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TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier Procurador do Estado do Paraná. Mestre em Processo Civil pela Universidade Federal do Paraná. Perfil no site academia.edu: https://ufpr.academia.edu/CarlosEduardoRangelXavier; Canal no youtube: Direito sem Juridiquês. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................... 7 INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................. 7 1 AUTONOMIA DO PROCESSO CIVIL E TEORIAS DA AÇÃO .................................................. 9 1.1 Introdução. Apresentação da pergunta-chave .................................................................... 9 1.2 Antecedentes históricos ...................................................................................................... 9 1.3 A controvérsia entre Windscheid e Muther ....................................................................... 10 1.3.1 Tese. Windscheid. Actio romana = pretensão moderna ................................................ 10 1.3.2 Antítese. Muther. Direito privado versus direito à fórmula ............................................. 11 1.3.3. Síntese Windscheid. Pretensão de direito material versus ação processual ............... 12 1.4 Bülow, os pressupostos processuais e a relação jurídica processual .............................. 13 1.5 Teorias da ação ................................................................................................................. 14 1.5.1 Direito de agir “abstrato”. Degenkolb/Plósz, Mortara, Couture e Wach ......................... 14 1.5.2 As teorias da ação desenvolvidas na Itália no início do Século XX e sua influência na formação do Código de Processo Civil Brasileiro (CPC) de 1973 .......................................... 16 1.5.2.1 A teoria de Chiovenda ................................................................................................. 16 1.5.2.2 A teoria eclética de Liebman ....................................................................................... 17 2 CONDIÇÕES DA AÇÃO .......................................................................................................... 19 2.1 As condições da ação no CPC de 1973 ........................................................................... 21 2.1.1 Possibilidade jurídica do pedido ..................................................................................... 22 2.1.2 Legitimidade das partes ................................................................................................. 22 2.1.3 Interesse processual ...................................................................................................... 23 2.2 As condições da ação no novo CPC ................................................................................. 23 2.3 Regime processual de reconhecimento da ausência de condições da ação ................... 24 2.3.1 Matéria de ordem pública ............................................................................................... 24 2.3.2 Ausência de coisa julgada material ................................................................................ 25 2.4 Análise crítica. A teoria da asserção ................................................................................. 26 3 A INFLUÊNCIA DA REVOLUÇÃO FRANCESA E DO POSITIVISMO JURÍDICO SOBRE O PROCESSO CIVIL CONTINENTAL............................................................................................ 29 3.1 Mas o que a Revolução Francesa tem a ver com o processo civil mesmo? .................... 29 3.2 Antecedentes históricos .................................................................................................... 29 3.3 Teoria da separação de poderes estrita. Supremacia da lei. Juiz “boca da lei” ............... 30 3.4 Liberdade como valor máximo. Limitação dos poderes executórios do juiz ..................... 31 3.5 O papel desempenhado pelo Positivismo Jurídico ........................................................... 32 3.6 Correlação das ideias desenvolvidas ao longo da lição com a noção de “processo civil autônomo” ............................................................................................................................... 32 3.7 Conclusão.......................................................................................................................... 35 4 O IMPACTO DO CONSTITUCIONALISMO SOBRE O PROCESSO CIVIL............................ 36 4.1 O fim do Estado Legislativo e o início do Estado Constitucional ...................................... 36 4.2 Neoconstitucionalismo ...................................................................................................... 37 4.3 Hermenêutica jurídica no Estado Constitucional .............................................................. 37 4.3.1 Ideologia dinâmica da interpretação .............................................................................. 37 4.3.2 Técnicas decisórias do controle de constitucionalidade ................................................ 38 4.3.2.1 Interpretação de acordo com a Constituição .............................................................. 39 4.3.2.2 Interpretação conforme à Constituição ....................................................................... 39 4.3.2.3 Declaração de nulidade parcial sem redução de texto ............................................... 40 4.3.2.4 Aplicação direta de um direito fundamental ao caso concreto ................................... 40 4.4 Funções do Estado. Dar tutela aos direitos, especialmente aos fundamentais ............... 41 4.5 Do princípio da inafastabilidade da jurisdição ao direito fundamental de acesso à justiça e ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva ................................................................ 41 4.6 Dizendo as coisas de outro modo. Três ondas renovatórias de acesso à justiça (Cappelletti e Garth) ................................................................................................................ 44 5 PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL ....................................................................................... 46 5.1 Introdução.......................................................................................................................... 46 5.1.1 A importância dos princípios para o Direito contemporâneo ......................................... 46 5.1.2 O novo Código de Processo Civil e os princípios processuais ...................................... 49 5.2 Artigo 5º, LIV, da Constituição. Devido processo legal ..................................................... 51 5.3 Artigo 5º, LV, da CRFB. Princípios do contraditório e da ampla defesa ........................... 52 5.3.1 Conteúdo do princípio do contraditório .......................................................................... 52 5.3.2 A ampla defesa e os “meios e recursos a ela inerentes” ............................................... 53 5.3.2.1 Possibilidade de restrição aos “meios” de defesa ...................................................... 53 5.3.2.2 Possibilidade de restrição a “recursos” (ou: é o duplo grau de jurisdição, em matéria cível, um direito fundamental?) ............................................................................................... 54 5.4 Artigo 5º, XXXV, da CRFB. Inafastabilidade da jurisdição, acesso à justiça e direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva ................................................................................ 565.4.1 Direito fundamental à razoável duração do processo .................................................... 57 5.4.1.1 Princípios da economia e da celeridade ..................................................................... 58 5.5 Princípios da publicidade do processo e da fundamentação das decisões ..................... 59 5.6 Princípios dispositivo, da demanda e do impulso oficial ................................................... 59 5.7 Princípios da boa-fé e da cooperação .............................................................................. 60 5.8 Apêndice. Quadro Esquemático ....................................................................................... 62 6 JURISDIÇÃO ............................................................................................................................ 63 6.1 Os conceitos de jurisdição formulados no contexto do Estado Legislativo ...................... 63 6.2 Em busca de um conceito de jurisdição no Estado Constitucional................................... 64 7 NOÇÕES SOBRE TEORIA DOS PRECEDENTES ................................................................. 67 7.1 Introdução.......................................................................................................................... 67 7.2 Aspectos preliminares de teoria do Direito. Ideologia estática X ideologia dinâmica da interpretação ............................................................................................................................ 