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Toxicomania e Adolescência A transgressão do mito do herói

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3 
TOXICOMANIA E ADOLESCÊNCIA: A TRANSGRESSÃO DO MITO 
DO HERÓI 
 
Fabio Massao Yabushita 
www.psicologiajunguiana.psc.br 
 
___________________________________________________________________ 
RESUMO 
Este artigo aborda o uso abusivo de drogas na adolescência como uma forma 
de transgressão do mito do herói. Assim, o mito, enquanto forma simbólica de 
descrever o crescimento e autonomia do ego, deixa de ser vivido em sua plenitude, 
pois o consumo excessivo de drogas, em um contexto de toxicomania, impede a 
construção do processo de autonomia e consciência de si, elementos necessários 
para o atendimento das demandas da realidade, que são, em última instância, uma 
condição para o ingresso na vida adulta. Na primeira parte será abordado o 
significado do mito do herói e sua relação com os rituais de passagem, seguido de 
uma análise psicológica deste processo, e, finalmente, a forma tóxica como o sujeito 
se relaciona com as drogas, considerando-se o contexto deste mito. 
 
___________________________________________________________________ 
PALAVRAS-CHAVE: Mito do herói, adolescência, drogas, toxicomania 
___________________________________________________________________ 
 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
A questão das drogas, entendidas aqui como aquelas substâncias psicoativas 
que interferem no funcionamento do sistema nervoso central, produzindo alterações 
de comportamento, humor e cognição, é tão antiga quanto à própria história da 
humanidade. 
Desde as épocas mais primitivas, diversos povos de diferentes épocas e 
lugares fizeram usos destas substâncias, principalmente para fins religiosos e 
ritualísticos, mostrando que havia nas drogas uma função que tornava o seu uso 
aceitável, ou mesmo necessário, dentro de um contexto maior. 
Com o advento da sociedade moderna, o uso destas substâncias foi desviado 
do seu propósito original, passando a ser empregado para outros fins, sobretudo 
como um meio para obtenção de prazer. 
 4 
Concomitante ao aumento das motivações para o uso das drogas, que se 
expandiram para além do contexto ritualístico ou religioso, foi a crescente 
preocupação com as implicações médicas, sociais e psicológicas relacionadas ao 
consumo das mesmas. Assim, a partir do século XIX as drogas começaram a se 
tornar um problema de saúde pública e objeto de pesquisa com implicações 
médicas, morais e legais. 
Por ser uma questão complexa, cuja abrangência resiste a abordagens 
meramente moralistas ou biologizantes, que consideram apenas os efeitos nocivos 
das drogas, fomentando discursos que segregam e patologizam o indivíduo que faz 
uso das mesmas, é importante buscar novas formas de se olhar para algo que é tão 
antigo, e ao mesmo tempo tão atual, quanto o homem. 
Para isso, podemos nos servir de um mito, o mito do herói, que em termos 
psicológicos representa a formação da consciência e da autonomia do eu. 
Este mito está estreitamente relacionado com a adolescência, época de 
significativas mudanças corporais e psicológicas que tornam o indivíduo apto a 
exercer sua sexualidade de forma genital, entre outras mudanças igualmente 
importantes. 
Assim a adolescência, termo este que significa “crescer”, “fazer-se grande”, 
embora seja uma construção social e cultural, cuja origem deve-se ao discurso da 
modernidade ao visar à preparação do sujeito para o ingresso em uma sociedade 
tecnicamente desenvolvida, será considerada aqui como um período de transição 
entre a vida sexual infantil e a adulta, quando a sexualidade assume o caráter de 
genitalidade propriamente dita, ou seja, quando a pulsão sexual se coloca a serviço 
da função reprodutora. 
Como mostram os ritos de passagem, a transição para a vida adulta implica 
no reconhecimento da capacidade de procriação e na necessidade de se prestar, 
através do trabalho, a necessária contribuição para o sistema produtivo da 
coletividade. Além disso, os ritos também servem para inserir o sujeito no mundo 
simbólico das crenças e tradições, que constituem o patrimônio cultural e religioso 
de seu povo. 
No contexto do mundo civilizado, é justamente nesta época de transição entre 
a infância e a vida adulta que surgem sentimentos conflitantes relacionados à perda 
do corpo infantil e dos pais idealizados, e a descoberta de si mesmo como alguém 
distinto e separado do outro. 
 5 
Este é um período crítico onde há, reconhecidamente, uma grande incidência 
de casos de uso e abuso de drogas, que muitas vezes levam a quadros graves de 
dependência e toxicomania. 
A abordagem desta questão através do mito, entendido aqui como afirmações 
sobre a realidade psíquica, ou “padrões narrativos que dão significado a nossa 
existência” (MAY, 1991, p.3), pode subsidiar, de maneira diferenciada, o 
atendimento clínico a este público, que se constitui como uma demanda significativa, 
porém, resistente ao tratamento. 
O que este artigo pretende mostrar é que o adolescente, ao fazer uso 
compulsivo da droga, exibe uma recusa inconsciente em construir o próprio eu, 
transgredindo assim o mito do herói, pois, ao abdicar da busca que o levaria ao 
encontro e descoberta de si mesmo, ele fica impossibilitado de fazer a passagem 
para a vida adulta. 
A conseqüência deste impedimento será a permanência no estado infantil, 
mostrando assim a sua incapacidade em lidar com as demandas da realidade, que 
incluem, além da capacidade de exercer a sexualidade de forma genital, o laço 
social com o outro, e a aceitação da falta enquanto impossibilidade de satisfação 
absoluta dos seus desejos. 
 
