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A PEDAGOGIA DA HISTÓRIA DE FERNANDO BRAUDEL: SÃO PAULO, 1936 Itamar Freitas1 PEPG-EHPS/PUC-SP e DHI-UFS Por que Braudel? “Braudel é o mais importante historiador do século XX”, escreve um dos seus estudiosos, o professor da Universidade Autônoma do México – UNAM, Carlos Antônio Aguirre Rojas. O especialista não economiza na argumentação. Fernando Braudel (1902/1985) foi premiado com vinte títulos de doutor onoris causa, ajudou a conceber três das mais prestigiadas instituições educacionais francesas: a Maison des Sciences de l’Homme, a Ecole de Hautes Etudes em Sciences Sociales, e a nova revista Annales, Histoire, Sciences Sociales. Publicou, pelo menos, três obras de grande sucesso entre os historiadores que se transformaram em best-sellers: O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II (1972),2 Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII (1979),3 e A identidade da França (1986/1987).4 Teve influência decisiva na formação de historiadores e cientistas sociais de renome, como Immanuel Vallerstein, Emmanuel Le Roy Ladurie e Marc Ferro; e suas obras são discutidas na América Latina, Japão, Rússia, Turquia, China, Estados unidos, Austrália, África e Europa. Justificando essa “ubiqüidade planetária” das heranças braudelianas, Carlos Rojas afirma: isso deve-se “tanto à dimensão universal dos problemas abordados em sua obra, como ao caráter radicalmente inovador das propostas de explicação e de solução desses mesmos problemas.” (Rojas, 2001, p. 17, grifos do autor). No Brasil, a escrita se repete. No entanto, bem mais que a contribuição braudeliana para a epistemologia da história – com a tríade conceitual: “tempo, duração e civilização” – é o seu papel de pedra angular conformação da escrita da história brasileira, sobretudo, na historiografia universitária paulista que é constantemente invocado. Ele foi professor de história da civilização no curso de história e geografia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1935/1937 e juntamente com outros mestres 1 Doutorando em História da Educação (PUC-SP) e mestre em História Social (UFRJ). E-mail: itamarfreitas@bol.com.br 2 Foi transformado em edição de bolso em 1975. Foi a base de doze programas de televisão intitulados “O Mediterrâneo”. 3 O livro de história mais vendido no mundo anglo-saxão, entre 1945 e 1985. 4 Vendeu 250 mil exemplares. franceses teria introduzido a “preocupação com a orientação metodológica e com o rigor da análise documental, iniciando uma relação com temas da historiografia francesa, especialmente a dos Annales, vanguarda na época.” (Capelato, et. al., 1995, p. 18; cf. Paula, 1971, p. 424-471; e Arruda e Tengarrinha, 1999, p. 49). Claro que há controvérsias sobre o papel do professor francês na conformação da historiografia brasileira dos anos 1930, bem como dos resultados da apropriação da sua experiência pelos professores nativos. (cf. Miceli, 2001, p. 263; França, 1984, p. 155; Iglésias, 1991, p. 479). Óbvio que o Braudel de 1935 possuía apenas um esboço do seu Mediterrâneo e não imaginava o império que herdaria de Lucien Febre. Não esperava transformar-se naquele mandarin conhecido de muitos nos idos de 1960 (cf. L’Histoire, 1995, p. 78-79; Burke, 1992, p. 56-58). O “legado” de Braudel para a historiografia brasileira bem merece uma monografia. Mas, não é desse tipo de debate que trato nessa comunicação. Interessa-me uma faceta do braudel pouco comentada:5 suas prescrições sobre a formação do professor de história para o ensino secundário. É a “pedagogia da história” anunciada por Braudel numa conferência proferida aos alunos do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo – IEUSP que examinarei nos parágrafos seguintes. O texto fora publicado originalmente nos Arquivos dessa instituição e, dezenove anos após a sua fala, reimpresso na Revista de História. Na opinião de um dos seus discípulos brasileiros, o professor Eurípedes Simões de Paula, era ainda um trabalho de “grande atualidade” em 1955. (cf. Braudel, 1955, p. 3n.). O Braudel é oportuno, sobretudo, porque a divulgação das suas experiências ocorreu no momento em que o “ensino regular” – tipo ginasial – consolidava-se frente ao “ensino de preparatórios.” (cf. Antunha, 1980). Entre 1931 e 1942, pode-se dizer, ganhou forma o que conhecemos, durante muitas décadas, como ensino secundário – seriado, simultâneo, com exames ao longo do curso, com finalidades e diploma independentes etc. E nesse processo de “consolidação”, a economia interna das várias disciplinas que o compunham nos anos 1930 muito tem a depor sobre o assunto.6 Certamente, não se pode, por hora, avaliar as implicações e condicionamentos existentes na relação entre finalidades-conteúdos-metodologias das disciplinas escolares e 5 O Braudel professor não tem sido objeto freqüente por parte dos historiadores. Isso não causa estranheza, como também não surpreende a ausência de comentários sobre a “Pedagogia da história”. O próprio Carlos Rojas (2001), ao listar os cento e quarenta e quatro trabalhos individuais mais representativos sobre a obra e a figura de Braudel, produzidos em espanhol, inglês, português, francês e alemão, registra apenas uma publicação que referencia o tema em questão. 6 A história também buscava a distinção metodológica nesse período. finalidaes-conteúdos-medotologias do ensino secundário. Mas, que é relevante por os olhos sobre o crescente movimento de “cientificização” das pedagogias “particulares” (relativas às disciplinas), verificáveis no âmbito da literatura educacional (cf. Lourenço Filho, 1998; Nagle, 2001, p. 339n.) e nos currículos dos cursos de formação de professor no Rio de Janeiro e em São Paulo (cf. Freitas, 2003), não restam dúvidas. O exame, portanto, da conferência “A pedagogia da História” de Fernando Braudel insere-se nessa problemática. O relato do professor francês é, assim, duplamente indiciário: ele trata da história ensinada no secundário francês dos anos 1920/1930 e também sobre a sua intenção de interferir na constituição de uma pedagogia da história à brasileira, partindo do interior dos recém- criados cursos de formação docente em nível superior. Uma pedagogia francófila? O discurso de Braudel é um relato da sua experiência de quatorze anos como professor de história nas cidades de Constantine e Argel. Uma experiência que não se restringiu ao início da carreira. Nos anos 1960, ele produziu um manual para os alunos franceses que concluíam o liceu. Rojas constata que o didático Le monde actuel (1963) é um trabalho “que esboça os principais contornos de uma teoria geral das civilizações e serve como premissa de explicação das principais curvas evolutivas da história da humanidade.” (Rojas, 2003, p. 11 e 74). Neste manual foram condensadas as grandes noções cunhadas ao longo de sua vida: os conceitos de civilização e de duração. Em Braudel, como se vê, o movimento entre a teoria da história stricto sensu e a pedagogia da história foi um exercício enriquecedor para ambos os lados do ofício. Mas, que teoria trazia na bagagem ao ocupar-se do ensino secundário na Argélia? Que teoria da história professava ao tomar conta da cadeira de história da civilização da USP? Provavelmente, toda a base da “escola metódica” que seria expurgada posteriormente nas obras de Marc Bloch – Apologie pour l’histoire ou métier d’historien – e do seu futuro orientador, Lucien Febvre – Combats pour l’histoire. Em outras palavras, Braudel era herdeiro da “dúvida metódica” codificada Charles Victor Langlois e Charles Seignobos (1898). Observem que tais “manifestos” por uma história nova ainda não existiam em 1936. Mas, Braudel já advertia nesse tempo aos futurosprofessores/historiadores. Esquivo-me... de vos recomendar essa imparcialidade em que insistem mil vezes, como indispensável à nossa profissão e ao nosso ensino. Desde logo desagrada-me o termo: ser imparcial, em sentido restrito, é não tomar partido. Ora, é preciso que tomeis partido, em meio às dificuldades e controvérsias que são próprias do ofício, como também é mister que aceiteis vossas responsabilidades com vigor e mesmo com alegria. Na verdade, o que vos pedem, em nome da imparcialidade, é não tomar partido antes do conhecimento e do exame dos fatos, para vos decidirdes com inteira probidade, com toda lealdade. Direis então: ‘esta conclusão é provisória, frágil por tal motivo, ou, ainda, vejo as coisas assim, mas é possível outro caminho, que aqui está...’ (sic). Penetrais no passado com simpatia e serenidade. Mas, valia a pena vô-lo dizer: Terei o direito de supor, por um instante, que seja necessário vos recomendar a probidade, a serenidade, o escrúpulo, a simpatia para com seres e coisas do passado, e sem as quais não há professor ou intelectual digno deste nome? (Braudel, 1955, p. 4). Outro ponto importante da sua teoria: não se duvida que a ciência da história seja útil, “pela própria forma com que ela se oferece, como especulação lícita e valiosa do espírito, em que também há utilidades de ordem intelectual.” Mas, como ciência “social” e, por isso, “incerta”, ela “se mantém fora da moral política como da moral religiosa.” (idem, p. 3-4). Esses três pontos – objetividade, utilidade e natureza epistemológica (social) – têm incidência direta na sua pedagogia da história. Por essa orientação, Braudel afirmará sem meias palavras que o professor, assim como historiador, precisa fazer escolhas em suas tarefas cotidianas, portanto julga – não pode chegar àquela imparcialidade olímpica (pregada por Ranke e/ou Langlois e Seignobos?); e que a finalidade do ensino de história, assim como da ciência da história, não é formar o cidadão, nem formar o cidadão ideal: “quando eficaz, a história forma um certo modo de ver, de julgar, uma certa maneira de ser, toda intelectual. E é só. Resta saber se essa formação convém a este ou aquele pragmatismo político.” (idem, p. 4). Essa finalidade7 está atrelada ao objetivo da pedagogia que é didatizar o conhecimento científico: “o problema pedagógico, ou melhor, o obstáculo pedagógico, sempre diferente e sempre o mesmo, (...) se resume na necessidade de tomar o pensamento em seu estado original para o comunicar, o tornar sensível, a quem vos ouve, com maior ou menor atenção”. (idem, p. 3). 7 O tradutor grafa como “objetivo”. E qual história deveria ser comunicada ao aluno? Inicialmente, uma história que levasse em conta os lugares, os espaços, os cenários da ação. Todo o acontecimento que tereis para contar tem um lugar no espaço e não se compreende fora de seu ambiente. São as árvores, as rochas, as costas, os rios de um país que trazem de seu passado o mais rico dos testemunhos. Numa época em que uma geografia inteligente nos proporciona os meios para indagar dessas coisas não deixeis de o fazer. Perguntai sempre onde se passaram os fatos que tereis de narrar, fixai-os ao solo. Com isso não perdereis tempo e trabalho. (idem, p. 8). Seria também uma história de temáticas e agentes vários, fundada sobre “células”, “grupos”, “classes sociais”, mas que não desprezasse a ação dos “grandes homens”. Eles, às vezes, definem o rumo da história. Aqui Braudel deixou vazar a crítica nada sutil a alguns franceses que concebiam o grande homem como um construto da sociedade. A crítica foi dirigida aos historiadores de maneira geral: como “raramente [os historiadores] são homens eminentes e a eles tocando a tarefa de os julgar [aos grandes homens], pela tendência com que se empresta aos outros a própria estatura, verifica-se uma obscura mas perpétua erosão do grande homem.” (idem p. 10). Há entre os grandes homens os que o são só na aparência, mas há também, creio eu, os que o são na realidade dos fatos. Entre ele toda uma escala de diferenças de estatura, cumprindo julgá-los pelas suas obras, ainda os mais pequenos dentre vós. Penso que seria para deplorar banir o grande homem das nossas palestras escolares. Neles encontro ensinamentos de tamanho valor! Por eles o despertar da inteligência toma consciência do que há além do caso individual, do humano, do social. Ao lado dos grandes homens que magníficas janelas abertas para as profundidades da vida! (idem, p. 10). Por fim, o método de ensino propriamente dito. Para “fazer reviver os grandes personagens” não serve a ação dramática do professor – o diálogo e o monólogo podem recair no cômico ou na deturpação da vida do grande homem devido à transposição dos traços da personalidade do professor. Braudel tem um “método próprio”, que depende muito da “colaboração do auditório.” Ele explica: Conto, com efeito, ao apresentar o personagem, que quem me ouça busque em sua vida, em suas recordações, essas coincidências, esses ecos, que são o sinal da reflexão, da inteligência, da cumplicidade com que se fala. Espero essa escala de imagens para dar um sopro de vida ao personagem que tento mostrar, e abandoná-lo a quem me ouve, como um ser que irá viver fora de mim, entre o público e eu. (...). Narro tão sumariamente quanto possível a vida do grande homem: nasceu em tal lugar, em tal dia, estudou... etc. (sic.). Mas, de quando em quando, tendo apanhá-lo num breve momento de sua