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46 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica VULNERABILIDADE FAMILIAR E ACONSELHAMENTO PASTORAL VULNERABILITY FAMILY AND PASTORAL COUNSELING José Neivaldo de Souza.1 RESUMO São muitos os desafios colocados à família contemporânea. O presente artigo traz uma reflexão acerca desses desafios, porém submetendo-os à orientação cristã. Seu objetivo principal é levar o leitor a questionar a realidade familiar, os conflitos existentes no seu interior e pensar novas saídas. O método consiste em trazer à tona a realidade da família hoje, modelos e conflitos; depois, enxergar a família como vulnerável e, à luz da Palavra de Deus, buscar luzes que iluminam os seus passos; por último, trazer dicas práticas àqueles que se colocam à disposição nesse campo pastoral. Palavras-chave: Família; crise; terapia; Jesus; harmonia. ABSTRACT There are several challenges facing today´s family. The present article provides reflection on these issues, however, submitting them to the Christian orientation. Its main purpose is to lead the reader to discuss the reality of the family, the existing inner conflicts, and search for new solutions. The method consists in bringing the family issues to light, models and conflicts; seeing its vulnerability and searching ways to face the challenge in the light of the word of God. Finally, providing basic tips to those who put themselves at the disposal of the pastoral care work. Keywords: Family; crisis; therapy; Jesus; harmony. 1 José Neivaldo de Souzaé mestre em filosofia e doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma – Itália. Mestre em psicologia clínica com concentração em psicanálise. É professor da FTBP (Faculdade Teológica Batista do Paraná): pós- graduação e mestrado em Teologia e FEPAR (Faculdade Evangélica do Paraná). E-mail: Neivaldo.js@gmail.com. 47Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 Introdução O filósofo Hans Jonas, parafraseando Kant, nos deixou um imperativo moral, fundamental no debate sobre a vida futura e o agir no mundo hoje: “Age de tal maneira que o efeito das tuas ações não coloque em risco a possibilidade de vida no futuro”. No século XVIII, Immanuel Kant, filósofo alemão, à luz do Iluminismo, percebera que há, no ser humano, tão certo como o céu estrelado, uma lei moral ou um imperativo categórico que cobra dele um “agir” local e um “pensar” global. Nas palavras de Kant: “age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se mediante tua vontade a lei universal da natureza”2. É nessa direção que Jonas nos convida a caminhar. Para esse filósofo, há dois problemas éticos dignos de serem pensados globalmente e praticados localmente: a vulnerabilidade da existência e o cuidado com a vida. Quanto à vulnerabilidade da existência, entramos no século XXI com o sentimento de que a existência, as pessoas e os valores essenciais para uma vida feliz são relativos. Esse sentimento se mostra na expressão de Bauman ao tratar da “vida líquido- moderna”. Segundo ele, tudo é tratado como descartável, e isso é retratado na produção do luxo e do lixo: “livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las”. Segundo sua percepção, e nos parece bem sensata, vivemos em tempos onde o cidadão perdeu a capacidade de esperar devido à ideologia do “imediatismo”. A lei do mercado é esta: produção e consumo imediatos: A sobrevivência dessa sociedade e o bem-estar de seus membros dependem da rapidez com que os produtos são enviados aos depósitos de lixo e da velocidade e eficiência da remoção dos 2 Cf. trad. MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: JZE, 2000, p. 121. 