relacional e a dimensão pessoal. Essa consciência é importante por que ajuda a perceber que não somos perfeitos, ajudando assim a ter um maior equilíbrio. É importante saber que as coisas têm um fim e que essa limitação deve ser trabalhada. Fragmentação Depois temos a consciência da fragmentação que deixa o ser humano sempre com asensação de não estar completo. Nunca pode estar totalmente em algum lugar ou atividade. Sempre será um ser que busca a totalidade. Falta de Sentido Finalmente vem a consciência da falta de sentido e que é próprio do ser humano. O único animal que precisa de sentido é o homem. Nos animais basta ter o que comer e beber, mas com o ser humano é diferente: mesmo que não lhe falte dinheiro, emprego, família, amigos e tudo mais, ele vai precisar de um sentido para lidar com tudo isso. A partir da experiência humana essa consciência vem à tona e inicia-se a busca do sentido. Resumindo Definimos então a Experiência Humana como um jeito próprio de sair para aprender fora, ou seja, na dimensão relacional e pessoal. Entendemos ainda que essa saída leva a pessoa à tomada de consciência de sua tríplice limitação e conseqüentemente inicia-se o processo da maturidade humana. Visto isso precisamos entender o que é Experiência de Deus. 5 II Experiência de Deus Quem é Deus na sua última profundidade, só podemos aprendê-lo a partir da experiência do amor! (Leonardo Boff) Se Experiência humana é o jeito próprio da pessoa sair para aprender fora, experiência de Deus seria o jeito do ser humano de sair para aprender com o mistério, que em última instância é Deus mesmo. Vamos ver o que é uma verdadeira Experiência de Deus e como fazê-la. Para isso vamos enumerar suas principais características e ver as implicações das mesmas na vida humana. Características da Experiência de Deus 1º característica Dá-se na Experiência Humana Toda Experiência de Deus vai ter como base e sustentação a Experiência Humana. Isso quer dizer que se uma pessoa tem uma Experiência Humana desequilibrada, também sua experiência com Deus vai ter algo de desequilíbrio. Isso por que quem faz a Experiência de Deus são pessoas com suas realidades humanas e existenciais. Se um engenheiro, por exemplo, faz o alicerce de um prédio de forma desajustada, podemos certamente esperar problemas com a segurança e estabilidade dos apartamentos. “Mas não é Deus que toca o ser humano e Ele não é perfeito e poderoso?” poderia você argumentar. Sim, Deus é poderoso, mas Ele não anula o que fez no ser humano, ou seja, não violenta a natureza e a liberdade de cada um. A dimensão do crescimento e da maturidade pertence à esfera humana, pertence à responsabilidade do indivíduo. Assim, na experiência judeu-cristã, a ordem dada à humanidade é: “crescei e multiplicai!” Portanto uma boa Experiência Humana já prepara a pessoa para a Experiência de Deus. A duas realidades estão inter-ligada e são co-dependentes. Percebemos então, que por trás de muitos erros e exageros religiosos está uma Experiência Humana fraca e também imatura. 6 2º característica Sacia as necessidades básicas A Experiência de Deus vai de encontro com nossas necessidades mais básicas. Ela ajuda a saciar as necessidades humanas e deixam a pessoa mais inteira e realizada. Até mesmo as necessidades físicas e biológicas podem ser afetadas pela Experiência de Deus. Pessoas que possuem uma fé sentem um reforço na sua defesa imunológica e até mesmo se recuperam mais rápido de cirurgias e doenças. As pesquisas que comprovam essa realidade são muitas e revelam essa ligação profunda entre a religiosidade e o corpo. Também nas outras áreas existe essa relação profunda, ou seja a Experiência de Deus vai de encontro ao que existe de mais básico na pessoa. 