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BOLETIM DE CONJUNTURA NERINT ISSN: 2525-5266 volume 1 | número 4 | janeiro 2017 BOLETIM DE CONJUNTURA NERINT Bol. Conj. Nerint Porto Alegre v.1 n.4 p. 1-91 jan/2017 FOCO E ESCOPO As Relações Intrernacionais têm conhecido notável aceleração nos anos e, inclusive, meses mais recentes. Acontecimentos impactantes estão se sucedendo já a um ritmo semanal. Assim, as pesquisas de longo prazo desenvolvidas no NERINT (Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais) passaram a necessitar de uma análise qualificada de curto prazo que se enquadre em suas linhas de pesquisa. Deste modo, damos início à publicação do Boletim de Conjuntura, que abrangerá, sucessivamente, os temas de Ásia e Oriente Médio, Brasil (e seu entorno estratégico) e Sistema Mundo. O boletim será publicado bimestralmente, estando a cargo dos pós-graduandos e pesquisadores de IC do NERINT, sob supervisão de seus professores. A análise de conjuntura, mais do que uma apreciação jornalística dos fatos, pode ser um elemento valioso para acompanhamento das pesquisas permanentes do Núcleo, contribuindo para confirmar ou rejeitar certas hipóteses. Assim, o NERINT busca contribuir para a qualificação dos estudos internacionais no Brasil. FOCUS AND SCOPE The field of International Relations has experienced remarkable accelaration in the recent years and even months. Impactful events are occurring in a weekly rhythm. Thus, long-term research carried out by NERINT (Brazilian Center of Strategy and International Relations) now requiers qulified and short-term analysis that can properly fit its lines of research. With that in mind, we decided to publish a periodic Conjuncture Bulletin covering, successively, the topics of Asia and the Middle East, Brazil (and its strategic surroundings) and the World System. It will be published every two months by graduate and undergraduate students and researchers of NERINT, under the supervision of its professors. The conjuncture analysis, rather than a journalistic assessment of the facts, can be a valuable tool for monitoring NERINT’s on-going research, contributing to confirm or reject certain hypothesis. Therefore , NERINT seeks to contribute to the qualification of international studies in Brazil. EDITOR/Editor Paulo Visentini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) CONSELHO EDITORIAL/Editorial Board Analucia Danilevicz Pereira (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Carlos Schmidt Arturi (Universidade Federal do Rio Grande Sul, Brasil) Chirs Landsberg (University of Johannesburg, South Africa) Eduardo Migon (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Brasil) Érico Esteves Duarte (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Fabio Morosini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Gladys Lechini (Universidad Nacional de Rosario, Argentina) Immanuel Wallerstein (Yale University, United States of America) José Miguel Quedi Martins (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Marcelo Milan (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Marco Cepik (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Ruchita Beri (Institute for Defence Studies and Analysis, India) EDITOR ASSISTENTE/Assistant Editor Guilherme Thudium (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) ASSISTENTE DE EDIÇÃO/Edition Assistant Maria Gabriela Vieira (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) CAPA E LAYOUT/Covering and Layout Marcela Quintela Trujillo CONTATO/Contact: CONTATO/Contact Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Ciências Econômicas Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais Av. João Pessoa, 52, sala 12A - Mezanino - CEP 90040-000 - Centro - Porto Alegre/RS - Brasil Tel:+55 51 3308-315 e-mail: nerint@ufrgs.br Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 3 EDITORIAL: TRUMP & PUTIN A vitória eleitoral do candidato Republicano Donald Trump surpreendeu aqueles que estavam acostumados a pensar o sistema internacional como um mecanismo consolidado e estável. Durante a campanha, chamou atenção como os grandes atores políticos, inclusive do statu quo, atacaram Trump, assim, apoiando sua adversária. Mas a vitória de Trump não deveria surpreender tanto, na medida em que nos últimos anos vêm se acumulando tensões, contradições e problemas não resolvidos em todos os campos. É possível que sua agenda anti-Obama seja mitigada ou que seu governo sofra percalços que o obriguem a mudar de rumo. Mas a Casa Branca agora muito se parece com a que surgiu após a Primeira Guerra Mundial e durou até 1933. Um dos elementos desse debate foi a suposta “cartada russa” do “amigo Putin”, que teria a capacidade de definir uma eleição dos Estados Unidos. Para os grandes especialistas, entretanto, a política do Kremlin é cautelosa e etapista, dada as debilidades do país, especialmente com as atuais sanções econômico-diplomáticas. Assim, mais do que qualquer coisa, a russofobia ou Putinfobia, revelam os elementos intrínsecos à política das grandes potências Ocidentais: a crise interna das nações e os difíceis realinhamentos diplomático-militares. Apenas frente a uma Rússia ameaçadora se lograria enfrentar tais dificuldades. A política externa brasileira da gestão Michel Temer-José Serra, por sua vez, teve um brevíssimo período de afirmação por oposição ao discurso da anterior, mas logo teve que fazer frente a problemas reais e urgentes, especialmente no campo econômico. Os elementos de crise doméstica e internacional só têm se agravado. E a ascensão de Donald Trump apenas complicou a situação, havendo a necessidade de reformular a linha diplomática, que já demonstra sua preocupação com determinadas medidas da Casa Branca. Se é verdade que os Republicanos são predominantemente bilateralistas, a política externa brasileira se encontra num vácuo conjuntural, porque ninguém sabe exatamente qual será a postura de Trump em relação a países como o Brasil. Da mesma forma, o processo de pacificação na Colômbia, o relativo arrefecimento da crise venezuelana e a normalização das relações EUA-Cuba podem estar ameaçados. O caso mexicano é quase um problema de política interna norte-americana. Mas o triângulo Cuba-Colômbia-Venezuela pode ser um determinante para a formação de uma política latino-americana pelos Estados Unidos. Ela poderá tender a buscar reverter as tendências atuais, ou pode vir a distanciar-se das complicações latino-americanas. Mais do que nunca, as análises de conjuntura precisam estar afinadas com a realidade. *** Agradecemos aos Pesquisadores Assistentes do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais, em particular ao Editor Assistente Guilherme Thudium, à Assistente de Edição Maria Gabriela Vieira e à designer Marcela Quintela Trujillo. Agradecemos também a participação dos Pesquisadores do NERINT Marcelo Milan e Sonia Ranincheski, e da Pesquisadora Associada Cristina Soreanu Pecequilo, pela colaboração e orientação temática dos artigos desta quarta edição. Paulo Fagundes Visentini Coordenador1 1 Editor, Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) e Pesquisador do CNPq. Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 4 EDITOR’S NOTE: TRUMP & PUTIN The election of Republican candidate Donald Trump to the United States presidency surprised those who were accustomed to think the international system as a consolidated and stable mechanism. During the campaign, it was interesting to note the main political figures, including the status quo, attack Trump, thus, supportinghis adversary. But Trump’s victory should not be so surprising, as tensions, contradictions, and unresolved issues have accumulated in recent years. It is possible that his anti-Obama agenda will be mitigated or that his government will suffer setbacks that force him to change course. But the White House now very much resembles the one after World War I, which lasted until 1933. One of the elements of this debate was the so-called „Russian card” by the „friend Putin,” who could supposedly be able to define the election in the United States. For some experts, however, Kremlin has a cautious and well calculated foreign policy given the weaknesses of the country, especially with the current economic and diplomatic sanctions. So, more than anything, Russophobia or Putinphobia, as addressed here, reveal intrinsic elements of great Western powers politics: their internal national crises and the difficult diplomatic and military realignments. It was only in the face of a threatening Russia that such difficulties could be dealt with. The Brazilian foreign policy of the Michel Temer-José Serra administration, by its turn, had a very brief period of affirmation by opposing the previous government’s diplomacy, but soon had to face real and urgent problems, especially in the economic field. The domestic and