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[Literatura Brasileira] Machado de Assis O Imortal

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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
O Imortal, de Machado de Assis
Edição de Referência: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
— MEU PAI NASCEU em 1600... — Perdão, em 1800, naturalmente... — Não, 
senhor, replicou o dr. Leão, de um modo grave e triste; foi em 1600. Estupefação dos 
ouvintes, que eram dous, o coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era 
na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho 
dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, 
quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em que os três 
estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz frouxa, pendurado de 
um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e 
áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o 
quadro e o momento, quando o dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.
 — Não, senhor; nasceu em 1600.
 Médico homeopata — a homeopatia começava a entrar nos domínios da nossa 
civilização —, este dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias antes, provido de boas 
cartas de recomendação, pessoais e políticas. Era um homem inteligente, de fino trato e 
coração benigno. A gente da vila notou-lhe certa tristeza no gesto, algum retraimento nos 
hábitos, e até uma tal ou qual sequidão de palavras, sem embargo da perfeita cortesia; 
mas tudo foi atribuído ao acanho dos primeiros dias e às saudades da Corte. Contava 
trinta anos, tinha um princípio de calva, olhar baço e mãos episcopais. Andava 
propagando o novo sistema. Os dous ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora 
posta pelo dono da casa, o coronel Bertioga, e o tabelião ainda insistiu no caso, 
mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600. Duzentos e 
cinqüenta e cinco anos antes! dous séculos e meio! Era impossível. Então, que idade 
tinha ele? e de que idade morreu o pai?
 — Não tenho interesse em contar-lhes a vida de meu pai, respondeu o dr. Leão. 
Falaram-me no macróbio que mora nos fundos da matriz; disse-lhes que, em negócio de 
macróbios, conheci o que há mais espantoso no mundo, um homem imortal...
 — Mas seu pai não morreu? disse o coronel.
 — Morreu.
 — Logo, não era imortal, concluiu o tabelião triunfante. Imortal se diz quando uma 
pessoa não morre, mas seu pai morreu.
 — Querem ouvir-me?
 — Homem, pode ser, observou o coronel meio abalado. O melhor é ouvir a história. Só 
o que digo é que mais velho do que o Capataz nunca vi ninguém. Está mesmo caindo de 
maduro. Seu pai devia estar também muito velho...?
 — Tão moço como eu. Mas para que me fazem perguntas soltas? Para se espantarem 
cada vez mais, porque na verdade a história de meu pai não é fácil de crer. Posso contá-
la em poucos minutos.
 Excitada a curiosidade, não foi difícil impor-lhes silêncio. A família toda estava 
acomodada, os três eram sós na varanda, o dr. Leão contou enfim a vida do pai, nos 
termos em que o leitor vai ver, se se der o trabalho de ler o segundo e os outros capítulos.
CAPÍTULO II
 — MEU PAI NASCEU em 1600, na cidade de Recife.
 Aos vinte e cinco anos tomou o hábito franciscano, por vontade de minha avó, que era 
profundamente religiosa. Tanto ela como o marido eram pessoas de bom nascimento 
— “bom sangue”, como dizia meu pai, afetando a linguagem antiga.
 Meu avô descendia da nobreza de Espanha, e minha avó era de uma grande casa do 
Alentejo. Casaram-se ainda na Europa, e, anos depois, por motivos que não vêm ao caso 
dizer, transportaram-se ao Brasil, onde ficaram e morreram. Meu pai dizia que poucas 
mulheres tinha visto tão bonitas como minha avó. E olhem que ele amou as mais 
esplêndidas mulheres do mundo. Mas não antecipemos.
 Tomou meu pai o hábito, no convento de Iguaraçu, onde ficou até 1639, ano em que os 
holandeses, ainda uma vez, assaltaram a povoação. Os frades deixaram 
precipitadamente o convento; meu pai, mais remisso do que os outros (ou já com o 
intento de deitar o hábito às urtigas), deixou-se ficar na cela, de maneira que os 
holandeses o foram achar no momento em que recolhia alguns livros pios e objetos de 
uso pessoal. Os holandeses não o trataram mal. Ele os regalou com o melhor da ucharia 
franciscana, onde a pobreza é de regra. Sendo uso daqueles frades alternarem-se no 
serviço da cozinha, meu pai entendia da arte, e esse talento foi mais um encanto ao 
aparecer do inimigo.
 No fim de duas semanas, o oficial holandês ofereceu-lhe um salvo-conduto, para ir 
aonde lhe parecesse; mas meu pai não o aceitou logo, querendo primeiro considerar se 
devia ficar com os holandeses, e, à sombra deles desamparar a Ordem, ou se lhe era 
melhor buscar vida por si mesmo. Adotou o segundo alvitre, não só por ter o espírito 
aventureiro, curioso e audaz, como porque era patriota, e bom católico, apesar da 
repugnância à vida monástica, e não quisera misturar-se com o herege invasor. Aceitou o 
salvo-conduto e deixou Iguaraçu.
 Não se lembrava ele, quando me contou essas cousas, não se lembrava mais do 
número de dias que despendeu sozinho por lugares ermos, fugindo de propósito ao 
povoado, não querendo ir a Olinda ou Recife, onde estavam os holandeses. Comidas as 
provisões que levava, ficou dependente de alguma caça silvestre e frutas. Deitara, com 
efeito, o hábito às urtigas; vestia uns calções flamengos, que o oficial lhe dera, e uma 
camisola ou jaquetão de couro. Para encurtar razões, foi ter a uma aldeia de gentio, que o 
recebeu muito bem, com grandes carinhos e obséquios. Meu pai era talvez o mais 
insinuante dos homens. Os índios ficaram embeiçados por ele, mormente o chefe, um 
guerreiro velho, bravo e generoso, que chegou a dar-lhe a filha em casamento. Já então 
minha avó era morta, e meu avô desterrado para a Holanda, notícias que meu pai teve, 
casualmente, por um antigo servo da casa. Deixou-se estar, pois, na aldeia, o gentio, até 
o ano de 1642, em que o guerreiro faleceu. Este caso do falecimento é que é 
maravilhoso: peço-lhes a maior atenção.