69 7.2.1 Ideologia estática da interpretação. Funções dos “Tribunais Superiores.” Jurisprudência e súmulas ................................................................................................................................ 69 7.2.2 Ideologia dinâmica da interpretação. Funções das “Cortes Supemas” ......................... 70 7.3 Aproximação entre as tradições de civil law e de common law ........................................ 72 7.4 Operacionalização de precedentes. Ratio decidendi e obiter dicta. Precedente X jurisprudência e súmula. Distinguishing e overruling .............................................................. 74 7.5 Os precedentes no âmbito do controle de constitucionalidade brasileiro ......................... 79 7.5.1 O modelo de controle difuso de constitucionalidade brasileiro e a necessidade – que sempre existiu – de que os precedentes do Supremo Tribunal Federal fossem de observância obrigatória ........................................................................................................... 80 7.5.2 A importação do modelo de controle concentrado e o papel que a “reclamação” passou a desempenhar a fim de tentar agregar coerência ao sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro .................................................................................................. 82 7.6 A perspectiva de “racionalização da jurisdição” introduzida pelas alterações constitucionais e legislativas brasileiras mais recentes .......................................................... 85 7.7 A forma como o novo Código de Processo Civil disciplina o assunto da “estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência” (artigos 926 e 927) .............................................. 87 7.8 “Julgamentos de casos repetitivos” (artigo 928 do NCPC) e incidente de assunção de competência ............................................................................................................................ 89 7.8.1 Recursos especial e extraordinário repetitivos. Aspectos gerais ................................... 90 7.8.2 Incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência. Aspectos gerais ....................................................................................................................... 92 7.9 O papel conferido pelo novo Código de Processo Civil à reclamação ............................. 94 7.10 Apreciação crítica final à disciplina dada pelo NCPC aos precedentes em conjunto com a da reclamação ...................................................................................................................... 96 8 TUTELA DOS DIREITOS. TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS. PROCESSO E PROCEDIMENTO. TÉCNICA PROCESSUAL ......................................................................... 101 8.1 Introdução. Função do Estado Constitucional. Dar tutela aos direitos ........................... 101 8.2 Compreensão do direito material no Estado contemporâneo. Estabelecimento de “posições juridicamente protegidas.” Formas de tutela ........................................................ 101 8.3. Tutela declaratória .......................................................................................................... 102 8.4 Tutela constitutiva ........................................................................................................... 102 8.5 Esclarecimento necessário. Diferença entre ilícito e dano ............................................. 103 8.6 Formas de tutela que objetivam evitar o acontecimento do dano. Tutelas inibitória e de remoção do ilícito .................................................................................................................. 103 8.7 Forma de tutela diante do dano já realizado. Tutela ressarcitória .................................. 104 8.8 Um exemplo para ajudar a fixar os conceitos ................................................................. 106 8.9 Processo, procedimento e técnica processual ................................................................ 107 8.10 O estudo das classificações das ações (trinária e quinária) ......................................... 108 8.10.1 Tutela declaratória ...................................................................................................... 110 8.10.2 Tutela constitutiva ...................................................................................................... 111 8.10.3 Tutelas inibitória e de remoção do ilícito .................................................................... 111 8.10.4 Tutela ressarcitória ..................................................................................................... 112 8.11 Retomando o exemplo .................................................................................................. 112 8.12 Um breve olhar sobre o Código de Processo Civil ....................................................... 113 9 PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS....................................................................................... 115 9.1 Introdução........................................................................................................................ 115 9.2 Definição tradicional de pressupostos processuais ........................................................ 115 9.3 Primeira aproximação legislativa e classificações .......................................................... 115 9.4 Menção aos pressupostos processuais em espécie ...................................................... 117 9.5 Pressupostos processuais de existência ........................................................................ 117 9.5.1 Pedido e investidura na jurisdição ............................................................................... 117 9.5.2 Citação ......................................................................................................................... 118 9.5.3 Capacidade postulatória............................................................................................... 119 9.6 Pressupostos processuais de validade ........................................................................... 122 9.6.1 Aptidão dapetição inicial .............................................................................................. 122 9.6.2 Imparcialidade do juiz ................................................................................................... 124 9.6.2.1 Impedimento (artigo 144 do novo CPC) .................................................................... 125 9.6.2.2 Suspeição (artigo 145 do novo CPC) ........................................................................ 125 9.6.2.3 Procedimento para verificação e consequências ..................................................... 126 9.6.3 Capacidade processual ................................................................................................ 127 9.6.4 Validade da citação ...................................................................................................... 130 9.6.5 Litispendência e coisa julgada ..................................................................................... 130 9.7 Vícios decorrentes da inobservância dos pressupostos processuais. Panorama geral . 131 9.8 Apreciação crítica ............................................................................................................ 132 10 COMPETÊNCIA E ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA ............................................................... 134 10.1 Introdução...................................................................................................................... 134 10.1.1 Competência. Fundamentos e definição .................................................................... 134 10.2 Classificações ............................................................................................................... 135 10.2.1 Competência absoluta................................................................................................ 135 10.2.2 Competência relativa .................................................................................................. 137 10.2.3 A competência no âmbito do microssistema dos Juizados Especiais ....................... 137 10.3 Regime de reconhecimento de incompetência ............................................................. 138 10.4 Conflitos de competência .............................................................................................. 139 10.5 Organização Judiciária. Noções Gerais ........................................................................ 141 10.5.1 O “duplo grau de jurisdição” e as competências dos tribunais .................................. 141 10.5.2 Justiças Estadual e Federal, Comum e Especializada .............................................. 142 10.6 Organização Judiciária e Competência ........................................................................ 