international crisis have only worsened, and the rise of Donald Trump only complicated the situation. There is a need to reformulate the new foreign policy approach, which already demonstrates concerns with certain measures by the White House. If it is true that the Republicans have a predominantly bilateral approach to international relations, Brazilian foreign policy finds itself in a temporary vacuum, because no one knows exactly what Trump’s stance will be towards Brazil and South America. In this sense, the pacification process in Colombia, the relative cooling of the Venezuelan crisis and the normalization of US-Cuba relations may be threatened. The Mexican case is almost a domestic US policy problem. But the triangle Cuba-Colombia-Venezuela can be a determinant for the formation of a Latin American policy by the United States. Washington may want to reverse current trends, or even refrain from Latin American complications. More than ever, conjuncture analysis need to be in tune with the reality. *** We thank the Research Assistants of the Brazilian Center of Strategy & International Relations (NERINT), in particular Assistant Editor Guilherme Thudium, Edition Assistant Maria Gabriela Vieira and the designer Marcela Quintela Trujillo. We also thank the participation of the Researchers Marcelo Milan and Sonia Ranincheski, and Associate Researcher Cristina Soreanu Pecequilo, for the collaboration and thematic orientation of the articles in this fourth edition. Paulo Fagundes Visentini Coordinator1 1 Editor, Full Professor of International Relations at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS), Coordinator of the Brazilian Center of Stra- tegy and International Relations (NERINT) and Researcher for CNPq. 07 19 30 41 SUMÁRIO A Ascensão de donAld Trump: perspecTivAs pArA A políTicA exTernA e de segurAnçA dos esTAdos unidos Guilherme Thudium e João Paulo Alves Com a colaboração de Cristina Soreanu Pecequilo A russofobiA conTemporâneA: quem Tem medo de moscou? Douglas de Quadros Rocha e Francine Juchem Salerno Com a colaboração de Paulo Fagundes Visentini A políTicA exTernA brAsileirA de Temer-serrA: reTrAção políTicA e subordinAção econômicA Raul Cavedon Nunes e Vitória Gonzalez Rodriguez Com a colaboração de Marcelo Milan colômbiA, cubA e venezuelA: imporTânciA do Triângulo pArA A esTAbilidAde lATino-AmericAnA Diego Luís Bortoli e Katiele Rezer Menger Com a colaboração de Sonia Ranincheski Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 51 62 72 82 Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 SUMMARY The rise of donAld Trump: perspecTives for The uniTed sTATes’ foreign And securiTy policies Guilherme Thudium and João Paulo Alves With the colboration of Cristina Soreanu Pecequilo The conTemporAry russophobiA: who is AfrAid of moscow? Douglas de Quadros Rocha and Francine Juchem Salerno With the colaboration of Paulo Fagundes Visentini The brAziliAn foreign policy of The Temer-serrA AdminisTrATion: poliTicAl reTrAcTion And economic subordinATion Raul Cavedon Nunes and Vitória Gonzalez Rodriguez With the colaboration of Marcelo Milan colombiA, cubA, And venezuelA: imporTAnce of The TriAngle for lATin AmericAn sTAbiliTy Diego Luís Bortoli and Katiele Rezer Menger With the colaboration of Sonia Ranincheski Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 7 A Ascensão de donAld Trump: perspecTivAs pArA A políTicA exTernA e de segurAnçA dos esTAdos unidos * Guilherme Thudium1 e João Paulo Alves2 • Após uma polêmica campanha eleitoral, Donald Trump ascendeu à Presidência dos Estados Unidos da América prometendo desenvolver novas diretrizes diplomáticas para o país. • As perspectivas levantadas para a administração Trump apontam para uma retomada do nacionalismo e do unilateralismo na esfera internacional, bem como de um relativo isolacionismo. • As relações bilaterais com a China prometem passar por um processo de deterioração econômico-diplomático, porém uma “guerra comercial” seria contraproducente para ambos os países. 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de pesquisa “Política Internacional e Defesa”. Pesquisador Assistente do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT). Contato: guilherme.thudium@ufrgs.br 2 Graduando em Relações Internacionais pela UFRGS em mobilidade acadêmica na University of Texas at Austin. Pesquisador Assistente do NERINT. Contato: joaop.ma22@gmail.com * Com colaboração de Cristina Soreanu Pecequilo, Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Pesquisadora Associada do NERINT. Apresentação No dia 20 de Janeiro de 2017, Donald J. Trump tomou posse como 45º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA). O bilionário do mercado imobiliário de Nova Iorque, que nunca assumira um cargo público até então, venceu a candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, como sucessor do presidente Barack Obama (2009/2016). Para fazer uma análise das possíveis vertentes diplomáticas do governo Trump, mostra-se necessário olhar brevemente para a singular trajetória que o levou a ocupar o mais alto cargo da única superpotência do sistema mundial contemporâneo. Em um primeiro momento, nesse prisma, buscamos traçar um panorama da trajetória de Trump à presidência dos EUA, abordando a campanha eleitoral iniciada em Junho de 2015. A seguir, cientes da dificuldade de se fazer projeções de curto prazo no cenário atual e da característica por vezes demagógica e, portanto, de difícil predição da nova administração, buscamos apontar as principais linhas que podem vir a ser adotadas em política externa e de segurança. Ao mesmo tempo, utilizamos análises recentes de consolidados acadêmicos de relações internacionais, muitos deles americanos, para este fim. Assume-se, como hipótese, que as possíveis abordagens da nova política externa da administração Trump buscam redefinir o papel dos EUA no sistema mundial em transformação, e trazem consigo inevitáveis consequências para outras grandes potências do sistema. Antes das Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 8 considerações finais,nesse sentido, o artigo apresenta perspectivas para as relações bilaterais com a China, atentando para as dimensões econômica, política e securitária envolvidas. A ascensão de Trump Analisando a eleição de Donald Trump, o atual presidente é o primeiro na história dos EUA a chegar à Casa Branca sem qualquer experiência política ou serviço militar anterior. Trump foi o 19º Presidente eleito pelo Partido Republicano, porém deixou claro desde o início da sua campanha que suas visões políticas, sejam elas domésticas ou externas, não necessariamente se alinham às vertentes ideológicas majoritárias entre republicanos. Muito por essa razão, Trump teve de superar não só a agenda democrata, como também, de certa forma, a própria doutrina política republicana. Ted Cruz, Senador pelo estado do Texas e principal adversário nas primárias, se recusou a apoiá- lo, mesmo depois de derrotado. Movimentos como “Never Trump” (ou Stop Trump Movement), organizados durante as primárias por figuras políticas republicanas, incluindo o ex-candidato à presidência em 2012, Mitt Romney, e demais organizações conservadoras, evidenciam a forte divisão que prevaleceu. O pleito eleitoral que levou os republicanos à presidência foi, ainda, marcado por fortes divergências com o Presidente da Câmara dos Representantes, uma das principais lideranças do Partido Republicano, Paul Ryan. Trump, dessa forma, construiu sua campanha apoiado em uma retórica extremamente crítica ao establishment, incluindo o seu partido. O atual presidente sempre fez questão de se manter à margem da política ‘tradicional’, “e comporta-se, desde que se tornou pré-candidato, como em um reality show” (Pecequilo 2016a). Trump sintetizou a imagem de um outsider – assim como Bernie Sanders, adversário de Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata, porém ideologicamente dessemelhante – que levará ordem e prosperidade à Washington, gerindo o país como uma empresa (Pecequilo 2016a). As eleições de 2016 foram marcadas por disputas polarizadas e visões divergentes sobre os EUA e o seu papel no sistema mundial pós-Guerra Fria. Ainda que o país se encontre em um processo de recuperação econômica, deixando para trás a recessão de 2007/2008, os pré-candidatos de ambos partidos – à exceção de Hillary Clinton, que defendia a continuidade do legado de Barack Obama – majoritariamente apontaram a existência de um país em profunda crise econômica, política e estratégica (Pecequilo 2016a). E, embora já exista uma ofensiva que coloca em xeque as previsões de declínio da hegemonia americana, com medidas de contenção de nações como China, Rússia, Brasil e Índia (Pecequilo 2016a), os próprios slogans dos candidatos refletiram essa tendência reativa: Make America Great Again (Trump), ou A New American Century (Rubio), por exemplo, podem