 O coronel e o tabelião aguçaram os ouvidos, enquanto o dr. Leão extraía 
pausadamente uma pitada e inseria-a no nariz, com a pachorra de quem está 
negaceando uma cousa extraordinária.
CAPÍTULO III
UMA NOITE, o chefe indígena — chamava-se Pirajuá — foi à rede de meu pai, anunciou-
lhe que tinha de morrer, pouco depois de nascer o sol, e que ele estivesse pronto para 
acompanhá-lo fora, antes do momento último. Meu pai ficou alvoroçado, não por lhe dar 
crédito, mas por supô-lo delirante. Sobre a madrugada, o sogro veio ter com ele.
 — Vamos, disse-lhe.
 — Não, agora não: estás fraco, muito fraco...
 — Vamos! repetiu o guerreiro.
 E, à luz de uma fogueira expirante, viu-lhe meu pai a expressão intimativa do rosto, e 
um certo ar diabólico, em todo caso extraordinário, que o aterrou. Levantou-se, 
acompanhou-o na direção de um córrego. Chegando ao córrego, seguiram pela margem 
esquerda, acima, durante um tempo que meu pai calculou ter sido um quarto de hora. A 
madrugada acentuava-se; a lua fugia diante dos primeiros anúncios do sol. Contudo, e 
apesar da vida do sertão que meu pai levava desde alguns tempos, a aventura assustava-
o; seguia vigiando o sogro, com receio de alguma traição. Pirajuá ia calado, com os olhos 
no chão, e a fronte carregada de pensamentos, que podiam ser cruéis ou somente 
tristes. E andaram, andaram, até que Pirajuá disse:
 — Aqui.
 Estavam diante de três pedras, dispostas em triângulo. Pirajuá sentou-se numa, meu 
pai noutra. Depois de alguns minutos de descanso:— Arreda aquela pedra, disse o guerreiro, apontando para a terceira, que era a maior.
 Meu pai levantou-se e foi à pedra. Era pesada, resistiu ao primeiro impulso; mas meu 
pai teimou, aplicou todas as forças, a pedra cedeu um pouco, depois mais, enfim foi 
removida do lugar.
 — Cava o chão, disse o guerreiro.
 Meu pai foi buscar uma lasca de pau, uma taquara ou não sei quê, e começou a cavar 
o chão. Já então estava curioso de ver o que era. Tinha-lhe nascido uma idéia — algum 
tesouro enterrado, que o guerreiro, receoso de morrer, quisesse entregar-lhe. Cavou, 
cavou, cavou, até que sentiu um objeto rijo; era um vaso tosco, talvez uma igaçaba. Não o 
tirou, não chegou mesmo a arredar a terra em volta dele. O guerreiro aproximou-se, 
desatou o pedaço de couro de anta que lhe cobria a boca, meteu dentro o braço, e tirou 
um boião. Este boião tinha a boca tapada com outro pedaço de couro.
 — Vem cá, disse o guerreiro.
 Sentaram-se outra vez. O guerreiro tinha o boião sobre os joelhos, tapado, misterioso, 
aguçando a curiosidade de meu pai, que ardia por saber o que havia ali dentro.
 — Pirajuá vai morrer, disse ele; vai morrer para nunca mais. Pirajuá ama guerreiro 
branco, esposo de Maracujá, sua filha; e vai mostrar um segredo como não há outro.
 Meu pai estava trêmulo. O guerreiro desatou lentamente o couro que tapava o boião. 
Destapado, olhou para dentro, levantou-se, e veio mostrá-lo a meu pai. Era um líquido 
amarelado, de um cheiro acre e singular.
 — Quem bebe isto, um gole só, nunca mais morre.
 — Oh! bebe, bebe! exclamou meu pai com vivacidade.
 Foi um movimento de afeto, um ato irrefletido de verdadeira amizade filial, porque só 
um instante depois é que meu pai advertiu que não tinha, para crer na notícia que o sogro 
lhe dava, senão a palavra do mesmo sogro, cuja razão supunha perturbada pela moléstia. 
Pirajuá sentiu o espontâneo da palavra de meu pai, e agradeceu-lha; mas abanou a 
cabeça.
 — Não, disse ele; Pirajuá não bebe, Pirajuá quer morrer. Está cansado, viu muita lua, 
muita lua. Pirajuá quer descansar na terra, está aborrecido. Mas Pirajuá quer deixar este 
segredo a guerreiro branco; está aqui; foi feito por um velho pajé de longe, muito longe... 
Guerreiro branco bebe, não morre mais.
 Dizendo isto, tornou a tapar a boca do boião, e foi metê-lo outra vez dentro da igaçaba. 
Meu pai fechou depois a boca da mesma igaçaba, e repôs a pedra em cima. O primeiro 
clarão do sol vinha apontando. Voltaram para casa depressa; antes mesmo de tomar a 
rede, Pirajuá faleceu.
 Meu pai não acreditou na virtude do elixir. Era absurdo supor que um tal líquido 
pudesse abrir uma exceção na lei da morte. Era naturalmente algum remédio, se não 
fosse algum veneno; e neste caso, a mentira do índio estava explicada pela turvação 
mental que meu pai lhe atribuiu. Mas, apesar de tudo, nada disse aos demais índios da 
aldeia, nem à própria esposa. Calou-se; — nunca me revelou o motivo do silêncio: creio 
que não podia ser outro senão o próprio influxo do mistério.
 Tempos depois, adoeceu, e tão gravemente que foi dado por perdido. O curandeiro do 
lugar anunciou a Maracujá que ia ficar viúva. Meu pai não ouviu a notícia, mas leu-a em 
uma página de lágrimas, no rosto da consorte, e sentiu em si mesmo que estava 
acabado. Era forte, valoroso, capaz de encarar todos os perigos; não se aterrou, pois, 
com a idéia de morrer,despediu-se dos vivos, fez algumas recomendações e preparou-se 
para a grande viagem.