143 10.6.1 Justiça Comum Estadual............................................................................................ 143 10.6.1.1 Justiça Militar Estadual............................................................................................ 144 10.6.2 Justiça Comum Federal ............................................................................................. 144 10.6.3 Justiça Eleitoral .......................................................................................................... 146 10.6.4 Justiça Militar Federal ................................................................................................ 146 10.6.5 Justiça do Trabalho .................................................................................................... 146 TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 7/148 APRESENTAÇÃO O presente documento é um resumo, por escrito, do conteúdo da matéria ministrada na disciplina de Teoria Geral do Processo. Seu objetivo é auxiliar os alunos na fixação do conteúdo e servir de base para o aprofundamento dos estudos. O material objetiva, ainda, ser o mais didático e simples possível, mas sem abrir mão das noções técnicas necessárias ao aprendizado do Direito.1 Como há sensível diferença entre a dinâmica da linguagem falada e da linguagem escrita, pode haver, também, diferenças entre o conteúdo da apostila e aquele ministrado em sala de aula. Por isso, a consideração atenta e a participação dos alunos nas aulas expositivas é fundamental, e não deve ser substituída pela simples leitura da apostila. Da mesma forma, o aprofundamento na bibliografia especializada é recomendável e estimulado. A apostila apresenta um resumo dos pontos objeto da disciplina, utilizando diversas fontes – mas, principalmente, a Teoria do Processo Civil, de Marinoni, Arenhart e Mitidiero. Não tem, por isso, qualquer pretensão de ineditismo ou de inovação. Feita essa ressalva inicial, e para facilitar tanto a confecção quanto a leitura do texto, observa-se que serão evitadas ao máximo as notas de rodapé. INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Qualquer livro contemporâneo que trate sobre Teoria do Processo Civil, Processo de Conhecimento e Teoria dos Precedentes, e qualquer obra de Comentários ao Novo Código de Processo Civil ou qualquer Novo Código de Processo Civil Comentado podem auxiliar no estudo, na compreensão e no acompanhamento da matéria. Recomendam-se, no entanto, os seguintes livros: 1 A esse respeito, veja-se o Vídeo Piloto e o vídeo Ajuizar ou Interpor? Procedência ou Provimento? do canal Direito sem Juridiquês. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 8/148 - Marinoni, Arenhart e Mitidiero. Novo Curso de Processo Civil, volumes 1 (Teoria do Processo Civil) e volume 2 (Processo de Conhecimento) - Idem. O Novo Processo Civil - Idem. Novo Código de Processo Civil Comentado - Luiz Guilherme Marinoni. Precedentes Obrigatórios - Carlos Eduardo Rangel Xavier. Reclamação Constitucional e Precedentes Judiciais TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 9/148 1 AUTONOMIA DO PROCESSO CIVIL E TEORIAS DA AÇÃO 1.1 Introdução. Apresentação da pergunta-chave Nosso estudo começa com a tentativa de responder à seguinte pergunta: o direito processual civil é autônomo em relação ao direito material?2 Hoje se sabe que qualquer autonomia científica, no campo da ciência jurídica (Direito), é relativa. Assim, se quiséssemos responder, de imediato, à pergunta proposta, diríamos: sim, ele (o direito processual civil) é autônomo em relação ao direito material, mas esta autonomia é relativa. Importante! A autonomia do direito processual civil em relação ao direito material é uma autonomia relativa, como qualquer autonomia científica no estudo do Direito Mas essa é uma resposta pronta que temos nos dias de hoje. Se quisermos compreender o processo histórico por meio do qual o processo civil se desenvolveu como ciência autônoma, precisamos compreender três fenômenos: o primeiro, a controvérsia entre Windscheid e Muther; o segundo, a demonstração dos pressupostos processuais por Oskar Büllow; e o terceiro, o desenvolvimento das “teorias da ação”. 1.2 Antecedentes históricos Até o começo do Século XIX, não era possível cogitar de separação entre os planos do direito material e do direito processual. Antes, a ação era vista como um simples desdobramento do direito material, ou, apenas, como o direito material violado em estado de reação. Assim sempre se entendeu a actio (ação) do Direito Romano. 2 Veja-se o vídeo Direito material e direito processual do canal Direitosem Juridiquês. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 10/148 1.3 A controvérsia entre Windscheid e Muther Foi a controvérsia estabelecida entre Windscheid e Muther, na metade do Século XIX, na Alemanha, que demonstrou, primeiramente, a separação entre os planos do direito material e do direito processual. Importante! Controvérsia Windscheid X Muther (metade do Século XIX) = demonstração da separação entre os planos do direito material e do direito processual Essa controvérsia pode ser colocada em termos dialéticos: tese, antítese e conclusão. 1.3.1 Tese. Windscheid. Actio romana = pretensão moderna Primeiramente (1856), Windscheid, visualizando o Direito Romano a partir do Direito de sua própria época, apresentou a tese, a seguir demonstrada: A) a actio (ação), no Direito Romano, não era um meio de defesa do direito, mas o próprio direito (o Direito Romano, segundo Windscheid, não era um sistema de direitos, mas um sistema de ações); B) essa afirmação é válida para todos os direitos, exceto para os direitos reais. Não seria possível identificar um direito real (direito sobre uma coisa) com uma ação. Apenas da violação do direito de propriedade é que nasce uma obrigação (como, por exemplo, a obrigação de indenizar os prejuízos), esta sim dando origem a uma ação (e com ela se confundindo, na perspectiva romana); TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 11/148 C) Assim, a partir da consideração dos direitos reais, Windscheid concluiu que a ação (actio) romana teria o seu equivalente moderno na pretensão. Ou, em outras palavras, que a pretensão seria o equivalente moderno da ação (actio) romana. Apenas para ilustrar, veja-se o artigo 189 do Código Civil Brasileiro (“Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão [...]”). Windscheid pretendeu mostrar que era exatamente isso o que acontecia, no Direito Romano, na hipótese dos direitos reais: apenas após violado o direito de propriedade é que surgiria uma obrigação e, com esta obrigação (ou, confundindo-se com esta obrigação) uma ação (actio), equivalente, portanto, à pretensão moderna. Direito de propriedade na Roma antiga Violação Obrigação = actio Noção contemporânea Violação a qualquer direito Pretensão Conclusão Actio romana = pretensão moderna 1.3.2 Antítese. Muther. Direito privado versus direito à fórmula Em seguida (1857) Muther apresenta a antítese: A) Mesmo no direito romano, era possível distinguir o direito privado originário (de um particular contra o outro) de um direito à fórmula. Este último, o direito à fórmula, era dirigido por um dos particulares contra o Estado; B) O direito privado (de um particular contra o outro) é pressuposto do direito à fórmula (de um dos particulares contra o Estado); C) Quer dizer, uma vez apresentada a actio, o Estado tinha uma obrigação, para com o particular, de dizer qual fórmula jurídica seria aplicada para resolver a disputa. Logo, o Direito Romano, TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 12/148 diferentemente do que havia argumentado Windscheid inicialmente, segundo Muther, era um sistema de direitos, e não de ações. Direito privado (originário) Contra o particular Direito à fórmula (o direito privado é pressuposto deste) Contra o Estado 1.3.3. Síntese Windscheid. Pretensão de direito material versus ação processual Após a demonstração, por Muther, da diferença que já existia, no Direito Romano, entre o direito originário e o direito à fórmula, Windscheid transpõe estas ideias para a realidade contemporânea, concluindo haver pretensão de direito material e ação processual. A pretensão de direito material seria o equivalente ao direito originário romano, e a ação processual ao direito à fórmula romano. Essa a síntese da controvérsia. Direito Romano Direito moderno Direito privado Pretensão de direito material Direito à fórmula Ação processual TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 13/148 1.4 Bülow, os pressupostos processuais e a relação jurídica processual Outra descoberta teórica importante para o desenvolvimento do processo civil como ciência jurídica autônoma ocorreu cerca de 10 anos após a controvérsia entre Windscheid e Muther. Em 1868, Oskar Büllow demonstrou, a partir da análise dos “pressupostos processuais,” a existência de uma relação jurídica processual, envolvendo autor, Estado e réu, e que é diferente do direito material. Independentemente do possível resultado do mérito (quer dizer, sobre quem, efetivamente tenha razão no plano material), o processo pode seguir uma sorte própria – sendo atrasado ou, por