ser vistos, por si só, como manifestações hegemônicas e de política externa. É inegável, contudo, que os EUA possuem problemas sociais e econômicos. Assim, Trump concentrou seu discurso para atingir o eleitorado trabalhador de classe média, prometendo trazer empregos de volta e mobilizando uma fatia negligenciada do eleitorado, empurrando sua agenda para o topo das prioridades do país (Fukuyama 2016). Ao fazer isso, apontou problemas reais: a crescente desigualdade, que atingiu em cheio a antiga classe média, e a captura do sistema político por grupos de interesse organizados para este fim (Fukuyama 2016), além da questão da violência, do crime e Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 9 das drogas – o que Trump chegou a denunciar como uma “carnificina em andamento” no país. Nos últimos 20 anos, os EUA experimentaram uma maciça desindustrialização, com a evasão de ativos e capitais para o México e para a China. Fora isso, a crescente automatização da indústria, que acompanha os experimentos asiáticos nesse campo, e as políticas ambientais de Barack Obama, principalmente em seu segundo mandato, traçam um cenário no qual será extremamente difícil para Trump manter suas promessas para a economia e redução do desemprego. Em política externa, apesar do discurso aparentemente retrativo, Trump defende a retomada do protagonismo das forças armadas. Tal disposição, contudo, se somada às políticas de redução tributária que pretende implementar, pode acarretar mais problemas econômicos, como aumento da inflação. Políticos e jornalistas, todavia, criticam Trump quase que unicamente em função de sua personalidade, e acabam cometendo o erro de desacreditar qualquer profundidade e consistência ao seu discurso, principalmente sobre política externa. A gênese da política externa do novo presidente está baseada em uma crítica às diretrizes de defesa e projeção tomadas pelos EUA desde o epílogo da Guerra Fria, bem como na noção de uma “América enfraquecida” no plano internacional, tema já há muito explorado pelos neoconservadores norte-americanos e um discurso corrente desde a campanha presidencial de George W. Bush em 2000. Trump argumenta que muitos países aliados aos EUA estão há décadas se aproveitando da liderança norte-americana, que gasta bilhões de dólares para proteger navios que não são seus e transportar recursos que não necessita a aliados que não retribuem esses esforços. Ele defende a imposição de uma espécie de ‘imposto global’ às nações ricas que se aproveitam da presença militar, com o objetivo de reduzir os déficits e desonerar o crescimento econômico do país. Em 1987, Trump desembolsou US$ 100,000 para publicar um comentário de página inteira em três dos principais jornais dos EUA – New York Times, Washington Post e Boston Globe – no qual já sintetizava suas principais críticas à política externa e de defesa estadunidense (Wright 2016a). Nota-se que, ao contrário do que se possa presumir, algumas posições de Trump não são novas ou efêmeras – e o mesmo pode ser dito das suas aspirações à presidência. No mesmo ano de 1987, Trump cogitou concorrer com George H. W. Bush pela candidatura republicana nas eleições de 1988, e, em 1999, Trump foi persuadido pelo governador de Minnesota, Jesse Ventura, a concorrer pelo Partido Reformista dos EUA nas eleições de 2000, naquela que foi a sua primeira campanha presidencial oficial. Trump, todavia, retirou sua candidatura no dia 14 de Fevereiro de 2000, criticando a falta de coesão ideológica do partido. Dentre todas as opiniões controversas do bilionário no curso da campanha eleitoral de 2016, entretanto, algumas das mais polêmicas ficam por conta das restrições migratórias que pretende implementar. O presidente americano planeja construir uma muralha na fronteira com o México – cujo custo pretende impor ao governo mexicano –, principal parceiro econômico dos EUA. Trump também sinalizou que irá proibir, por tempo indeterminado, a entrada de muçulmanos no país3. Tal disposição encontra escopo em políticas promovidas por fundações e think tanks norte-americanos, como o Center for Security Policy, liderado pelo ex-oficial de defesa da administração Reagan, Frank Gaffney, apontado como membro da equipe de transição do governo Trump. De acordo com a politóloga Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 10 Cristina Pecequilo (2016a), “Trump externaliza os problemas do país, não culpando só os políticos, mas também os imigrantes, os terroristas, os mexicanos e os chineses”. A eleição presidencial de 2016 foi realizada no dia 8 de Novembro, uma terça-feira, como preconiza a legislação eleitoral americana desde 1845. Contra todas as previsões e pesquisas que apontavam a vitória de Hillary Clinton – Moody’s (CNN 2016a), Nate Silver (FiveThirtyEight 2016), The New York Times(2016) etc. –, Donald Trump venceu na maioria dos principais estados que compõem o colégio eleitoral americano, totalizando 304 delegados contra 227 de Hillary Clinton. Clinton, todavia, ganharia a eleição pelo voto popular, totalizando 65 844 610 votos contra 62 979 636 de Trump. A margem de diferença, que passa de 2.8 milhões, é a maior da história do país – Donald Trump perdeu, em número de votos, pela maior margem que qualquer presidente dos Estados Unidos da América (The Independent 2016). A inauguração de Donald Trump como 45º Presidente dos EUA ocorreu no dia 20 de Janeiro de 2017, e pouco após a posse já iniciou a implementação de sua política de “América em primeiro lugar” (America First), seja domesticamente ou em política externa. A seguir, buscaremos traçar algumas perspectivas e tendências que apontam para a retomada do nacionalismo e do unilateralismo durante seu mandato presidencial. Perspectivas para a política externa e de segurança Nos últimos vinte e cinco anos, os EUA praticaram uma política externa e de segurança fundamentada na hegemonia liberal e na promoção da democracia, “derrubando regimes e ‘reconstruindo nações (nation-building)’” (Mearsheimer 2016). Igualmente, debates sobre se os EUA devem ou não fazer uso do seu poder para intervir e modelar eventos ao redor do globo “já são eternos na história americana” (Kaplan 2017). Trump, nessa lógica, desafia os próprios pilares da poderosa comunidade de política externa norte-americana, prometendo desenvolver novas diretrizes diplomáticas (Mearsheimer 2016). O recém-empossado presidente critica os gastos e os esforços demandados pela política de policial do mundo (world policeman), bem como seus efeitos colaterais, algo já reconhecido pelo ex-Presidente Barack Obama em seu último Discurso sobre o Estado da União, em 2016. Para Mearsheimer (2016), a hegemonia liberal é uma “estratégia falida”, e Trump pode deixar um legado positivo em termos de política externa caso adote uma abordagem realista para as relações internacionais do país. Muito se falou que a presidência de Trump pode ser marcada por práticas isolacionistas. Seu discurso America First, no entanto, sugere uma abordagem nacionalista, que busca promover os interesses da nação que se encontram ameaçados, ao mesmo tempo em que restringe práticas intervencionistas a uma abordagem isolacionista, no sentido histórico do termo (Kaspi e Tolouse 2016). Para Robert Kaplan (2017), uma política exageradamente intervencionista é “tão absurda quanto uma isolacionista no século XXI”. Os EUA, nesse sentido, possuem uma necessidade histórica de projetar seu poder e não devem se abster das responsabilidades globais que detêm na qualidade de potência marítima (Kaplan 2017). As visões políticas de Trump já foram comparadas inclusive às posições políticas protecionistas e mercantilistas utilizadas no século XIX nos EUA (Wright 2016a); para André Kaspi (2016), porém, “Trump é, basicamente, um pragmático que pouco Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 11 se importa com reflexões doutrinárias”. Como forma de melhor entender o caráter ideológico e as linhas diplomáticas que podem ser adotadas no decorrer da administração Trump, examinaremos brevemente a seguir os principais nomes escolhidos para chefiar as pastas de política externa, segurança e defesa. Durante toda sua campanha, Trump entrou em choque com as agências de inteligência e segurança, especialmente a CIA, criando uma situação de descrédito nessas e em outras instituições que Fukuyama (2016) atribui como um dos principais sintomas do declínio da política americana. A candidatura de Trump, contudo, teve respaldo de nomes de peso de outra importante agência de inteligência dos EUA, a DIA (Defense Intelligence Agency), especializada em defesa e inteligência militar. Michael Flynn, general aposentado que serviu como Diretor da DIA entre 2012 e 2014, chegou a ser cogitado, inclusive, como seu possível vice-presidente. Trump acabou optando pelo Governador do estado de Indiana, Mike Pence, e apontando Flynn como