 Alta noite, lembrou-se do elixir, e perguntou a si mesmo se não era acertado tentá-lo. 
Já agora a morte era certa, que perderia ele com a experiência? A ciência de um século 
não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe, dizia ele consigo, se os 
homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta 
mesma drogaselvática? O primeiro que curou a febre maligna fez um prodígio. Tudo é 
incrível antes de divulgado. E, pensando assim, resolveu transportar-se ao lugar da pedra, 
à margem do arroio; mas não quis ir de dia, com medo de ser visto. De noite, ergueu-se, e 
foi, trôpego, vacilante, batendo o queixo. Chegou à pedra, arredou-a, tirou o boião, e 
bebeu metade do conteúdo. Depois sentou-se para descansar. Ou o descanso, ou o 
remédio, alentou-o logo. Ele tornou a guardar o boião; daí a meia hora estava outra vez 
na rede. Na seguinte manhã estava bom...
 — Bom de todo? perguntou o tabelião João Linhares, interrompendo o narrador.
 — De todo.
 — Era algum remédio para febre...
 — Foi isto mesmo o que ele pensou, quando se viu bom. Era algum remédio para febre 
e outras doenças; e nisto ficou; mas, apesar do efeito da droga, não a descobriu a 
ninguém. Entretanto, os anos passaram, sem que meu pai envelhecesse; qual era no 
tempo da moléstia, tal ficou. Nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. Moço, 
perpetuamente moço. A vida do matocomeçara a aborrecê-lo; ficara ali por gratidão ao 
sogro; as saudades da civilização vieram tomá-lo. Um dia, a aldeia foi invadida por uma 
horda de índios de outra, não se sabe por que motivo, nem importa ao nosso caso. Na 
luta pereceram muitos, meu pai foi ferido, e fugiu para o mato. No dia seguinte veio à 
aldeia, achou a mulher morta. As feridas eram profundas; curou-as com o emprego de 
remédios usuais; e restabeleceu-se dentro de poucos dias. Mas os sucessos 
confirmaram-no no propósito de deixar a vida semi-selvagem e tornar à vida civilizada e 
cristã. Muitos anos se tinhampassado depois da fuga do convento de Iguaraçu; ninguém 
mais o reconheceria. Um dia de manhã deixou a aldeia, com o pretexto de ir caçar; foi 
primeiro ao arroio, desviou a pedra, abriu a igaçaba, tirou o boião, onde deixara um resto 
do elixir. A idéia dele era fazer analisar a droga na Europa, ou mesmo em Olinda ou no 
Recife, ou na Bahia, por algum entendido emcousas de química e farmácia. Ao mesmo 
tempo não podia furtar-se a um sentimento de gratidão; devia àquele remédio a saúde. 
Com o boião ao lado, a mocidade nas pernas e a resolução no peito, saiu dali, caminho 
de Olinda eda eternidade.
CAPÍTULO IV
— NÃO POSSO demorar-me em pormenores, disse o dr. Leão aceitando o café que o 
coronel mandara trazer. São quase dez horas...
 — Que tem? perguntou o coronel. A noite é nossa; e, para o que temos de fazer 
amanhã, podemos dormir quando bem nos parecer. Eu por mim não tenho sono. E você, 
sr. João Linhares?
 — Nem um pingo, respondeu o tabelião.
 E teimou com o dr. Leão para contar tudo, acrescentando que nunca ouvira nada tão 
extraordinário. Note-se que o tabelião presumia ser lido em histórias antigas, e passava 
na vila por um dos homens mais ilustrados do Império; não obstante, estava pasmado. 
Ele contou ali mesmo, entre dous goles de café, o caso de Matusalém, que viveu 
novecentos e sessenta e nove anos, e o de Lameque, que morreu com setecentos e 
setenta e sete; mas, explicou logo, porque era um espírito forte, que esses e outros 
exemplos da cronologia hebraica não tinham fundamento científico...
 — Vamos, vamos ver agora o que aconteceu a seu pai, interrompeu o coronel.
 O vento, de esfalfado, morrera; e a chuva começava a rufar nas folhas das árvores, a 
princípio com intermitências, depois mais contínua e basta. A noite refrescou um pouco. O 
dr. Leão continuou a narração, e, apesar de dizer que não podia demorar-se nos 
pormenores, contou-os com tanta miudeza, que não me atrevo a pô-los tais quais nestas 
páginas; seria fastidioso. O melhor é resumi-lo.
 Rui de Leão, ou antes Rui Garcia de Meireles e Castro Azevedo de Leão, que assim se 
chamava o pai do médico, pouco tempo se demorou em Pernambuco. Um ano depois, em 
1654, cessava o domínio holandês. Rui de Leão assistiu às alegrias da vitória, e passou-
se ao reino,onde casou com uma senhora nobre de Lisboa. Teve um filho; e perdeu o 
filho e a mulher no mesmo mês de março de 1661. A dor que então padeceu foi profunda; 
para distrair-se visitou a França e a Holanda. Mas na Holanda, ou por motivo de uns 
amores secretos, ou por ódio de alguns judeus descendentes ou naturais de Portugal, 
com quem entreteve relações comerciais na Haia, ou enfim por outros motivos 
desconhecidos, Rui de Leão não pôde viver tranqüilo muito tempo; foi preso e conduzido 
para a Alemanha, de onde passou à Hungria, a algumas cidades italianas, à França, e 
finalmente à Inglaterra. Na Inglaterra estudou o inglês profundamente; e, como sabia o 
latim, aprendido no convento, o hebraico, que lhe ensinara na Haia o famoso Spinoza, de 
quem foi amigo, e que talvez deu causa ao ódio que os outros judeus lhe criaram; — o 
francês e o italiano, parte do alemão e do húngaro, tornou-se em Londres objeto de 
verdadeira curiosidade e veneração. Era buscado, consultado, ouvido, não só por 
pessoas do vulgo ou idiotas, como por letrados, políticos e personagens da corte.