3º característica Sacia a Tríplice Limitação A Experiência de Deus vai também saciar nossa tríplice limitação indo de encontro a cada uma delas.. Na finitude nos deparamos com nosso limite e com o fim ou inconstância de tudo. Deus se apresenta como o Infinito e faz propostas de eternidade, ou seja,mostra um amor e uma promessa de vida que rompe todos os limites. Nessa experiência a pessoa se sente consolada e “bebe do infinito” alargando assim seus horizontes. Na fragmentação o ser humano se depara com a inteireza e completude de Deus. Então a Experiência de Deus vai preencher (sem eliminar) a fragmentação e a falta de inteireza da pessoa. Por essa experiência é possível ir além de nossa dispersão interior e buscar a completude de vida. Na falta de sentido a Experiência de Deus vai colocar a pessoa em contato com uma esperança e um sentido que só pode vir de Deus. Nessa experiência a pessoa se torna capaz de dar sentido a toda e qualquer realidade, até mesmo na morte. 4º característica É um processo contínuo A é um processo que não deve terminar nunca, ou seja, deve durar enquanto a pessoa viver. A vida humana precisa dessa experiência para ser mais intensa e chegar na felicidade. Poderíamos chamá-la de conversão contínua, uma vez que seu processo leva à maturidade ou à “santidade”. 7 5º característica É uma aventura Aventura como é uma experiência de amor e de relacionamento. Também a Experiência de Deus é um caminho que tem surpresas, adaptações, planejamentos, conseqüências e até mesmo perigos. Como qualquer aventura é preciso se preparar e contar com a ajuda de pessoas mais experientes. Esse aprendizado que vem pela Experiência de Deus esta memorizada nas histórias e nas espiritualidades das religiões e dos grandes místicos. 6º característica É uma experiência comprometida A Experiência de Deus é diferente de “vivência de Deus”. A Experiência de Deus, segundo Jung Mo Sung, tem que modificar nossa vida. É importante que estes aspectos esteja presentes para que a experiência seja real e altere significativamente a nossa existência. E o que seria então “vivência de Deus”? É quando somos “tocados” por Deus e sentimos algo de diferente acontecendo. Este toque pode se dar em uma celebração religiosa, em um passeio pela natureza, em meio a uma oração ou diante de uma situação dramática na vida. A pessoa se dá conta de que recebeu uma graça ou foi iluminada pela presença de Deus. Isso não é uma Experiência de Deus, mas uma vivência de Deus. Todos podem ter “vivências de Deus”, até mesmo no nível inconsciente como é o caso do ateu, mas a Experiência de Deus supõe aqueles três aspectos nomeados por Jung Mo Sung e um comprometimento com a fé. Vamos dar um exemplo: um dia você sentiu vontade de fazer este curso de contábeis, foi “tocado” pelo testemunho de um profissional da área ou desenvolveu aos poucos uma paixão pelo curso. Então você foi à luta. Estudou, fez vestibular e se matriculou. Hoje você que está no quinto período de Ciências Contábeis já está fazendo uma “experiência de contábeis”, está envolvido e investe no curso, faz trabalhos e dedica tempo, está presente nas provas presenciais e sem dúvida tudo isso modificou sua vida. Isso equivale, analogicamente, à Experiência de Deus. Mas existem pessoas que ficaram apenas com aquele primeiro desejo de fazer o curso. Muitos podem até passar a vida sentido vontade de fazer contábeis, mas nunca efetivam esse desejo ou pagam o “preço” para alcançá-lo. Isso é uma “vivência de contábeis”. 8 Assim a Experiência de Deus supõe um itinerário, um caminho religioso e de fé que leva à maturidade espiritual. Concluindo podemos dizer que a Experiência de Deus é profundamente humana e mostra que o relacionamento com o sagrado é essencial. A Experiência Humana e a Experiência de Deus mostram que ofenômeno religioso está contextualizado na existência humana concreta e por isso não deve ser menosprezada ou banalizada como uma invenção das religiões. Da subjetividade à coletividade: o histórico-social. O ser humano é um animal que tem sede do infinito. Sua fome não é só de pão e ciência. Ele consome símbolos, dança seus anseios, constrói templos e organiza grupos religiosos. A sociologia nunca encontrou, desde os períodos pré-históricos, um povo ou nação sem religião. Encontrou povos que não tinham uma filosofia, um exército organizado e nem mesmo uma escrita estabelecida. Mas todos tiveram manifestações religiosas das mais simples as mais complexas possíveis. Por