Assessor de Segurança Nacional. Como forma de reforçar ainda mais o elo com as forças armadas, nomeou o general aposentado linha-dura do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, Jim Mattis, como Secretário de Defesa, bem como o ex-militar e deputado republicano membro do Tea Party, Mike Pompeo, para chefiar a CIA. Para o principal cargo de política externa, Trump escolheu Rex Tillerson, empresário e diretor executivo da multinacional americana de petróleo e gás, ExxonMobil. Trump foi criticado por analistas e republicanos que argumentam que estes nomes não preenchem de forma capacitada os importantes cargos que devem ser nomeados pelo Presidente, gerando um impacto negativo na organização das estruturas de segurança nacional do país (Boot 2017). Além disso, estas escolhas dão margem para uma série de disputas políticas em sua administração em termos de política externa. O governo Trump, argumenta-se, tomará forma a partir de duas perspectivas em ascendente – a versão de Trump de America First; e aqueles que ainda querem travar uma guerra total contra o islamismo radical (Wright 2016b). Para Thomas Wright (2016b), enquanto que o discurso pragmático e de traço ‘neoisolacionista’ de Trump, compactuado pelo Secretário de Estado Rex Tillerson, defende o revisionismo de acordos comerciais e alianças securitárias, o grupo comandado por Michael Flynn vê na administração Trump um meio de voltar a expandir a atuação americana na Guerra ao Terror. Também defende a reestruturação e o aumento das capacidades nucleares, sinalizando para uma nova corrida armamentista. A escolha de Tillerson como Secretário de Estado, por sua vez, foi duramente criticada em função da relação próxima que o executivo e suas empresas mantêm com a Rússia, o segundo maior país produtor de petróleo do mundo, e com o próprio presidente Vladimir Putin. Em 2013, Tillerson foi homenageado por Putin com a Ordem de Amizade da Federação Russa, reforçando os laços entre o empresário e Moscou. Trump parece não partilhar da automática indisposição ocidental para com o país russo e sua assertiva política externa, o que incomoda estrategistas em Washington. Uma relação diplomática menos conflituosa, no entanto, pode ser benéfica para, por exemplo, que se chegue a um acordo sobre o conflito sírio, o que não foi possível durante o segundo mandato do governo Obama. Nessa linha, Mearsheimer (2016) e Brzezinski Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 12 (2017) concordam que foram as equivocadas políticas ostensivas dos EUA contra a Rússia que perturbaram a paz no Leste europeu, provocando uma série de reações por parte de Moscou. Se, por um lado, existem perspectivas que apontam para uma melhora nas relações bilaterais com a Rússia, analisaremos a seguir os indícios que sugerem uma relação mais turbulenta, seja do ponto de vista econômico ou diplomático- securitário, com outra grande potência do sistema, a China. Trump e a China4 Um dos aspectos mais marcantes das posições de Donald Trump diz respeito à China, uma constante em seus discursos durante todo o processo eleitoral. Nesse sentido, tem-se a continuação da orientação Ásia-Pacífico, porém mais agressiva, através do balanceamento via Burden-Sharing5. A seguir, buscaremos aplicar, de forma sintética, algumas das perspectivas já introduzidas sobre as visões econômica, política e securitária de Trump às relações bilaterais entre os EUA e a China. Na dimensão econômica, Trump segue sua diretriz majoritariamente heterodoxa e crítica do sistema, focando nos problemas domésticos,e utilizando-os como balizadores para as suas respectivas ações internacionais – em suas palavras: “Americanismo, não globalismo, será a nossa crença [...] Tudo começa com uma nova e justa política comercial que protege nossos empregos e mantém nossa postura firme ante a países que trapaceiam – e são muitos [...] Nossos terríveis acordos comerciais com a China e tantos outros países serão totalmente renegociados”6 (Washington Post 2016). O seu discurso anti-globalização aproveita-se de uma tendência mundial nesse sentido para criticar iniciativas como o NAFTA, o TPP e o TTIP – acordos de livre comércio entre os EUA e a América do Norte, a Ásia Pacífico e a Europa, respectivamente. Surpreendentemente, manteve-se em concordância com Hillary Clinton em suas críticas a algumas dessas iniciativas, como o TPP, pela facilitação à entrada de produtos concorrentes, e advogando em favor de acordos comerciais bilaterais com clara indicação de preferência por opções protecionistas. Logo em sua primeira semana como presidente, Trump assinou uma ordem executiva que tira os EUA do TPP, acordo que não havia nem sido ratificado pelo Legislativo, interrompendo o processo político. A retórica do então presidenciável seguiu em direção à República Popular da China, com as suas alegações de que a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, iniciou uma “guerra comercial” entre China e EUA, a qual os estadunidenses estariam perdendo. Nessa mesma linha, um dos principais assessores políticos de Trump, Peter Navarro, estabeleceu três pilares centrais desse conflito econômico, direcionando as suas críticas à postura chinesa: primeiro, as políticas de desvalorização cambial forçadas; segundo, as práticas ilegais de dumping para expansão das fatias de mercado; e terceiro, as alegadas operações de roubo de propriedade intelectual estadunidense. As violações do país, “cada vez piores e mais institucionalizadas”, seriam responsáveis por déficits comerciais e pela desaceleração do crescimento nacional (The Guardian 2016; Navarro 2016). Em termos concretos, as práticas desleais de comércio supracitadas seriam as verdadeiras responsáveis – ao contrário da tradicional atribuição à mão-de-obra barata – pelas vantagens comparativas chinesas no mercado global. De acordo com suas avaliações, os efeitos Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 13 domésticos dessa situação incluíam o aumento do desemprego, a queda das receitas e a perda de aproximadamente US$ 300 bilhões em patentes. Como resposta, Trump e Navarro argumentaram em favor da adoção de políticas econômicas protecionistas (supostamente “defensivas”) no comércio EUA-China, nominalmente através de 45% em tarifas sobre as importações chinesas, apontando para a eventual deterioração de suas relações bilaterais (Navarro 2016). No Fórum Econômico Mundial em Davos, 2017, o Presidente Chinês Xi Jinping criticou indiretamente – sem nem ao menos citar os EUA ou Donald Trump – as posturas protecionistas indicadas recentemente, postando-se como “um líder comunista, campeão da globalização e do livre-mercado” (The Economist 2017). Já enquanto presidente-eleito, Trump ultrapassou as questões econômicas, passando a abordar questões políticas e diplomáticas de maior impacto nas relações internacionais. Em dezembro de 2016, Trump realizou uma ligação telefônica de alguns minutos para Tsai Ing-Wen, presidente de Taiwan eleita em Maio de 2016, rompendo com um protocolo de décadas, e abrindo espaço para uma abordagem triangular na região. Em seguida, declarou: “Por acaso a China perguntou aos EUA se estamos confortáveis com a sua desvalorização cambial (que torna mais difícil para as nossas companhias competirem), com a sua taxação sobre nossos produtos (sendo que os EUA não taxa seus produtos) ou com a sua construção massiva de complexos militares no Mar do Sul da China? Acredito que não!”7. As atitudes evidenciam a chamada Taiwan Card como artifício diplomático de pressão de Washington sobre Pequim, em contraste com a One China Policy adotada pelos EUA desde a reaproximação bilateral em 1979. Considerando Taipei como ponto significativo da estratégia chinesa, percebe-se o intuito de estabelecer um espaço de incertezas, mas que garantem certa margem de manobra para os estadunidenses (Baker 2016). A controversa ligação repercutiu em análises de veículos de mídia e institutos de pesquisa em todo o globo, resultando em opiniões distintas quanto à sua eficácia em termos diplomáticos. Por um lado, autores conservadores como Marc A. Thiessen (2016) defendem a tese de que a ligação foi uma ação minuciosamente planejada e, em última análise, brilhante. Isso porque tratar-se-ia de uma mensagem simultânea ao establishment chinês e estadunidense, enquanto primeiro passo de um esforço mais amplo de enrijecimento das relações sino-americanas. Por outro, autores liberais criticam a posição alegando inexperiência na condução das relações exteriores. Segundo essa visão, a ligação e a quebra do status quo diplomático, especialmente por tratar-se de uma matéria tão sensível quanto Taiwan, pode vir acompanhada de retaliações a médio e longo prazo. A ação impactou significativamente a postura chinesa, sinalizando para eventuais movimentos de resposta ou retaliação. Em termos amplos, a nova abordagem pode ser