 
2. O MITO DO HERÓI 
 
 Temos apenas de seguir a trilha do herói. E lá, onde temíamos 
encontrar algo abominável encontraremos um deus. E lá, onde 
esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde 
imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa 
própria existência. E lá, onde esperávamos estar a sós, estaremos 
na companhia do mundo todo (CAMPBELL, 1990, p.137). 
 
 
Em sua estrutura básica o mito do herói narra um processo de afastamento 
ou isolamento do indivíduo, seguido da busca de algo de grande importância para 
ele ou para seu povo, e posterior retorno ao seu local de origem. Este padrão 
mitológico também aparece em forma de sonhos e fantasias originadas na estrutura 
inconsciente da psique. 
Segundo Henderson (1964, p. 110): 
 6 
 
O mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o 
mundo. Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, 
na Idade Média, no Extremo Oriente e entre as tribos primitivas 
contemporâneas. Aparece também em nossos sonhos. Tem um 
poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos aparente, 
uma importância psicológica profunda. 
 
O significado psicológico subjacente a este mito é a formação do ego e da 
consciência, marcando assim a transição da infância para a vida adulta. Ao término 
deste processo o indivíduo estará preparado para assumir o seu lugar na sociedade 
e enfrentar as vicissitudes da vida. Implicitamente o mito traz também a idéia de 
maturidade psico-sexual, representada pelo encontro ou resgate de alguém do sexo 
oposto, com quem é consumado o tão esperado casamento. 
Independentemente de sua forma de manifestação, o mito implica em um 
processo composto de três fases: separação- iniciação- renascimento (ou retorno). 
A separação aparece em forma de afastamento do seio familiar ou social, 
quando o herói precisa deixar seu local de origem para sair em busca de algo, 
geralmente difícil de ser encontrado. 
No Sidarta, de Hermann Hesse (2006, p.25), este momento da partida foi 
assim descrito pelo autor:Foi quando o pai se deu conta de que Sidarta já não se achava junto 
dele, nem no torrão natal, pois que acabava de separa-se de ambos. 
O pai colocou a mão no ombro do filho. 
-Hás de embrenhar-te no mato- disse- para que possas ser um 
samana. Se encontrares a felicidade no mato, volta e ensina-me. Se 
encontrares desilusões, procura-me novamente e junto sacrificar-
nos-emos aos deuses. Agora vai-te. Abraça tua mãe e dize-lhe 
aonde te encaminhas. 
 
Este padrão de acontecimento, apesar de infinitas variações, repete-se 
indefinidamente no espírito humano, marcando o momento da partida, ou seja, a 
separação. 
 Assim: 
“O horizonte familiar da vida foi ultrapassado; os velhos conceitos, ideais e 
padrões emocionais, já não são adequados; está próximo o momento da passagem 
por um limiar” (CAMPBELL, 1997, pg. 32) 
 
 
 7 
 Este momento de separação também se dá através de algum ato de 
desobediência, contrariando a ordem estabelecida. 
O mito de Prometeu, personagem que contrariou a ordem dos deuses 
roubando-lhes o fogo para entregar aos homens, mostra este ato de desobediência, 
que neste caso resultou na conquista do fogo, ou seja, a aquisição da consciência. 
Outro exemplo bastante ilustrativo, e de profunda implicação psicológica, é o relato 
bíblico da expulsão do Paraíso, onde o Paraíso, obviamente, é o estado infantil de 
servidão e dependência do Pai onipotente. 
 Segundo Campbell (1990, p.138): 
 
“Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem da 
auto- responsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. 
Esse é o périplo universal do herói – ele abandona determinada 
condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição 
mais rica e madura” 
 
 Após a separação inicia-se o processo de transformação, ou iniciação, que é 
a aventura propriamente dita, onde o indivíduo será submetido a todo tipo de provas 
e obstáculos. 
 Neste percurso o herói toma conhecimento de sua força e desperta suas 
habilidades para poder alcançar seus objetivos. Esta é a fase das provas e tarefas 
que precisam ser cumpridas como condição para a autonomia e crescimento do ego, 
como mostra a epopéia de Ulisses, que no fim de sua longa jornada retorna a Ìtaca, 
seu local de origem, e a lendária busca pelo Graal, exemplos desta façanha heróica 
que visa as mais altas realizações. 
 Em termos pictóricos, a fase da separação está fartamente representada na 
luta do herói com o dragão. 
 Segundo Henderson (1964, p.120), “a batalha entre o herói e o dragão é a 
forma mais atuante deste mito e mostra claramente o tema arquetípico do triunfo do 
ego sobre as tendências regressivas”. 
 Estas tendências regressivas referem-se à incapacidade do ego em assumir 
responsabilidades, em favor de um estado de dependência que impede o pleno 
desenvolvimento do sujeito. 
 Neste sentido, regredir é permanecer no estado infantil, alimentando uma 
falsa imagem de si que pode tanto menosprezar quanto distorcer narcisicamente os 
limites do ego, atribuindo-lhe um valor ou importância que não corresponde aos 
 8 
dados da realidade. 
Embora o herói obtenha êxito em sua busca, e por é isso é um herói, ele 
inevitavelmente passa por situações de quase morte, onde é engolido por um 
monstro ou tem suas forças esgotadas. 
Este é o momento crítico da aventura, quando a derrota parece iminente. Aqui 
o herói deve obrigatoriamente reconhecer suas limitações e vulnerabilidade, 
mantendo aquilo que os gregos chamam de aidos, ou seja, a capacidade de se 
reverenciar algo maior, acompanhado do “sentimento de vergonha quando estes 
poderes são desacatados” (EDINGER, 1995, p. 58). 
Manter esta capacidade de reverência diante de algo maior é fundamental 
para o indivíduo prosseguir em sua jornada, sem se deixar dominar pelos seus 
poderes ou desejos. 
Caso contrário, o herói pode não retornar para casa, passando a viver uma 
pretensa superioridade da qual não irá abrir mão. É quando ele se torna vítima da 
inflação de seu ego, acreditando poder desfrutar para sempre de seus dotes e 
proezas, de forma narcísica e vaidosa. 
O êxtase vivenciado por conseguir cumprir com suas metas e objetivos pode 
levá-lo à ruína. Assim, ao fixar residência naquilo que Campbell (1997) chamou 
“eterna ilha da sempre jovem Deusa do Ser Imortal”, uma forma de designar o objeto 
da conquista, o herói pode se recusar a voltar para o convívio de seu povo. Os 
valores e virtudes adquiridos ao longo da jornada são perdidos, e o que deveria ser 
aprofundamento no conhecimento de si mesmo torna-se soberba e luxúria, 
impossibilitando o relacionamento autêntico com o outro. O laço social não é 
consumado. 
É a hybris da consciência, ou seja, a confiança excessiva no próprio eu e o 
desejo desmedido de satisfazer as vontades pessoais, sem o devido 
reconhecimento dos próprios limites, que leva a esta recusa. 
