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Ca´lculo I: Limite Notas de aula: Renato Klippert UNIFEI - Pa´squa de 2007 (revisado em 2012 e 2014) O problema central do Ca´lculo reside na noc¸a˜o de limite, que responde a` seguinte questa˜o fundamental: Sejam dados um nu´mero real L e uma func¸a˜o f de uma varia´vel real x; desejamos saber se existe (ou na˜o) um intervalo aberto (a, b) cuja intersec¸a˜o com o domı´nio Df de f seja na˜o vazia, e tal que f(x) seja ta˜o pro´ximo de L quanto desejarmos, desde que x ∈ (a, b) ∩ Df . A questa˜o acima e´ intuitiva, mas seu significado na˜o e´ preciso: o que quer dizer a expressa˜o “ta˜o pro´ximo quanto desejarmos”? Tentaremos melhorar o rigor do enunciado: Dizer que o limite de uma func¸a˜o real f de varia´vel real quando seu argumento x tende para o valor xo e´ igual ao nu´mero real L, matematicamente denotado limx→xo f(x) = L, significa dizer que, para todo valor ε > 0 arbitrariamente escolhido, existe um corres- pondente valor δ > 0 conveniente, de tal modo que as condic¸o˜es x ∈ Df e 0 < |x− xo| < δ implicam em |f(x)− L| < ε. Podemos expressar em s´ımbolos matema´ticos este enunciado, na forma: lim x→xo f(x) = L⇔ ∀ε > 0 ∃δ > 0 ∀x ∈ Df ∧ 0 < |x− xo| < δ ⇒ |f(x)− L| < ε. O significado de ε e´ o de estabelecer a ‘precisa˜o’ desejada no resultado — os valores da func¸a˜o f(x) esta˜o pro´ximos de L a menos de ε — enquanto que δ estabelece a correspondente precisa˜o no argumento — os valores de x esta˜o pro´ximos de xo a menos de δ — da func¸a˜o f . Por simplicidade de notac¸a˜o, e´ usual dizermos “limite de f(x) em xo” (ou formas similares) ao inve´s da formulac¸a˜o correta “limite da func¸a˜o f quando seu argumento x tende para o valor xo”. Note que, na definic¸a˜o acima, na˜o estamos interessados no valor da func¸a˜o f avaliada exatamente no valor x = xo (pois 0 < |x− xo| implica que x 6= xo). Portanto, na˜o e´ sequer necessa´rio que a func¸a˜o f esteja definida em xo; isto e´, o valor xo pode na˜o pertencer ao domı´nio Df da func¸a˜o f . Contudo, o domı´nio Df da func¸a˜o f deve incluir pontos arbitrariamente pro´ximos de xo para que possamos expressar a questa˜o de existeˆncia ou na˜o do limite de f em xo. Assim, o significado intuitivo de limx→xo f(x) = L e´ o de afirmar que os valores de f(x) sa˜o todos arbitrariamente pro´ximos de L (a menos de ε) desde que os valores de x pertenc¸am ao domı´nio dessa func¸a˜o e sejam suficientemente pro´ximos de xo (a menos de δ). Enta˜o, o custo de escrevermos uma expressa˜o da forma limx→xo f(x) = L e´ o de sermos capazes de identificar, ainda que informalmente, uma func¸a˜o δ = δ(ε), com domı´nio R∗+ (todos os nu´meros reais positivos) e imagem inclu´ıda neste conjunto R∗+, de tal modo que a implicac¸a˜o ∀x ∈ Df ∧ 0 < |x− xo| < δ ⇒ |f(x)− L| < ε 1 seja satisfeita. A esseˆncia do me´todo e´ partir da expressa˜o |f(x) − L|, que queremos de- monstrar ser ta˜o pequena quanto se queira. Para isso, vamos desenvolver a expressa˜o acima procurando dela eliminar a refereˆncia a` varia´vel (no caso, o x), com o cuidado de garantir que cada passagem na˜o permita diminuir o resultado (podendo, no entanto, aumenta´-lo sem problemas). Neste processo, podemos utilizar livremente as desigualdades 0 < |x − xo| < δ tratando a quantidade δ como se fosse uma grandeza nume´rica ja´ conhecida. Quando tivermos desen- volvido |f(x)−L| ate´ eliminar completamente todas as ocorreˆncias da varia´vel x (possivelmente a`s custas de termos introduzido refereˆncias a δ), e se a expressa˜o obtida (como func¸a˜o de δ) for matematicamente