 Convém dizer que em todos os países por onde andara tinha ele exercido os mais 
contrários ofícios: soldado, advogado, sacristão, mestre de dança, comerciante e livreiro. 
Chegou a ser agente secreto da Áustria, guarda pontifício e armador de navios. Era ativo, 
engenhoso, mas pouco persistente, a julgar pela variedade das cousas que empreendeu; 
ele, porém, dizia que não, que a sorte é que sempre lhe foi adversa. Em Londres, onde o 
vemos agora, limitou-se ao mister de letrado e gamenho; mas não tardou que voltasse a 
Haia, onde o esperavam alguns dos amores velhos, e não poucos recentes.
 Que o amor, força é dizê-lo, foi uma das causas da vida agitada e turbulenta do nosso 
herói. Ele era pessoalmente um homem galhardo, insinuante, dotado de um olhar cheio 
de força e magia. Segundo ele mesmo contou ao filho, deixou muito longe o algarismo 
dom-juanesco das mille e tre. Não podia dizer o número exato das mulheres a quem 
amara, em todas as latitudes e línguas, desde a selvagem Maracujá de Pernambuco, até 
à bela cipriota ou à fidalga dos salões de Paris e Londres; mas calculava em não menos 
de cinco mil mulheres. Imagina-se facilmente que uma tal multidão devia conter todos os 
gêneros possíveis da beleza feminil: louras, morenas, pálidas, coradas, altas, meãs, 
baixinhas, magras ou cheias, ardentes ou lânguidas, ambiciosas, devotas, lascivas, 
poéticas, prosaicas, inteligentes, estúpidas; — sim, também estúpidas, e era opinião dele 
que a estupidez das mulheres tinha o sexo feminino, era graciosa, ao contrário da dos 
homens, que participava da aspereza viril.
 — Há casos, dizia ele, em que uma mulher estúpida tem o seu lugar.
 Na Haia, entre os novos amores, deparou-se-lhe um que o prendeu por longo tempo: 
lady Emma Sterling, senhora inglesa, ou antes escocesa, pois descendia de uma família 
de Dublin. Era formosa, resoluta, e audaz; — tão audaz que chegou a propor ao amante 
uma expedição a Pernambuco para conquistar a capitania, e aclamarem-se reis do novo 
Estado. Tinha dinheiro, podia levantar muito mais, chegou mesmo a sondar alguns 
armadores e comerciantes, e antigos militares que ardiam por uma desforra. Rui de Leão 
ficou aterrado com a proposta da amante, e não lhe deu crédito; mas lady Ema insistiu e 
mostrou-se tão de rocha, que ele reconheceu enfim achar-se diante de uma ambiciosa 
verdadeira. Era, todavia, homem de senso; viu que a empresa, por mais bem organizada 
que fosse, não passaria de tentativa desgraçada; disse-lho a ela; mostrou-lhe que, se a 
Holanda inteira tinha recuado, não era fácil que um particular chegasse a obter ali domínio 
seguro,nem ainda instantâneo. Lady Ema abriu mão do plano, mas não perdeu a idéia de 
o exalçar a alguma grande situação.
 — Tu serás rei ou duque...
 — Ou cardeal, acrescentava ele rindo.
 — Por que não cardeal?
 Lady Ema fez com que Rui de Leão entrasse daí a pouco na conspiração que deu em 
resultado a invasão da Inglaterra, a guerra civil, e a morte enfim dos principais cabos da 
rebelião. Vencida esta, lady Ema não deu por vencida. Ocorreu-lhe então uma idéia 
espantosa. Rui de Leão inculcava ser o próprio pai do duque de Monmouth, suposto filho 
natural de Carlos II, e caudilho principal dos rebeldes. A verdade é que eram parecidos 
como duas gotas d’água. Outra verdade é que lady Ema, por ocasião da guerra civil, 
tinha o plano secreto de fazer matar o duque, se ele triunfasse, e substituí-lo pelo amante, 
que assim subiria ao trono de Inglaterra. O pernambucano, escusado é dizê-lo, não soube 
de semelhante aleivosia, nem lhe daria o seu assentimento. Entrou na rebelião, viu-a 
perecer ao sangue e no suplício, e tratou de esconder-se. Ema acompanhou-o; e, como a 
esperança do cetro não lhe saía do coração, passado algum tempo fez correr que o 
duque não morrera, mas sim um amigo tão parecido com ele, e tão dedicado, que o 
substituiu no suplício.
 — O duque está vivo, e dentro de pouco aparecerá ao nobre povo da Grã-Bretanha, 
sussurrava ela aos ouvidos.
 Quando Rui de Leão efetivamente apareceu, a estupefação foi grande, o entusiasmo 
reviveu, o amor deu alma a uma causa, que o carrasco supunha ter acabado na Torre de 
Londres. Donativos, presentes, armas, defensores, tudo veio às mãos do audaz 
pernambucano, aclamado rei, e rodeado logo de um troço de varões resolutos a morrer 
pela mesma causa.
