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1 SOCIEDADE, ÉTICA E POLÍTICA “Se Deus não existe, tudo é permitido” Walmir Barbosa∗ A reflexão sobre a Ética ocupa uma grande importância para a humanidade, independentemente das conjunturas e períodos históricos. Mas, certamente, há conjunturas e períodos históricos nos quais a sua reflexão assume maior relevância. A atual conjuntura e período histórico, profundamente caracterizado pela redução das necessidades materiais e culturais humanas aos imperativos do mercado, pelo avanço do oficialismo estatal, pelo controle e manipulação da informação e pela progressiva idiotização de uma grande parte da sociedade, exige de nossa parte situar a Ética no centro das nossas idéias e das nossas práticas sociais. Exigência colocada para todos aqueles que reconhecem a pertinência de lutar por um mundo melhor e de avaliar as escolhas e opções realizadas enquanto ator social individual e enquanto parte integrante de atores sociais coletivos. O propósito deste texto é contribuir para uma reflexão acerca da Ética em sua relação com a sociedade e a política. E, enquanto tal, volta-se prioritariamente para estudantes e jovens ativistas políticos. A construção e organização deste texto não foi conduzida por um “especialista” em Filosofia e Ética. Todavia, pretende-se que o texto dê conta de combinar um determinado rigor na abordagem da Ética e uma reflexão sobre a mesma por parte dos leitores. O texto se divide em três partes: “O Conceito de Ética”, onde se buscou uma definição geral de Ética e o desenvolvimento do seu conceito ao longo da história; “Incursões Filosóficas”, onde se copidescou as intervenções de diversos intelectuais sobre Ética por meio dos vídeos Ética I e II, produzidos e divulgados pela Fundação Padre Anchieta; e “Por uma Política Ética”, onde se buscou identificar alguns desafios colocados para as idéias e práticas políticas de dimensão Ética na atual conjuntura e período histórico. ∗ É Mestre em História das Sociedades Agrárias e professor na UCG e do CEFET-GO. 2 O texto recebeu contribuições de Sebastião Cláudio Barbosa, Ana Paula Nunes e Marcela Maciel. Em que pese os seus limites, convidamos ao leitor a percorrer este pequeno itinerário de reflexão sobre Ética. 3 I PARTE O Conceito de Ética 1. DEFINIÇÃO E CONCEITO DE “ÉTICA” Ética pode ser definida como a ciência ou disciplina que se ocupa da conduta humana (social, política, artística etc). Conduta que é sempre e necessariamente orientada por preceitos normativos morais, o que converte a Moral no objeto da Ética. A Moral é uma forma de comportamento humano que compreende tanto um aspecto normativo (regras de ação) quanto um aspecto factual (atos que se conformam em um ou em outro sentido, mas sempre em interação com as normas mencionadas). A Moral é um fato social. Ocorre na sociedade, corresponde a determinadas necessidades sociais e cumpre um conjunto de funções sociais. O fato da Moral, embora possua um caráter social, não reduz o papel essencial que o indivíduo desempenha nele, visto que a Moral demanda a interiorização das normas e deveres estabelecidos e sancionados pela comunidade de forma individual. O ato moral concreto faz parte de um contexto normativo (código moral) que vigora em uma determinada comunidade, o qual lhe confere sentido. Todavia, como manifestação concreta 4 do comportamento moral dos indivíduos reais, é unidade indissolúvel dos aspectos ou elementos que o integram: motivo, intenção, decisão, meios e resultados, e, por isso, o seu significado não pode ser encontrado em apenas um destes aspectos ou elementos abstraídos dos demais. Como fato consciente e voluntário, o ato moral supõe uma participação livre do sujeito em sua realização, em que pese o caráter impositivo das normas morais. É a necessidade histórico-social que condiciona o ato moral e que “harmoniza” a livre adoção e a coerção nele contidos. Moral pode então ser definida como (Vasquez, 1989, p. 69). (...) um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal Conforme a Ética revela, o código moral é um produto humano. Como tal, compõe o processo histórico da humanidade. E podemos mesmo delimitar, no âmbito do processo histórico da humanidade para eleito de estudo, o processo histórico da Moral (Vasquez, 1989, p. 227 3 228). O processo histórico da Moral é ascensional. Ocorre por meio do crescimento do domínio do homem sobre si mesmo; da relação progressivamente consciente, livre e responsável do indivíduo com relação aos demais; da regulamentação dos atos individuais, de forma que os interesses pessoais não sacrifiquem os interesses coletivos, e vice-versa; do predomínio da aceitação das regras de convivência social fundadas nas convicções íntimas (ou normas internas) em relação à sua aceitação puramente formal (ou normas externa) etc. O processo histórico ascensional Moral expressa, portanto, em formas morais superiores. Todavia, como síntese dialética traz em si elementos tradicionais e elementos novos, que podem ser tanto progressistas quanto conservadores, isto é, elementos de impulso ou de atraso para a formação de uma Moral superior. A Ética, ao estudar a Moral conceitual e historicamente, permite apreender elementos, formas e sentidos da Moral. Dessa forma a Ética permite abrir o que a Moral fechou, romper o que a Moral tornou sistêmico, historicizar o que a Moral atemporalizou e universalizou. A Ética, quando se ocupa da Moral de forma dialética, concorre para que a conduta humana possa se dirigir na perspectiva do bem. 5 2. ÉTICA E HISTÓRIA As concepções Éticas nascem e se desenvolvem como respostas aos problemas sociais e históricos concretos surgidos nas relações entre os homens, em especial problemas que se relacionam com o comportamento moral. A determinação social e histórica dos problemas humanos determina a dimensão social e histórica das concepções Éticas na medida em que os tem como objeto. Abordar criticamente as concepções Éticas demanda partir, portanto, dos problemas humanos. Identificá-los exige, por sua vez, uma abordagem das estruturas sócio-econômicas, políticas e morais da sociedade que os determina. 2.1. Concepções Éticas Fundamentais A Ética foi conceituada e caracterizada por meio de infinitos conteúdos e formas. Todavia, é possível identificar dois grandes campos de concepções fundamentais. A primeira concepção é a que define a Ética como a ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim. Nesta concepção, o fim e os meios seriam deduzidos da própria natureza do homem. O ideal para o homem seria dirigir-se por sua natureza e, por conseqüência, da “natureza”, “essência” ou “substancia” do homem. O bem seria para onde se dirigiria o homem (Abbagnano, 1998, p. 380 e 381). As concepções da Ética do Fim da conduta humana concebe o bem como realidade perfeita ou perfeição real. Procura-se deduzir esta realidade da natureza racional do homem. Define como bem a conduta que se orienta por meio da projeção desta perfeição. Para a Ética do Fim o valor, como o belo e o bom, existem idealmente, isto é, como entidades supra-empíricas, atemporais,imutáveis e absolutas. Subsistem em si e por si, independentes da própria relação que o homem possa manter com elas, ao conhecê-las ou intuí- las. Ocorre a plena separação entre o valor e a realidade (ou os bens em que nela se materializa). De forma que os valores formam um reino particular e que subsiste absoluto, imutável e incondicionado; encarnam bens como a utilidade, a beleza, a bondade; existem idealmente; e não necessitam se concretizar em formas reais (Vasquez, 1989, p. 123-125). 6 Talvez a expressão mais longínqua da Ética do Fim seja a doutrina metafísica de Platão sobre as Idéias. Dentro desta tradição também podem ser situados, por exemplo, Santo Agostinho e Hegel. A segunda concepção é a que define a Ética como a ciência dos motivos da conduta humana. Esta ciência procuraria, ainda, determinar tais motivos com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. O ideal para o homem seria compreender os “motivos” ou “causas” da conduta humana, ou as “forças” que a determinam, de forma a pretender ater-se ao conhecimento dos fatos. O bem seria uma realidade, embora não inscrita na natureza, humana e alcançável (Abbagnano, 1998, p. 380 e 381). As concepções da Ética do Móvel da conduta humana concebe o bem como objeto da vontade humana ou das regras que a dirigem. Procura-se determinar o móvel do homem, ou seja, a norma a que ele de obedece. Define-se como bem aquilo a que se tende em virtude desse móvel, ou aquilo que se conforma à norma em que ele se exprime. Para a Ética do Móvel o valor, como o belo e o bom, não existe em si, independente da relação com o sujeito. É o sujeito quem define e valoriza, qualitativa e quantitativamente, o valor, na sua relação com o mesmo. É possível identificar no âmbito da Ética do Móvel dois campos de definição do valor. O primeiro é o subjetivismo idealista, que reconhece a definição do valor como um processo puramente individual e subjetivo, decorrente de uma vivência espontânea pessoal. Conseqüentemente, recusa a idéia de que as propriedades do objeto (naturais e sociais) podem determinar a atitude valorizadora do sujeito. Dentro desta tradição podem ser situados, por exemplo, Hobbes e Scheler. O segundo é o objetivismo dialético para o qual os valores são criados por um homem social e histórico. Dessa forma os valores são criações humanas em um mundo social e historicamente determinado; existem e se realizam no homem e pelo homem. O homem é concebido como um indivíduo que pertence a uma época e, como ser social, se insere sempre na rede de relações de determinada sociedade; encontra-se igualmente imerso em uma dada cultura, da qual se nutre espiritualmente; e a sua apreciação das coisas ou os seus juízos de valor se conformam com regras, critérios e valores que não inventa ou descobre pessoalmente, mas que constrói socialmente (Vasquez. 