vezes, até mesmo extinto, caso haja falha em algum desses pressupostos dos quais depende sua constituição e seu desenvolvimento. Pressupostos processuais também não são ainda nossa matéria, mas alguns exemplos ajudarão a compreender a descoberta de Büllow. O exercício da ação diante de juízo sem competência para aquela causa pode levar ao retardamento do processo (e é uma matéria que o réu pode apresentar naquilo que Büllow chamou de “exceção dilatória”). Da mesma forma, o ajuizamento de ação sem representação por um advogado pode levar à própria extinção do processo (mesmo que, por hipótese, o autor fosse detentor do direito material: tivesse razão) pela falta do pressuposto processual que chamamos de “capacidade postulatória”. Embora o conceito de “relação jurídica processual” e os próprios pressupostos processuais (como veremos em momento próprio) precisem de uma consideração mais cuidadosa hoje em dia, a tese de Büllow foi muito importante, em sua época, para demonstrar de forma definitiva a autonomia do direito processual em face do direito material. Ao longo dos anos que se seguiram, no entanto, essa autonomia do direito processual ganhou características que desvirtuaram a própria finalidade do processo, transformando-o em um “fim em si mesmo”. Mas isso é assunto da Lição 3 (abaixo). TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 14/148 1.5 Teorias da ação 1.5.1 Direito de agir “abstrato”. Degenkolb/Plósz, Mortara, Couture e Wach Afirmada a separação entre o plano processual e o plano material, o próximo passo foi a consideração da ação como um direito abstrato (“direito de agir abstrato”). Os primeiros a formularem essa tese foram Degenkolb e Plósz. Degenkolb e Plósz centraram sua atenção na sentença de improcedência. Concluíram, assim, que, se é possível o ajuizamento de uma ação que termina com uma sentença que não reconhece o direito (e a movimentação de todo o aparato do Estado para o desenvolvimento de um processo, obrigando a participação do réu), então o exercício da ação não depende da existência do direito material afirmado em juízo. Por isso, o direito de ação seria abstrato (independente da existência do direito material). No entanto, os autores em questão tiveram certa cautela, afirmando que a ação, embora abstrata, somente poderia ser validamente exercida se o autor, ainda que derrotado ao final, agisse de boa-fé. Percebe-se, aqui, um receio de que a consideração do direito de ação como abstrato pudesse levar à multiplicação do ajuizamento de ações, muitas das quais de forma completamente temerária (quer dizer, sem fundamento). Qualquer semelhança do receio de Degenkolb ePlósz com a realidade vivida hoje no Brasil não é mera coincidência... Mortara, por sua vez, também considerou a ação um direito abstrato em relação ao direito material. Para ele, contudo, a ação se fundaria na mera afirmação do autor (e assim, portanto, ele eliminou a necessidade de boa-fé para o exercício da ação; até mesmo porque essa boa-fé é muito difícil de ser apurada na prática). TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 15/148 Importante! Ação enquanto direito abstrato Degenkob e Plósz Análise da sentença de improcedência (Necessidade de boa-fé) Mortara Ação fundada na mera afirmação do autor (Boa-fé desnecessária) Mais recentemente (anos 1940), o uruguaio Couture apareceu como grande defensor do direito de agir abstrato, afirmando que a ação nada mais é do que uma forma específica de exercício do direito de petição, garantido constitucionalmente. Se a Constituição garante a todos o direito de dirigirem suas petições ao Poder Público (veja-se o artigo 5º, XXIV, a, da atual Constituição do Brasil), 3 o ajuizamento de uma ação perante o Poder Judiciário é apenas uma expressão desse direito de petição, que tem abrangência maior. Por isso, segundo Couture, a ação é abstrata, independente do direito material (é uma expressão do direito geral de petição assegurado constitucionalmente) e, portanto, independente de sentença de procedência. Essa posição de Couture revela, ainda, o caráter publicístico da ação. Quer dizer que, embora haja interesses particulares discutidos no processo (entre autor e réu), a solução desse problema interessa ao Estado. Por isso é que se afirma, hoje, que Direito Processual Civil é um ramo do Direito Público. Importante! Couture: ação enquanto expressão do direito geral de petição. Caráter público do processo. 3 “XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 16/148 É bem verdade que, antes de Couture, Wach já havia afirmado o caráter público da ação. Analisando a ação declaratória, Wach fez diferença entre o direito material e direito à tutela jurídica (que não se confundiria com o direito material), e entre a pretensão à sentença e a pretensão à tutela jurídica (sentença favorável). Autor e réu tem pretensão à sentença. A tutela jurídica, no entanto, somente seria prestada pela sentença favorável. Esclareça-se que por sentença favorável não se deve entender sentença de procedência. O réu, se for vencedor, receberá tutela jurídica (sentença favorável). O autor, nessa hipótese, teria apenas exercido sua pretensão à sentença, mas não à tutela jurídica. Se, pelo contrário, a sentença for de procedência, o réu teria exercido sua pretensão à sentença, e o autor, à tutela jurídica. 1.5.2 As teorias da ação desenvolvidas na Itália no início do Século XX e sua influência na formação do Código de Processo Civil Brasileiro (CPC) de 1973 1.5.2.1 A teoria de Chiovenda Chiovenda, em 1903, embora concordando com Wach quanto à abstração da ação, entendeu que não havia sido suficientemente provado o caráter público do processo. Por isso, ainda visualizava a ação como o exercício de um poder em face do adversário (e não em face do Estado); verdadeiro exercício de um direito potestativo (direito que sujeita outro indivíduo). Em outras palavras, Chiovenda compreendia que a ação, embora abstrata, tinha caráter privado. E, assim, o efetivo exercício do direito de ação dependia de sentença de procedência. Embora essa afirmação pareça contraditória com a consideração do direito de ação como sendo abstrato (e, de fato, é!), Chiovenda apoiou-se, como Wach, na ação declaratória (na qual, em princípio, não se exerce qualquer direito material em face do adversário) para TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 17/148 compreender a abstração do direito de ação. Para Chiovenda, o direito afirmado na ação declaratória não seria outro senão o próprio direito de ação.4 É importante tentar compreender as ideias de Chiovenda, apesar da aparente contradição já afirmada: para Chiovenda, o direito de agir tinha natureza privada e, portanto, dependia de sentença de procedência (sentença que afirmasse o direito material). Isso deveria indicar, por uma questão de coerência, o reconhecimento de que o direito de ação não era abstrato. Para Chiovenda indicou, ao menos, que o direito de ação é um direito privado, e não público. Contudo, diante da ação declaratória, em que o autor não exerce nenhum direito subjetivo contra o réu, Chiovenda viu-se forçado a concluir, com Wach, que a ação era abstrata (nessa hipótese, da ação declaratória, o único direito que seria possível de se afirmar em juízo seria o próprio direito de ação). 1.5.2.2 A teoria eclética de Liebman Enrico Tulio Liebman, um discípulo de Chiovenda, formulou aquilo que chamou de “teoria eclética” da ação. Eclética porque tenta conciliar os dois pontos de vista (caráter público com caráter privado, ou, ainda, o direito abstrato de ação com um exercício concreto da ação). Liebman fez diferença entre o direito de ação previsto de forma geral na Constituição (posição parecida, neste ponto, mas só neste ponto, com a de Couture) e um direito de ação de natureza processual, relacionado a uma situação concreta. Assim, pela Constituição, todos poderiam propor ação (exercício do direito constitucional de agir). Contudo, somente seria possível concluir pela existência da ação processual a partir da análise da situação concreta. A ação processual, para Liebman, equivale ao direito ao julgamento de mérito. E a análise da situação concreta equivale ao exame das condições da ação. 4 “Quando alguém pede que se declare a existência de uma relação jurídica, sem aspirar a outros efeitos jurídicos, que não aqueles imediatamente derivados da declaração, não afirma nenhum direito subjetivo contra o adversário que não o próprio direito de ação, coordenando um interesse de declaração; qualquer tentativa de dar um outro conteúdo a este direito é inútil, porque precisamente a declaração judicial a que se tende não é prestação que se possa pretender do réu.” Citado em MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3ª ed. São Paulo: 2008, p. 168, nota de rodapé 41. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 18/148 Importante! Liebman: ação constitucional (geral) X ação processual (concreta) Estão presentes as condições da ação? Não: -Há ação constitucional; - Não há, no entanto, ação processual (carência de ação). Processo julgado sem resolução de mérito Sim: a ação processual foi exercida. O autor tem direito a uma sentença de mérito (que pode ser de procedência ou de improcedência). O processo é julgado com resolução de mérito Vamos dedicar a próxima lição para o estudo das condições da ação, inclusive no CPC brasileiro de 2015. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 19/148 2 CONDIÇÕES DA AÇÃO No final da lição anterior, vimos que Liebman admitiu, diferentemente de Chiovenda, a possibilidade de exercício de ação quando há sentença de improcedência. Mas a ação (processual), para ele,apenas será exercida se superada a análise inicial da situação concreta, o que o levou a criar a figura das “condições da ação.” Se não for superada a fase de análise das condições da ação, estará presente apenas a ação constitucional (direito fundamental de provocar o Poder Judiciário) mas não a ação processual... Assim, juntamente com os adeptos de teorias abstratas, Liebman entendeu que existe uma ação abstrata cujo fundamento é constitucional. Essa ação abstrata é incondicional, não tendo, portanto, qualquer relação com a situação material concreta. No entanto, Liebman concordou com os concretistas ou privatistas ao identificar uma outra ação paralela à ação constitucional, que é relacionada com a situação concreta. Essa ação, relacionada a uma situação de direito material concreta, Liebman chamou de ação processual. O exercício da ação processual, não é demais reforçar, está condicionado à observância de alguns requisitos que concernem à relação de direito material. Não se trata, propriamente, de condicionar o direito de ação à sentença de procedência (como faziam as teorias concretas e privadas da ação), mas, sim, de condicionar a existência da ação processual à observância de determinados requisitos ligados à relação de direito material. Esses requisitos para o exercício da ação processual foram chamados, por Liebman, de condições da ação. Segundo Liebman, apenas se estiverem presentes as condições da ação é que a parte autora vai ter direito ao julgamento do mérito do processo (julgamento de mérito é a efetiva análise do pedido; é a solução da controvérsia material). Por isso, pode-se afirmar que a ação processual, da teoria eclética, coincide com o direito ao julgamento do mérito. O julgamento de mérito pode redundar em sentença de procedência, sentença de improcedência ou sentença de parcial procedência do pedido. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 20/148 Por outro lado, se não estiverem presentes as condições da ação, diz-se que o autor é carente de ação. Assim, o reconhecimento da ausência das condições da ação (ou, simplesmente, da carência de ação) é um julgamento de extinção do processo sem resolução de mérito. A sentença que extingue o processo sem resolução do mérito é também chamada de sentença terminativa. Atenção! Teoria Eclética da Ação Ação Constitucional Ação Processual Abstrata Concreta Incondicional Condicionada (Condições da ação) Direito à solução do mérito Atenção! Ação Processual Estão presentes as condições da ação? Sim: Direito à resolução do mérito Não: Carência de ação Extinção do processo com resolução do mérito Extinção do processo sem resolução de mérito - Sentença de procedência; - Sentença de improcedência; ou - Sentença de parcial procedência Sentença terminativa TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 21/148 É verdade que há outras situações (exclusivamente processuais) que podem conduzir à extinção do processo sem resolução do mérito. Por isso, é importante não confundir essas outras hipóteses (de extinção do processo sem resolução do mérito por questões exclusivamente processuais – como é o caso da ausência de determinados pressupostos processuais) com a extinção do processo sem resolução do mérito por ausência de condição da ação (em que a extinção do processo sem resolução de mérito não se dá por uma questão simplesmente processual, mas por um problema que é, antes, relacionado a alguma análise, ainda que superficial, da relação jurídica material). Durante a II Grande Guerra, Liebman imigrou para o Brasil. Aqui, exerceu forte influência sobre a escola paulista de processo, e suas ideias, com sua teoria eclética e suas condições da ação, foram inseridas no Código de Processo Civil (CPC) de 1973 (ver artigo 267, VI, do CPC de 1973). O novo CPC, por sua vez, como veremos logo a seguir, não deixou de considerar a existência de condições da ação. 2.1 As condições da ação no CPC de 1973 Segundo o artigo 267, VI, do CPC de 1973, as condições da ação são a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse processual. Atenção! Condições da ação no CPC de 1973: - Possibilidade jurídica do pedido; - Legitimidade das partes; - Interesse processual. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 22/148 2.1.1 Possibilidade jurídica do pedido Embora esta condição da ação não esteja mais mencionada de forma expressa no novo CPC o seu estudo, em perspectiva histórica, e até mesmo para uma melhor compreensão da condição da ação que lhe incorporou (o interesse de agir), é ainda conveniente. A possibilidade jurídica do pedido nada mais seria do que a previsão, na ordem jurídica, do direito postulado pelo autor da ação. Exemplos de situações em que não haveria possibilidade jurídica do pedido (ou seja, exemplos de impossibilidade jurídica do pedido) são o divórcio, no Brasil, até 1977, e o usucapião de bens públicos. 2.1.2 Legitimidade das partes A legitimidade das partes, também chamada de legitimidade ad causam, é identificada como a pertinência subjetiva daquele que é parte, no processo, com a relação de direito material.5 Ou seja, apenas aquele que é sujeito da relação de direito material é que pode figurar como parte no processo em que se discute aquela mesma relação jurídica. Imagine-se que estamos diante de um contrato firmado entre A e B. Apenas A e B são partes legítimas para a discussão judicial deste mesmo contrato. Assim, se A ajuizar ação contra C, o processo terá de ser extinto sem resolução do mérito, por ilegitimidade passiva ad causam. Se, por outro lado, D ajuizar ação contra B, para discutir o mesmo contrato (celebrado entre A e B), então o processo será extinto sem resolução do mérito, por ilegitimidade ativa ad causam. 5 Para complementar o estudo, recomenda-se o vídeo Direito objetivo e direito subjetivo do canal Direito sem Juridiquês. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 23/148 2.1.3 Interesse processual O interesse processual, por sua vez, é identificado com a necessidade, a utilidade e a adequação do provimento jurisdicional à parte. Se o processo for inútil, desnecessário ou inadequado, faltará à parte autora interesse processual, sendo esta, portanto, carente de ação. Exemplos de situação em que é manifesta a ausência de interesse processual são o ajuizamento de ação de cobrança de dívida ainda não vencida (ou com exigibilidade suspensa) e a impetração de mandado de segurança em que a parte impetrante expressamente afirma, na petição inicial, a necessidade de produção de prova diferente da documental (por exemplo, prova testemunhal ou prova técnica). Esta última situação (a impetração de mandado de segurança afirmando-se a necessidade de produção de prova diferente da documental) é exemplo de falta de interesse processual por inadequação. Chama-se a hipótese de inadequação da via eleita. 2.2 As condições da ação no novo CPC O novo CPC não eliminou as condições da ação. Elas estão expressamente previstas em seus artigos 17 e 485, VI. O que fez, no entanto, atendendo a lições tardias do próprio Liebman¸ foi reduzi-las a apenas duas: legitimidade e interesse. Com efeito, Liebman posteriormente ensinou que não deveria haver distinção entre possibilidadejurídica do pedido e interesse de agir: se alguém postula em juízo direito não previsto na ordem jurídica, logo o ajuizamento da ação é inútil. Essa lição foi assimilada, portanto, pelo novo CPC.6 6 Se quiséssemos levar adiante o mesmo raciocínio, poderíamos facilmente constatar que o ajuizamento de ação contra pessoa que não figura na relação jurídica material em discussão também é inútil. Com isso, reduziríamos também legitimidade de parte ao interesse processual – o que, no fim, apenas reforça o caráter artificial de toda a construção teórica das condições da ação. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 24/148 Quadro Esquemático - Condições da Ação - Possibilidade Jurídica do Pedido (apenas no CPC de 1973) Previsão abstrata do direito na ordem jurídica (no novo CPC, é espécie de interesse processual) Legitimidade das partes (CPC de 1973 e novo CPC) Pertinência subjetiva das partes do processo com a relação de direito material Interesse processual (CPC de 1973 e novo CPC) - Utilidade; - Necessidade; e - Adequação (“da via eleita”) 2.3 Regime processual de reconhecimento da ausência de condições da ação 2.3.1 Matéria de ordem pública Tradicionalmente, diz-se que as condições da ação constituem matéria de ordem pública. Isso significa que a sua ausência pode ser reconhecida de ofício pelo Poder Judiciário, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de alegação pelas partes. O caráter de matéria de ordem pública das condições da ação é reconhecido pelo artigo 267, § 3º, do CPC de 1973, regra que foi reproduzida, em sua essência, no artigo 485, § 3º, do novo CPC.7 7 A divergência extensional entre ambos os dispositivos, no que nos interessa, é que a regra do CPC de 1973 trata da possibilidade de reconhecimento da ausência de condição da ação de TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 25/148 2.3.2 Ausência de coisa julgada material Afirma-se, ainda, que a sentença que extingue o processo sem resolução de mérito não faz coisa julgada material, fazendo apenas coisa julgada formal. Tal constatação foi, historicamente, extraída do conteúdo do artigo 268 do CPC de 1973.8 Há que se entender exatamente o que se quer dizer por ausência de coisa julgada material da sentença que extingue o processo por carência de ação. Isso significa, apenas, que o reconhecimento de carência de ação, em um determinado processo, não impede que seja ajuizada uma nova ação, desde que seja corrigido o defeito que levou ao reconhecimento da ausência de condição da ação no primeiro processo. Por exemplo: se A ajuizou a ação contra C, a extinção do processo sem resolução de mérito não impede que ele ajuíze outra ação, desta vez contra B, o real devedor no plano material e, portanto, a parte legitima (obviamente que ele não poderá ficar repetindo a ação contra C, afirmando que não houve coisa julgada material...); ou, se a ação foi ajuizada antes do vencimento da dívida (e, por isso, foi extinta por ausência de interesse), isso não impede que ela seja novamente ajuizada após o vencimento. Essa situação é melhor esclarecida pelo novo Código, no § 1º do artigo 486: § 1º No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI [carência de ação] e VII do art. 485, a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito. ofício “enquanto não proferida sentença de mérito”, ao passo que o novo CPC afirma que tal possibilidade subsiste “enquanto não ocorrer o trânsito em julgado”. 8 “Art. 268. Salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de novo a ação. A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do pagamento ou do depósito das custas e dos honorários de advogado.” TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 26/148 2.4 Análise crítica. A teoria da asserção Apesar da adesão, pelo Código de Processo Civil brasileiro, à teoria eclética da ação (exatamente por disciplinar as chamadas condições da ação), ele mesmo (nosso Código de Processo Civil) não é inteiramente coerente com aquela teoria. Assim, o artigo 263 do CPC de 1973 afirma que a ação é considerada proposta quando a petição inicial for despachada pelo juiz. O novo CPC foi ainda mais além, ao afirmar, em seu artigo 312, que a ação é considerada proposta quando protocolada a petição inicial. Ora, se a ação é proposta com o simples protocolo da petição inicial (segundo o novo CPC) ou, ao menos, com o despacho judicial da petição inicial (como afirmava o CPC de 1973), isso não deixa muito espaço para que se considere existente a ação apenas após a verificação de determinados requisitos (as chamadas condições da ação). Trata-se, reforça-se, de contradição interna existente no CPC (tanto no antigo quanto no Novo), e que enfraquece a construção teórica erigida em torno das condições da ação. Com efeito, é mesmo algo estranho considerar que, após o ajuizamento da ação, a citação, a contestação do réu e a produção de diversas provas, o juiz prolate uma sentença dizendo que o autor era carente de ação. Ora, se era carente de ação, o que foi que as partes e o juiz fizeram ao longo de todo o processo? Assim, se, ao final do processo, o juiz identificar o que poderia ser considerado como “ausência de condição da ação,” entende-se que ele deve julgar o pedido improcedente. O reconhecimento da ausência de condição da ação, na forma como proposta pelo CPC, apenas tem algum sentido se realizado logo ao início do processo. Esse reconhecimento está ligado ao já estudado princípio da economia, segundo o qual não devem ser praticados atos processuais inúteis. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 27/148 Assim, ao despachar a petição inicial, identificando o juiz, a partir das simples afirmações do autor, que não estão presentes as condições da ação, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito por carência de ação. O reconhecimento da ausência de condição da ação, assim, funcionaria como uma forma de possibilitar uma espécie de julgamento liminar (logo ao início do processo) de improcedência do pedido (chamado, no entanto, de extinção sem resolução de mérito), a fim de evitar que o processo se desenvolvesse de forma inútil. Mas registra-se que a ausência de condição da ação teria que ser verificada pelo juiz logo ao início do processo, na fase postulatória, 9 e a partir das meras afirmações do autor. A isso se dá o nome de teoria da asserção (asserção significa afirmação). Assim, a teoria da asserção nos informa que o juiz deve verificar a existência das condições da ação ao início do processo, apenas a partir das afirmações da parte autora. E o objetivo disso, convém reiterar, é evitar o desenvolvimento inútil do processo. Se, no entanto, o juiz não proceder a esse exame inicial, instruindo o processo – ou se, por hipótese, apenas após a produção de prova é que foi possível verificar que estaria ausente uma condição da ação –, deve, de qualquer forma, o pedido ser julgado improcedente. Trabalhemos com exemplos, para ajudar a compreensão. Na nossa hipótesedo contrato celebrado entre A e B, imaginemos que se trate de um contrato escrito, e que A ajuíze a ação contra C. Nessa hipótese, apenas a partir das afirmações do autor já é possível perceber que C é parte ilegítima. Assim, ao despachar a petição inicial, deve o juiz extinguir o processo sem resolução de mérito, por ilegitimidade passiva. Imaginemos, no entanto, que o contrato seja não escrito, mas verbal, e que A ajuíze uma ação contra C afirmando que este é o devedor. Apenas a partir das afirmações do autor, portanto, C é parte legítima. No entanto, durante a instrução processual, todas as testemunhas ouvidas pelo juízo afirmam de 9 Para complementar a compreensão do assunto, veja-se o vídeo sobre “Fases processuais”, no canal Direito sem Juridiquês. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 28/148 forma categórica que o contrato foi celebrado por A com B, e não com C. Nessa hipótese, a ilegitimidade de C apenas foi descoberta após a instrução processual (mesmo que tenha sido objeto de sua defesa, perceba-se), porque as peculiaridades do direito material (contrato não escrito) tornaram imprescindível a produção de prova inclusive quanto à questão da pertinência subjetiva. Mas, a partir das meras afirmações do autor (teoria da asserção) não era possível afastar, em tese, a pertinência subjetiva de C à relação de direito material (o que somente se tornou possível reforça-se, após a produção das provas). Assim, porque se chegou ao fim do processo, encerrada a fase instrutória, deve o juiz, simplesmente julgar o pedido improcedente em face de C – e não reconhecer a “carência de ação.” Em outro exemplo, imagine-se que a parte autora ajuíza uma ação contra o Estado, objetivando adquirir, por usucapião, a propriedade de um imóvel estadual. Nesse caso, ao despachar a petição inicial, deverá o juiz reconhecer a impossibilidade jurídica do pedido (ou, segundo o novo CPC, simplesmente a ausência de interesse de agir) e extinguir o processo sem resolução do mérito. Se, por outro lado, a parte autora, afirmando não existir matrícula do imóvel, ajuizar a ação contra o possuidor anterior, nada haverá, a partir da simples afirmações contidas na petição inicial, que indique a carência de ação. Mas se, durante a instrução, for obtida certidão da matrícula do imóvel e ficar comprovado que se trata de bem de propriedade do Estado, então o juiz, ao sentenciar, deve julgar o pedido improcedente (não devendo ter lugar a extinção do processo sem resolução de mérito, uma vez que já superada a fase instrutória). TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 29/148 3 A INFLUÊNCIA DA REVOLUÇÃO FRANCESA E DO POSITIVISMO JURÍDICO SOBRE O PROCESSO CIVIL CONTINENTAL 3.1 Mas o que a Revolução Francesa tem a ver com o processo civil mesmo? À primeira vista, pode parecer um pouco estranho que, para entender o processo civil brasileiro atual, seja necessário pensar na Revolução Francesa. Mas é assim mesmo. Na verdade, a Revolução Francesa consagrou uma série de ideais que ficaram impregnados na cultura jurídica europeia (mais precisamente, da parte continental da Europa) e que ditaram a forma de ser do processo civil europeu (e, acrescente-se, brasileiro) até pouquíssimo tempo atrás. Uma vez que a alteração de paradigma (quer dizer de toda a forma de pensar) é consideravelmente recente, é necessário que compreendamos, ao menos superficialmente, a forma de pensar que influenciou toda a construção do processo civil enquanto ciência, para que, no passo seguinte, possamos examinar o estágio atual em que se encontra a disciplina objeto do nosso estudo. 