 — Meu filho — disse ele, século e meio depois, ao médico homeopata —, dependeu de 
muito pouco não teres nascido príncipe de Gales... Cheguei a dominar cidades e vilas, 
expedi leis, nomeei ministros, e, ainda assim, resisti a duas ou três sedições militares que 
pediam a queda dos dous últimos gabinetes. Tenho para mim que as dissensões internas 
ajudaram as forças legais, e devo-lhes a minha derrota. Ao cabo, não me zanguei com 
elas; a luta fatigara-me; não minto dizendo que o dia da minha captura foi para mim de 
alívio. Tinha visto, além da primeira, duas guerras civis, uma dentro da outra, uma cruel, 
outra ridícula, ambas insensatas. Por outro lado, vivera muito, e uma vez que me não 
executassem, que me deixassem preso ou me exilassem para os confins da terra, não 
pedia nada mais aos homens, ao menos durante alguns séculos... Fui preso, julgado e 
condenado à morte. Dos meus auxiliares não poucos negaram tudo; creio mesmo que um 
dos principais morreu na Câmara dos Lords. Tamanha ingratidão foi um princípio de 
suplício. Ema, não; essa nobre senhora não me abandonou; foi presa, condenada, e 
perdoada; mas não me abandonou. Na véspera de minha execução, veio ter comigo, e 
passamos juntos as últimas horas. Disse-lhe que não me esquecesse, dei-lhe uma trança 
de cabelos, pedi-lhe que perdoasse ao carrasco... Ema prorrompeu em soluços; os 
guardas vieram buscá-la. Ficando só, recapitulei a minha vida, desde Iguaraçu até a 
Torre de Londres. Estávamos então em 1686; tinha eu oitenta e seis anos, sem parecer 
mais de quarenta. A aparência era a da eterna juventude; mas o carrasco ia destruí-la 
num instante. Não valia a pena ter bebido metade do elixir e guardado comigo o 
misterioso boião, para acabar tragicamente no cepo do cadafalso... Tais foram as minhas 
idéias naquela noite. De manhã preparei-me para a morte. Veio o padre, vieram os 
soldados, e o carrasco. Obedeci maquinalmente. Caminhamos todos, subi ao cadafalso, 
não fiz discurso; inclinei o pescoço sobre o cepo, o carrasco deixou cair a arma, senti 
uma dor penetrante, uma angústia enorme, como que a parada súbita do coração; mas 
essa sensação foi tão grande como rápida; no instante seguinte tornara ao estado natural. 
Tinha no pescoço algum sangue, mas pouco e quase seco. O carrasco recuou, o povo 
bramiu que me matassem. Inclinaram-me acabeça, e o carrasco fazendo apelo a todos 
os seus músculos e princípios, descarregou outro golpe, e maior, se é possível, capaz de 
abrir-me ao mesmo tempo a sepultura, como já se disse de um valente. A minha 
sensação foi igual à primeira na intensidade e na brevidade; reergui a cabeça. Nem o 
magistrado nem o padre consentiram que se desse outro golpe. O povo abalou-se, uns 
chamaram-me santo, outros diabo, e ambas essas opiniões eram defendidas nas 
tabernas à força de punho e de aguardente. Diabo ou santo, fui presente aos médicos da 
corte. Estes ouviram o depoimento do magistrado, do padre, do carrasco, de alguns 
soldados, e concluíram que, uma vez dado o golpe, os tecidos do pescoço ligavam-se 
outra vez rapidamente, e assim os mesmos ossos, e não chegavam a explicar um tal 
fenômeno. Pela minha parte, em vez de contar o caso do elixir, calei-me; preferi 
aproveitar as vantagens do mistério. Sim, meu filho; não imaginas a impressão de toda a 
Inglaterra, os bilhetes amorosos que recebi das mais finas duquesas, os versos, as flores, 
os presentes, as metáforas. Um poeta chamou-me Anteu. Um jovem protestante 
demonstrou-me que eu era o mesmo Cristo.
CAPÍTULO V
O NARRADOR continuou:
 — Já vêem, pelo que lhes contei, que não acabaria hoje nem em toda esta semana, se 
quisesse referir miudamente a vida inteira de meu pai. Algum dia o farei, mas por escrito, 
e cuido que a obra dará cinco volumes, sem contar os documentos... — Que 
documentos? perguntou o tabelião. — Os muitos documentos comprobatórios que 
possuo, títulos, cartas, traslados de sentenças, de escrituras, cópias de estatísticas... Por 
exemplo, tenho uma certidão do recenseamento de um certo bairro de Gênova, onde meu 
pai morreu em 1742; traz o nome dele, com declaração do lugar em que nasceu...
 — E com a verdadeira idade? perguntou o coronel.
 — Não. Meu pai andou sempre entre os quarenta e os cinqüenta. Chegando aos 
cinqüenta, cinqüenta e poucos, voltava para trás; — e era-lhe fácil fazer isto, porque não 
esquentava lugar; vivia cinco, oito, dez, doze anos numa cidade, e passava a outra... Pois 
tenho muitos documentos que juntarei, entre outros o testamento de lady Ema, que 
morreu pouco depois da execução gorada de meu pai. Meu pai dizia-me que entre as 
muitas saudades que a vida lhe ia deixando, lady Ema era das mais fortes e profundas. 
Nunca viu mulher mais sublime, nem amor mais constante, nem dedicação mais cega. E 
a morte confirmou a vida, porque o herdeiro de lady Ema foi meu pai. Infelizmente, a 
herança teve outros reclamantes, e o testamento entrou em processo. Meu pai, não 
podendo residir em Inglaterra, concordou na proposta de um amigo providencial que veio 
a Lisboa dizer-lhe que tudo estava perdido; quando muito poderia salvar um restozinho de 
nada, e ofereceu-lhe por esse direito problemático uns dez mil cruzados. Meu pai aceitou-
os; mas, tão caipora que o testamento foi aprovado, e a herança passou às mãos do 
comprador...
 — E seu pai ficou pobre...
 — Com os dez mil cruzados, e pouco mais que apurou. Teve então idéia de meter-se no 
negócio de escravos; obteve privilégio, armou um navio, e transportou africanos para o 
Brasil. Foi a parte da vida que mais lhe custou; mas afinal acostumou-se às tristes 
obrigações de um navio negreiro. Acostumou-se, e enfarou-se, que era outro fenômeno 
na vida dele.Enfarava-se dos ofícios. As longas solidões do mar alargaram-lhe o vazio 
interior. Um dia refletiu, e perguntou a si mesmo, se chegaria a habituar-se tanto à 
navegação, que tivesse de varrer o oceano, por todos os séculos dos séculos. Criou 
medo; e compreendeu que o melhor modo de atravessar a eternidade era variá-la...
 — Em que ano ia ele?
 — Em 1694; fins de 1694.
 — Veja só! Tinha então noventa e quatro anos, não era? Naturalmente, moço...
 — Tão moço que casou daí a dous anos, na Bahia, com uma bela senhora que...
 — Diga.
 — Digo, sim; porque ele mesmo me contou a história. Uma senhora que amou a outro. 