1989, 123-124). Dentro desta tradição podem ser situados, por exemplo, Sartre e Marx. 7 As concepções da Ética do Fim e da Ética do Móvel fizeram-se presente ao longo da história do mundo ocidental. Foram constantemente reelaboradas em função dos contextos históricos, isto é, das configurações produtivas, sociais, políticas e culturais em permanente transformação. Compreendê-las demanda, portanto, partir da identificação das características históricas de cada grande período histórico. 2.2. O Mundo Antigo Ocidental e a Ética O Mundo Antigo Ocidental articulou-se a partir de uma formação social e econômica escravista. Esta realidade não impediu que transformações profundas fossem operadas. Na passagem do século VI a. C. para o século V a. C. a Grécia apresentou uma forma de organização social e política original. As concepções políticas teocráticas foram superadas pela criação da república. Neste processo ocorreu a democratização da vida política com a derrota da aristocracia e a emergência política da nova aristocracia (comerciantes) e homens livres pobres, com o conseqüente triunfo da democracia escravista, a criação de uma infinidade de novas instituições eletivas e a intensa vida pública com debates públicos e rigorosa movimentação cultural criativa (teatro, esportes etc). A sociedade grega na sua fase clássica desconheceu castas sacerdotais, religião monoteísta, Estado teocrático e engessamento do pensamento pelo mito. Esta realidade concorreu para o desenvolvimento da Filosofia, da Política e da Ciência, das primeiras experiências democráticas, das normatizações sociais reconhecidas como criação humana e do apreço à estilística. Com a intensa valorização da comunidade democrática, que foi reduzida no número de membros e restringida no espaço, teve origem a Filosofia Política e Moral. O seu objeto privilegiado de reflexão foram os problemas oriundos da criação e aprimoramento da estruturação do poder da república, a relação entre o público e o privado, a conduta moral e política dos cidadão em face da comunidade democrática, e assim por diante. Nos séculos IV e III a. C. ocorreu a perda da independência e liberdade das comunidades gregas, primeiramente em face dos Macedônicos e, posteriormente, dos romanos. Como conseqüência teve fim a democracia escravista. 8 A Grécia passou a conviver com uma intensa regressão e repressão política. E, neste contexto, a Ética tendeu a declinar em face dos problemas da comunidade política e passou a se ocupar fundamentalmente dos problemas existenciais e de conduta moral individual. A sociedade romana, que em grande medida preservou e estendeu o legado cultural grego, também proporcionou heranças culturais. O pequeno desenvolvimento da Filosofia e da Ciência, a ausência de experiências democráticas e a pouca originalidade estilística, conviveu com enormes progressos no campo da Política, da gestão pública, do Direito e da Engenharia. No Mundo Antigo Ocidental podemos identificar dois grandes campos morais. Campos estes que, obviamente, se expressaram por meio de infindáveis morais. A Moral dos homens livres, determinada pelas experiências sociais aristocráticas e que se expressaram em idéias dominantes daquele período, foi criada e difundida pelos filósofos, os intelectuais orgânicos da aristocracia escravista. Tratava-se de uma Moral efetiva, isto é, vivida concretamente e expressa por meio de normas formalizadas ou não. A Moral dos homens livres teve como referência a separação entre homens – que possuiriam alma de homem e que poderiam se humanizar e se libertar progressivamente – e os escravos – que possuiriam alma de escravo (ou que nem possuiriam qualquer alma) e que não poderiam se humanizar e se libertar. A Moral impunha aos homens livres a humanização por meio do cultivo da alma e do corpo através das atividades proporcionadas pelo ócio (o teatro, a escultura, o esporte etc); da individualidade de cada membro no âmbito da comunidade; e da responsabilidade política de cada cidadão na preservação da comunidade política. A moral dos escravos indicava assumir maior sistematização nos períodos que antecediam as suas revoltas, motivadas por uma obscura esperança de liberdade. Nessas revoltas e nos breves períodos de liberdade que se seguiam quando se faziam vitoriosos, qualidades morais como a solidariedade, o espírito de sacrifício, a lealdade etc, encontravam-se presentes. A destruição desta Moral emergente por parte da classe aristocrática passava, necessariamente, pela destruição da memória e da experiência daqueles que a viveram, isto é, pela morte dos escravos recapturados. A Moral dos homens livres no Mundo Antigo Ocidental legou para a humanidade referências morais fecundas. Dentre elas podemos destacar a correlação entre Moral e Política; a Morale a Política como parâmetros para dirigir e organizar as relações entre os membros da comunidade política e que se ocupam de todos os problemas humanos (religião, guerra, natureza 9 etc); as virtudes civis (amor e fidelidade a comunidade, dedicação aos negócios públicos, a primazia do público em face do privado etc); a progressiva consciência da definição e proteção dos interesses da comunidade concomitantemente com a consciência da definição e proteção da individualidade dos seus membros; e a consciência da responsabilidade pessoal como parte de uma autêntica conduta Moral (Vasquez, 1989, 31-33). O Mundo Antigo Ocidental não rompeu totalmente com a explicação mítica do mundo, mas o homem era reconhecido como um ser constituído de razão e de vontade. A Ética do fim e a Ética do Móvel haveriam de refletir esta realidade. 2.2.1. A Ética do Fim no Mundo Antigo Ocidental A Ética do fim possuiu diversas expressões no mundo antigo. Dentre elas podemos destacar Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates (séc. V e IV a. C.) Sócrates compartilhou o desprezo dos sofistas pelo conhecimento naturalista e pelas tradições. Todavia, destes se afastou à medida que condenava o relativismo e o subjetivismo. Sócrates centrou a questão do saber no homem, conforme retrata a máxima “conhece-te a ti mesmo”. Buscou um conhecimento fundamentalmente moral, prático e universalmente válido. A sua Ética possuía a concepção do bem como felicidade da alma e do bom como útil para a felicidade; a virtude como conhecimento, porque quem conhece o bem não age mal, e do vício como ignorância, porque somente age mal quem não conhece o bem; e a virtude pode ser ensinada e, portanto, transmitida (Vasquez, 1989, p. 237 e 238). Platão (V e IV a. C.) A Ética de Platão possuiu como fundamento primeiro a sua concepção metafísica. Para ele haveria o mundo sensível, que apoiaria-se nas idéias imperfeitas e fugazes, que constituiriam a falsa realidade, e o mundo das Idéias, que seriam permanentes, eternas, perfeitas e imutáveis, que constituiriam a verdadeira realidade e que teria como cume a Idéia do bem (divindade, 10 demiurgo do mundo). O segundo fundamento foi a doutrina da alma. Para ele o homem seria animado por três almas: a racional (razão), que contemplaria e queria racionalmente, a colérica (vontade ou ânimo), que comandaria a vontade e não queria racionalmente, e a desejante (concupiscente ou apetite), que comandaria as necessidades corporais e também não queria racionalmente. Assim, (Vasquez, 1989, p. 238 e 239). Pela razão, como faculdade superior e característica do homem, a alma se eleva – mediante a contemplação – ao mundo das idéias. Seu fim último é purificar ou libertar-se da matéria para contemplar o que realmente é e sobretudo a Idéia do Bem. Para alcançar esta purificação, é preciso praticar várias virtudes, que correspondem a cada uma das partes da alma e consiste no seu funcionamento perfeito: a virtude da razão é a prudência; a da vontade ou ânimo, a fortaleza; e a do apetite, a temperança. Estas virtudes guiam ou refreiam uma parte da alma. A harmonia entre as diversas partes constitui a quarta virtude, ou justiça O homem não alcançaria a plena perfeição isoladamente. A Idéia do homem somente se realizaria enquanto bom cidadão e no Estado ou comunidade política. Enfim, a Ética assumia conseqüência por meio da Política. Platão, por meio da obra A República, projetou a estrutura e hierarquia das almas no Estado. Nele cada parte corresponderia a uma classe especial, cumpriria a sua virtude e tarefa e declinaria sobre as demais. Assim, (Vásquez, 1989, p. 239). (...) à razão, a classe dos governantes – filósofos, guiados pela prudência -; ao ânimo ou vontade, a classe dos guerreiros, defensores do Estado, guiados pela fortaleza; e ao apetite, os artesãos e os comerciantes, encarregados dos trabalhos materiais e utilitários, guiados pela temperança. Cada classe social deve consagrar-se à sua tarefa especial e abster-se de realizar outras. De modo análogo