simples, enta˜o podemos igualar a expressa˜o obtida com ε, de modo que o racioc´ınio ate´ enta˜o desenvolvido sera´ a prova da implicac¸a˜o desejada. Quanto a` func¸a˜o δ(ε), ela sera´ dada pela soluc¸a˜o, positiva se ε > 0, da u´ltima equac¸a˜o neste racioc´ınio (aquela imposta) para δ em func¸a˜o de ε. A te´cnica acima e´ conhecida como “seguir o conselho do Rei de Copas”: Comece pelo comec¸o e prossiga ate´ chegar no final, e enta˜o pare. Prossegue-se seguindo “o me´todo do SuperMan”: Para o alto e avante! No caso da equac¸a˜o obtida ser de dif´ıcil resoluc¸a˜o para δ como func¸a˜o de ε, hipo´teses simplificadoras podem ser utilizadas, desde que sejam tambe´m consideradas na soluc¸a˜o obtida. Como se faz isto? Vejamos com um exemplo ilustrativo do me´todo, descrito abaixo. No racioc´ınio, o fundamento matema´tico de cada passagem (isto e´, cada sinal de igualdade ou desigualdade) encontra-se explicado entre pareˆntesis a` direita, na mesma linha da passagem correspondente. Considere a func¸a˜o f(x) = 3x+1 = 4/x. Queremos mostrar que f e´ cont´ınua em xo = 2. Mas, o que e´ mesmo uma func¸a˜o cont´ınua? Bem, dizemos que uma func¸a˜o f e´ cont´ınua num dado nu´mero xo do seu domı´nio xo ∈ Df , por definic¸a˜o, se existe o limite da func¸a˜o f quando seu argumento x tende para xo e, ale´m disso, temos limx→xo f(x) = f(xo). Portanto, para mostrar que a func¸a˜o f(x) = 3x+1−4/x (cujo domı´nio e´ Df = IR∗, i.e., x 6= 0) e´ cont´ınua em xo = 2 (note que xo ∈ Df , pois 2 ∈ IR e 2 6= 0), temos que f(2) = 3(2) + 1− 4/2 = 5, donde queremos mostrar que lim x→xo f(x) = 5. Isto e´, queremos mostrar que, dado um ε > 0 arbitra´rio, existe um correspondente δ > 0 tal que |(3x+ 1− 4/x)− 5| < ε sempre que as condic¸o˜es x ∈ IR∗ e 0 < |x − 2| < δ forem simultaneamente satisfeitas. 2 Aplicando o me´todo para o exemplo acima, temos |f(x)− L| = |(3x+ 1− 4/x)− 5| (definic¸a˜o da func¸a˜o f e do valor L) = |(3x+ 1− 4/x)− [3(2) + 1− 4/2]| (expressa˜o conveniente de L em termos de f) = |[3x− 3(2)] + [1− 1]− [4/x− 4/2]| (re-ordenac¸a˜o dos termos da soma) = |[3− 4/(2x)](x− 2)| (fatorac¸a˜o) = ∣∣∣∣ [3x− 2](x− 2)x ∣∣∣∣ (fatorac¸a˜o) = |3x− 2| · |x− 2| |x| (desigualdade de Cauchy-Schwartz | ~A · ~B| 6 | ~A| | ~B| que, para escalares reais, fica |AB| = |A| |B|) = |3[(x− 2) + 2]− 2| · |x− 2| |2 + (x− 2)| (expressa˜o em termos da combinac¸a˜o conveniente x− 2) = |3(x− 2) + 4| · |x− 2| |2− |x− 2|| (re-ordenac¸a˜o dos termos da soma) 6 |3(x− 2)] + 4|δ|2− |x− 2|| (|x− 2| < δ) = |3(x− 2) + 4|δ 2− |x− 2| (de |x− 2| < δ e a admitindo a hipo´tese δ 6 2, segue |x− 2| < 2) 6 [|3(x− 2)|+ 4]δ 2− |x− 2| (desigualdade triangular |A+B| 6 |A|+ |B| com A e B pequenos) < [3δ + 4]δ 2− |x− 2| (|x− 2| < δ) < [3δ + 4]δ 2− δ (|x− 2| < δ) = 3δ 2 + 4δ 2− δ (expansa˜o alge´brica) = ε (o resultado anterior independe de x e e´ relativamente simples) de modo que |f(x)− L| < ε sempre que x ∈ Df e 0 < |x− xo| < δ, onde ε = 3δ2 + 4δ 2− δ . Resolvendo esta equac¸a˜o quadra´tica para δ (em func¸a˜o de ε), temos 3δ2+2(2+�/2)δ−2ε = 0 −→ δ± = −(2 + �/2)± √ (2 + �/2)2 − 3(−2ε) 3 = −(4 + �)± √ (4 + �)2 + 24ε 6 . Observamos que a soluc¸a˜o δ− e´ negativa (para ε > 0), de modo que na˜o nos interessa (pois queremos δ > 0 se ε > 0). Por outro lado, a soluc¸a˜o δ+ = −(4 + �)± √ (4 + �)2 + 24ε 6 = −(4 + �)± √ 16 + 32ε+ �2 6 e´ sempre positiva se ε > 0. Ale´m disso, verifica-se que δ+ < 2, conforme a hipo´tese de trabalho acima, de modo que a soluc¸a˜o do problema proposto se conclui com a obtenc¸a˜o da func¸a˜o δ = δ(ε) dada por δ = √ 16 + 32ε+ �2 − (4 + �) 6 . Note que, rigorosamente, bastaria apenas expressar esta func¸a˜o δ = δ(ε) que garante a implicac¸a˜o em questa˜o. Contudo, apresentar a sequ¨eˆncia de passos (tal como a sequ¨eˆncia acima) envolvidos na obtenc¸a˜o desta func¸a˜o e´ o que justifica porque esta soluc¸a˜o esta´ correta. Tambe´m e´ oportuno observar que esta soluc¸a˜o δ = δ(ε) obtida acima e´ uma soluc¸a˜o correta do problema proposto, e na˜o a soluc¸a˜o correta; pois na˜o existe unicidade na resoluc¸a˜o de um problema de cara´ter demonstrativo. 