isso, entre os símbolos, a religião tem ocupado na história da humanidade posição de relevância. Desde as tribos humanas mais simples nas suas estruturas sociais até as sociedades super modernas os humanos vêm tecendo redes maravilhosas de símbolos religiosos. O ser humano é como um espelho que reflete a luz infinita que é todo mistério. A fonte da luz permanece sempre potente e irradiante. Mas o espelho humano que a reflete, passa por constantes fundições com as complexas situações sócio-culturais e antropológicas. Assim, toda manifestação vem marcada pelo seu contexto histórico-social e com uma certa dose de mutação. A busca do sagrado sofre, além do contexto cultural, mutações de ordem temporal e de momentos existenciais da humanidade. Um olhar atento pode nos revelar que a busca do sagrado passou por fases ligadas ao seu contexto histórico e à mentalidade de cada época. Analisar o sagrado nestes momentos históricos ajuda a pensar as experiências humanas e o caminho pelo qual ruma a humanidade. Já observamos na reflexão sobre a experiência humana e a experiência de Deus que a dimensão religiosa faz parte da estrutura profunda do ser humano. Assim, a negação ou repressão dessa dimensão religiosa ultrapassou o nível simplesmente individual e atingiu toda a coletividade. De alguma forma toda uma nação ou civilização podem sentir os efeitos desses processos de busca ou rejeição do sagrado. Vamos analisar alguns períodos da história da busca do sagrado para entendermos melhor os acontecimentos de hoje. Seria ingenuidade pensar o fenômeno religioso e a busca do sagrado hoje sem compreendermos seu contexto histórico-social e sua memória antropológica. Como método didático e simbólico usaremos as mudanças das estações do tempo como metáfora das mudanças na busca pelo sagrado. Verão, inverno e primavera são imagens ricas e carregadas de meta-linguagem, possibilitando uma melhor compreensão do complexo movimento de busca do sagrado no Ocidente. 9 a) A luminosa estação do verão “Já bate o sino, bate na catedral E o som penetra todos os portais A igreja está chamando seus fiéis Para rezar por seu Senhor Para cantar a ressurreição. ... Já bate o sino, bate no coração E o povo põe de lado a sua dor Pelas ruas capistranas de toda cor Esquece a sua paixão Para viver a do Senhor.” (Milton Nascimento) A estação do verão é marcada pela luminosidade, pelo calor e por expressivas manifestações de festa e divertimento. No verão as pessoas ficam mais “extrovertidas”, animadas e buscam atividades mais explícitas. A busca do sagrado, em um primeiro momento, mostra os seres humanos envoltos por uma abundante luminosidade. Deus estava tão presente e integrado na realidade social e pessoal que nada escapava a sua irradiação. Tudo era sagrado. O cosmo e a sociedade cantavam louvores à divindade que tudo habitava. No mundo grego a função sagrada estava presente no exercício do pai de família, do rei no estado e do guerreiro na guerra. Assim na Grécia antiga “eram a religião e o estado não só intimamente ligados, como eram uma só coisa, teciam uma inseparável unidade, diante da qual uma religião individual dificilmente surgiria, mesmo se o estado não a atacasse diretamente... Apolo em Delfos, que estava em pleno acordo com a autoridade do estado, atribuía- lhe autoridade divina.” (M. Nilson) Também o mundo romano era habitado pelo sagrado e pela religião. No império romano a religião permeava o Estado, a tal ponto que seus sacerdotes eram como funcionários dos atos cultuais, que fazem parte do mundo cívico no qual era exigido de todos a participação. È preciso lembrar ainda que toda esta estrutura romana havia sido inspirada nas monarquias absolutas e teocráticas do Egito, da Síria e da Ásia Menor. Na Idade Média os imperadores eram sagrados pelos papas, pois o Estado estava submetido à esfera religiosa. A Bula “unam Sanctam” do papa Bonifácio VIII sintetiza isso dizendo que “Há duas espadas: a espiritual e a temporal... Ambas as espadas estão no poder da Igreja, a espiritual e a material. É necessário, na verdade, que a espada material esteja sob a