ao que sucede na alma, compete à justiça social estabelecer na cidade a harmonia indispensável entre as várias classes. E, com o fim de garantir esta harmonia social, Platão propõe a abolição da propriedade privada para as duas classes superiores (governantes e guerreiros) O homem deveria fugir dos excessos. A ênfase excessiva em uma boa ação desencadearia o seu próprio contrário, enquanto que boas ações de nada adiantariam frente a práticas ordinariamente ruins. A conduta deveria ser forjada pelo hábito de possuir bons costumes e não tanto em realizar boas ações. O bem é organizar a cidade tendo como base o verdadeiro conhecimento, de forma que as funções necessárias à cidade – a satisfação das necessidades básicas dos habitantes, a defesa do território e a administração – corresponda às aptidões de cada um – produtores (camponeses e 11 artesãos), guerreiros e legisladores. Identificar as aptidões por meio da educação e seleção dos homens para as funções permitiria determinar e definir as virtudes particulares, bem como a virtude que compreenderia todas elas, qual seja, a justiça como cumprimento da função que caberia a cada parte no Estado. E concluiu que “ Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder ( Platão apud Abrão, 1999, p. 52 e 53 ). A ética de Platão unificava Moral e Política. A perfeição humana, embora tendo o indivíduo como ponto de partida, formava-se no Estado e por meio da subordinação do indivíduo ao Estado ou comunidade política. Perfeição esta impedida para quem não possuísse vida moral, isto é, o escravo. Aristóteles (séc. IV a. C.) A Ética de Aristóteles possuiu como fundamento primeiro o reconhecimento de que os únicos indivíduos existentes seriam os indivíduos concretos, isto é, a idéia existe nos seres humanos individuais. Aristóteles rompia, assim, com o dualismo ontológico de Platão, o qual separa o mundo sensível do mundo das Idéias. Em segundo lugar, compreendia que haveria um movimento universal de passagem incessante do que existe em potência ao ato, seja no mundo natural, por exemplo, da passagem da semente à planta, seja no mundo social, por exemplo, da passagem do homem ao ser humano. Apenas Deus seria ato puro. O homem seria atividade de passagem da potência (homem) ao ato (ser humano). Esta passagem deveria se orientar para Aristóteles pelo fim último do homem, qual seja, a felicidade. Por tal compreendia-se a atividade humana representada pela vida teórica ou contemplação guiada pela razão, que expressaria características elevadas do homem. Atividade humana representada pelo prazer e pela riqueza expressariam características baixas do homem. A vida teórica ou contemplação realizaria-se por meio da aquisição de certas formas de agir que os homens adquiririam ou conquistariam pelo exercício, de forma a aprimorar a sua dimensão racional e conter a sua dimensão irracional. Estas formas de agir seriam virtudes. Elas poderiam ser intelectuais, que se operariam na dimensão racional (razão) do homem, e práticas ou Éticas, que se operariam na dimensão irracional (não razão) do homem, isto é, nas paixões e apetites humanos. 12 A felicidade decorreria da natureza racional do homem, porque seria fruto do exercício do intelecto no campo moral e porque aspiraria ao que seria razoável. Seria, portanto, uma conseqüência da vida contemplativa e sossegada, distanciada das perturbações do cotidiano. Em Aristóteles, (Vasquez, 1989, p. 240 e 241). (...) a virtude consiste no termo médio entre dois extremos (um excesso e um defeito). Assim, o valorestá entre a temeridade e a covardia; a liberalidade, entre a prodigalidade e a avareza; a justiça, entre o egoísmo e o esquecimento de si. Por conseguinte, a virtude é um equilíbrio entre dois extremos instáveis e igualmente prejudiciais. Finalmente, a felicidade que se alcança mediante a virtude, e que é o seu coroamento, exige necessariamente algumas condições - maturidade, bens materiais, liberdade pessoal, saúde etc -, embora estas condições não bastem sozinhas para fazer alguém feliz A Ética de Aristóteles, que tal qual a de Platão, está unida à sua filosofia política, também unificou por conseguinte Moral e Política. Para Aristóteles, à medida em que o homem seria um ser por natureza social e político, lança mão da moral esclarecida pela virtude. Seu objetivo seria realizar o ideal da vida teórica ou contemplativa na qual se basearia a felicidade por meio a comunidade política. A vida moral não seria um fim em si mesmo, mas um meio ou condição para uma vida verdadeiramente humana, isto é, para a conquista da vida teórica ou contemplativa na qual consiste a felicidade. A vida moral, que não poderia ser conduzida por um indivíduo isolado, mas pela comunidade, também não poderia ser participada por todos. Apenas a minoria de alma superior, os aristoi a poderia vivenciar plenamente. Os homens comuns, cujas almas não se encontrariam plenamente desenvolvida, a poderiam vivenciar apenas de forma parcial e imperfeita. Quanto aos escravos, que não possuiriam almas de homens, mas de escravos, estariam natural e completamente excluídos de qualquer vida moral. Daí a glorificação dos regimes políticos (aristocracia, monarquia e república), exercidos em última instância pela aristocracia, em detrimento dos regimes apolíticos (oligarquia, tirania e democracia), exercidos em última instância pelos homens comuns. Os Neoplatônicos 13 Os neoplatônicos definiram a Ética como a busca de afastamento do homem de todas as coisas exteriores e do seu reencontro (em seu isolamento) com o Uno (Unidade Divina). A prática do bem, à medida que unificaria as ações dos homens e lhes imporia medida e limite, aproximaria e assemelharia o homem ao Uno, que seria a unidade da virtude. O propósito da conduta humana, portanto, seria o retorno do homem ao seu princípio criador (Unidade Divina), de forma a se dissolver nele, na sua perfeição (Abrão, 1999, 91-93). 2.2.1. A Ética do Móvel no Mundo Antigo Ocidental A Ética do Móvel assumiu na Idade Antiga diversas formas. A sobrevivência e o prazer encontravam-se entre aqueles mais presentes. Os Sofistas (séc. V a. C.) Os sofistas condenavam o saber naturalista dos primeiros filósofos (pré-socráticos), porque consideravam estéril. Valorizavam o saber a respeito do homem, especialmente o político e o jurídico. Saber que deveria ser prático e engajado na vida da Pólis, e não contemplativo e desinteressado. A condição dos sofistas de mestres que valorizavam um saber específico e que viviam economicamente de ensinar a arte de expor, argumentar e discutir idéias, despertou grande oposição em uma parcela importante e renomada de filósofos. Mas esta oposição pode estar relacionado, ainda, ao fato de que os sofistas questionaram os fundamentos das tradições, situaram o homem no centro de tudo (ante-sala do subjetivismo) e questionaram a existência de verdades e normas universalmente válidas (ante-sala do relativismo). Pródico e Protágoras evidenciaram o desejo ou a vontade de sobreviver como o mecanismo do móvel que fundaria as normas do Direito e da Moral. O homem conformaria-se a tais normas e não poderia agir de outro modo. Pródico formulou a sua moral em proposições condicionais ou imperativos hipotéticos calcados na sobrevivência. Segundo ele (Pródico apud Abbagnano, 1998, p. 383). 14 Se quiseres que os deuses te sejam benévolos, deves venerar os deuses. Se quiseres ser amado pelos amigos, deves beneficiar os amigos. Se desejares ser honrado por uma cidade, deves ser útil à cidade. Se aspiras a ser admirado por toda Grécia, deves esforçar-te por fazer bem à Grécia Protágoras concebeu o mundo como o resultado do que o homem faz e desfaz por meio dos seus sentidos. Portanto, se houvesse um princípio único, o homem não poderia conhecê-lo. Afirma até mesmo a impossibilidade de decidir sobre a existência de seres divinos. Segundo Protágoras “ O homem é a medida de todas as coisas (... ) das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são” ( Protágoras apud Abrão, 1995, p. 38 ) Protágoras reconheceu que o respeito mútuo e a justiça seriam as condições para a sobrevivência do homem. O conhecimento, estando limitado pelos sentidos, que mudaria de um homem para outro, não poderia surgir de uma suposta verdade absoluta, mas de convenções (normas) estabelecidas entre os homens. Da mesma forma a organização social e a Política não derivariam de um único princípio de justiça, mas de convenções que os homens estabeleceriam de acordo com as circunstâncias e as conveniências. O objetivo seria assegurar sobrevivência por meio de uma ordem social convencional. Estóicos O estoicismo, com representantes como Zenão de Cítio, na Grécia, e Sêneca e Marco Aurélio, em Roma, surgiu no contexto de decadências e ruínas vivenciadas nas experiências políticas e morais do mundo greco-romano. Dentre elas destacou-se a perda da autonomia das Póleis gregas, com a conseqüente imposição de normas jurídicas e morais dos conquistadores, e a organização, desenvolvimento e queda dos Impérios Macedônico e Romano, com a conseqüente guerra, anarquia, insegurança, tirania e medo etc. Para o estóico a moral não se definia em relação à Polis, mas ao universo. O problema moral foi colocado sobre o fundo da necessidade física, natural do mundo. A física, não mais a política, seria a premissa da Ética. Para os estóicos o mundo seria um corpo