E que outro! Imaginem que meu pai, em 1695, entrou na conquista da famosa república 
dos Palmares. Bateu-se como um bravo, e perdeu um amigo, um amigo íntimo, crivado de 
balas, pelado...
 — Pelado?
 — É verdade; os negros defendiam-se também com água fervendo, e este amigo 
recebeu um pote cheio; ficou uma chaga. Meu pai contava-me esse episódio com dor, e 
até com remorso, porque, no meio da refrega, teve de pisar o pobre companheiro; parece 
até que ele expirou quando meu pai lhe metia as botas na cara...
 O tabelião fez uma careta; e o coronel, para disfarçar o horror, perguntou o que tinha a 
conquista dos Palmares com a mulher que...
 — Tem tudo, continuou o médico. Meu pai, ao tempo que via morrer um amigo, salvara 
a vida de um oficial, recebendo ele mesmo uma flecha no peito. O caso foi assim. Um dos 
negros, depois de derrubar dous soldados, envergou o arco sobre a pessoa do oficial, que 
era um rapaz valente e simpático, órfão de pai, tendo deixado a mãe em Olinda... Meu pai 
compreendeu que a flecha não lhe faria mal a ele, e então, de um salto, interpôs-se. O 
golpe feriu-o no peito; ele caiu. O oficial, Damião... Damião de tal. Não digo o nome todo, 
porque ele tem alguns descendentes para as bandas de Minas. Damião basta. Damião 
passou a noite ao pé da cama de meu pai, agradecido, dedicado, louvando-lhe uma ação 
tão sublime. E chorava. Não podia suportar a idéia de ver morrer o homem que lhe 
salvara a vida por um modo tão raro. Meu pai sarou depressa, com pasmo de todos. A 
pobre mãe do oficial quis beijar-lhe as mãos: — “Basta-me um prêmio, disse ele; a sua 
amizade e a do seu filho”. O caso encheu de pasmo Olinda inteira. Não se falava em 
outra cousa; e daí a algumas semanas a admiração pública trabalhava em fazer uma 
lenda. O sacrifício, como vêem, era nenhum, pois meu pai não podia morrer; mas o povo, 
que não sabia disso,buscou uma causa ao sacrifício, uma causa tão grande como ele, e 
descobriu que o Damião devia ser filho de meu pai, e naturalmente filho adúltero. 
Investigaram o passado da viúva; acharam alguns recantos que se perdiam na 
obscuridade. O rosto de meu pai entrou a parecer conhecido de alguns; não faltou mesmo 
quem afirmasse ter ido a uma merenda, vinte anos antes, em casa da viúva, que era 
então casada, e visto aí meu pai. Todas estas patranhas aborreceram tanto a meu pai, 
que ele determinou passar à Bahia, onde casou...
 — Com a tal senhora?
 — Justamente... Casou com D. Helena, bela como o sol, dizia ele. Um ano depois 
morria em Olinda a viúva, e o Damião vinha à Bahia trazer a meu pai uma madeixa dos 
cabelos da mãe, e um colar que a moribunda pedia para ser usado pela mulher dele. D. 
Helena soube do episódio da flecha, e agradeceu a lembrança da morta. Damião quis 
voltar para Olinda; meu pai disse-lhe que não, que fosse no ano seguinte. Damião ficou. 
Três meses depois uma paixão desordenada... Meu pai soube da aleivosia de ambos, por 
um comensal da casa. Quis matá-los; mas o mesmo que os denunciou avisou-os do 
perigo, e eles puderam evitar a morte. Meu pai voltou o punhal contra si, e enterrou-o no 
coração.
 “Filho, dizia-me ele, contando o episódio; dei seis golpes, cada um dos quais bastava 
para matar um homem, e não morri.” Desesperado saiu de casa, e atirou-se ao mar. O 
mar restituiu-o à terra. A morte não podia aceitá-lo: ele pertencia à vida por todos os 
séculos. Não teve outro recurso mais do que fugir; veio para o Sul, onde alguns anos 
depois, no princípio do século passado, podemos achá-lo na descoberta das minas. Era 
um modo de afogar o desespero, que era grande, pois amara muito a mulher, como um 
louco...
 — E ela? — São contos largos, e não me sobra tempo. Ela veioao Rio de Janeiro, 
depois das duas invasões francesas; creio que em 1713. Já então meu pai enriquecera 
com as minas, e residia na cidade fluminense, benquisto, com idéias até de ser nomeado 
governador. D. Helena apareceu-lhe, acompanhada da mãe e de um tio. Mãe e tio vieram 
dizer-lhe que era tempo de acabar com a situação em que meu pai tinha colocado a 
mulher. A calúnia pesara longamente sobre a vida da pobre senhora. Os cabelos iam-lhe 
embranquecendo: não era só a idade que chegava, eram principalmente os desgostos, as 
lágrimas. Mostraram-lhe uma carta escrita pelo comensal denunciante, pedindo perdão a 
D. Helena da calúnia que lhe levantara e confessando que o fizera levado de uma 
criminosa paixão. Meu pai era uma boa alma; aceitou a mulher, a sogra e o tio. Os anos 
fizeram o seu ofício; todos três envelheceram, menos meu pai. Helena ficou com a 
cabeça toda branca; a mãe e o tio voavam para a decrepitude; e nenhum deles tirava os 
olhos de meu pai, espreitando as cãs que não vinham, e as rugas ausentes. Um dia meu 
pai ouviu-lhes dizer que ele devia ter parte com o diabo. Tão forte! E acrescentava o tio: 
“De que serve o testamento, se temos de ir antes?” Duas semanas depois morria o tio; a 
sogra acabou pateta, daí a um ano. Restava a mulher, que pouco mais durou.
 — O que me parece, aventurou o coronel, é que eles vieram ao cheiro dos cobres...
 — Decerto.
 — ...e que a tal D. Helena (Deus lhe perdoe!) não estava tão inocente como dizia. É 
verdade que a carta do denunciante...
 — O denunciante foi pago para escrever a carta, explicou o dr. Leão; meu pai soube 
disso, depois da morte da mulher ao passar pela Bahia... Meia-noite! Vamos dormir; é 
tarde; amanhã direi o resto.