espada espiritual e que a autoridade temporal se submeta à espiritual...” (DS 873). Até o pai da política moderna secular, Maquiavel, recomenda aos governantes de “conservar na sua pureza a religião e suas cerimônias e alimentar o respeito devido a sua santidade, porque não há sinal mais certo da ruína de um Estado que o desprezo do culto divino.” A própria ciência encontrava lugar para Deus em seus tratados científicos e nas suas mais novas descobertas. Não existia nem mesmo ateísmo nesse período. è assim que Pascal temeu pelo terrível silêncio dos céus, pois sua matemática fria não 10 conseguia apagar-lhes as pegadas de Deus. Desde o universo de Ptolomeu, que atingia a distância de 80 milhões de quilômetros de raio e já maravilhava os antigos até os tratados astronômicos da Escolástica da Idade Média se conservou a presença do mistério na criação. O sagrado era experimentado como algo tremendo e fascinante, deixando um ambiente de respeito por todo lugar. O homem abismava-se e dissolvia-se na sua pequenez diante do sagrado. O homem vivia fascinado por este mistério, algo que pode ser exemplificado em um dos sermões de M. Lutero: “Assim acontece com a veneração de um lugar santo. Está misturada de temor e, não obstante, longe de nos afugentar, aproximamo-nos ainda mais.” (citado por R. Otto). Um poeta de hoje diria: Diante D’ele, eu me arrepio; para Ele sou atraído! Agostinho de Hipona (conhecido como Santo Agostinho) experimenta isso em um sentimento que é um misto de medo e sedução: “Que é aquilo que me lampeja e me fere o coração sem lesioná-lo? Horrorizo-me e ardo. Horrorizo- me, enquanto lhe sou dessemelhante. Ardo, enquanto lhe sou semelhante.” (Confissões IX, 9, 1) Percebe-se então que tudo que existia refletia esse clima encantado pelas forças divinas. O sagrado habitava as dimensões da macro-história da humanidade, bem como da micro-história da caminhada de cada pessoa. Toda a realidade era iluminada e aquecida pela presença incontestável de Deus. A visão da família era sagrada e tinha em Deus seu nascedouro. A educação privada respirava o sagrado e criava modelos para viver neste mundo de Deus. Desde a educação da criança nas camadas mais profundas da psique humana até as músicas e festas populares organizadas pelo povo e pelo Estado. Tudo era sagrado. No seu poema “noturno”, Carlos Drummond de Andrade nos dá uma amostra desse universo educacional: “Abença papai, abença mamãe. Deus te abençoe. Não vá esquecer de arrear os dentes e lavar os pés antes de deitar. Sim senhora. E não vá dormir sem rezar um padre-nosso, três ave-marias, uma salve-rainha. Rezo. ... Dorme bem, meu filho. Não fique pensando bobagens no escuro. O mais é com Deus. Mas fico. Abença papai, abença mamãe.Já te dei abença. Vai dormir. Não tenho sono bastante para cochilar. Espera quietinho que o sono vem. Vou contar estrela. Não. Conto passarinho que já tive ou tenho ou terei um dia. Conto, reconto vistas de cigarros, minha coleção é fraca. Nomes de países. 27 só. Ai, essa geografia. Nomes de meninas. Todas Lurdes, Carmos, Rosários, faço confusão. Dorme sem pensar bobagens. Mas estou pensando. Penso mulher nua. 11 Penso na morte. Se eu morrer agora? Sem ver mulher nua, só imaginado? Morro, vou pro inferno. Talvez não. Meu anjo me puxa de lá, leva ao purgatório. A cama rangendo. Que noite mais comprida desde que nasci. Viajando parado. O escuro me leva sem nunca chegar. Sem pedir abença como vou saber que não vou sozinho? Que o mundo está vivo? Abença papai abença mamãe. Mas falta coragem e peço pra dentro. Mas dentro não responde. ”(Carlos Drummond de Andrade) Por isso a linguagem do dia-a-dia era impregnada de religiosidade. Um exemplo é a palavra “A deus” que significava uma saudação de acolhida para as pessoas que não se conhecia. Era uma saudação ao mistério da pessoa, como que para limpar o outro de todo o mal, ou seja, lhe “entrego a Deus” que o conhece por inteiro... Essa e tantas outras palavras usadas até hoje expressam esse universo religioso presente na comunicação familiar e social. Portanto, no período que tudo era sagrado, no “verão” da