prejudicial aos EUA por criar um espectro de imprevisibilidade enquanto parceiro (político e comercial) na região, com a China aproveitando-se dessa brecha para expandir a sua estratégia de expansão de influência regional – através do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) e da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP). Mais diretamente, analistas do HSBC e da JPMorgan apontam que as ações podem afetar as relações bilaterais por incitarem uma retaliação tarifária chinesa sobre bens e serviços estadunidenses, prejudicando as companhias que operam dentro Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 14 e fora do país. Por fim, a dimensão securitária é vista como essencial para a defesa dos interesses estadunidenses na região, sendo fundamental a retomada do processo de militarização direto e indireto. Assim, Trump ressalta o seu comprometimento em trabalhar com o Congresso para reestruturar e incrementar as Forças Armadas dos EUA, especialmente a U.S. Navy e a U.S. Air Force para 350 embarcações e 1200 aeronaves (essenciais para a condução das Freedom of Navigation Operations): “Nós vamos reconstruir completamente as nossas Forças Armadas [...] A história mostra que quando os EUA não estão preparados, é quando eles correm os maiores riscos. Nós queremos dissuadir, evitar e prevenir conflitos através da nossa inquestionável dominância militar”8 (CNN 2016). Portanto, o presidente recém-eleito buscará trabalhar de forma conjunta e coordenada com os seus tradicionais parceiros militares no Leste Asiático, como Coréia do Sul, Índia, Japão, Mianmar e Vietnã – além de cooptar novamente países afastados como Filipinas, Tailândia e até Taiwan (Gray e Navarro 2016). Esse aspecto adquire importância primária na medida em que há uma alusão clara às capacidades de A2/AD (Anti-Access/Area-Denial) da China. Esse conceito refere-se às capacidades militares chinesas de controle e defesa de seu entorno estratégico – nominalmente, o Mar do Leste da China e, principalmente, o Mar do Sul da China – em contraposição ao acesso indiscriminado de marinhas estrangeiras. Nesse ponto, Trump tem mostrado um discurso rígido, criticando a ameaça latente de interferência chinesa sobre a presença e navegação estadunidensena região, seja através da construção das ilhas artificiais com sistemas de armas defensivos, seja através das atividades de patrulha e monitoramento (Sputnik 2016). Em resposta às recentes articulações da nova administração, o Global Times, veículo de política externa da mídia estatal chinesa, direcionou duras críticas a Donald Trump em artigo intitulado Trump overestimates U.S. capability to dominate the world. Em sua matéria, o jornal critica, de forma extraordinariamente direta e incisiva, distinta do tradicional modus operandi chinês, a maneira como Trump falha em compreender as limitações do poder dos EUA, ao mesmo tempo em que despreza a importância estratégica da China. A crítica, igualmente provocativa, resume-se no seguinte trecho: “Após décadas de desenvolvimento, os interesses vitais chineses pouco se expandiram, mas a sua capacidade de controlar os riscos no Estreito de Taiwan e no Mar do Sul da China cresceu significativamente [...] Será uma batalha decisiva para Pequim salvaguardar seus interesses vitais. Se Trump quer jogar duro, a China não falhará”9 (Global Times 2016). Donald Trump parece apontar para o planejamento de uma importante inflexão na estratégia para a região da Ásia-Pacífico, mas que se mostra como um paradoxo em termos de inserção efetiva. As ações de Trump nos três campos das relações internacionais guardam suas respectivas reações. Por um lado, podem colocar o país em significativa vantagem estratégica nesta atual “queda de braço” caso funcionem de fato como mecanismos de barganha para retração das posições chinesas nesses campos. Por outro, podem afetar negativamente a sua imagem frente aos demais países asiáticos – especialmente com o cancelamento do TPP e o arrefecimento das negociações do TTIP – de forma a aproximá-los da contraparte chinesa. Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 15 Considerações finais Independente do que foi dito no curso da sua campanha, Donald Trump chega ao poder de forma legítima e como um produto tanto das contradições da era Barack Obama como da fragmentação partidária republicana gerada por George W. Bush (Pecequilo 2016). Grande parte do próprio legado político de Obama, nesse sentido, pode ser revertido por Trump através de ordens executivas. O choque, contudo, não deverá ser completo, mas espera-se mais protecionismo e unilateralismo (Pecequilo 2016b), dentro de um quadro global de triunfo de políticas ‘neonacionalistas’ sobre o neoliberalismo (Blyth 2016) e as tendências globalizantes. O isolacionismo de Trump, todavia, é relativo, pois a ideia de America First implica uma determinada presença global econômico-militar-estratégica da qual não se abrirá mão, seja pelo desejo de proteção dos interesses hegemônicos, seja pela pressão dos grupos de interesse do complexo industrial militar e do setor energético (Pecequilo 2016b). No âmbito interno, será importante atentar para as políticas migratórias que Trump pretende implementar, que prometem gerar fortes impactos sobre a grande parcela de imigrantes que vivem nos EUA e às relações bilaterais com o México. Em política externa e defesa, deve-se observar cuidadosamente a retomada de uma estratégia para conter o islamismo radical, uma das perspectivas securitárias levantadas. Além disso, Trump já sinalizou que irá reequipar as forças armadas norte-americanas, inclusive aumentando suas capacidades nucleares, e parece ter pouca tolerância para lidar com ameaças desse porte, como as que vêm do Irã e da Coreia do Norte. As relações bilaterais com a China prometem passar por uma eventual deterioração, porém uma guerra comercial com Pequim seria contraproducente para ambos os países, cujas economias são complementares. Do ponto de vista diplomático, Trump parece estar aplicando a doutrina Nixon ao contrário, como apontou Henry Kissinger: Nixon fez um acordo com a China para enfraquecer a Rússia, ao passo que Trump parece estar fazendo um acordo com a Rússia para enfraquecer a China (Wallerstein 2017). Nem a China e nem a Rússia, todavia, dão sinais de que vão abandonar suas políticas atuais – a Rússia é, novamente, uma grande potência no Oriente Médio e na sua vizinhança próxima (o ex-mundo soviético), e a China, aos poucos, está afirmando uma posição dominante no Nordeste e no Sudeste Asiático, ao mesmo tempo em que cresce seu papel no sistema mundial (Wallerstein 2017). Os EUA, nesse sentido, precisam repensar algumas das suas percepções sobre poder russo e chinês no sistema mundial. A eleição de Trump e a disputa entre os EUA e a China também podem apresentar uma “brecha” para a América Latina (Stuenkel 2016). O Brasil, contudo, no mundo geopolítico de Donald Trump, parece já estar reenquadrado como um país secundário. A nova diplomacia brasileira, nesse sentido, erra no plano internacional ao perseguir uma política de alinhamento com a superpotência em detrimento de sua autonomia. Por fim, conclui-se que Trump, apesar de tudo, não é um ponto tão “fora da curva”. O fenômeno Donald Trump, mais do que mistificado, deve ser examinado e entendido dentro de uma nova forma de se fazer política, a qual está inserida em um contexto global de desconfiança e insatisfação geral com as engrenagens do sistema tradicional. Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 16 Notas 3 Tais promessas foram cumpridas na sua primeira semana como presidente de facto. No dia 27 de Janeiro, Trump assinou uma polêmica ordem executiva que proíbe a entrada de refugiados de qualquer parte do mundo nos EUA por 120 dias, bem como de imigrantes oriundos de sete países do Oriente Médio e da África: Irã, Iraque, Síria, Sudão, Líbia, Iêmen e Somália. O presidente, nesse sentido, parece já ter estabelecido sua própria versão – expandida – do “Eixo do Mal” de George W. Bush. 4 Agradecemos aqui as contribuições feitas pelo professor e Pesquisador Associado do NERINT, Diego Pautasso, durante palestra intitulada “Trump e a China: perspectivas para as relações bilaterais”, realizada pelo Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) em parceria com o Núcleo de Estudos Estratégicos do Comando Militar do Sul (NEE/CMS) no dia 15 de Dezembro de 2016. 5 A noção de Burden-Sharing (ou Divisão de Responsabilidades) diz respeito a um conceito das Relações Internacionais que corresponde a uma estratégia estatal de balanceamento - contra potências hegemônicas regionais - via divisão de responsabilidades e custos com parceiros locais. 6 Tradução dos autores. 7 Donald Trump, Twitter post, 4 de Dezembro, 2016 (14:23 BRST), https://twitter.com/realDonaldTrump. Tradução dos autores. 8 Tradução dos autores. 