vivo, diferenciado e coeso, determinado por uma razão universal presente em tudo. Fatos irracionais que se apresentam aos homens – doenças, injustiça, sofrimento, guerras – seriam apenas ilusões oriundas da observação dos fatos em seu isolamento, isto é, fora do todo. 15 O mundo ou cosmos possuiria Deus como princípio, alma ou razão, sendo que seria o próprio Deus que o anima. Deus determinaria tudo, de forma que inexistiria liberdade (nos fenômenos humanos) nem acaso (nos fenômenos físicos). Conhecer o mundo seria apreendê-lo em sua dimensão de corpo vivo e de logos por meio da relação entre a natureza corpórea das coisas e a razão. Assim, o mundo em sua dimensão corpórea poderia ser apreendido pelas sensações e pelas representações racionalmente construídas sobre ele, isto é, nas representações, as formas corpóreas e o pensamento sobre as formas corpóreas, coincidiriam (Abrão, 1999, p. 74-76). As normas de conduta humana em prol da felicidade seriam deduzidas da natureza racional e perfeita da realidade. Daí a sua máxima “viver segundo a razão”. Caberia ao homem sábio reconhecer que o mundo seria regido por uma necessidade radical, que todos os homens estariam submetidos a um destino e que restaria aceitar o seu destino e agir consciente dele. O bem supremo para o homem seria, portanto, viver de acordo com a natureza, isto é, por meio da razão tomar consciência do nosso destino e de nossa passagem no universo, sem se deixar levar por paixões ou afetos interiores ou pelas coisas exteriores. Cultivar a apatia e a imperturbabilidade com relações às paixões e reveses do mundo e conquistar a sua liberdade interior e autarquia (auto-suficiência) absoluta, é o que deveria definir a conduta moral. A conduta moral estóica, portanto,independia do Estado ou comunidade política. Nela o homem convertia-se em um cidadão do cosmos, não da Pólis (Vasquez, 1989, p. 242). Epicuristas O epicurismo, com representantes como Epicuro, na Grécia, e Tito Lucrécio Caro, em Roma, surgiu no mesmo contexto histórico em que surgiu o estoicismo. Os epicuristas também partiam da idéia de que a moral não mais se definia em relação à Polis, mas em relação ao universo. Também para eles a física, não mais a Política, seria a premissa da Ética. Tudo o que existe (a alma e as formas da matéria) seria formada por átomos materiais que possuiriam um certo grau de liberdade, na medida em que se poderiam desviar-se ligeiramente na sua queda. 16 Os fenômenos físicos e humanos não seriam determinados por qualquer intervenção divina. Os homens não teriam porque temer os deuses e poderiam e deveriam fugir da dor e buscar o prazer. O móvel da conduta humana seria o prazer. Embora houvesse diversos prazeres, nem todos seriam igualmente bons. Haveriam prazeres fugazes e imediatos, que seriam os corporais, e os duradouros e estáveis, que seriam os espirituais. Os prazeres espirituais seriam os que contribuiriam para a paz da alma e a auto suficiência (autarcia) do ser. Eles poderiam ser alcançados pelo homem que se retirasse da turbulência social, que reconhecesse a si mesmo, que superasse o temor do mundo sobrenatural e que compartilhasse o diálogo no jardim com um grupo de amigos. A Ética epicurista também dissolveu a unidade entre a moral e a política presente nos sofistas, em Platão e em Aristóteles. A moral não mais se realizaria no Estado ou comunidade política, mas no indivíduo que recolhesse em si mesmo; e que se distanciasse da turbulência do mundo. Aristipo evidencia que o móvel primordial da conduta humana seria o prazer. Por conseqüência o móvel secundário e correlato da conduta humana seria a fuga da dor. Compreendia que somente o prazer seria desejado por si mesmo desde a infância sem uma vontade deliberada. Quando o homem o alcançasse, não procuraria outra coisa (Abbagnano, 1995, p. 383 e 384). Epicuro realça que a felicidade seria prazer enquanto satisfação de desejos físicos. Mas, como o prazer e a dor compõe a existência, seria necessário buscar um prazer comedido e constante, por meio do desejo saciado e do equilíbrio entre as partes do organismo. A conduta humana fundada no equilíbrio, na tranqüilidade, na amizade, na auto- suficiência, no destemor (da morte e dos deuses), representaria um remédio para enfrentar a solidão e a insegurança de nossas vidas de qualidade superior àqueles que os vínculos da vida política poderia proporcionar. Assim, seria possível ser feliz mesmo sob a pobreza material, a guerra, a perseguição política, a doença, enfim, sob qualquer circunstância da existência humana. Epicuro buscou fundar uma Ética que permitisse a cada homem descobrir que ele pode se libertar das imposições da necessidade, do destino e dos deuses. Enfim, que enquanto senhor de si mesmo, livre dos constrangimentos da existência, pode e deve buscar ser feliz. Segundo 17 Epicuro “ Quem compreendeu que nada há de temível no fato de estar morto, a nada temerá na vida” ( Epicuro apud Abrão, 1999, p. 74 ). 2.3. O Mundo Medieval Ocidental e a Ética O Mundo Medieval Ocidental articulou-se a partir de uma formação social e econômica senhorial e feudal. Esta formação teve origem no interior do Baixo Império Romano por meio da ruralização da sua população, do retrocesso demográfico, do esvaziamento do comércio, do refluxo monetário, das guerras civis e das invasões. Entre os séculos VI e VII a formação social e econômica senhorial e feudal se consolidou. A escravidão deu lugar a servidão; a sociedade escravista deu lugar a sociedade medieval como um sistema de dependências e de vassalagens estratificado e hierárquico; a unificação econômica e política romana deu lugar a fragmentação econômica e política na forma de unidades autárquicas feudais ou comunas urbanas; a moral e a Ética racionalista e escravista deu lugar a uma moral e a uma Ética profundamente condicionada por meio de elementos religiosos. A crise do poder temporal com o fim do Império Romano do Ocidente e o advento dos inconstantes e instáveis reinos romano-germânicos, a insegurança provocada pelas invasões, doenças e fome e a expansão do poder espiritual por meio do crescimento organizativo, doutrinário e econômico da Igreja, geraram um ambiente favorável para o desenvolvimento de uma nova subjetividade. As interpretações do mundo de cunho natural e social deslocou-se da natureza e do homem para Deus; da razão para a fé; da Filosofia para a Teologia, e da vida social concreta para os dogmas religiosos. De forma a coroar a nova subjetividade o poder temporal passou a estar atrelado ao poder espiritual. No mundo medieval ocidental desenvolveu-se uma Moral feudal e cristã. A Igreja, concebida como instrumento de Deus e ordenadora do poder espiritual, e a aristocracia feudal, concebidos como homens de linhagens e ordenadores do poder temporal, foram os arquitetos da referida Moral. A aristocracia feudal concebia-se como possuidora, por natureza, de uma serie de qualidades morais elevadas que a distinguiam dos homens comuns e dos servos. A aristocracia não teria que provar estas qualidades, apenas vivenciá-las. Edificou-se a Moral cavalheiresca, exaltadora da guerra, do ócio e das virtudes cavalheirescas (cavalgar, desenvolver habilidades 18 com as armas, apreender técnicas e táticas militares e tecer loas à mulher amada) e cultuadora da honra, da coragem e da valentia. Moral que também acomodava e legitimava práticas como a crueldade (no trato com os servos, com os vencidos nas guerras etc), a hipocrisia, a traição, o direito de pernada etc. A Igreja edificou a Moral monástica, exaltadora da humildade, da pobreza e da contemplação divina. Moral que também acomodava, na esfera privada, práticas como a gula, o fausto, a felonia, a luxuria. Os servos e os homens livres das cidades (artesãos, mercadores etc), embora reconhecidos pela Igreja e pela aristocracia como possuidores do direito a vida e reconhecidos como seres humanos, não foram reconhecidos como possuidores de uma vida moral. Todavia, almejavam liberdade e independência pessoal; cultivavam laços de ajuda mútua e de solidariedade; e estabeleceram uma relação íntima com o meio natural (especialmente a terra) e o trabalho, expresso por meio de um universo simbólico e ritualístico diversificado. Estes anseios foram projetados na perspectiva do paraíso, isto é, do mundo de liberdade e de igualdade alcançável na esfera do mundo sobrenatural, divino. 