48 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica detritos. Nessa sociedade, nada pode ter permissão de se tornar indesejável. A constância, a aderência e a viscosidade das coisas tanto animadas quanto inanimadas, são os perigos mais sinistros e terminais, as fontes dos temores mais assustadores e os alvos dos ataques mais violentos.3 Nesta direção, o bem-estar físico, psíquico e espiritual exige respostas imediatas e, se uma não serve, passamos à outra, etc. Entramos numa dinâmica onde tudo o que diz respeito à vida é “vulnerável”: os dogmas religiosos, as relações sociais e familiares, a “normalidade” psíquica e a natureza. Quanto ao cuidado com a vida, devido ao real que invade, o que nos resta é uma ética que cultive e insista na “fortaleza” dos valores e das coisas. Sob a orientação bíblica é possível encontrar luzes para uma vida saudável e comprometida. A produção de sentido deve sobrepor à produção do lixo. São vários textos, do Primeiro e Segundo Testamentos, nos levam a uma reflexão séria sobre a existência e a melhor forma de viver. A partir desses pressupostos, perguntamos: e a família, como vai? Enquanto núcleo social ela sofre os impactos da “modernidade- líquida”. Haverá uma ética capaz de resgatar ou fortalecer valores antigos, mas essenciais à convivência familiar? Urge uma ética do cuidado capaz de transformar o ser humano e suas relações. O filósofo Albert Camus entendia que a melhor ação do pensamento é o pensamento em ação. Dizia: “um pouco de pensamento afasta da vida, mas muito pensamento retorna a ela” e “só há uma ação útil, aquela que recriaria o homem e a terra”.4 Uma ética do cuidado versa sobre a vulnerabilidade da vida e busca, de forma 3 BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pp. 8-9. 4 Cf. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de janeiro: BestBolso, 2010, p. 23. 49Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 responsável, pistas e novas perspectivas para recriá-la. É preciso garantir às gerações futuras o direito não só de existir, mas de ser feliz. Pode a felicidade se reduzir ao bem-estar físico? Como a bíblia pode ajudar na formação de consciência crítica hoje? Como orientar bons terapeutas para o trato com as dores e as dificuldades familiares? São questões pertinentes a serem pensadas aqui. O cuidado com a família aparece nos evangelhos através do cuidado com as pessoas. São elas que constituem, não só a família humana, mas a família de Deus neste mundo. 1. Vulnerabilidade familiar: uma realidade a ser observada Há famílias na cidade e no campo, ricas e pobres, tecnologicamente instruídas e analfabetas, com muita ou pouca experiência de vida, etc.. Todas vulneráveis, pelo fato de viverem numa sociedade que se orgulha de dizer-se “líquido-moderna”. Cercada de todo lado por problemas psíquicos, sociais e religiosos, a família se vê diante de grandes desafios e, muitas vezes, sem saber o que fazer em relação a questões importantes da vida como: origem da vida, aborto, eutanásia, reprodução em vitro e manipulação de embriões. Como pensar a família a partir da vulnerabilidade e o cuidado? Que ações podem favorecer valores como: autoridade, segurança e diálogo? Há uma crise generalizada no que se refere às instituições responsáveis por garantir aos cidadãos, no campo individual e social, mais saúde, educação e segurança. A família, entre estas instituições de valores, se encontra aí, sob uma ideologia utilitarista, brutal e inumana. Muitas vezes, o que deveria ser lugar da acolhida e de formação de pessoas, muitas vezes se torna 50 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica lugar de preconceito e abandono. As modernas tecnologias têm provocado conflitos de gerações, e as relações familiares vêm sofrendo bombardeios diários, principalmente no que tange a questões de autoridade. Não podemos mais afirmar que há um só modelo de família e que os conflitos são sempre os mesmos. Modelosdiversos e conflitos também diversos. Uma jornalista da Agência Brasil, Débora Zampier,5 há dois anos, constatara que os problemas familiares estão entre os conflitos mais acirrados na sociedade brasileira. Nessa época, segundo ela, tais conflitos, juntamente com problemas no trabalho e com os vizinhos, respondiam por 52% entre os problemas mais graves no Brasil. Sua pesquisa, acompanhada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revelava que, entre os conflitos ligados à família, ao trabalho e aos vizinhos, a primeira liderava o ranking com 24,86%. Boa parte deles é encaminhada à justiça, apesar da maioria não gostar desse procedimento. Hoje os números não são diferentes. Entre as crises familiares, em geral, constatamos que a de autoridade, seja ela materna ou paterna, é mais comum. Como anda a autoridade dos pais ou tutores em relação aos filhos, gerados ou adotivos? Na família, a autoridade, não necessariamente é exercida pelos pais, na falta deles, os tutores constituídos exercem esse papel. Os censos demográficos apresentam uma crise na família tradicional e ressalta o surgimento de um novo modelo de família: 5 Cf. http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-31/problemas-de-familia-sao- conflitos-mais-comuns-enfrentados-pelo-cidadao-mostra-ipea acesso 27\09\2013. 51Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 “tentacular”. São famílias, monogâmicas, cuja autoridade se limita a apenas um adulto ou a uma liderança compartilhada, que tem como desafio a convivência com pessoas diferentes, vindas de outras famílias. Segundo a psicanalista Maria Rita Khel6, o surgimento desse novo modelo se dá devido a algumas razões: o mercado; o achatamento de salário dos homens e as oportunidades de trabalho para as mulheres; a independência econômica feminina e a perda de poder aquisitivo dos homens; a expansão dos meios de comunicação e, por fim, observa Maria Rita Kehl, o que foi mais decisivo para minar o núcleo da família tradicional patriarcal é a instabilidade conjugal: “a democratização das técnicas anticoncepcionais possibilitou às mulheres diversificarem suas experiências sexuais, desvinculando a sexualidade feminina dos avatares da procriação. As mulheres passaram a incluir a satisfação sexual entre os requisitos para a escolha do cônjuge”. O modelo “tentacular”, no que diz respeito à autoridade, muitas vezes não deixa claro quem é o adulto responsável pela provisão e educação da criança, isso por motivos diferentes: seja por sentimento de culpa por não ter dado à prole o direito de viver numa família “harmoniosa” e “feliz”, sob os cuidados do pai e da mãe ou, seja pelo fato de não querer repetir os “erros” da primeira união e, por isso, deixam à deriva a lei e os limites a serem colocados aos filhos. Ocorre também que os pais da antiga união têm o direito de conviver com seus filhos e acabam influenciando, ainda que indiretamente, as relações familiares do novo lar. 6 Cf. Entrevista à Família Cristã, ano 77; n.905. São Paulo: Paulinas, maio 2011, p. 19. 52 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica Também, em relação às novas descobertas científicas, a “função paterna” enfrenta desafios relacionados à maternidade, ao controle de natalidade, à fertilização in vitro, etc. Novas descobertas científicas e tecnológicas ajudam a controlar a maternidade de tal forma que uma mulher pode recorrer a uma produção independente sem ter que conviver com o pai da criança: a mãe se assume como pai. Às vezes, essa confusão de papéis faz com que a autoridade seja tomada de forma radical entre autoritarismo ou anarquismo. A crise de segurança é um dos desafios colocado à família hoje. Não são poucos os filhos que, chegando à maioridade, têm dificuldade em sair de casa para construir sua família. Há uma insegurança lá fora e, muitas vezes, há uma forte ilusão de que dentro da casa dos pais é o lugar mais seguro para estar, pois nada é cobrado, e os pais já não exigem deles como antes. O chamado “ninho cheio”, que muitas vezes expressa o medo dos filhos de se desapegarem financeiramente e emocionalmente dos pais e a falta de autoridade destes em relação aos filhos constituem um grande desafio para a família hoje. Como se não bastasse a insegurança econômica, há a insegurança em relação à violência estabelecida. Estamos ligados 24 horas por dia às notícias, e elas nos chegam em tempo real. Há agressões que chegam via tecnologia e são do tipo psicológico, sexual e moral. A falta de limites colocados em relação à realidade virtual pode colocar em risco a segurança dos filhos já que na internet há a possibilidade do uso indiscriminado de sites de pornografia, pedofilia e incitação ao terrorismo e à violência. A Modernidade trouxe às novas famílias uma moral 53Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 baseada no lucro individual: Adam Smith pensou uma sociedade, primeira a inglesa e depois o resto do mundo, segundo a qual o enriquecimento da nação depende única e exclusivamente do lucro do individuo. A vida tornou-se uma corrida maluca e desenfreada em busca do lucro. Para a Economia Liberal o que importa é não perder tempo: “Time is Money”. Não há mais um momento familiar, os horários para as principais refeições, principalmente nas grandes cidades, quase não existem mais. Cada um cuida de si. Quando não comem fora, vão para a sala de televisão ou para frente do computador. O espaço para o diálogo fica comprometido. Em muitos lares, a mesa de jantar é menor do que a mesa do computador. 