vida, importante, e, se possível, grave, dramático, comovedor. Lanço-o então, como um pião. Haverá sinal que vos dirão se em vosso auditório, em vossa classe, esse pião gira ou não. Tereis sempre nas fisionomias, que vos defrontam indícios claros para saber se vossa manobra deu resultado: um sorriso, por vezes o riso franco, demonstram um auditório que se entrega ao conferencista. (idem, p. 11). Mas isso não diz tudo. É preciso deixar os alunos livres para julgarem os grandes homens. É fundamental saber narrar, não suprimir o suspense da história para manter vivo o interesse do aluno. E necessário narrar diacronicamente, mostrando a transformação no curso da história, na média duração, descrevendo e apontando o contraste e a mudança de mentalidades através do tempo. Braudel também fez considerações de caráter genérico sobre a natureza e a especificidade de uma aula para adolescentes. Uma aula é uma “viagem” onde o professor é o “guia”. Deve partir do concreto para o abstrato, do conhecido para o desconhecido: “não direis a democracia, mas o povo. Não direis o Brasil, mas conforme o caso, os brasileiros, o governo brasileiro.” (idem, p. 8). Uma aula deve ser “simples” e “clara”, sem, contudo, resvalar na “mediocridade.” Em outras palavras, uma aula deve “cingir-se às grandes idéias” e com o tempo de quarenta e cinco ou cinqüenta minutos não há como “apresentar” mais que uma ou duas idéias gerais: “o melhor a fazer no ensino secundário, sobretudo, para o acomodar às pausas indispensáveis, é repetir o mesmo tema, variando a forma, a disposição dos argumentos e o raciocínio. O ensino é a repetição, a idéia que se quer mergulhar com obstinação e paciência... (sic.). (idem, p. 5). Podemos estranhar que em meio ao debate acalorado entre os adeptos da “pedagogia nova” e os da pedagogia “tradicional”, até mesmo entre os defensores das escolas novas – como foi o caso da discussão entre Jonathas Serrano (1932) e Lourenço Filho (1930) – o ilustre acadêmico francês tenha derramado uma experiência bem distante da idéia de renovação requerida para o ensino de história. Ainda que o Braudel não defendesse como finalidade pedagógica o acúmulo de conhecimentos e sim o convite à reflexão, aindaque não entendesse a relação aluno-mestre como de estrita obediência do primeiro ao segundo, a sua pedagogia situava-se no extremo oposto dos que pregavam o ensino ativo.8 Era uma pedagogia centrada no professor, o “guia” e simplificador, para quem o ensinar traduzia-se na apresentação/comunicação de idéias claras e na repetição das mesmas. O objetivo era sensibilizar os alunos – vistos coletivamente como auditório e público. O aprender era familiarizar-se com as idéias do professor, depois, medi-las, transformá-las, substituí-las – se fosse o caso –, comentá-las e digeri-las. A aula era uma “viagem” do aluno e do professor, mediada pela voz do mestre: a preleção. Era, por fim, uma pedagogia sem “pedagogia” – como Durkheim (2002) denunciou acerca do secundário da sua terra. Requeria-se do professor o amplo domínio do assunto e o conhecimento das diferenças entre o ofício do historiador e do professor – diferenças expressas entre o meio livro e o meio aula, entre o público leitor e o público audiente. O domínio da matéria, segundo Braudel, viabilizaria a extração das idéias principais. O domínio de ambos os ofícios evitaria a transposição abrupta do método de pesquisa histórica – os últimos avanços entre os historiadores – para o ensino da história. A pedagogia da história de Braudel tinha o mérito de diferenciar os ofícios, mas era ainda fundada na observação das práticas dos velhos mestres, o seu, no caso era Henri Pirenne.9 Esse nosso estranhamento em relação à pedagogia da história anunciada por Braudel pode perder o seu significado se procurarmos compreendê-la como um exemplo colhido entre centenas de experiências de professores secundários de história na França, no mesmo período. Na pátria de Braudel, os pais da história disciplina escolar – Ernest Lavisse e Charles Seignobos – e os instituidores das primeiras pedagogias da história bem que tencionaram modificar o caráter verbal do ensino. Seignobos (1890) tentou aproveitar os passos do método para as tarefas do ensino: exercícios de observação de imagens e leitura de textos estariam bem próximas às tarefas de observação, análise, comparação e de síntese característicos do ofício do