 — Não, não, agora mesmo.
 — Mas, senhores... Só se for muito por alto.
 — Seja por alto.
 O doutor levantou-se e foi espiar a noite, estendendo o braço para fora, e recebendo 
alguns pingos de chuva na mão. Depois voltou-se e deu com os dous olhando um para o 
outro, interrogativos. Fez lentamente um cigarro, acendeu-o, e, puxadas umas três 
fumaças, concluiu a singular história.
CAPÍTULO VI
— MEU PAI deixou pouco depois o Brasil, foi a Lisboa, e dali passou-se à Índia, onde se 
demorou mais de cinco anos, e de onde voltou a Portugal, com alguns estudos feitos 
acerca daquela parte do mundo. Deu-lhes a última lima, e fê-los imprimir, tão a tempo, 
que o governo mandou-o chamar para entregar-lhe o governo de Goa. Um candidato ao 
cargo, logo que soube do caso, pôs em ação todos os meios possíveis e impossíveis. 
Empenhos, intrigas, maledicência, tudo lhe servia de arma. Chegou a obter, por dinheiro, 
que um dos melhores latinistas da península, homem sem escrúpulos, forjasse um texto 
latino da obra de meu pai, e o atribuísse a um frade agostinho, morto em Adém. E a 
tacha de plagiário acabou de eliminar meu pai, que perdeu o governo de Goa, o qual 
passou às mãos do outro; perdendo também, o que é mais, toda a consideração pessoal. 
Ele escreveu uma longa justificação, mandou cartas para a Índia, cujas respostas não 
esperou, porque no meio desses trabalhos aborreceu-se tanto, que entendeu melhor 
deixar tudo, e sair de Lisboa. Esta geração passa, disse ele, e eu fico. Voltarei cá daqui a 
um século, ou dous.
 — Veja isto, interrompeu o tabelião, parece cousa de caçoada! Voltar daí a um século 
— ou dous, como se fosse um ou dous meses. Que diz, “seu” coronel?
 — Ah! eu quisera ser esse homem! É verdade que ele não voltou um século depois... 
Ou voltou?
 — Ouça-me. Saiu dali para Madri, onde esteve de amores com duas fidalgas, uma 
delas viúva e bonita como o sol, a outra casada, menos bela, porém amorosa e terna 
como uma pomba-rola. O marido desta chegou a descobrir o caso, e não quis bater-se 
com meu pai, que não era nobre; mas a paixão do ciúme e da honra levou esse homem 
ofendido à prática de uma aleivosia, igual à outra: mandou assassinar meu pai; os 
esbirros deram-lhe três punhaladas e quinze dias de cama. Restabelecido, deram-lhe um 
tiro; foi o mesmo que nada. Então, o marido achou um meio de eliminar meu pai; tinha 
visto com ele alguns objetos, notas, e desenhos de cousas religiosas da Índia, e 
denunciou-o ao Santo Ofício, como dado a práticas supersticiosas. O Santo Ofício, que 
não era omisso nem frouxo nos seus deveres, tomou conta dele, e condenou-o a cárcere 
perpétuo. Meu pai ficou aterrado. Na verdade, a prisão perpétua para ele devia ser a 
cousa mais horrorosa do mundo. Prometeu, o mesmo Prometeu foi desencadeado... Não 
me interrompa, sr. Linhares, depois direi quem foi esse Prometeu. Mas, repito: ele foi 
desencadeado, enquanto que meu pai estava nas mãos do Santo Ofício, sem esperança. 
Por outro lado, ele refletiu consigo que, se era eterno, não o era o Santo Ofício. O Santo 
Ofício há de acabar um dia, e os seus cárceres, e então ficarei livre. Depois, pensou 
também que, desde que passasse um certo número de anos, sem envelhecer nem 
morrer, tornar-se-ia um caso tão extraordinário, que o mesmo Santo Ofício lhe abriria as 
portas. Finalmente, cedeu a outra consideração. “Meu filho, disse-me ele, eu tinha 
padecido tanto naqueles longos anos de vida, tinha visto tanta paixão má, tanta miséria, 
tanta calamidade, que agradeci a Deus, o cárcere e uma longa prisão; e disse comigo que 
o Santo Ofício não era tão mau, pois que me retirava por algumas dezenas de anos, 
talvez um século, do espetáculo exterior...”
 — Ora essa!
 — Coitado! Não contava com a outra fidalga, a viúva, que pôs em campo todos os 
recursos de que podia dispor, e alcançou-lhe a fuga daí a poucos meses. Saíram ambos 
de Espanha, meteram-se em França, e passaram à Itália, onde meu pai ficou residindo 
por longos anos. A viúva morreu-lhe nos braços; e, salvo uma paixão que teve em 
Florença, por um rapaz nobre, com quem fugiu e esteve seis meses, foi sempre fiel ao 
amante. Repito, morreu-lhe nos braços, e ele padeceu muito, chorou muito, chegou a 
querer morrer também. Contou-me os atos de desespero que praticou; porque, na 
verdade, amara muito a formosa madrilena. Desesperado, meteu-se a caminho, e viajou 
por Hungria, Dalmácia, Valáquia; esteve cinco anos em Constantinopla; estudou o turco a 
fundo, e depois o árabe. Já lhes disse que ele sabia muitas línguas; lembra-me de o ver 
traduzir o padre-nosso em cinqüenta idiomas diversos. Sabia muito. E ciências! Meu pai 
sabia uma infinidade de cousas: filosofia, jurisprudência, teologia, arqueologia, química, 
física, matemáticas, astronomia, botânica; sabia arquitetura, pintura, música. Sabia o 
diabo.