manifestação do sagrado, toda a realidade respirava Deus. Esse período, com elementos positivos e outros negativos, marcou fortemente o Ocidente até o início do período moderno. A partir daí nuvens começam a se formar no horizonte mostrando a proximidade do “inverno”. O sol, aparentemente absoluto do sagrado, começa a ser irradiado e encoberto pela grande onda secularizante do moderno racionalista. b) A fria estação do inverno “O tempo em que se podia dizer tudo ao homem com simples palavras – quer sejam teológicas ou piedosas – já passou. Assim também já passou o tempo da interioridade e da consciência, o que podemos resumir nas palavras: passou o tempo da religião.” (D. Bonhõffer) As nuvens encobrem o céu e ofuscam o brilho do sagrado. O olhar não vê mais o sagrado, mas se fixa, pela curiosidade científica, na obra da técnica. O sagrado é deflorado pela insaciável voracidade analítica científica do homem. Pascal já se apavorava com a possibilidade da invasão da geometria para dentro do espaço-tempo sacralizado pelas religiões e pelos mitos. As ciências deixam espaços vazios que “apavoram”. Para Gusdorf “o mundo não fala mais ao homem, o céu não ressoa mais com esta harmonia das esferas 12 celestes... Os astros, outrora divinos, não passam de pedaços de matéria inerte em movimento na imensidão de um espaço sem limite, obrigados a seguir... o cálculo de Newton.” O olhar humano começa a secularizar os espaços sagrados dos céus com a matematização de suas distâncias. As ciências com seus gigantescos laboratórios e sua racionalização começam a decifrar toda a realidade e a expulsar o mistério da vida humana e social. Aos poucos as ciências vão ocupar todos os lugares possíveis. As pinturas sagradas e esculturas religiosas deixam o espaço das igrejas para se instalarem nos museus. A cidade sagrada começa a se tornar secular. A igreja já não é mais o centro das ruas e nem os sinos marcam mais o dia-a-dia das pessoas. A casa, recinto da intimidade e dos primeiros valores sagrados, é invadida pelo telefone e a tv que trazem o mundo para seu interior. Assim também a arquitetura, a comunicação, a música e tudo mais vão perdendo as características do sagrado. O “cogito ergo sun” – penso, logo existo – de Descartes coloca o pensamento e a racionalidade no altar principal da realidade humana e social. É verdadeiro somente o que pode ser medido e pesado. O mistério do sagrado é deixado de lado ou eliminado da vida social. Depois o ataque ao sagrado vai ganhar força e chega ao seu extremo com K. Marx, Freud e Nietzsche. Com eles o sagrado perde respectivamente espaço na sociedade, na consciência e na história. Para Marx a religião é o “ópio do povo”, para Freud é uma “doença ou infantilismo” e para Nietzsche já pode ser anunciada a “morte de Deus”. Também quase todos os antropólogos dessa época sustentavam ser a fé religiosa uma ilusão e que seria no futuro extinguida. Todo esse processo de racionalismo e desencantamento com o religioso fez o sagrado eclipsar e quase se apagar. Parece haver uma declinação da religião e a ciência passa a explicar toda a realidade. Tudo isso desencadeia uma crise ética e de valores marcada pelo abandono do sagrado. Até o final dos anos 70 a dessacralização se manifestou de forma forte e bem racional. Parecia que o sagrado havia sido extinto ou havia perdido suas forças. O período moderno e a modernidade tentaram eliminar definitivamente, com a razão científica, o espaço sagrado de todas as dimensões da vida humana. Os “sinos da razão” anunciam a morte do sagrado. Mas o sagrado vai ressurgir das cinzas (para surpresa de muitos) e voltar com um novo vigor, como que em uma vingança tardia. O “inverno” perde as forças e já parece surgir a “primavera” com novos brotos e promessas de frutos mais maduros. Entramos assim na terceira fase do sagrado e em um momento de síntese do grande movimento do sagrado na história. c) A nova estação da primavera “Que somos nós sem o socorro daquilo que não existe?” (Valéry) 13 Em nível pessoal e social, o preço da repressão é a explosão. A racionalidade do período moderno julgou