historiador – a crítica histórica. Entre as décadas de 1910 e 1930, procurou-se introduzir o ensino por imagens, filmes, estudos dirigidos, todos sem grande apelo entre a massa dos docentes. No entanto, até mesmo o uso do documento histórico – a pedagogia do documento – permaneceu marginal e ilustrativo. O que vigorou no ensino secundário francês entre o final do século XIX e os anos 1970, foi o recurso à voz do mestre para enfrentar as situações didáticas. Uma pedagogia fundada no esquema lição-interrogação. Évelyne Héry (1999, 2000), pacientemente demonstrou que esse “curso magistral” poderia ser lido – a redação de toda a matéria da aula – ou ditado – a recitação, 8 Ver síntese dessas idéias em As escolas novas, de Paul Foulquié (1952). 9 Heri Pirenne: “o primeiro historiador de língua francesa dos tempos que correm, professor notável, entre todos, por quem não sou o único a votar uma veneração particular.” (Braudel, 1955, p. 7). para a cópia, de um resumo da matéria no início da aula – e que a interrogação variava entre a participação individual e a coletiva (esse é ainda o aspecto menos conhecido). (...) le schéma-type de l’enseignement d l’histoire s’est fondé sur l’articulation de la leçon et de l’interrogation. La seconde est l’aboutissement de la première qu’elle resume. En même temps, l’interrogation permet d’enchaîner la leçon precedente avec la suivante et de donner à la continuité des heures et des programes son maximum d’efficacité. (Héry, 2000, p. 43). Héry também afirmou que a mudança mais significativa do período foi o gradativo desaparecimento do ditado, que resultou na “evolução” do curso continuamente lido ao curso dialogado, ou seja, a aula interrompida pela participação espontânea do(s) aluno(s). Mas, isso era constatado ainda timidamente na década de 1930. A centralidade do documento na pedagogia da história, o fim do verbalismo exclusivo só ganharam corpo a partir da década de 1970. Por que sobreviveu tanto tempo, podendo ainda ser flagrado nas escolas francesas na década de 1990? A autora apresenta várias razões, duas das quais considero as mais importantes. A primeira é de ordem epistemológica. Sans nier la part de l’innertie au sein de l’institution, il nous semble que l’explication de cette longévité reside aussi dans le fait que l’enseignnement verbal, au sens propre d’enseignemennt par le Verbe, et donc la leçon magistrale, mode oral d’énonciation fondé sur l’unité de thème et l’unité de parole, indépendamment des dysfonctionnements qu’ils ont pu engendrer, ont constitué um modèle pédagogique ajuste au contenu et au message de l’enseignemente de l’histoire. Le maître déroulait de façon continue le fil linéaire de l’histoire passée, restituant de séance em séance l’enchaîtenement dês faits et donant aux élèves la conscience de la continuité de l’histoire et dês solidarités entre lês générations. Ainsi, dans cette forme pédagogique, s’accomplissait la vocation messianique de l’enseignement historique. (Héry, 2000, p. 47). A outra razão, que nos remete ao tempo da pedagogia de Braudel, é de natureza pedagógica stricto sensu, estando relacionada à formação docente. O que era requerido de um bom professor secundário nos anos 1920? Conta Hery que “enseigner était um art, l’art de composer et de bien dire. Aussi, bien que les réformateurs comme E. Lavisse s’em soient désolés, n’y a-t-il pás eu de véritable formation pédagogique. L’aptitude à enseigner s’évaluait à partir de la maîtrise des contenus, em attenndant que l’expérience fit le rest!” (Hery, 2000, p. 46). * * * Depois da leitura do discurso de Braudel – um Braudel às vezes imperativo, às vezes sugestivo – fico imaginando o que estaria pensando o professor Afonso de Escragnolle Taunay, catedrático de história da civilização brasileira da mesma Faculdade de Filosofia da USP e do Ginásio São Bento, se estivesse assistindo a conferência do colega naquela primeira fila reservada às autoridades. Taunay foi considerado a face tradicional da historiografia uspiana, o mantenedor do paradigma dos Institutos Históricos do final do século XIX – IHGB, IHGSP, notadamente. O que poucos sabem é que ele leu o mesmo manual que fundamentou o ofício de historiador no tempo em que Braudel concluía a sua formação básica de pesquisador. Não é, portanto, improvável que Taunay, além de sorver da teoria da história “metódica”, também conhecesse