2.3.1. Ética Religiosa A Ética cristã partia de um conjunto de verdades reveladas ao homem por Deus. Estas verdades definiriam Deus como criador do homem e do mundo, das relações que o homem deveria manter com Deus e da vida moral para que os homens pudessem alcançar a salvação no outro mundo. Deus seria um ser pessoal, bom, onipresente, onisciente e onipotente. Deus seria o fim último, bem superior e valor supremo do homem, alcançado por meio da obediência e do cumprimento dos seus mandamentos. A essência da felicidade (a beatitude) seria a contemplação de Deus. Deus encontraria-se acima da sociedade e do Estado ou comunidade política; o amor divino acima do amor humano; e a ordem sobrenatural acima a ordem natural. A doutrina cristã das virtudes incorporaria as virtudes morais fundamentais - que seriam a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça; as virtudes de escala humana voltadas para a regulação das relações entre os homens - que seriam orespeito, o trato e a responsabilidade; e as virtudes supremas ou teológicas - que seriam a fé, a esperança e a caridade. As virtudes de escala 19 divina seriam, portanto, superiores e voltadas para a regulação das relações entre Deus e os homens. A conduta humana de acordo com as virtudes cristãs permitiria ao homem, após a sua morte (no e para o mundo), elevar-se para a ordem divina e sobrenatural, onde encontraria a vida plena, a imortalidade, a felicidade, a perfeição. A Ética cristã introduziria no universo humano a idéia de igualdade entre os homens – visto que todos seriam iguais perante Deus e efetivamente o seriam entre si no paraíso – e a idéia de justiça – visto que não haveria opressão, domínio ou exploração no paraíso. Mas, contraditoriamente, justificaria a desigualdade e a injustiça no mundo real, visto que concebia a igualdade e a justiça como somente possível no mundo sobrenatural. O mundo humano, que seria um mundo fundado e permeado pelo pecado, e de onde decorreria a dor, o sofrimento, a guerra, a exploração, não poderia dar lugar a igualdade e a justiça. Conforme Vasquez, ( 1989, p. 245). (...) o cristianismo deu aos homens, pela primeira vez, incluindo os mais oprimidos e explorados, a consciência da sua igualdade, exatamente quando não existiam as condições reais, sociais, de uma igualdade efetiva, que – como hoje sabemos – passa historicamente por uma série de eliminações de desigualdades concretas (políticas, raciais, jurídicas, sociais e econômicas). Na Idade Média, a igualdade só podia ser espiritual, ou também uma igualdade para o amanhã num mundo sobrenatural, ou ainda uma igualdade efetiva mas limitada no nosso mundo real a algumas comunidades religiosas A Ética religiosa cristã medieval tendeu, enfim, a regular a conduta humana tendo Deus como fim, bem e valor supremo. Para esta Ética a vida moral se realizaria plenamente somente quando o homem alcançasse a ordem sobrenatural. 2.3.2. Ética do Fim no Mundo Medieval Ocidental A Ética do fim manifestou-se por meio de diversos teólogos medievais. Dentre eles destacou-se Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Para Santo Agostinho a purificação da alma e a sua crescente libertação possuía como itinerário a sua elevação até Deus. Tal processo culminaria no êxtase místico ou felicidade, que somente poderia ser alcançado no mundo divino. Santo Agostinho valorizava neste processo a experiência pessoal, a vontade, o amor, a interioridade (Vasquez, 1989, 246). 20 Para Santo Tomás de Aquino Deus seria o objetivo ou fim supremo do homem. A sua Ética foi deduzida deste ponto de partida. A conduta Ética seria a busca da felicidade e da virtude humana como encontro com Deus por meio da razão e da fé. A posse de Deus provocaria gozo ou felicidade, que seria um bem subjetivo. A contemplação (ou conhecimento) do mundo físico e do mundo espiritual seria o meio mais adequado para alcançar o objetivo ou fim supremo, visto que se estaria conhecendo a obra e o amor de Deus. A Ética do fim de Santo Tomás de Aquino foi uma retomada da Ética neoplatônica de Plotino, em que pese o fato de que ambos decorrem de doutrinas filosóficas distintas, respectivamente, Platão e Aristóteles. Isto porque tanto Plotino quanto Santo Tomás de Aquino determinaram a natureza necessária do homem e porque deduziram de tal natureza o fim para o qual a conduta do homem deveria orientar-se. Santo Tomás de Aquino reconheceu o homem como um ser social ou político. No tocante às formas de governo inclinou-se para uma monarquia moderada, embora considerasse que todo o poder derivasse de Deus e o poder supremo coubesse a Igreja. Para Santo Tomás de Aquino o rei não poderia descumprir as leis, nem atentar contra a vida dos súditos. Estes, por sua vez, poderiam resistir ao rei tirano por meio das leis e dos tribunais, mas jamais pelas armas (Vasquez, 1989, p. 246). 2.3.3. A Ética do Móvel no Mundo Medieval Ocidental Na Idade Média a Ética do móvel encontrou-se ausente. Esta ausência decorreu, de um lado, da concepção de um mundo que seria sobre-determinado por Deus, de forma que não haveria livre-arbítrio ou poder de interferência humana na realidade. De outro, a presença da concepção de que a razão, concebida como fruto da graça de Deus, existiria tão somente para que o homem pudesse alcançar Deus. Não houve no Mundo Medieval Ocidental, portanto, espaço para o florescimento de concepções filosóficas fundadas na Ética do móvel. O seu ressurgimento demandou a superação da cultura e mentalidade medieval da cristandade. 2.4. O Mundo Moderno Ocidental e a Ética 21 O Mundo Moderno Ocidental articulou-se a partir de uma formação social e econômica aristocrática, absolutista e feudal. A revolução urbana e comercial em curso reduzia progressivamente a importância da vida rural e das normas da vida cristã tradicional; o crescente deslocamento da riqueza da terra para o comércio, a manufatura e o banco e as revoltas camponesas ameaçavam o domínio aristocrático; o espírito racionalista, humanista, investigador e manipulador, era responsável pelo abalo dos alicerces da Igreja Católica. Estes processos determinavam a necessidade de um redesenho da ordem aristocrática. No plano social, no início dos tempos modernos, uma ordem social aristocrática fundada nas linhagens, no nascimento e nas ordens sociais foi reformulada e reposta durante a vigência do chamado Antigo Regime. Ao final dos tempos modernos, após um longo processo em que o novo emergiu permanentemente, a ordem social do Antigo Regime (fundada na sociedade de ordens, no Estado absolutista e no mercantilismo) deu lugar a uma ordem social do liberalismo (fundada na divisão da sociedade em classes econômicas, na universalidade dos direitos civis e na livre iniciativa). No plano político, a fragmentação política e administrativa medieval deu lugar a centralização política e administrativa por meio da criação dos Estados nacionais modernos. Emergiu o Estado aristocrático, absolutista e feudal como uma gigantesca máquina política, fiscal e militar para fazer frente a uma dupla ameaça. De um lado, a burguesia em ascensão econômica e moral, mas pressionada pelos impostos e impedida de compor as funções burocráticas civis e militares do Estado, salvo funções ministeriais delegadas pelo rei. De outro lado, os camponeses em rebelião contra o monopólio da terra, as obrigações aristocráticas e clericais (em produção, trabalho ou dinheiro) e os impostos, totalmente impedidos de qualquer participação e decisão política. O Estado constituía-se, enfim, em um instrumento para recolher parte da riqueza burguesa (e das camadas populares) e redistribuí-lo em favor da aristocracia e para preservar a extração da renda da terra gerada pelos camponeses, também em favor da aristocracia. E, ao final dos tempos modernos, a burguesia estendeu o seu domínio econômico à esfera política por meio das revoluções burguesas. O objetivo era imprimir uma nova qualidade ao processo de transformação da sociedade à sua imagem e semelhança. No plano econômico, ocorreu a chamada acumulação primitiva de capital, isto é, o processo de criação das condições para a consolidação das relações capitalistas de produção por 22 meio da separação do produtor direto dos meios de produção (cercamento dos campos com a expropriação/proletarização camponesa) e da centralização do capital (capital-moeda, meios de produção etc) e dos recursos naturais (terra, florestas etc) nas mãos da burguesia e da aristocracia aburguesada. Dessa forma foi, possível transformar em dominante a arregimentação da força de trabalho por meio do assalariamento ea conseqüente extração do sobre-trabalho na forma da mais-valia. A acumulação primitiva de capital, além de lançar as bases do predomínio das relações capitalistas de produção, proporcionou diversas formas de arregimentação de capital na Europa Ocidental, a exemplo do Antigo Sistema Colonial, do tráfico de escravos, da pirataria etc. A acumulação primitiva de capital também teve um grande impulso graças ao desenvolvimento científico que se concretizou na constituição da ciência moderna para a qual concorreu Galileu, Newton, Descartes, entre outros. No plano ideológico-cultural, a religião deixou de ser a forma ideológica dominante e a Igreja Católica perdeu a sua condição de guia espiritual. De um lado, ocorreu a separação daquilo que a Idade Média havia unificado: a razão separou-se da fé (e a filosofia, da teologia); a natureza separou-se de Deus (e as ciências naturais, dos pressupostos teológicos); o Estado separou-se da Igreja (e as doutrinas políticas, dos preceitos sacros); e o homem separou-se de Deus (e a humanidade constituída de autarcia, livre-arbítrio e poder transformador, da determinação divina). De outro lado, ocorreu a afirmação do humanismo individualista burguês, de forma a consolidar a idéia de homem autárquico, constituído de livre arbítrio e que manipularia a realidade em favor dos projetos econômicos, políticos e sociais de caráter pessoal, e a harmonizar esta idéia com a idéia de que a livre iniciativa de todos convergiria para uma integração e satisfação de todos, tão bem expressa pela metáfora da mão-invisível de Adam Smith. A moral burguesa emergida da acumulação primitiva de capital opôs-se a moral aristocrática então dominante. A moral burguesa valorizava o trabalho, a liberdade, a iniciativa pessoal (individualismo), a riqueza, e condenava o fausto, o ócio, a libertinagem nos costumes, o parasitismo, as práticas e artes da guerra etc, legítimos à moral aristocrática. O homem do projeto ideológico-cultural burguês em consolidação deveria ser livre das amarras normativas morais, jurídicas e políticas. O homem concreto e o homem artificial (comunidade política) passou a ter como referências fundamentais a idéia de livre arbítrio na relação homem/Deus, a estrutura jurídico-político-militar do Estado como pré-condição da defesa 23 dos direitos naturais (a vida, a liberdade e a propriedade) e a condição social humana como decorrente do talento e do mérito de cada um. O homem foi revalorizado em sua dimensão pessoal, racional e sensível, e foi concebido como dotado de vontade e iniciativa. Afirmaria o seu valor por meio da política, concebida como manifestação essencialmente humana, da qual o homem determinaria o seu devir histórico, e da nova ciência e da natureza, manipuladas como instrumentos da geração do valor etc. O homem moderno percebeu-se no centro da Política, da Ciência, da Arte e da Moral. Tal percepção libertou a Ética dos pressupostos teológicos medievais e a fez crescentemente antropocêntrica, embora ainda convivesse com um homem tratado por vezes de maneira abstrata e possuidor de uma natureza universal e imutável. 