2. Busca de orientações a partir de uma hermenêutica bíblica Os valores mudam de acordo com a sociedade e a cultura. Essa realidade se constata em muitos lares: a falta de comunicação e de trocas de experiências entre pais e filhos cultiva uma espécie de individualismo, estabelecendo uma carência de amizade e cumplicidade; uma carência que, muitas vezes, leva à ansiedade e à necessidade de procurar fora o que poderia ser encontrado em casa: a alegria de viver. O desamor pode levar o casal e os filhos a buscarem satisfações no álcool, drogas e outros prazeres que não resolvem o problema da falta. Como sair desta? A Bíblia pode nos indicar saídas para uma vivência mais concreta e harmoniosa? Encontramos textos bíblicos para qualquer situação: angústia, ansiedade, desespero, alegria, gratidão, etc. Entre esses textos encontramos alguns que não só nos ajudam a refletir 54 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica sobre nossas dificuldades e limitações, mas propõem pistas para uma ética da libertação. Uma ética que ajude a transformar vidas no meio familiar e, consequentemente, na sociedade. Deuteronômio (6.5-7) diz: “Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te”. O livro do Deuteronômio, encontrado durante a reforma do templo, sob o reinado de Josias, resgata uma lei antiga, a de Moisés. Esse resgate aponta para o século VI a.C., época de confusão religiosa, corrupção política e moral originada sob o governo de Manassés.7 As famílias israelitas se viam perdidas e inseguras. Haviam perdido a fé em Deus e a esperança no ser humano. Muitas viviam afastadas, vivendo uma moral estranha aos dez mandamentos; inseguras, buscavam em falsas autoridades, políticas e religiosas,um sentido para suas vidas. A reforma do rei Josias foi religiosa e social. Reformou o templo, centralizou o culto em Jerusalém e multiplicou cópias da Torá, as Escrituras, a fim de educar as famílias, segundo a autoridade divina e a tradição judaica. Para o rei, a família israelita só se sustentaria no seguimento das leis de Deus. A certeza dele tinha na base o canto do salmista que diz: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela” (Sl 127.1-2). 7 Cf. KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 24-32. 55Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 Jesus, seis séculos depois de Josias, entendeu a reforma do rei. Ele não quis negar a lei, mas sim dar sentido a ela. Os verbos “renunciar”, “denunciar” e “anunciar” expressam claramente seu ministério. Jesus renunciou ao poder, à riqueza e aos prazeres constituídos como “bons”. A “Boa notícia” sobre Jesus, trazida por Lucas (4.1-22), comunica esta verdade. Diante do diabo (4.1-13), nome atribuído ao tentador ou ao “que divide”, Jesus “renuncia” ao poder, declarando a autoridade de Deus em todos os sentidos. Em seguida, o texto apresenta o início do ministério de Jesus. Ele, sob o “poder do espírito” (4.14-22), ensina nas sinagogas e é ouvido por todos. Na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, Jesus inicia sua missão de “anúncio” sobre o poder de Deus a todos os que são, fisicamente ou espiritualmente, vítimas da exploração e do autoritarismo político e religioso. Ao ler a passagem do profeta Isaías (61.1-2), ele define uma ética, cujos valores não são negociáveis com a morte, mas necessários a uma vida com sentido. Quanto à “denúncia”, não são poucos os textos encontrados. Jesus chama alguns líderes religiosos de “sepulcros caiados”, “víboras”, “hipócritas”. Ao fazer isso, ele, à luz dos profetas, denuncia aqueles que cometem injustiças, tratando-se tanto de pessoas, atos e coisas. A denúncia se dirige principalmente a um moralismo falso que “coa um cisco e deixa passar um elefante”. Jesus viveu numa sociedade em crise: crise de autoridade, como ele mesmo denunciou. Diante dos sacerdotes, escribas e fariseus, Jesus acolhia os mais indefesos e garantia a eles uma fé inabalável e uma esperança mais concreta. A teologia de Jesus era prática. O amor do Pai se traduz em alteridade, e isso o próprio 56 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica Jesus anuncia, recordando o Deuteronômio e os profetas: “Tudo o quanto, pois quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas”(Mt 7.12). Conhecendo o pensamento daqueles que cultivavam um moralismo destruidor e sem perspectiva de futuro, Jesus ensinou: “Todo reino dividido contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá” (Mt 12.25). As atitudes de Jesus nos ajudam a pensar melhor sobre os desafios colocados à família hoje. Jesus veio para unificar, não dividir. Ele chamou os doze apóstolos e, com eles, formou uma nova família com propósito espiritual. Os pais, seguindo o exemplo de Jesus, antes de gerarem ou adotarem seus filhos, devem amá-los, acolhendo seus sentimentos e ajudando-os a solidificar sua identidade.8 Nesse sentido, a autoridade não tem outra função senão a de servir, e o problema da segurança se resolve na alteridade. Uma família, à luz da Palavra Deus, pode pensar suas dificuldades, buscar luzes que iluminam seus caminhos e encontrar saídas inteligentes e valorosas para uma vida feliz. 3. Reinventar a família: uma aposta cristã O novo desafio às famílias está em cuidar para que valores tradicionais de comunhão e partilha não se percam. Uma nova ética que tenha como centro o cuidado leva não só os pais a identificarem os prejuízos, em relação aos filhos e às gerações futuras, mas a dialogarem e trabalharem as dificuldades, principalmente as mágoas. A segurança dos filhos depende da 8 BAKER, Mark w. Jesus o maior psicólogo que já existiu. Rio de Janeiro: sextante, 2005, p. 127. 57Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 autoridade dos pais. Tais atitudes podem ser cultivadas partindo de um diálogo sincero sobre os conflitos e sobre a melhor maneira de lidar com eles. Diante de situações familiares vulneráveis, cabe-nos uma ética do cuidado, entendendo-a como “essencial” à vida. Muitas famílias não conseguem lidar com os conflitos, por isso pedem ajuda a profissionais. A saúde familiar não pode ser fragmentada, mas bio-psíquico-espiritual. Todo profissional deve contemplar essas áreas, pois dizem respeito a um trabalho de salvação. Ao termo “conselheiro”, preferimos o “cuidador” ou terapeuta. A palavra grega therapeuõ coloca o “cuidar” no mesmo sentido de curar e salvar, como lemos nos evangelhos de Lucas (7,3) e João (5,10). O therapeuter, atento ao sofrimento alheio, deve buscar meios para curar e salvar. Seguindo o modelo de Jesus, ele deve, em primeiro lugar, “fazer a luz resplandecer sobre as trevas”. Em outras palavras, “levar o próprio interlocutor a se confrontar automaticamente com sua própria sombra”9 e descobrir que outro mundo é possível. A vida não é alguma coisa a ser resolvida pela informática, mas um “mistério” a ser compartilhado com o outro. O cuidador ou terapeuta deve ser responsável, pois, sob sua orientação, famílias serão reformadas e convocadas a se comprometer com pessoas e assegurar a elas o direito de viver dignamente. Sob a responsabilidade do terapeuta familiar, seguindo os passos de Jesus, está o trazer à tona a função paterna. A autoridade de um adulto, seja pai, mãe ou tutor, precisa ser exercida com amor. Ainda que tenha, por parte dos adultos, crianças e 9 WOLFF, Hanna. Jesus psicoterapeuta. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 28. 58 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica adolescentes, situações de enfrentamento, a autoridade deve ser exercida com amor e responsabilidade, como observa Maria Rita Kehl: “todos os papéis dos agentes familiares são substituíveis. O que é insubstituível é um olhar de adulto sobre a criança, a um só tempo amoroso e responsável”. Há, não só nas igrejas, mas no dia a dia e em fóruns de internet, muitas pessoas desesperadas. Elas pedem ajuda ou buscam orientações para enfrentar determinados problemas. O auxílio terapêutico aqui é fundamental e carece de atenção por parte do terapeuta familiar. Algumas dicas são bem-vindas: Em primeiro lugar: a escuta. O terapeuta deve-se colocar à pessoa, mais do que às suas dificuldades. Ela não se confunde aos seus problemas, pois estes podem ser eliminados, aquela não, deve ser compreendida e resgatada. O olhar do terapeuta, a exemplo de Jesus, é de compaixão: ver e ouvir aquele que sofre sem qualquer tipo de preconceito ou prejuízo. Há alguns