muito bem as orientações da nova pedagogia da história difundidas por Charles Seignobos e, paradoxalmente, também manifestasse parte dos “vícios” da maioria dos professores franceses dos liceus (vícios na ótica de Durkheim). Dos raros depoimentos sobre a prática do velho mestre no Ginásio São Bento, já nos idos da Primeira República, são eloqüentes os indícios sobre a distribuição do tempo e o predomínio da palavra magistral. Conta o Antônio Gontijo de Carvalho, seu aluno no quarto ano ginasial, que o professor Taunay “dividia o período da aula, de sessenta minutos, em dois tempos iguais. No primeiro, tomava dos alunos a lição da véspera. No segundo, expunha a matéria próxima. Embora a preleção do mestre fosse repleta de dados, colhidos desde a juventude nas obras de Mommsenn, Onckey e César Cantu, as lições dos alunos primavam por excessiva síntese.” (Carvalho, 1951, p. 445). Então, o discurso de Braudel e os fragmentos de Taunay orientam-nos para a hipótese de que as duas pedagogias eram semelhantes em largos traços? Não é exatamente essa a conclusão a que se chega provisoriamente. A centralidadedo professor, o predomínio da palavra, a arte de saber narrar, e o “esquema-típico” lição-interrogação podem muito aproximar Brasil e França sob o aspecto da teoria do ensino de história em vigor nos anos 1920. Mas, a pedagogia de Braudel foi construída à distância, e sob os influxos das suas especulações para o trabalho de doutoramento. Enquanto os professores brasileiros atrelavam e reforçavam a ligação da experiência brasileira ao movimento civilizatório europeu, Braudel sugeria um certo afastamento dessa orientação. Não se tratava de tomar a civilização européia como conteúdo proeminente da história universal. Tratava-se de considerar as várias civilizações do globo. Eram várias “Europas” a serem referidas nos programas brasileiros, segundo Braudel: as Europas australiana, africana, a velha Europa, a norte-americana, anglo-saxônica e a sul-americana. Além disso, seria inovador reservar um espaço para o “mar oceânico”, o Atlântico que faz a ligação entre as três últimas Europas, “a velha, a moça, e a juvenil” (Braudel, 1955, p. 20). Mais que alterar os conteúdos, o empreendimento de se formar uma pedagogia brasileira no terreno da história requereria uma outra atitude do professor para enfrentar a situação paradoxal de estudar a história das civilizações sem desprezar a experiência histórica brasileira. Braudel dizia: É necessário afastá-los [os alunos brasileiros] da realidade ambiente sempre que ela se oponha à do ambiente que descreveis, e, aproveitá-la, ao contrário, quando ela se apresente semelhante ao passado. Técnica difícil e delicada e que equivale a mostrar o passado do mundo pelas frestas e janelas que o presente e o passado do Brasil vos oferecem. Não se julgue a história do mundo senão através da história de seu país. (Braudel, 1955, p. 20). A pedagogia de Braudel, como o próprio confessou, não era “revolucionária,” pelo contrário, às vezes, excessivamente “conservadora” aos olhos do auditório do IEUSP (cf. Braudel, 1955, p. 20). Mas, a idéia de elaborar-se uma pedagogia da história à brasileira, tendo o Atlântico como o eixo dos conteúdos de história da civilização e a idéia de ler a história do mundo pela perspectiva da história do Brasil podem ter causado grande espanto. Seria bastante esclarecedor para a história do ensino de história no país se se pudesse cotejar em que medida as soluções conservadoras ou revolucionárias de Fernando Braudel foram incorporadas à vulgata pedagógica ou reforçaram as prescrições da União no momento em que se uniformizava o ensino secundário brasileiro (entre Francisco Campos e Gustavo Capanema) para a história, inclusive. Fica registrada a sugestão. Referências bibliográficas ARRUDA, José Jobson e TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-brasileira contemporânea. Bauru: Edusc, 1999. BRAUDEL, Fernand. Pedagogia da história. Revista de História, São Paulo, v. 11, n. 23, p. 3-21, jul. set. 1955. BURKE, Peter. A Escola dos Annales – 1929/1989: a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. __________. História e teoria social. São Paulo: Editora da UNESP, 2002. CAPELATO, Maria Helena Rolim, GLESER, Raquel e FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Escola uspiana de História. 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