2.4.1. O Mundo Moderno Ocidental e a Ética do Fim Na Idade Moderna a Ética do fim assumiu novos sentidos. A conseqüência foi a incorporação/superação de sentidos precedentes. Neoplatonismo Moderno Os neoplatônicos de Cambridge retomaram a concepção estóica de que a ordem identificada no universo deveria também ser buscada para dirigir a conduta do homem. Reconduziram, portanto, o caráter inatos das idéias morais, como em geral de todas as idéias ou diretivas da condução do homem (Abbagnano, 1998, p. 381). Romantismo Alemão A Filosofia romântica levou a concepção do caráter inato das idéias morais a um plano mais radical. Fichte, por exemplo, concebeu a doutrina moral como sendo deduzida da autodeterminação do Eu infinito. Assim, o Eu empírico deveria buscar por meio do processo de sua libertação progressiva ad infinitum - libertação dos limites impostos por sua existência material e social concreta e que não se completaria definitivamente - alcançar o Eu infinito. Dessa forma, seria possível transcender as limitações do Eu empírico (Abbagnano, 1998, p. 381). 24 Hegel Hegel, também seguindo o caminho dos românticos alemães, compreendia o processo histórico como manifestação do Espírito Absoluto, isto é, como manifestação do Espírito Absoluto em progressão, sob um contexto rico de determinantes e de contradições. Espírito Absoluto que se apresentaria em uma dimensão objetiva (Estado ou sociedade política), cujo plano orientaria-se pela universalidade e pelo mediato, e uma dimensão subjetiva (sociedade civil ou os homens em sua vida privada), cujo plano orientaria-se pelo particular e pelo imediato. Para Hegel o objetivo da conduta humana seria buscar a integração e perfeição expresso no Estado, instituição que seria a “totalidade Ética”, Deus que se realizava no mundo. A Ética seria, portanto, a Filosofia do Direito (Abbagnano, 1998, p. 381 e 382). O Estado seria o ápice do que ele denomina “eticidade”, isto é, da moralidade que ganharia corpo e substância nas instituições historicamente construídas e que a garantiriam, enquanto que a “moralidade” por si mesma seria simplesmente intenção ou vontade subjetiva do bem. Mas, por sua vez, o bem seria a essência da vontade em sua substancialidade e universalidade, isto é, a liberdade realizada, o objetivo final e absoluto do mundo, ou seja, o próprio Estado. Para Hegel a moralidade seria a intenção ou a vontade subjetiva de realizar o que se acha realizado no Estado. Esta Ética seria, portanto, sistêmica e estadolatra, sendo o conceito de Estado o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada. 2.4.2. O Mundo Moderno Ocidental e a Ética do Móvel Na Idade Moderna a Ética do móvel foi retomada no renascimento e se prolongou até o século XVIII. De certa forma, foi uma decorrência da revalorização da razão, da liberdade e da escolha humana. Individualismo Possessivo 25 A Ética do móvel apresentou uma oscilação entre a tendência de conservação e a tendência ao prazer como a sua base moral. Todavia, não houve grandes contradições ou premissas muito distintas, visto que o próprio prazer foi um indicador emocional das situações favoráveis à conservação. Telésio e Lorenzo Valla expressaram a Ética do móvel sem, contudo, avançá-la em relação ao Mundo Antigo Ocidental. Telésio afirmou que o homem extrairia as normas da Ética do desejo de conservação (sobrevivência), enquanto Lorenzo Valla afirmou que o prazer seria o único fim da atividade humana e que a virtude consistiria em escolher o prazer (Abbagnano, 1998, p. 384). Hobbes Hobbes identificou-se sob alguns aspectos com Telésio à medida que reconheceu como o principal dos bens a auto conservação humana. Mas o ultrapassou sob outros aspectos. Hobbes partiu da compreensão de que os homens não seriam irmãos. Mas inimigos que poderiam matar uns aos outros. Isto porque a natureza provia a que todos os homens desejassem o seu próprio bem, isto é, a vida, a saúde e a segurança, em detrimento dos demais. Isto colocaria os homens em constante conflito entre si. Cansados da guerra e da escassez, os homens almejariam a paz, a segurança e a cooperação. Daí a necessidade que os próprios homens teriam sentido de estabelecer uma esfera pública por meio de um pacto, de forma a deter os impulsos auto-centrados que os moviam. Um pacto, (Hobbes apud Abrão, 1999, p. 238). (...) como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as tuas decisões A Ética do móvel em Hobbes também partiu do princípio de conservação que existe em cada homem e que poderia ser despertada pelo medo e pela razão. Deduzia deste entendimento os fundamentos da moral e do direito. E concluiria: (Hobbes apud Abrão, 1999, p. 233 e 234) 26 E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o governo civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação ente proteção e obediência, de que a condição da natureza humana e as leis divinas (...) exigem um cumprimento inviolável Espinosa Espinosa fundou a sua Ética do móvel na idéia de que Deus seria imanente, que faria-se presente em todas as substâncias; que o mundo seria constituído de infinitos modos dos atributos que estão em Deus. Causa e efeito, homem e natureza, matéria e pensamento estariam, portanto, em Deus. Deus, causa de si, livre e imanente, produziria a si mesmo e, com isso, todas as coisas que são modos de seus infinitos atributos. A auto-produção de Deus, por ser perfeito e pleno, efetivaria-se na eternidade, isto é, ocorreria fora do tempo e seria sempre atual. Espinosa contrapunha-se, portanto, à idéia de Deus transcendente, que separaria Deus e mundo como duas substâncias. Para Espinosa, a idéia de Deus como senhor e soberano, superior a tudo e separado de todos (transcendente), seria a origem e justificativa das formas de poder político que submetiam e dominavam os homens. Seria também a origem do temor dos homens mediante os desejos do corpo, da moralidade cerceadora do prazer e da alegria e da vigilância sobre o pensamento. Segundo Espinosa, (Espinosa apud Abbagnano, 1998, p. 384). A razão nada exige contra a natureza, mas exige por si mesma, acima de tudo, que cada um ame a si mesmo, que procure aquilo que seja realmente útil para si, que deseje tudo o que conduz o homem à perfeição maior e, de modo absoluto, que cada um se esforce, no que estiver a seu alcance para conservar o próprio ser. O que é necessariamente tão verdadeiro quanto é verdadeiro que o todo é maior que a parte O senso de agir de acordo com a natureza e a liberdade dirigiu a Ética de Espinosa também para a Política. Para Espinosa a luta entre os homens por sua auto-preservação e pelo domínio sobre os outros homens determinaria o surgimento do Estado. Todavia, o Estado, que seria oriundo da violência entre os homens e que seria também violência cerceadora da violência que o teria originado, poderia desembocar em tiranias e revoluções, isto é, violência que ameaçaria a existência dos indivíduos. 