3.2 Antecedentes históricos A Revolução Francesa surgiu como uma reação organizada da burguesia contra o “Antigo Regime.” Esse antigo regime, como sabemos, consistia no absolutismo monárquico. É importante diferenciar a monarquia absolutista, experimentada na França e em grande parte da Europa de então, das monarquias que sobreviveram até hoje. As monarquias que conhecemos hoje são, em regra, monarquias constitucionais que, normalmente, adotam um regime parlamentarista. Ou seja, o monarca não concentra todos os Poderes do Estado, sendo, normalmente, apenas o Chefe de Estado (exercendo, em verdade, um cargo de representação) e não Chefe de Governo. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 30/148 Mas não era assim no regime absolutista. O monarca (ou rei) não somente acumulava as funções de Chefe de Estado e de Chefe de Governo como também concentrava aquilo que hoje nós conhecemos como os poderes (ou funções) do Estado. Legislava, administrava e julgava (ainda que pudesse delegar as atividades de administração e de jurisdição a pessoas de sua confiança, funcionando sempre, no entanto, como instância revisora – recursal – máxima). Em termos contemporâneos, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário estavam concentrados na mão de uma única pessoa. Não se tinha “separação de Poderes”. 3.3 Teoria da separação de poderes estrita. Supremacia da lei. Juiz “boca da lei” O grande mecanismo desenvolvido, então, para rompimento com o Antigo Regime foi a teoria da “separação de Poderes,” formulada anos antes por Montesquieu. A fim de evitar a concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, as funções do Estado passaram a ser repartidas entre órgãos. Surgem, assim, os nossos conhecidos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Deve-se apenas ressaltar que, de acordo com a linha de pensamento desenvolvida na Europa continental após a Revolução Francesa, cada um desses poderes deveria ficar restrito às suas próprias funções, não podendo praticar qualquer tipo de ingerência (interferência) sobre os demais.10 Mas não foi só. Entendeu-se que o Poder Legislativo desempenhava papel preponderante sobre os demais. Isso porque a lei é fruto da vontade do Parlamento, composto pelos representantes do povo, e serviria, assim, como forma de defesa do povo contra os arbítrios verificados no Antigo Regime. 10 Essa compreensão da separação de Poderes desenvolvida na Europa continental (separação de Poderes estrita) é um tanto diferente da ideia praticada na Inglaterra (que serviu como base para os estudos de Montesquieu) e, especialmente, da teoria da separação de Poderes formulada pelos Federalistas norte-americanos. Nos Estados Unidos (modelo copiado pelo constitucionalismo brasileiro, é bom destacar) não somente se admitiu como também se achou necessária alguma ingerência dos Poderes um sobre os outros, dando origem ao que ficou conhecido como sistema de “freios e contrapesos” – e do qual, inclusive, é deduzido o controle de constitucionalidade conferido de forma difusa ao Poder Judiciário. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 31/148 Surgiu, assim, a doutrina (ou princípio) da supremacia da lei (ou, ainda, da supremacia do Parlamento). Os juízes, portanto, na concepção inicialmente desenvolvida na França, não poderiam nem sequer interpretar a lei (o que se demonstrou, ao final, impossível!). De todo modo, esse modelo de separação de Poderes impediu os juízes de realizarem qualquer inovação na ordem jurídica. Toda a atividade criativa de direitos ficou concentrada no Poder Legislativo. O juiz, assim, foi chamado por Montesquieu de “boca da lei” e o poder de julgar, segundo o mesmo autor, foi descrito como um “poder nulo.”É necessário, ainda, compreender as origens históricas e sociais dessa forma peculiar de doutrina. Ocorre que os juízes na França do Século XVIII eram comprometidos com o Antigo Regime, e o Poder Judiciário era um corpo normalmente manchado pela corrupção. Montesquieu sabia bem disso (ele mesmo foi um juiz). Assim, a forma drástica como tratou os juízes tem motivos outros (ideológicos) que não apenas a simples coerência científica. 3.4 Liberdade como valor máximo. Limitação dos poderes executórios do juiz Lembremos, ainda, do grande ideal da Revolução Francesa: “Igualdade, Liberdade e Fraternidade.” Sendo a liberdade um valor extremo, limitou-se ao máximo a possibilidade de que o juiz interferisse na esfera de vontade dos “cidadãos” (estamos considerando o processo civil, mas os reflexos disso no processo penal parecem ser também bastante evidentes). Como regra geral, o processo cível apenas poderia servir para tocar no patrimônio do réu, mas jamais em sua esfera de vontade. Dessa forma, todos os direitos, uma vez violados, convertiam-se em indenização pelo equivalente pecuniário (dinheiro). E não apenas isso. Mesmo para tocar no patrimônio do réu, primeiro, tornou-se necessário ter certeza da dívida. Logo, a execução por expropriação (momento processual em que se alcança o patrimônio do réu e o converte em TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 32/148 dinheiro para satisfação do crédito do autor), em regra, apenas poderia ser iniciada após o trânsito em julgado da sentença (quer dizer, após não serem cabíveis mais quaisquer recursos). E, uma vez iniciada a execução, deveria o juiz ficar adstrito às técnicas processuais previstas estritamente na lei. Ou seja, apenas pelas formas previstas na lei processual é que ele poderia interferir no direito de propriedade do réu para satisfazer o crédito do autor. A isso se chama de princípio da tipicidade dos meios executórios (tipicidade, aqui, tem uma acepção bem parecida com a do Direito Penal; apenas os meios executórios previstos expressamente na lei poderiam ser utilizados pelo juiz). 3.5 O papel desempenhado pelo Positivismo Jurídico11 Cerca de um século após a Revolução Francesa, desenvolveu-se a doutrina que conhecemos como positivismo jurídico, cujo objetivo era compreender a ciência do Direito apenas em uma perspectiva descritiva. Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, proclama a ideologia do “Direito livre de valor”. Isso apenas reforça o princípio da “supremacia da lei,” entendendo-se ser vedado aos juízes, no contexto do positivismo, inovar na ordem jurídica. Essa ideologia, é bom reforçar, influenciou fortemente o processo civil desenvolvido na Europa (e, consequentemente, no Brasil), e continua ecoando, de certa forma, até os dias de hoje. 3.6 Correlação das ideias desenvolvidas ao longo da lição com a noção de “processo civil autônomo” Devemos, agora, lembrar que cerca de meio século após a Revolução Francesa começou a ser delineada, na Europa, a ideia de autonomia do 11 Para complementar a compreensão, recomenda-se o vídeo Positivismo Jurídico em Cinco Passos, do canal Direito sem Juridiquês. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 33/148 processo civil em relação ao direito material (o que foi estudado na Lição 1, acima). Conceitos como a supremacia do Parlamento e da liberdade como valor máximo, além de impedirem o juiz de afetar a esfera jurídica do réu senão apenas segundo os meios previstos expressamente na lei, contribuíram para livrar o processo das interferências do direito material, transformando aquele (o processo) em um fim em si mesmo. Pode-se dizer que, da mesma forma que o positivismo jurídico objetivou, enquanto ideologia, um “Direito livre de valor” (quer dizer, sem sofrer qualquer influência de valores externos, informados pela justiça, pela moral, pela religião, pela política, pela economia, etc.), o ideário da Revolução Francesa e do positivismo jurídico contribuiu para o desenvolvimento de um processo também “livre de valor” (quer dizer, livre de qualquer interferência do direito material). Assim, a “grande construção científica” da época, no plano do Processo Civil, foi o procedimento ordinário. Um procedimento único que deveria servir para atender todas as espécies de direitos. Ou seja, o processo abstrato por excelência. Importante! Procedimento ordinário = fruto da concepção de um processo civil abstrato, influenciada pelo ideário da Revolução Francesa (liberalismo) e do positivismo jurídico (Direito livre de valor). Procedimento único que desse conta de todas as (ou da maior parte das) situações de direito material Embora o Código de Processo Civil de 2015 não utilize a expressão “procedimento ordinário”, nele encontramos o “procedimento comum”, que é, ainda, um resquício desta ideia. Se o “procedimento comum” for apenas uma regra geral de organização que não nos impede de considerar as necessidades do direito material, tudo bem, não há nenhum problema. Devemos apenas ficar atentos para que a TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 34/148 existência do “procedimento comum” não nos leve a pensarmos no processo como um fim em si mesmo. Pode-se entender, ainda, que o procedimento ordinário (hoje procedimento comum) é influenciado por mais um dos valores da Revolução Francesa: a igualdade. Sabe-se que