9 Tradução dos autores. Referências Baker, Rodger. 2016. “Taiwan, Trump and a Telephone: How a Simple Act Called Out a Contradiction in U.S”. 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Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 19 A russofobiA conTemporâneA: quem Tem medo de moscou?* Douglas de Quadros Rocha1 e Francine Juchem Salerno2 • Após o redirecionamento de sua política externa em direção ao Oriente Médio, a Rússia se configura atualmente como um ator essencial para a geopolítica da região. • A adoção de uma política externa assertiva por Moscou é uma resposta a expansão das organizações ocidentais (OTAN e União Europeia) em direção aos países do entorno estratégico russo. • Em razão da política ocidental russofóbica de contenção a Rússia, Moscou tem buscado novos aliados e consumidores entre os países da Ásia. 1 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador Assistente do NERINT. Contato: douglasqrocha@gmail.com 2 Aluna de Pós-Graduação Lato Sensu em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas na UFRGS. Bacharel em Direito pela UFRGS. Contato: francinesalerno@hotmail.com * Com colaboração de Paulo Gilberto Fagundes Visentini, Pós-Doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics e Coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT). Apresentação Um aforismo bastante conhecido afirma que aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la. Do ímpeto eurpeizante da dinastia Romanov, no século XVII, à referência de Michail Gorbatchev à “casa comum europeia”, em 1987, a história russa deve ser compreendida a partir de suas relações com o mundo ocidental. A memória recente do colapso da União Soviética – que rejeitou veementemente os valores ocidentais em quase todos seus aspectos – não deve ocultar o fato de que a Rússia sempre buscou ser aceita no concerto de nações. A sistemática negação de seu status de potência pela Europa e, posteriormente, pelos Estados Unidos, constitui um fator fundamental para compreendermos eventos aparentemente tão distantes entre si como a Guerra da Crimeia (1853-1856) e sua anexação pela Rússia em 2014. A outra face desta moeda constitui a histórica rejeição do Estado russo pelo Ocidente e a disseminação de uma nova forma de “russofobia” em anos recentes – diversa do sentimento antissoviético existente ao longo da Guerra Fria, mas igualmente útil ao projeto geoestratégico de Washington. Nos anos que se seguiram ao colapso da União Soviética, a grave desestruturação que assolou a Rússia deixou o país absorto em sua própria crise, incapaz de oferecer resistência às investidas norte-americana e europeia em seu entorno estratégico. A expansão da OTAN e da União Europeia em direção ao leste do continente encontrou resistência efetiva – e não apenas retórica – de Moscou somente a partir do início do século XXI, quando a ascensão de líderes políticos engajados em executar um projeto de inserção internacional autônomo permitiu a recuperação Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 20 das capacidades militares do país. O presente artigo busca compreender de que forma a política de contenção da Federação Russa, praticada inadvertidamente pelos Estados Unidos e seus aliados europeus desde o fim da Guerra Fria, tem criado condições para que os governantes do Estado russo legitimem uma política externa mais assertiva em seu entorno estratégico e no Oriente Médio. Partimos da premissa de que o desespero do Ocidente em isolar politicamente Moscou, reproduzindo uma espécie de Cortina de Ferro do novo milênio, demonstra que o Estado russo permanece insensível às tentativas de subordiná-lo e dá condições políticaspara que os russos resistam às pressões do Ocidente, em especial dos Estados Unidos. Para tanto, o presente ensaio segue subdividido em três seções que correspondem aproximadamente aos eixos da política externa russa contemporânea. Na primeira parte, discutimos sua participação ativa na política do Oriente Médio como forma de responder às pressões ocidentais sobre os países do antigo bloco soviético. Na segunda seção, analisamos a persistência do conflito com o mundo ocidental e o caráter russofóbico do discurso que as lideranças e a mídia ocidentais utilizam para retratar Moscou. Por fim, discorremos a respeito da projeção russa na Eurásia, incluindo o novo tom da relação com as repúblicas da Ásia Central e, sobretudo, a dicotomia parceria-competição com a China. A atuação no Oriente Médio Em setembro de 2015, forças militares russas intervieram na Guerra da Síria, utilizando mísseis de longa-distância lançados a partir do Mar Cáspio e do Mediterrâneo, em uma demonstração bem-sucedida de projeção de força na região. A comunidade internacional, contudo, reagiu com surpresa à eficiência logística russa utilizada para apoiar o regime de Bashar al-Assad. A assertividade da política externa russa no Oriente Médio, inédita desde o fim da Guerra Fria e da consolidação da preponderância estadunidense, ocorre em um contexto de recuperação das capacidades militares russas, o que coloca o país como um ator extrarregional relevante no Oriente Médio. Em termos geoestratégicos, o Oriente Médio conecta porções importantes dos continentes asiático, europeu e africano, e serve como via de acesso aos mares Mediterrâneo, Negro e Índico. Desde o fim da Guerra Fria, a região esteve sob forte influência ocidental, especialmente dos Estados Unidos, criando condições para a presença militar estadunidense e a consecução de uma série de guerras travadas em nome do combate ao terrorismo. Após as guerras do Afeganistão e do Iraque, a presença e envolvimento das forças ocidentais no Oriente Médio impediram uma influência russa consistente na conjuntura regional (Hannah 2016). Para os Estados Unidos, o fim da URSS criou um vácuo político-estratégico que foi parcialmente preenchido, a partir de 2001, pela guerra ao terror no Iraque e no Afeganistão. A política de combate ao terrorismo, implementada após os atentados de 11 de setembro, foi recebida com certo entusiasmo diplomático pelo Kremlin, pois justificou sua ação contra separatistas chechenos na virada do milênio. Aos poucos, contudo, restou claro que a guerra ao terror servia de justificativa para que Washington derrubasse governos seculares não alinhados no Oriente Médio e ampliasse sua política de contenção da Rússia e da China por meio das guerras proxy (Pautasso 2014). O redirecionamento da política externa da Rússia em direção ao Oriente Médio se intensificou, sobretudo, a partir de 2011, com os eventos da Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 21 chamada Primavera Árabe. Considerada como um evento-chave para o Grande Oriente Médio, a eclosão de manifestações populares reivindicando maior democracia nos países da região, e as consequentes mudanças de regime em muitos destes países, resultaram em uma configuração política diversa. A conjuntura adquiriu novas proporções quando a onda de manifestações alcançou a Síria e o governo de Bashar al-Assad, considerado um aliado tradicional de Moscou. O governo de Damasco representa o último bastião da influência russa na região, e a possibilidade de que se repetisse o mesmo destino de alguns países afetados pela Primavera Árabe – com a implementação de governos pró-ocidentais – foi percebida como uma ameaça aos os interesses da Rússia (Roberto 2012, Harmer 2012). A Síria possui grande importância para a política externa russa na região, pois controla a parte Leste do Mar Mediterrâneo, servindo de ligação com o Mar Negro, onde a Rússia é atualmente preponderante (Aktürk 2016). Nesse sentido, a política externa de Vladmir Putin visou aumentar a presença da Marinha russa no Mediterrâneo, um objetivo geoestratégico existente desde o período czarista, em sua busca pelos chamados “mares quentes” e pelo acesso aos grandes oceanos (Bugajski e Doran 2016). O aumento da presença militar russa no Mediterrâneo cria uma potencial barreira aos Estados Unidos e seus aliados na região e impõe que grupos opositores de Bashar al-Assad considerem o risco de um engajamento total de Moscou no conflito armado (Cordesman 2016). O aprimoramento do porto de Tartus, na costa mediterrânea síria, representa atualmente a única base de operações russas fora de seu entorno próximo. Tartus constitui um ponto de apoio para as embarcações de Moscou localizadas no Mediterrâneo, evitando o retorno até a base naval de Sebastopol, na Crimeia, e o cruzamento dos Estreitos turcos de Bósforo e Dardanelos a cada reparo e reabastecimento das embarcações (Harmer 2012). O aprimoramento do porto em uma verdadeira base naval, com capacidade para receber os maiores navios russos, está em concordância com a nova política externa adotada por Putin para a região, a qual prevê a expansão e melhoramento das frotas meridionais (correspondentes ao Mar Negro e ao Mar Cáspio) e uma maior capacidade