27 A conduta social deveria se orientar pela criação de condições da estabilidade da Política e do Estado. Para tanto, seria necessário assegurar a liberdade de pensamento e expressão, separar o Estado da religião, renovar as funções públicas por meio de eleições e permitir o acesso do povo às armas. Locke A Ética do Móvel em Locke partiu da idéia de que os homens viriam ao mundo como uma folha de papel em branco. As idéias seriam o resultado das experiências vividas, isto é, da trama estabelecida entre o padrão cultural vigente em uma sociedade e as escolhas e opções realizadas pelos homens. A Ética do Móvel em Locke incorporou uma determinada leitura da Política. Para Locke os homens seriam livres, iguais e independentes por natureza. O usufruto deste estado de natureza por cada homem, todavia, não poderia agredir o usufruto deste mesmo estado pelos homens. A existência de homens que não se conteriam sobre os limites próprios a cada um no usufruto dos direitos e circunstâncias do estado de natureza – homens insensatos e irracionais, portanto, depravados – criaria um ambiente que ameaçaria a vida, a liberdade e a propriedade dos homens bons. Estes seriam levados a renunciar a liberdade natural contido no estado de natureza, de forma a entregá-la ao corpo político (governo). Locke compreendia que (Locke apud Abbagnano, 1998, p. 384). (...) Deus estabeleceu um laço entre a virtude e a felicidade pública, tornando a prática da virtude necessária à conservação da sociedade humana e visivelmente vantajosa para todos os que precisam tratar com as pessoas de bem, não é de surpreender que todos não só queiram aprovar essas normas, mas também recomendá-las aos outros, já que estão convencidos de que, se as observarem, auferirão vantagens para si mesmos A finalidade deste corpo político seria concentrar o direito de julgar e castigar os crimes, de forma a assegurar à comunidade e a cada um dos seus membros a segurança, a vida, o conforto, a propriedade e a paz. Hume 28 No final da Idade Moderna, mais precisamente na segunda metade do século XVIII por meio de David Hume, a Ética do móvel passou a exprimir uma nova tendência. Tendência que se constituiu na defesa de uma Ética altruísta em reação ao individualismo possessivo. Para Hume o fundamento da moral deveria ser a utilidade para o bem comum, isto é, a boa ação do homem seria a ação útil tendo em vista a felicidade e satisfação da sociedade. Como ação útil corresponderia a uma necessidade ou tendência natural e inclinaria a todos os homem a promover a felicidade dos seus semelhantes. Para Hume razão e sentimento constituiriam a moral. Enquanto a razão nos esclareceria a cerca das diversas direções possíveis da nossa ação, o sentimento de humanidade nos permitiria escolher, entre as diversas direções da nossa ação, aquela ação que seria útil e benéfica para promover a felicidade e satisfação da sociedade. A tendência para a conquista do prazer por meio da felicidade do próximo seria o fundamento da moral; seria o móvel fundamental da conduta humana. Kant Kant, tendo em vista o conhecimento, centrou no sujeito a relação sujeito-objeto. O que o sujeito conhece seria o produto da sua consciência. Esta relação também estava presente na abordagem da Moral. Kant concebia o homem como um sujeito cognoscente ou ativo moral. O sujeito, que seria consciência moral, daria a si mesmo a sua própria lei. A Ética de Kant parte do fato da moralidade. Este fato (moralidade) implicaria na responsabilidade do homem sobre os seus atos e na consciência do seu dever. Todavia, esta consciência implicaria admitir que o homem seria livre. Assim, (Vasquez, 1989, 249). (...) dado que o homem como sujeito empírico é determinado casualmente e a razão teórica nos diz que não pode ser livre, é preciso admitir então, como um postulado da razão prática, a existência de um mundo da liberdade ao qual pertence o homem como ser moral A moralidade implicava na questão do fundamento da bondade dos atos. A resposta de Kant foi que (Kant apud Vasquez, 1989, p. 143). 29 Nem no mundo nem também, em geral, fora do mundo é possível conceber alguma coisa que possa considerar-se boa sem restrições, a não ser unicamente uma boa vontade (...). A boa vontade não é boa pelo que possa fazer ou realizar, não é boa por sua aptidão a alcançar um fim que nos propuséramos; é boa só pelo querer, isto é, é boa em si. Considerada por si só, é, sem comparação, muitíssimo mais valiosa do que tudo o que poderíamos obter por meio dela Para Kant a boa vontade seria o agir por puro respeito ao dever, seria a sujeição do homem à lei moral. A boa vontade seria, portanto, um mandamento incondicional, universal e absoluto, isto é, um mandamento a que todos os homens, durante todo o tempo e em qualquer período histórico,circunstâncias e condições deveriam cumprir. Esse mandamento, denominado por “imperativo categórico”, foi recomendado por Kant como fórmula de aplicação na vida prática por meio da máxima “age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir se torne uma lei universal”. Para a Ética de Kant o homem teria que ser reconhecido como fim. Ele agiria por puro respeito ao dever e obedeceria apenas a sua consciência moral. Assim, todos os homens seriam fins em si mesmos e, como tais, formariam parte do mundo da liberdade ou do reino dos fins. Seria imoral o mundo concreto que reduz o homem a um meio (fator de produção, mercadoria etc) e que eleva os meios a um fim (capital, poder político etc). Esta Ética possuiu, portanto, um profundo conteúdo humanista e moral. Assim, (Vasquez, 1989, p. 250). A ética kantiana é uma ética formal e autônoma. Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independentemente da sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto. Por ser autônoma (e opor-se assim às morais heterônomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento, em oposição à ética medieval. Finalmente, por conceber o comportamento moral como pertencente a um sujeito autônomo e livre, ativo e criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes de tudo como ser ativo, produtor ou criador 2.5. O Mundo Contemporâneo Ocidental e a Ética Na Europa do final do século XVIII consolidaram-se a sociedade burguesa e o capitalismo por meio, respectivamente, da Revolução Burguesa e da Revolução Industrial. 30 A Revolução Burguesa, iniciada por meio da Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789), evidenciou a crise de hegemonia aristocrático-feudal. Todavia, a ascensão da burguesia à condição de classe dominante não foi acompanhado, imediatamente, pela construção da sua hegemonia. A resistência aristocrática, de um lado, e a presença do movimento proletário com a bandeira vermelha, de outro, despertou o temor da burguesia e da sua representação política. Decorreu deste quadro as formas de regime e de governo não republicano tendo em vista assegurar o domínio burguês – o consulado, o I e II Impérios na França; a Monarquia Parlamentar Constitucional na Inglaterra; o fascismo na Europa do Século XX, etc. Após as Revoluções de 1848 (A Primavera dos Povos) a burguesia buscou um acordo definitivo com a aristocracia e abandonou qualquer veleidade revolucionária. A bandeira tricolor foi abandonada definitivamente. A economia mercantil tornou-se afinal uma economia capitalista. Um mercado de tipo especial se formou: um mercado que não hesitava em recrutar como trabalhadores o exército de homens livres, sem trabalho e sem meios de sobrevivência, que vagava pela Europa, em conseqüência das mudanças sociais advindas com o cercamento dos campos. O mercador transformou-se, portanto, em capitalista quando, enfim, passou a converter a força de trabalho em mercadoria, assalariá-la sob contrato de trabalho e submetê-la a uma intensa espoliação econômica. Este foi um passo único na história da humanidade. A partir daí, as paisagens transformaram-se rapidamente: primeiramente chaminés, trens, ruas, edifícios, movimento; mais tarde complexos industriais e comerciais, metrópoles, nova revolução nos transportes, telecomunicações. As grandes cidades multiplicaram-se. O rural foi urbanizado. Estabeleceram-se novas relações entre os homens, a natureza e os objetos (coisificados). O capitalismo concorrencial e de livre iniciativa, que nasceu com a Revolução Industrial, se esgotou no final do século XIX. O capitalismo monopolista, por sua vez, nasceu a partir de então e se estendeu aos dias atuais. Dessas mudanças surgiu a crise do liberalismo, isto é, da concepção, teoria e ideologia valorizadora da iniciativa individual, do livre mercado e da sociedade contratual como elementos fundamentais das transformações sociais. A crise do liberalismo e a competição imperialista deu lugar a ascensão do fascismo, da corrida armamentista e das guerras regionais e mundiais. 31 Ciência para o capital, razão instrumental e lógica do valor: uma mentalidade marcada pela mercantilização do mundo natural e social, pelo espírito de acumulação, pelo individualismo assumiu dimensões sem precedentes. Um novo modo de vida, tipicamente burguês e urbano, que assumiu uma forma “acabada” no “American way of life”, se impôs em escala mundial. Porém, o capitalismo trouxe no seu próprio ventre as forças sociais e políticas da sua contestação: o proletariado. Vivendo em um intenso processo de dominação política, exploração econômica e opressão ideológica, esta nova classe começou a travar lutas por melhores condições de vida. Capitalismo e Contestação do Mundo do Trabalho As condições de trabalho da classe operária foram as piores possíveis na primeira metade do século XIX. Longas jornadas de trabalho, salários aviltantes, trabalho infantil, e assim por diante Neste contexto, tendo a Inglaterra como referencia formou-se, no início do século XIX, a primeira expressão de uma consciência de classe de cunho economicista e corporativo, o Ludismo. A revolta contra o patrão e o desemprego culminaram na destruição de máquinas e equipamentos. Mas a violência patronal por meio de grupos armados e leis de Estado que condenaram à forca operários presos invadindo fábricas ou destruindo máquinas debelaram estes movimentos. Posteriormente, teve lugar o Cartismo, que consistiu no envio de cartas e petições para que o parlamento se conscientizasse da situação da classe operária e adotasse leis de proteção do trabalhador. Embora igualmente economicista e corporativo este movimento possuiu a virtude de incorporar a intervenção institucional como forma de luta, sob uma unidade de ação de classe. A expansão da indústria moderna, o triunfo ideológico-político da concepção liberal de sociedade e o pequeno resultado prático do movimento cartista o esvaziou ao final dos anos 40 do século XIX. O movimento trade-unionista, isto é, o movimento sindical teve início a partir de meados do século XIX. Nascidos das caixas de solidariedade criadas pelos trabalhadores para socorrer emergências como enterro, amparar órfãos, socorrer um enfermo, etc, desenvolveu-se enquanto organismo de defesa de classe circunscritos fundamentalmente à esfera econômica. 