3 Mas, e se na˜o conhecermos (ou na˜o lembrarmos) a fo´rmula de resoluc¸a˜o da equac¸a˜o quadra´tica? Neste caso, a variante do me´todo seria apropriada. Vejamos um exemplo dessavariante no problema acima. |f(x)− L| < 3δ2 + 4δ 2− δ (conforme obtido anteriormente) 6 3δ + 4δ 2− δ (admitindo a hipo´tese δ 6 1, segue δ2 6 δ) 6 3δ + 4δ2− 1 (δ 6 1) = 7δ (simplificac¸a˜o alge´brica) 6 ε (o resultado anterior independe de x, e e´ simples, mas usou hipo´teses adicionais) que demanda resolver a inequac¸a˜o mais simples 7δ 6 ε −→ δ 6 ε/7 . Observe que esta condic¸a˜o fornece δ = 1 para ε = 7. Lembrando da hipo´tese simplifi- cadora (δ 6 1), a soluc¸a˜o final (neste caso) fica na forma δ = { ε/7, se ε < 7 1, se ε > 7 A simplificac¸a˜o na resoluc¸a˜o da equac¸a˜o obtida vem, em geral, acompanhada de uma complicac¸a˜o na expressa˜o formal da soluc¸a˜o. Consideremos, agora, um contra-exemplo: mostrar que o limite da func¸a˜o polinomial f(x) = 3x2 + 2x + 1 (cujo domı´nio e´ Df = IR), quando x tende para xo = 0, na˜o e´ igual a L = 0 (observe que tal limite deve ser igual a 1). Enta˜o, queremos mostrar que na˜o e´ verdade que, para todo ε > 0 existira´ um correspondente δ > 0 tal que |f(x) − L| < ε sempre que x ∈ Df e 0 < |x− xo| < δ. Para tanto, basta exibir um valor positivo de ε tal que na˜o exista o correspondente valor positivo de δ. No caso do exemplo acima, temos |f(x)− L| = |(3x2 + 2x+ 1)− 0| 6 |3x2 + 2x+ 1|, e observa-se que a expressa˜o obtida na˜o pode ser inferior a 1 (pois δ > 0). Assim, um valor conveniente a ser adotado neste exemplo e´ ε = 1 (qualquer valor positivo na˜o superior a 1 serviria igualmente). Falta, enta˜o, demonstrar que na˜o existe δ apropriado, para este valor de ε. Demonstraremos este u´ltimo resultado pelo me´todo de contraposic¸a˜o (que e´ tambe´m conhecido como “me´todo de reduc¸a˜o ao absurdo”). Assim, suporemos, ale´m das hipo´teses do problema, o contra´rio daquilo que pretendemos demons- trar, e procuraremos obter como resultado disso uma contradic¸a˜o evidente; com isto, verificamos que na˜o e´ poss´ıvel ocorrer o contra´rio daquilo que pretend´ıamos demonstrar, de modo que a u´nica alternativa via´vel compat´ıvel com as hipo´teses propostas e´ o resultado que quer´ıamos demonstrar. Seguindo esse racioc´ınio, seja δ algum valor positivo tal que |f(x) − 0| < 1 sempre que x ∈ IR e 0 < |x − 0| < δ. Enta˜o, temos que x1 = 0 − δ/2 e´ tal que |x1−0| = δ/2 e´ positivo e menor do que δ, donde |f(x1)−L| < 1 (por hipo´tese). Por outro lado, temos que |f(x1)− L| = |3(δ/2)2 + 2(δ/2) + 1| = |3δ2/4 + δ + 1| = 3δ2/4 + δ + 1 > 1 = ε. Mas este resultado |f(x1)−L| > 1 contradiz a afirmac¸a˜o |f(x1)−L| < 1 obtida acima. Com isto, obtivemos a pretendida contradic¸a˜o, o que demonstra que a afirmac¸a˜o lim x→0 (3x2 + 2x+ 1) = 0 deve ser falsa, necessariamente. Observe que a justificativa acima na˜o demonstra que lim x→0 (3x2 + 2x+ 1) 6= 0, pois a argumentac¸a˜o apresentada na˜o garante que exista o limite da func¸a˜o (3x2 + 2x+ 1) quando x tende para zero. 4
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