e presença no Mediterrâneo Leste (Bugajski e Doran 2016). Para realizar o redirecionamento de sua política externa em termos diplomáticos, a Rússia tem buscado manter uma balança de poder entre os principais atores da região, se aproximando de forma pragmática de países com interesses convergentes (Geranmayeh e Liik 2016). Dos países da região, o Irã se mostrou desde o início um aliado em potencial, em concordância com os principais interesses russos na região, os quais incluem a oposição à presença militar e influência estadunidense no Oriente Médio, além da manutenção do regime de Bashar al-Assad na Síria. Em conjunto com a Rússia, o Irã é um dos principais apoiadores do regime sírio e ambos os países contribuíram decisivamente com os meios militares necessários para reverter a situação em favor de Assad ao longo da Guerra da Síria (Geranmayeh e Liik 2016). Com relação aos países tradicionalmente pró- Ocidente, aliados dos Estados Unidos, como Israel e Arábia Saudita, Moscou buscou um entendimento diplomático de forma a evitar possíveis tensões após a intervenção militar na Síria e o estabelecimento de uma presença mais significativa na região (Geranmayeh e Liik 2016). Tal situação só foi possível como consequência da política de desengajamento estadunidense iniciada por Barack Obama, causando desgaste diplomático com alguns aliados na região. Em relação a Tel- Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 22 Aviv, a Rússia tem buscado uma aproximação com vistas a conquistar uma posição central no processo de discussões de paz entre Israel e Palestina. Ao propor um avanço nas negociações, após as tentativas lideradas pelos Estados Unidos não terem avançado desde 2014, Moscou percebe nesta questão uma nova oportunidade de aumentar sua influência diplomática no Oriente Médio (Geranmayeh e Liik 2016, Barmin 2016). Outro ator importante para a política externa russa referente ao Oriente Médio é a Turquia. A tensão diplomática causada pelo abatimento de uma aeronave russa pelo Exército turco, em 2015, foi superada e as relações russo-turcas foram normalizadas, em especial, a partir da tentativa de golpe de Estado contra o Presidente Recep Erdogan, em julho de 2016. A falta de apoio dos países membros da OTAN ao governo de Ancara levantou suspeita de participação estadunidense na tentativa de golpe (Hannah 2016). A partir de então, Rússia e Turquiabuscaram articular o cessar-fogo sírio, através de negociações que incluem o Irã, e executando bombardeamentos conjuntos em posições do Estado Islâmico em uma guerra de contraterrorismo (Sly e Haidamous 2017). As recentes conversações em Astana, no Cazaquistão, iniciadas em janeiro de 2017 e coordenadas por Moscou e Ancara, dão ideia da importância russa na resolução do conflito sírio, o qual, embora longe de ser resolvido, depende da concordância da Rússia para ser efetivo. O envolvimento russo no conflito da Síria constitui, em parte, um desdobramento do crescente atrito existente entre Moscou e o Ocidente, devendo ser compreendido dentro da lógica norte-americana de contenção da Rússia. A contínua ingerência ocidental no entorno estratégico russo – desde a Guerra dos Balcãs, passando pela expansão da OTAN em direção aos países da ex-URSS e a ocupação de países da Ásia Central e do Oriente Médio – legitimou a adoção de uma política externa assertiva por parte do Kremlin na região, em especial para apoiar um aliado, como é o caso de Bashar al-Assad. Caso se confirme a retórica externada por Donald Trump durante sua campanha presidencial de maior aproximação com a Rússia, abre-se a possibilidade de uma distensão nas relações com o Kremlin e de um acordo de paz na Síria, uma vez que ambos os países são fundamentais para a manutenção de um eventual cessar-fogo na região. A Rússia e o Ocidente O colapso da União Soviética em 1991 não pôs fim apenas ao breve século XX, descrito por Hobsbawm3, mas também significou “um dos maiores desastres geopolíticos do século XX”, nas palavras do Presidente Vladimir Putin4. A Federação Russa foi submetida à chamada “terapia de choque” de Boris Iéltsin, a partir de sua ascensão à Presidência em 1992. A schock therapy caracterizou-se por uma guinada ao capitalismo através de um amplo processo de privatizações e da adoção do receituário liberal, causando profunda desorganização política e econômica. A postura do então Presidente Iéltsin baseava-se na crença de que uma “renúncia à sua posição antagônica [ao Ocidente] seria premiada com a inserção no concerto das potências desenvolvidas” (Visentini 2015). A adoção do modelo econômico e político liberal não apenas retirou a Rússia do rol de potências mundiais, mas também significou o avanço da coalizão ocidental sobre a região da ex- URSS. A inserção passiva da Rússia na ordem internacional do pós-Guerra Fria não refreou o ímpeto de Washington, conforme atestam as sucessivas expansões da OTAN e da União Europeia em direção aos países do antigo bloco soviético (Pautasso 2014), cujas maiores inclusões Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 23 de novos membros ocorreram justamente em 1999 e 2004, no caso da OTAN e em 2004 e 2007 para a União Europeia, quando Moscou encontrava-se extremamente fragilizado pela grave crise política e econômica que assolou o país. Da mesma forma, a atuação da OTAN na Guerra dos Balcãs no apagar das luzes do século XX – sem mandato internacional e em um país não pertencente à organização – deu indicações claras de que a política de Washington no entorno estratégico russo teria por objetivo tirar proveitos da fragilidade russa. Conforme afirmado por Mello (1999, 131-132), a política norte-americana de contenção geopolítica e geoestratégica da Rússia baseia-se na premissa de que quem controlar a Eurásia controla o mundo, naquilo que McKinder denominou de heartland. Diante do fracasso das políticas de distensão com o Ocidente implementadas por Iéltsin e do crescente acirramento de tensões nas fronteiras russas, a resposta da Moscou iniciou-se com a nomeação de Eugênio Primakov para a Chancelaria russa em 1993. Ao afirmar como interesses permanentes da Rússia o fortalecimento da integridade territorial, a recuperação do prestígio no antigo espaço soviético e a prevenção de conflitos, especialmente étnicos, em seu entorno regional, Primakov lançou as bases de uma nova política externa. A eleição de Putin em 2000 e a nomeação de Serguei Lavrov para o cargo de Ministro de Assuntos Estrangeiros, em 2004, aprofundaram esta tendência pragmática e assertiva, que busca pacientemente recuperar seu status de grande potência. A resposta do bloco ocidental à reemergência russa pautou-se pela ampliação do discurso russofóbico, através de uma “demonização” das lideranças políticas russas e da caracterização da Rússia como uma nação belicosa e expansionista, especialmente desde a anexação da Crimeia em 2014. De acordo com o ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, “a demonização de Vladmir Putin não constitui uma política ocidental, mas antes um álibi para ausência de uma”5. A título exemplificativo, o acordo firmado entre a OTAN e a Rússia em 1997 previa textualmente que, naquele contexto securitário, a organização comprometia-se a não realizar o aumento permanente de forças de deslocamento e de forças combatentes nas proximidades do Estado russo6. Entretanto, não apenas a OTAN dobrou o número de países membros em menos de uma década – com a inclusão de Polônia, Hungria e República Tcheca em 1999; Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia, em 2004 e Albânia e Croácia em 2009 –, como também instituiu em 2015 seis centros de comando em países que fazem fronteira com a Rússia. Não menos simbólico foi o recente deslocamento de tropas e material bélico para exercícios militares na Polônia, em janeiro de 2017. Sempre que necessário, os países do leste europeu agitam a bandeira do perigo russo, de modo a obter vantagens de seus aliados ocidentais (Chiesa 2016). O sinal de alerta foi dado ao Kremlin quando da eclosão das chamadas Revoluções Coloridas em países vizinhos – Geórgia (2003), Ucrânia (2004) e Quirguistão (2005) – e quando, em 2008, a OTAN postulou uma nova inclusão de membros desta vez para incluir precisamente Geórgia e Ucrânia. A resposta russa ocorreu em duas etapas distintas. Inicialmente, forçando o fechamento das bases aéreas norte-americanas no Uzbequistão e no Quirguistão em 2005 e 2014, respectivamente; e, posteriormente, com a invasão da Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia em 2014, demonstrando a falta de compromisso de Washington com a segurança de países localizados na periferia russa (Stratfor 2017). O politólogo e Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 24 adepto do realismo ofensivo, John Mearsheimer, aponta que a coalisão ocidental iludiu-se ao acreditar que poderia substituir o realismo