Um exemplo clássico da hybris está retratado no mito de Ícaro, que, tomado 
pelo ímpeto de voar, tentou alcançar o sol, contrariando as orientações de seu pai, 
até que suas asas de cera se derreteram, levando-o a precipitar-se violentamente 
contra o mar. Alcançar o sol era um desejo inflado, uma forma de narcisismo 
primitivo que não leva em conta a realidade como algo que se interpõe contra este 
desejo que busca a satisfação a todo custo. 
 9 
Pode acontecer também do indivíduo nem mesmo atender ao chamado para 
a aventura, permanecendo paralisado em seu desenvolvimento, como acontece com 
aquelas pessoas que resistem em literalmente ‘sair de casa’. Nos mitos e nas 
fábulas estas pessoas aparecem aprisionadas, ou em estado de sono profundo, à 
espera de um despertar, mostrando o quanto estão alienadas do mundo, imersas 
em seu estado de inconsciência (é como diz a música Stairway to Heaven, da banda 
inglesa Led Zeppelin, “to be a rock and not roll”, ser uma pedra e não rolar, em 
tradução livre). 
Todo este desenvolvimento presente no mito do herói, que envolve o 
processo de separação- iniciação- retorno, também está representado nos ritos de 
passagem que marcam a transição da infância para a vida adulta. 
O’ Kane (1994) refere-se a este processo presente nos ritos como separação, 
fase liminar, reintegração. 
Nos ritos, durante a cerimônia, as pessoas que estão atravessando a fase 
liminar são afastadas da rede social e cultural do seu povo. 
Neste estágio o noviço deve respeitar tabus, aprender uma linguagem secreta 
ou entrar em contato com os espíritos. Há uma perda temporária da identidade ou 
do nome original. 
Antes de retornar ao convívio com os demais, o noviço vive uma condição 
análoga a da criança por estar na condição de aprendiz, sujeitando-se a novos 
referenciais simbólicos. Neste processo ele é exposto ao perigo real, através do qual 
o aprendizado é mostrado e vivido concretamente. 
È o que ocorre, por exemplo, com os índios Algonquinos, do Canadá, que em 
certo momento da vida são enjaulados e isolados dos demais membros da tribo para 
ingerirem uma substância alucinógena que provoca profundas alterações 
perceptivas. O objetivo desta prática é fazer com que se esqueçam de todas as 
lembranças relativas à infância para tornarem-se adultos. 
Outro exemplo é o dos índios Matis, da floresta amazônica, que injetam 
veneno nos jovens neófitos, provocando profundo mal-estar, para depois espancá-
los com o intuito de dar-lhes força e resistência. Este processo ajuda a torná-los 
aptos a caçarem e contribuírem com o sustento da tribo. 
Entre as finalidades dos ritos que instauram a entrada na vida adulta, 
marcando assim a passagem para uma nova posição social, está a inserção do 
sujeito nos costumes e tradições de seu povo. Ao se tornar adulto, que neste10 
contexto significa ser capaz de produzir, casar e procriar, é seu dever contribuir para 
a subsistência e manutenção da coletividade, reproduzindo seu sistema de valores e 
crenças. Para o herói é o momento de retornar para casa, retorno este que significa 
o reconhecimento de si como alguém distinto do outro, em um contexto social e 
cultural que regula as relações humanas, e que permite o endereçamento a este 
outro por meio da linguagem. 
T. S. Eliot (apud BREHONY, 2010) descreve assim este momento: 
“Não cessaremos de explorar 
e o final de toda exploração 
será chegar aonde começamos 
e conhecermos o lugar pela primeira vez”. 
 