 — Na verdade... — Muito, sabia muito. E fez mais do que estudar o turco; adotou o 
maometanismo. Mas deixou-o daí a pouco. Enfim, aborreceu-se dos turcos: era a sina 
dele aborrecer-se facilmente de uma cousa ou de um ofício. Saiu de Constantinopla, 
visitou outras partes da Europa, e finalmente passou-se a Inglaterra aonde não fora desde 
longos anos. Aconteceu-lhe aí o que lheacontecia em toda a parte: achou todas as caras 
novas; e essa troca de caras no meio de uma cidade, que era a mesma deixada por ele, 
dava-lhe a impressão de uma peça teatral, em que o cenário não muda, e só mudam os 
atores. Essa impressão, que a princípio foi só de pasmo, passou a ser de tédio; mas 
agora, em Londres, foi outra cousa pior, porque despertou nele uma idéia, que nunca 
tivera, uma idéia extraordinária, pavorosa...
 — Que foi?
 — A idéia de ficar doido um dia. Imaginem: um doido eterno. A comoção que esta idéia 
lhe dava foi tal que quase enlouqueceu ali mesmo. Então lembrou-se de outra cousa. 
Como tinha o boião do elixir consigo, lembrou de dar o resto a alguma senhora ou 
homem, e ficariam os dous imortais. Sempre era uma companhia. Mas, como tinha tempo 
diantede si,não precipitou nada; achou melhor esperar pessoa cabal. O certo é que essa 
idéia o tranqüilizou... Se lhe contasse as aventuras que ele teve outra vez na Inglaterra, e 
depois em França, e no Brasil, onde voltou no vice-reinado do conde de Resende, não 
acabava mais, e o tempo urge, além do que o sr. coronel está com sono...
 — Qual sono!
 — Pelo menos está cansado.
 — Nem isso. Se eu nunca ouvi uma cousa que me interessasse tanto. Vamos; conte 
essas aventuras.
 — Não; direi somente que ele achou-se em França por ocasião da revolução de 1789, 
assistiu a tudo, à queda e morte do rei, dos girondinos, de Danton, de Robespierre; morou 
algum tempo com Filinto Elísio, o poeta, sabem? Morou com ele em Paris; foi um dos 
elegantes do Diretório, deu-se com o primeiro Cônsul... Quis até naturalizar-se e seguir 
as armas e apolítica; podia ter sido um dos marechais do império, e pode ser até que não 
tivesse havido Waterloo. Mas ficou tão enjoado de algumas apostasias políticas, e tão 
indignado, que recusou a tempo. Em 1808 achamo-lo em viagem com a corte real para o 
Rio de Janeiro. Em 1822 saudou a independência; e fez parte da Constituinte; trabalhou 
no 7 de Abril; festejou a Maioridade; há dous anos era deputado. Neste ponto os dous 
ouvintes redobraram de atenção. Compreenderam que iam chegar ao desenlace, e não 
quiseram perder uma sílaba daquela parte da narração, em que iam saber da morte do 
imortal. Pela sua parte, o dr. Leão parara um pouco; podia ser uma lembrança dolorosa; 
podia também ser um recurso para aguçar mais o apetite. O tabelião ainda lhe perguntou, 
se o pai não tinha dado a alguém o resto do elixir, como queria; mas o narrador não lhe 
respondeu nada. Olhava para dentro; enfim, terminou deste modo:
 — A alma de meu pai chegara a um grau de profunda melancolia. Nada o contentava; 
nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do amor. Tinha então perdido minha 
mãe, e vivíamos juntos, como dous solteirões. A política perdera todos os encantos aos 
olhos dum homem que pleiteara um trono, e um dos primeiros do universo. Vegetava 
consigo; triste, impaciente, enjoado. Nas horas mais alegres fazia projetos para o século 
XX e XXIV, porque já então me desvendara todo o segredo da vida dele. Não acreditei, 
confesso; e imaginei que fosse alguma perturbação mental; mas as provas foram 
completas, e demais a observação mostrou-me que ele estava em plena saúde. Só o 
espírito, como digo, parecia abatido e desencantado. Um dia, dizendo-lhe eu que não 
compreendia tamanha tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, 
meu pai sorriu com uma tal expressão de superioridade, que me enterrou cem palmos 
abaixo do chão. Depois, respondeu que eu não sabia o que dizia; que a vida eterna 
afigurava-se-me excelente, justamente porque a minha era limitada e curta; em verdade, 
era o mais atroz dos suplícios. Tinha visto morrer todas as suas afeições; devia perder-me 
um dia, e todos os mais filhos que tivesse pelos séculos adiante. Outras afeições e não 
poucas o tinham enganado; e umas e outras, boas emás, sinceras e pérfidas, era-lhe 
forçoso repeti-las, sem trégua, sem um respiro ao menos, porquanto a experiência não 
lhe podia valer contra a necessidade de agarrar-se a alguma cousa, naquela passagem 
rápida dos homens e das gerações. Era uma necessidade da vida eterna; sem ela, cairia 
na demência. Tinha provado tudo, esgotado tudo; agora era a repetição, a monotonia, 
sem esperanças, sem nada. Tinha de relatar a outros filhos, vinte ou trinta séculos mais 
tarde, o que me estava agora dizendo; e depois a outros, e outros, e outros, um não 
acabar mais nunca. Tinha de estudar novas línguas, como faria Aníbal, se vivesse até 
hoje: e para quê? para ouvir os mesmos sentimentos, as mesmas paixões... E dizia-me 
tudo isso, verdadeiramente abatido. Não parece esquisito? Enfim um dia, como eu fizesse 
a alguns amigos uma exposição do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai 
um fogo desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram chamar-me ao 
quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua trôpega, que o princípio 
homeopático fora para ele a salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, 
e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito isto, 
expirou.
 O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que pensassem da 
famosa história; mas a seriedade do médico era tão profunda, que não havia duvidar. 
Creram no caso, e creram também definitivamente na homeopatia. Narrada a história a 
outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-lhe 
o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado por ambos de não 
poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é, enfim, um benefício. Mas a 
suspeita de que ele apenas quis propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e 
não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso extraordinário, que 
há anos, com outro nome, e por outras palavras,contei a este bom povo, que 
provavelmente já os esqueceu a ambos.
Núcleo Pesquisas em Informática. Literatura e Lingüística

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