político pela aplicação desenfreada de ideias liberais no entorno estratégico da Rússia7. Embora a anexação da Crimeia e o apoio dado por Moscou às províncias do leste ucraniano tenham aumentado as confrontações entre russos e europeus, evitando a formação de um eixo Berlim-Moscou (Salerno e Thudium 2016), a política norte-americana de contenção da Rússia, baseada no unilateralismo e na desestabilização de seu entorno estratégico, tem por efeito colateral o aprofundamento do senso de nacionalismo e patriotismo russo, fortalecendo as capacidades estatais e estimulando uma política externa autônoma (Pautasso 2014). Ao isolar a Rússia do mundo ocidental, os Estados Unidos possibilitam que o Estado russo crie novas alianças e retome antigas parcerias, tal é o caso do aprofundamento das relações sino-russas e da retomada da influência de Moscou nos países da Ásia Central. Se Washington tem conseguido barrar qualquer aproximação do Kremlin com a União Europeia – mesmo que a um alto custo político –, é possível que o efeito desta política seja a criação de um imprevisível eixo Moscou-Beijing. Rússia e China na EurásiaA excessiva tensão criada pelos Estados Unidos e pela União Europeia na periferia russa colabora para que Moscou busque firmar novas alianças políticas, econômicas e securitárias, com destaque para a Organização para a Cooperação de Xangai (OCX), para a União Econômica Eurasiana (UEE) e outras organizações que projetam a Rússia em sua zona de influência na Ásia Central e no Cáucaso. Da mesma forma, os maciços investimentos chineses em infraestrutura e sua grande demanda por recursos energéticos abundantes na Rússia e na Ásia Central, tornam Beijing um parceiro viável, especialmente após a terceira rodada de sanções impostas pela coalizão ocidental à Rússia em razão da crise ucraniana (Spivak 2016). A União Econômica Eurasiana (UEE), gestada ao longo de quinze anos de negociação entre Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Armênia e Bielorrússia, constitui uma união aduaneira e tem por escopo promover a integração e o livre comércio entre os países membros, marcada pelo peso político da Federação Russa sobre os demais integrantes. A OCX, por sua vez, foi criada em 2001, com o objetivo inicial de trazer estabilidade à Ásia Central, mas ampliou seu escopo de atuação a partir da projeção de interesses norte-americanos para a região, especialmente após as guerras no Afeganistão e no Iraque. A admissão formal de Índia e Paquistão à OCX, a partir de janeiro de 2017, aumenta significativamente o peso da organização, não apenas pela ampliação de recursos humanos, econômicos e energéticos, mas também por incluir entre seus países membros dois inimigos históricos (Ribeiro e Vieira 2016), permitindo que os países possam articular entre si decisões relativas à segurança e ao desenvolvimento da região, precisamente em um momento de ensaio da multipolaridade com a ascensão de núcleos decisórios importantes na Eurásia (Visentini 2015). Em termos econômicos, os megaprojetos chineses na região, como o Cinturão Econômico da Rota da Seda (Silk Road Economic Belt – SBER, na sigla em inglês), o oleoduto Leste Siberiano-Oceano Pacífico (East Siberian Pacific Ocean – ESPO, na sigla em inglês) e o gasoduto Força da Sibéria (Power of Siberia, em inglês) são essenciais tanto para Beijing quanto para os países da Ásia Central e para a Rússia. Para Beijing, o SBER permite o escoamento da produção por via terrestre e os Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 25 gasodutos-oleodutos garantem o abastecimento de recursos energéticos essências às indústrias chinesas, tornando a China menos dependente de produtores do Oriente Médio aliados dos Estados Unidos. Por sua vez, tanto Moscou quanto os países da Ásia Central necessitam com urgência dos investimentos em infraestrutura trazidos pelos projetos chineses no setor energético. Para a Rússia, em especial, a entrada em funcionamento do ESPO, em 2012, não apenas fez de Moscou o maior fornecedor de petróleo cru da China (ultrapassando a Arábia Saudita em 2014), como também mandou uma mensagem aos países europeus de que Moscou é capaz de encontrar consumidores mais rapidamente do que a Europa é capaz de encontrar novos fornecedores de hidrocarbonetos (Pautasso 2014). A penetração chinesa na Ásia Central, sobretudo por meio de empresas estatais do setor energético, coloca Moscou em uma posição por vezes desconfortável. Se por um lado o Kremlin não pode se dar ao luxo de rejeitar os investimentos e os capitais da China, por outro a possibilidade de que a Rússia venha a perder sua influência sobre os países da ex-União Soviética coloca limitações à cooperação sino-russa. As negociações bilaterais – sem intermediação russa – que resultaram na construção de um gasoduto no Turcomenistão e de um oleoduto na Cazaquistão fizeram com que empresas chinesas se tornassem donas de 25% do setor energético cazaque e colocaram Beijing como o maior comprador de gás natural do Turcomenistão. Tal cenário indica que as repúblicas da Ásia Central não são mais atores passivos dependentes da política de Moscou e que podem barganhar vantagens econômicas com a China (Spivak 2016). A inferioridade econômica russa diante da China e a pluralidade de iniciativas regionais existentes na Eurásia – OCX, UEE, SREB – obrigam Moscou a rever seu relacionamento assimétrico com os países do antigo bloco soviético, bem como dosar sua aproximação com a China. Se a russofobia e a rejeição sistemática do Ocidente empurram os russos em direção a Beijing, a aparente lógica econômica existente por trás dos investimentos chineses na região pode vir a ter desdobramentos políticos que coloquem o Kremlin em desvantagem. Contudo, a acomodação de diferenças no seio da Eurásia parecer ser mais viável, uma vez que a compreensão do conceito de soberania entre países asiáticos difere daquela proposta pelo Ocidente, em que o princípio de não intervenção em assuntos domésticos tem maior peso nas relações interestatais (Hantke 2016). Se confirmado o discurso protecionista do recém- empossado Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, será aberta uma possibilidade para que a China preencha a eventual lacuna deixada por Washington, sobretudo na Eurásia. Neste cenário hipotético, o eixo Moscou-Beijing pode facilmente oscilar da cooperação para a competição, uma vez que a iniciativa liderada por Moscou – a UEE – pode ser facilmente eclipsada pelas iniciativas de infraestrutura chinesas – SBER, oleodutos e gasodutos. De qualquer forma, não restam dúvidas de que a disputa pela influência política na Ásia Central e por seus recursos energéticos será uma questão delicada nas relações sino-russas, onde a ascensão histórica e cultural da antiga União Soviética terá de competir com os vultosos recursos chineses. Contudo, os termos desta competição aparentam ser menos problemáticos – e certamente menos belicosos – do que as relações existentes entre Rússia e a coalização ocidental tem se mostrado. Sobretudo porque as relações intraeurasiáticas mostram-se menos propensas a elaboração de discursos maniqueístas do papel dos Estados no sistema internacional. Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 4 | p. 1-91 | jan/2017 | ISSN: 2525-5266 26 Considerações finais A partir das modificações introduzidas pelo colapso da União Soviética e pelo fim da disputa bipolar, o locus geopolítico e geoestratégico da Rússia no sistema mundial alterou-se profundamente. Em que pese o fim da confrontação Leste-Oeste tenha conduzido o sistema a uma aparente unipolaridade centrada nos Estados Unidos, pode-se afirmar que está em andamento uma multiplicação dos núcleos decisórios de poder, o qual se desloca em direção à Eurásia, naquilo que pode ser caracterizado como um “ensaio de multipolaridade”. Tal cenário altera o papel da Federação Russa - o Estado eurasiático por excelência – na reconfiguração da ordem mundial que se descortina no século XXI, ampliando as potencialidades e, simultaneamente, os desafios que se colocam para Moscou. A caracterização da Rússia pela imprensa ocidental como uma nação belicosa e expansionista reflete não apenas a pouca compreensão que se tem do Estado russo contemporâneo, ainda muito baseada em estereótipos herdados da Guerra Fria, mas também uma tentativa de recriar um inimigo para além do Reno. O escalonamento de tensões no leste Europeu e no Oriente Médio – a exemplo do conflito na Ucrânia, da anexação da Crimeia em 2014, do recente deslocamento de tropas da OTAN para a Polônia e da ativa participação russa no conflito sírio – são efeitos da política externa de contenção das administrações Bush e Obama, as quais tem levado o Estado russo a buscar novas alianças, aumentando a viabilidade de uma parceria sino-russa mais efetiva. O desmembramento geográfico
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