pode eliminar o espaço sagrado e preenchê-lo com seus cálculos frios e perfeitos. O sagrado, e com ele Deus, morreu na análise equivocada de filósofos e cientistas sociais. Por isso ele ressurge e com mais força ainda. Acontece o milagre da primavera! O sagrado, de alguma forma, permaneceu “travestido” na sociedade, pois todo ser humano tem fome do infinito e de transcendência. As manifestações religiosas foram confinadas em pequenos espaços ou emolduradas de forma a tirar toda a sua força sagrada. Mas a “pequena chama” permaneceu acessa aguardando a hora da “vingança”. O sagrado ressurge nos meios populares, mais intelectuais e até nas classes mais ricas. Ele vem em socorro do homem racional e frio diante de um mundo que a razão pura não conseguiu humanizar. Muitos defensores da razão absoluta foram sacudidos pelas guerras e atrocidades provocadas por sistemas organizados e racionais. Diante da “perversão” da razão de muitos, o sagrado volta com novos paradigmas e mais atento aos problemas do homem da pós-modernidade. São movimentos, igrejas, grupos e encontros específicos que atualizam os antigos ensinamentos religiosos. Surge até mesmo um sagrado libertador e contestador da “ordem” capitalista que seduziria o próprio Marx. E assim em todas as áreas o sagrado parece ressurgir e fazer movimentar o mundo. Afinal de contas não existe algo no ser humano que não o deixa descansar? Os versos cantados por Chico Buarque serão simples paixão? “O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dá... O que não tem medida, nem nunca terá O que não tem remédio, nem nunca terá O que não tem receita ... O que não tem descanso, nem nunca terá O que não tem cansaço, nem nunca terá O que não tem limite.” A estrutura do ser humano é aberta ao sagrado e nunca poderá ser fechada por nenhum sistema ou conjunto de idéias e práticas. Essa dimensão sagrada pode atémesmo aflorar de situações angustiantes e dramáticas. De qualquer forma o sagrado ressurge, muitas das vezes, como resposta existencial de felicidade. Acontece então o encontro do sagrado com a felicidade. As novas flores marcam o terceiro período do sagrado na história e na vida de muitos. É a “primavera” que vem trazer novo alento e esperança. “O sagrado sempre será importante. Ele é, no fundo, “a presença de uma ausência”. Viver é con-viver com a perda. É isto que nos torna belos: o olhar de eternidade...”. (R.Alves). È bonito que sejamos tocados pelo sagrado, pois é ele que nos impele à busca incessante de sentido para a nossa ação no mundo e na história. Como Fernando Pessoa ousamos perguntar: sem a “loucura” do sagrado... “que é o homem mais que besta sadia, cadáver adiado que procria.” O sagrado se torna 14 a referência última da nossa vida. Assim, não podemos negar a força que tem o sagrado na vida humana. Todas as tentativas de eliminar o sagrado revelaram-se impotentes ante a avassaladora sede de Deus que habita o coração humano. São as experiências e a história nos ensinando a conhecer os mistérios da vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS ALVES, Rubens. O enigma da religião. Campinas, Papirus, 1984. BOFF, Leonardo. Experimentar Deus hoje. Petrópolis, Vozes, 1974. 230p. BONHÕFFER, D. Resistência e submissão. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1968. p. 130s. FREIRE, Maia. Criação e evolução. Deus, o acaso e a necessidade. Petrópolis, Vozes, 1986. GUSDORF, G. A agonia da nossa civilização. São Paulo, Convívio, 1978. p.33. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Rio de Janeiro, Zahar, 1965. 119 p. JUNG, Mo Sung. Deus: ilusão ou realidade?.São Paulo, Ática,1996. 98p. LIBÂNIO, João B., BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. PRITCHARD, Evans. A religião e os antropólogos, in: Religião e sociedade.1986. março. Nº13/I, p.11. RIBEIRO, Camilo de Lelis O. S. Jesus Cristo: quem é este homem?. Revista O Paráclito, Dracena-SP: Ed. J. Gráfica, 2002. ______, Encontrar-se vitalmente com Deus: o cristianismo como companhia. Belo Horizonte: Centro de Formação - ASSOLUC, 2003.
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