casos em que a pessoa já elimina 30% dos problemas quando ouvida. Em segundo lugar: análise. A partir do momento em que alguém estabelece um auxiliador, essa relação vem a priori carregada de autoridade e confiança. Esse momento deve ser aproveitado, e os problemas colocados submetidos a uma análise. Sem julgamento, ela deve ser bem objetiva a fim de ajudar a pessoa a ver seus problemas à distância. Em terceiro lugar: o diálogo. Depois de uma análise individual, é importante convocar a família para uma reflexão. É a família que dará continuidade ao trabalho. Numa reunião, os reais problemas de relacionamento virão à tona; a soluçãodos problemas será proposta, à luz da Palavra de Deus, e repensada de forma 59Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 sistêmica em diálogo com as pessoas que ali estão. O terapeuta é um conciliador e não um juiz; por isso, é importante que estabeleça uma metodologia de trabalho com passos bem precisos: 1. como conciliador, o terapeuta deve estabelecer um clima de acolhida e evitar situações de brigas e revanchismo entre os membros da família; 2. mostrar novas possibilidades nas relações: a verdade não é posse desta ou daquela pessoa, mas circula no diálogo e leva a um entendimento geral; 3. cultivar a certeza de que a pessoa é maior do que seus problemas. A libertação ou cura, muitas vezes, se dá não na eliminação dos problemas, mas em lidar com eles. Uma ética que tenha no centro o cuidado é capaz de refletir a vulnerabilidade familiar trazendo à luz as sombras e identificar, sob a orientação cristã, situações que dignificam a vida humana. São muitos os desafios colocados à família, porém centramos naqueles mais comuns e que precisam de mais atenção que são os problemas ligados à autoridade, à segurança e ao diálogo. Conclusão Na mitologia grega, caía sobre Hermes a responsabilidade de transmitir aos humanos a sabedoria dos deuses e exigir destes que vivessem segundo a semelhança divina: “quer viver bem, então compreenda o que os deuses querem para você e transmita, de forma clara, esta novidade aos familiares, para que, com você, eles possam também compreender, comunicar e comungar das verdades divinas”. Esta narrativa se encontra como arquétipo em grandes 60 José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 | Via Teológica religiões, cujas tradições, orais ou escritas, delinearam modelos de família. No Cristianismo, por exemplo, a partir dos evangelhos, a família humana deve viver segundo a vontade divina, a qual Jesus é portador. Por ele, compreendemos o amor de Deus e podemos, como ele, transmitir e viver esse amor em comunhão com os irmãos. Nossa reflexão procurou abordar a realidade da família hoje e, à luz da Palavra de Deus, repensar novas soluções para novos desafios ligados à falta de autoridade dos pais, à insegurança e às dificuldades de confiança e diálogo na vida familiar. Esses desafios são antigos e estão presentes em famílias cristãs e não cristãs. A partir deles, pode-se pensar uma ética que tenha no centro o cuidado e a responsabilidade com as vidas. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dizionario di Filosofia. Torino: TEA, 1971. BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BAKER, Mark w. Jesus o maior psicólogo que já existiu. Rio de Janeiro: sextante, 2005. BÍBLIA SHEDD. São Paulo: Vida nova; Brasília: SBB, 1997. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de janeiro: BestBolso, 2010. KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio. São Paulo: Paulinas, 2006. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia. Rio de Janeiro: JZE, 2000. WOLFF, Hanna. Jesus psicoterapeuta. São Paulo: Paulinas, 1979. 61Via Teológica | José Neivaldo de Souza, Vol. 14, n.28, dez.2013, p. 46 - 61 Revista: Família Cristã. Ano 77 n.905 maio 2011. São Paulo: Paulinas. Sites: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_cont ent&view=article&id=1746&secao=255, acesso 25\09\2011. http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-31/problemas- de-familia-sao-conflitos-mais-comuns-enfrentados-pelo-cidadao- mostra-ipea, acesso 27\09\2013. http://pt.wikipedia.org/wiki/Lewis_Henry_Morgan. Artigo recebido em: 30 de setembro de 2013 Artigo aceito em: 20 de novembro de 2013
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