32 Por meio destas lutas nasceram e/ou consolidaram o anarquismo moderno e o socialismo, doutrinas sociais que criticavam e contestavam a desumanidade do capitalismo. Todas essas corrente políticas, denominadas de esquerda, foram radicalmente contra a primazia do lucro sobre a vida e o bem-estar do homem. Por isto seus adeptos pensaram em formas de construir uma nova sociedade e tentaram colocar estes objetivos em prática. O socialismo real nasceu em lugar aparentemente improvável, a Rússia Czarista, por meio da Revolução Russa de 1917. Posteriormente, se estendeu para países e continentes. Liberalismo, Cidadania e Estado A teoria liberal expressou-se como movimento político no processo da Revolução Francesa. Sucumbiu uma sociedade política fundada na idéia de mundo ordenado, na forma de uma hierarquia divina, natural e social e na organização feudal (pacto de submissão do vassalo ao amo). A idéia de direito natural (relações entre indivíduos fundada na liberdade e igualdade oriundas do Estado de Natureza) e de contrato social (relações de pacto estabelecidos por indivíduos livres e iguais), sucumbiu, também, a idéia da origemdivina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante. O indivíduo foi concebido como a origem e destinatário do poder político, nascido de um contrato social racional e livremente estabelecido, onde as partes cederiam um nível de poder, mas não alienariam a sua individualidade contido no Estado de Natureza, isto é, a vida, a liberdade e a propriedade. O poder teria a forma ideal e clássica do Estado republicano impessoal, no qual o parlamento (poder legislativo), expressão dos interesses dos cidadãos e composto por meio do sufrágio, controlaria o governo (poder executivo) e a magistratura (poder judiciário). O Estado, por meio da lei e da força determinados pelos proprietários privados e seus representante, foi concebido como instrumento político-institucional-burocrático-militar que garante a ordem pública. As suas funções seriam: 1) assegurar o direito natural de propriedade e a liberdade dos sujeitos econômicos no mercado por meio de leis e da coação policial-militar; 2) arbitrar os conflitos que se desenvolvem no âmbito da sociedade civil por meio das leis e da coação policial-militar; e 3) legislar e regulamentar a esfera pública sem, contudo, interferir na consciência dos cidadãos. 33 As Novas Morais A consolidação da burguesia como classe e a efetivação do seu domínio, em especial a partir do século XIX, determinou uma transformação da moral burguesa. Esta moral, que como qualquer outra moral conviveu com uma distância entre os seus fundamentos e as práticas sociais concretas por ela orientadas e com uma influência direta da moral dominante com a qual conflitava, perdeu seus elementos de progressismo moral. A “nova” moral burguesa incorporou elementos da velha moral aristocrática como a busca do conforto material, a valorização do ócio e do parasitismo social etc, e desenvolveu outros elementos como a dissimulação, o formalismo, o cinismo, o chauvinismo, a institucionalização do comportamento humano etc. A atuação desta “nova” moral burguesa sob o mundo do trabalho, em especial sobre o proletariado urbano, possuiu grande significado. Atuação esta que assumiu um poder estruturador e propagador moral ainda maior devido aos processos de alienação e desumanização que o trabalhador estava submetido, frutos da tecnologia de produção e dos métodos de planejamento e racionalização do trabalho. Além da imposição da perspectiva do conforto burguês (consumismo, abastança material etc), do concorrencialismo, do individualismo, da obsessão pelo trabalho, observamos mais recentemente a moral cultuadora do corporativismo de empresa (o trabalhador como parte da empresa, a empresa com seus símbolos e ritos etc), do compromisso moral do trabalhador para com a empresa etc. As classes e grupos sociais que compõe o mundo do trabalho também elaboraram a sua moral. Por meio da sua experiência social no trabalho, da sua organização político-sindical, das suas publicações, das lutas sociais, dos seus intelectuais orgânicos etc, os trabalhadores reuniram elementos de conduta moral alternativos como a solidariedade, a progressiva igualdade de gênero e étnica, a identidade de classe etc. A homogeneização/unificação destes elementos de conduta moral alternativos, viveram fluxos e refluxos na direta relação com as transformações produtivas, a intensidade e qualidade da interferência da mídia na sociedade, as formas e qualidades da organização das lutas sociais, e assim por diante. O Mundo Contemporâneo Ocidental conheceu, ainda, a emergência de concepções filosóficas e políticas que incorporava perspectivas de classes e grupos sociais subalternos. A contestação da ordem social e econômica, das estruturas de poder, dos padrões culturais, da relação com a natureza, eram algumas temáticas provocas pelas referidas concepções. 34 No plano filosófico, a Ética contemporânea foi uma reação contra o formalismo kantiano e o racionalismo absoluto hegeliano, no sentido de salvar o concreto. Como características gerais desta reação podemos identificar: a) a defesa do homem concreto (o indivíduo para o existencialismo; o homem social para Marx), em face do formalismo de Kant e do universalismo abstrato de Hegel; b) o reconhecimento do irracional no comportamento humano, em face do racionalismo absoluto de Hegel; c) a procura da origem da Ética no próprio homem, em face da sua fundamentação transcendente (Vasquez, 1989, p. 251 e 252). 2.5.1. O Mundo Contemporâneo Ocidental e a Ética do Fim Na Idade Contemporânea a Ética do Fim expressou sentidos Éticos tradicionais e novos. Novas continuidades e descontinuidades puderam ser observadas. A Retomada da Ética Tradicional do Fim Green ateve-se à Ética tradicional. Segundo Green, a consciência infinita, Deus, seria ab aeterno, tudo o que o homem teria a possibilidade de vir a ser, ou seja, o Bem ou Fim supremo, que seria o objeto da boa vontade humana. Caberia a razão a tarefa de concebê-lo e de colocá-lo como fundamento de sua lei. Querer o Bem significaria querer a Consciência Absoluta e procurar realizar o que estaria presente nela. Croce também ateve-se à Ética tradicional quando admitia que a atividade Ética seria “volição do universal”. Universal que seria Espírito; que seria Realidade enquanto verdadeiramente real, enquanto unidade de pensamento e vontade; que seria Vida apreendida em sua profundidade como unidade; que seria Liberdade enquanto realidade concebida em perpétuo desenvolvimento, criação, progresso. Assim, agir moralmente significaria querer o Espírito infinito, assumí-lo como um Fim, o que representaria um retorno a Ética (tradicional) do Fim que recorria à Realidade ou ao Ser. Bergson 35 Bergson buscou uma definição moderna e alternativa da Ética do Fim. Bergson distinguiu a moral fechada da moral aberta. Por moral fechada compreendia aquela que correspondia aos impulsos naturais de conservar da sociedade. Por moral aberta compreendia aquela que correspondia ao movimento fundado na emoção, no entusiasmo e no instinto e que expressaria o impulso renovador da conduta humana que coincidia com o impulso criador da vida. Para Bergson a dualidade de forças representadas pela pressão social e pelo impulso de amor seriam manifestações complementares da vida. Estas forças estariam normalmente dedicadas à conservação da forma social sobre a qual organizava a sociedade humana desde os seus primórdios, mas que também poderiam, excepcionalmente, transfigurá-la por meio de indivíduos que expressariam um esforço de desenvolvimento de criação humana. A Ética de Bergson seria uma Ética do Fim na medida em que do ideal de renovação moral deduzia a existência de uma força destinada a promover essa renovação, assim como do conceito de “sociedade fechada” deduzia a noção de moral corrente. Scheler Na filosofia contemporânea a noção de valor começou a substituir a de bem, embora tenha sido subtraído dele mesmo. A noção de valor incorporou três características, a saber: a) objetividade; b) simplicidade (indefinível, indescritível e qualidade sensível elementar); c) necessidade ou problematicidade. É necessário que se observe o fato de que as doutrinas Éticas que reconheceram a necessidade do valor enquanto absolutidade, eternidade etc, teve estreito parentesco e correlação com as doutrinas Éticas do Fim, enquanto que as doutrinas que reconheceram a problematicidade do valor teve estreito parentesco e correlação com as concepções Éticas da motivação. Scheler, fundando a sua doutrina da Ética do Fim na necessidade do valor, afirmou que as apetições (aspirações, impulsos ou desejos) teve seus fins em si mesmas, isto é, no sentimento
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