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O CÔNEGO OU METAFÍSICA DO ESTILO MACHADO DE ASSIS

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1
Universidade da Amazônia
O Cônego ou
Metafísica do Estilo
de Machado de Assisde Machado de Assis
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal
CEP: 66060-902
Belém – Pará
Fones: (91) 210-3196 / 210-3181
www.nead.unama.br
E-mail: uvb@unama.br
www.nead.unama.br
2
O Cônego ou Metafísica do Estilo
de Machado de Assis
— "Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras,
deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de pombos..."
— "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado,
lhe façais saber que estou enferma de amor..."
Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um
ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me
interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-
lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de
chegar.
Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as asas
para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que
favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos
farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado,
letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela
seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas
anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única
verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.
Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão
quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e
livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa
próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no
último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou.
— Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros.
Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os
diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram
anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o
Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero brasileiro". Este "ornamento do clero"
tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por
estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão.
Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com
amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão,
ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil
cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As
tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou
nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e
risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à
cabeça do cônego.
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas
pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o
homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e
outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem
Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha
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bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios
cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos
nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas
a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e
os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo
da diferença sexual...
— Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha
grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta.
Palavra tem sexo.
— Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que
chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.
— Confesso que não.
Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar
deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o
cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo,
que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de
padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu:
"Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a
das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá
falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a
libra que é tudo o mesmo dinheiro.
Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do
substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece
que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.
Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um
cérebro tão cheio de cousas velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que
mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que
lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas
raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai
sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir.
De quando em quando, aparece-lhe alguma dama — adjetivo também — e
oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é
a única, a destinada ao eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura
da única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à cabeça
do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino;
Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor
nomeado e predestinado.
Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à
janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o
resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do
costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol,
reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o
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raio vem, e pára diante da janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do
sol, meu senhor e pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso
daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro,
deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um
piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos,
encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.
Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em
cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem
suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a
inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências
dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os
rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à
procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o
leitor a mim, e escorreguemos também.
Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas.
Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de
reminiscências da infância e do seminário. Outras idéias, grávidas de idéias,
arrastam-se pesadamente, amparadas por outrasidéias virgens. Cousas e homens
amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica;
mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros
ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do
cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e
confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas
da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas,
aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por
sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.
— Vem do Líbano, esposa minha...
— Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém...
Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de
teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções
modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de
Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é
Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade
secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também
os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego,
cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o
que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a
rapidez do amor e do desejo.
Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou
agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que
escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que
adjetivo há de anexar ao substantivo.
Justamente agora é que os dous cobiçosos estão mais perto um do outro. As
vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles,
tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias,
disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão,
o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao
cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas,
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regras de voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções,
pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm
nada convosco. Amam-se e procuram-se.
Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos
braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se,
entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência.
"Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio,
como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do
seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte".
Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção
e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de
Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo,
se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe.
FIM

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