essa era uma igualdade meramente formal: todos são iguais perante a lei, pouco importando que houvesse alguma diferença concreta que pudesse ser relevante e que gerasse desigualdade.12 Assim, abstratamente, bastava um único procedimento para atender virtualmente todos os direitos, o que os colocava em pé de igualdade formal, não se preocupando a ciência processual civil, em princípio, com diferenças que, de fato, pudessem ser relevantes. Ressalva-se que alguma necessidade específica do direito material (reconhecida sempre em abstrato, é bom perceber) fez com que se estruturassem, legislativamente, procedimentos especiais. Para compreender bem a natureza desses procedimentos ditos especiais, no contexto histórico e teórico que agora estamos estudando, é importante reforçar que a escolha da situação material que determinava a utilização de um procedimento diferente do ordinário era prevista abstratamente na lei. Jamais seria construído um procedimento especial, de forma inovadora pelo juiz, diante de casos concretos. Ou seja, não era dado ao juiz, analisando determinado caso concreto, entender que seria necessária a criação de um procedimento especial. Ele devia, apenas, identificar os casos concretos que se submetiam à previsão legislativa de procedimento especial e, nessa circunstância, aplicar o rito diferenciado. E, de todo modo, apenas poderiam ser utilizadas no procedimento especial as técnicas processuais para ele expressamente previstas na lei (expressão do princípio da atipicidade dos meios executórios). 12 Compreende-se, hoje, a igualdade em seu aspecto material: devem-se tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 35/148 3.7 Conclusão O processo como um fim em si mesmo, descrito nesta lição, tornou-se ineficaz para anteder às necessidades do direito material. A legislação processual passou a definirprocedimentos abstratos (sendo o procedimento ordinário o procedimento abstrato por excelência), não se importando com as desigualdades materiais e com necessidades específicas que pudessem ser verificadas no plano material (exceto na tipificação, também abstrata, de alguns procedimentos especiais). Assim, o ideal da liberdade alcançou sua expressão máxima: todos os direitos acabavam sendo convertidos, no processo, no seu equivalente pecuniário. Importante! Consequência da abstração total do processo: o processo tornou-se ineficaz para atender as necessidades do direito material. Conversão de todos os direitos em pecúnia Com a evolução da sociedade e, notadamente, com a criação dos chamados “novos direitos,” no entanto, essa concepção tornou-se especialmente obsoleta (antiquada, superada). Mas para compreendermos por que, precisamos estudar o fenômeno conhecido como constitucionalismo... TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 36/148 4 O IMPACTO DO CONSTITUCIONALISMO SOBRE O PROCESSO CIVIL 4.1 O fim do Estado Legislativo e o início do Estado Constitucional É bem verdade que a Constituição tinha sua importância no Estado Legislativo. Na própria Teoria Pura do Direito, Kelsen afirma que a Constituição funciona como base do ordenamento jurídico. Todas as leis infraconstitucionais retiram sua validade das normas constitucionais. Esse papel, no entanto, era apenas formal. Ou seja, bastava que as leis fossem editadas de acordo com o procedimento previsto na Constituição (procedimento legislativo) e que o legislador infraconstitucional atuasse dentro da esfera de competência delegada pela Constituição. Esta (a Constituição) tinha um papel muito pouco importante para o controle de conteúdo da lei. Podemos afirmar, assim, que o controle de constitucionalidade desenvolvido no Estado Legislativo é um controle de constitucionalidade essencialmente formal. A II Grande Guerra e, especialmente, as atrocidades cometidas pela Alemanha nazista, no entanto, levaram a comunidade jurídica a repensar essas ideias.13 Isso porque não seria possível admitir que fossem indiferentes ao Direito (como se conclui a partir do positivismo jurídico clássico) os atos praticados pelos nazistas, já que estes estavam amparados em normas jurídicas validamente editadas (quer dizer, válidas do ponto de vista meramente formal). Passou-se a utilizar a Constituição, assim, para controlar o conteúdo da lei (controle de constitucionalidade material). Inserindo-se valores de justiça material na Constituição (aos quais chamamos de direitos fundamentais)14 passa a ser possível realizar esse controle do conteúdo da lei. O Direito deixa de ser, como queria a proposta positivista inicial, “livre de valor.” Os valores 13 Veja-se o vídeo Positivismo Jurídico em Cinco Passos, do canal Direito sem Juridiquês. 14 Os mesmos direitos, em essência, consagrados na ordem internacional, são chamados de direitos humanos. A diferença entre uns (direitos fundamentais) e outros (direitos humanos) é dada pelo que se chama de critério da concreção positiva: direitos fundamentais são positivados na Constituição (ordem interna) e direitos humanos são positivados em tratados internacionais (ordem internacional). TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 37/148 com os quais o Direito vai dialogar, no entanto, são aqueles expressamente previstos na Constituição. Daí falar-se em jusnaturalismo de base racional. 4.2 Neoconstitucionalismo Mas isso não é só. O grande desafio da atualidade não é apenas utilizar os direitos fundamentais como normas que permitem o controle de conteúdo da lei. Os objetivos do Estado, atualmente, dizem respeito a dar efetividade e concretude aos direitos fundamentais (e isso mesmo independentemente da atividade legislativa, se esta se demonstrar insuficiente). A essa nova configuração do Estado, que tem por objetivo levar os direitos fundamentais a sério, alguns autores denominam Neoconstitucionalismo. 4.3 Hermenêutica jurídica no Estado Constitucional 4.3.1 Ideologia dinâmica da interpretação Como consequência do Positivismo Jurídico15 e da ideia, bastante forte na Europa continental após a Revolução Francesa, 16 de que a segurança jurídica (previsibilidade do Direito) seria encontrada no texto da lei, desenvolveu-se aquilo que é chamado de ideologia estática da interpretação. A ideologia estática da interpretação sustenta que o interprete (no caso do processo, o juiz) não cria o Direito – já que o Direito é criado pela lei, e apenas por ela. Assim, ao interpretar a lei, o juiz está apenas revelando o conteúdo do direito que está subjacente ao texto da lei. A ideologia estática da interpretação, contudo, está em desuso na Europa continental há pelo menos meio século, tendo cedido lugar à ideologia dinâmica da interpretação. Esta compreende que o intérprete (para o que nos 15 Veja-se o vídeo Positivismo Jurídico em Cinco Passos, do canal Direito sem Juridiquês. 16 Veja-se o vídeo “Common law e civil law” – aprendendo Direito com o Rei Artur e com Napoleão Bonaparte, do canal Direito Sem Juridiquês. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 38/148 interessa, o juiz) cria, sim, o Direito. Na verdade, o mais correto é dizermos que o juiz reconstrói o Direito. Ou seja, o Direito é o resultado do trabalho conjunto do Poder Legislativo com o Poder Judiciário. E a ideologia dinâmica da interpretação compreende que o intérprete (juiz) reconstroi o Direito a partir da consideração da diferença entre texto legislativo e norma jurídica. O texto legislativo, assim, é aquilo que está escrito na lei. A norma jurídica, por sua vez, é consequência da interpretação que é realizada sobre o texto legislativo. Como quem realiza a interpretação é sempre o intérprete (juiz), segue-se que o intérprete cria (reconstrói) o Direito. Ideologia dinâmica da interpretação Texto legislativo (produzido pelo Poder Legislativo) ≠ Norma jurídica (resultado da atividade do intérprete – Poder Judiciário) Esse assunto será melhor aprofundado na Lição 7, mais precisamente nos item 7.2 (abaixo). 4.3.2 Técnicas decisórias do controle de constitucionalidade No Estado Constitucional, a interpretação da lei a partir da Constituição é fundamental para a construção e aplicação do Direito. Na verdade, uma grande ferramenta de construção do Direito é a interpretação constitucional. A todo o momento, o texto constante nas leis aprovadas pelo Poder Legislativo está sendo considerado a partir da Constituição e as normas jurídicas vão sendo reconstruídas pelo Poder Judiciário. TEORIA GERAL DO PROCESSO Carlos Eduardo Rangel Xavier 39/148 Exatamente por isso, considerarmos as técnicas decisórias do controle de constitucionalidade contemporâneo é fundamental para compreendermos o impacto do constitucionalismo sobre o processo civil e a forma como o Poder Judiciário reconstrói o direito a partir do texto da lei e da Constituição. 4.3.2.1 Interpretação de acordo com a Constituição A “interpretação de acordo” com a Constituição está dentro da interpretação literal, ou gramatical, de um texto legislativo. Ela ocorre quando o texto, em sua literalidade, tem mais de um significado possível, e estes dois significados são compatíveis com a Constituição.
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