 
2.2. O DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO REPRESENTADO PELO MITO DO 
HERÓI 
 
Como já foi dito, o mito do herói, assim como os ritos de passagem, 
representa a transição da infância para a vida adulta, referindo-se, portanto, ao 
desenvolvimento psicológico do indivíduo. 
Antes que este processo se inicie, dando início a formação de um ego que 
torne o indivíduo apto a lidar e enfrentar as demandas da realidade, de forma 
consciente e reflexiva, a vida psicológica restringe-se a um estado de inconsciência 
que não distingue mundo interno e externo, eu e outro, pois a ausência da 
consciência propriamente dita impede a distinção destes elementos. 
Desse modo: 
 
A psique da criança parece operar como uma inteireza relativamente 
indiferenciada, um padrão de respostas instintivas, integradas num 
campo abrangente, onde a separação sujeito-objeto no sentido 
adulto ainda não tem nenhuma validade (WHITMONT, 1995, p.236) 
 
 
Ainda segundo o autor: 
“No estado de identidade primitiva e infantil, há uma total imersão na mãe, na 
família, no clã, no grupo, na tribo e na natureza” (WHITMONT, 1995, p. 241) 
O mito do herói refere-se justamente a superação deste estágio de 
 11 
identificação, principalmente com as figuras parentais, levando o indivíduo a adquirir 
gradualmente maior consciência de si, desde que supere esta identidade primitiva e 
infantil, e aceite que os seus desejos não poderão ser plenamente satisfeitos, como 
acreditava acontecer anteriormente, pois o encontro com a realidade implica na 
impossibilidade da satisfação plena e irrestrita dos impulsos instintivos. 
Uma melhor compreensão sobre este mito, considerando-se a sua estrutura 
básica de separação, iniciação e renascimento, pode ser buscada no complexo de 
Édipo, conceito fundamental na psicanálise, cuja terminologia foi extraída do mito de 
Édipo, herói da mitologia grega que cometeu o que se pode chamar de os crimes 
mais repudiados pelo ser humano, o incesto e o parricídio. 
O complexo de Édipo é uma organização estruturante do psiquismo humano, 
e conseqüentemente da personalidade do sujeito, que ocorre entre os 2 e 5 anos de 
idade, com uma reedição na adolescência, por volta dos 12 anos, quando se inicia o 
processo de entrada do sujeito na vida adulta. 
Para entender este processo, que de algum modo é inerente a todo ser 
humano, devemos partir da premissa de que toda criança se origina de duas figuras: 
a figura do pai e a figura da mãe. Assim todo sujeito estará submetido a uma 
triangulação formada por ele, o sujeito, pelo pai e pela mãe, de tal modo que estes 
elementos sempre estarão presentes nesta organização. 
Antes desta triangulação, a criança mantém uma relação predominantemente 
dual com a mãe, sem uma participação efetiva por parte do pai, que é sentido como 
uma presença velada. Neste ponto do desenvolvimento, chamado de pré-edípico, há 
uma íntima relação erótica com a mãe que proporciona uma satisfação, cujo prazer 
equivale ao incesto adulto. (KUSNETZOFF, 1982) 
Em seu estágio inicial de formação, antes da entrada do pai na triangulação 
edípica, o aparelho psíquico é dominado pelo id, o pólo psicobiológico da 
personalidade formado basicamente por instintos e pulsões (o componente psíquico 
do instinto) que demandam satisfação, uma forma de aliviar as tensões internas de 
ordem fisiológica, como a fome, através de um objeto que as satisfaça. 
Em termos funcionais o id, que topologicamente equivale ao inconsciente, é 
dominado pelo princípio de prazer, a tendência do funcionamento psíquico de buscar 
satisfação imediata. O objeto que irá atender a essas necessidades de satisfação é 
a mãe, com quem a criança mantém uma relação fusional que pode ser 
caracterizada como incestuosa. 
 12 
Este estado de fusão e completude com o outro será sucedido pela entrada 
da figura do pai nesta relação, que deixará de ser uma relação dual entre mãe e filho 
para se tornar uma relação triangular, onde o sujeito desenvolverá sentimentos 
hostis em relação ao progenitor do mesmo sexo e atração erótica pelo progenitor do 
sexo oposto. 
 Com a participação do pai, que trará consigo a marca da lei através da 
proibição do incesto, o sujeito será obrigado a renunciar ao seu estado de 
completude com a figura materna, esse objeto único e onipresente, sempre pronto a 
satisfazer seus desejos e necessidades mais prementes. 
 Através desta interdição o sujeito é inscrito na cultura, na ordem simbólica, 
onde se reconhece como um ser singular no social. Isso torna possível o 
relacionamento com o outro, dentro de um contexto social e cultural, permeado pela 
linguagem e pelo discurso simbólico (sem estas restrições o ser humano viveria 
como os animais, dando livre curso aos seus impulsos instintivos). 
Quando a criança entende que os seus desejos não serão satisfeitos, pois 
isto é da ordem do impossível, ela se vê obrigada a restringir os impulsos oriundos 
do id, que no início da vida formaram a base do seu funcionamento psíquico. Assim, 
caberá ao ego administrar a tensão entre as pulsões que demandam satisfação e as 
restrições que lhes são impostas por meio da proibição. 
 Com a estruturação do aparelho psíquico, formado pelas instâncias do id, ego 
e superego, e com a aceitação de que não é possível ocupar o lugar do pai, nem 
tampouco ter a mãe só para si, a criança se vê obrigada a buscar objetos substitutos 
para os mesmos fora da estrutura familiar primária, iniciando assim o seu processo 
de socialização. 
 Ao ser inserida na ordem cultural e simbólica, ela passa a reproduzir os 
valores e normas vigentes, adaptando-se aos regulamentos sociais através do 
superego oriundo do não imposto pelo pai. 
 Após a estruturação do aparelho psíquico, onde a interdição do incesto é um 
fato consumado, há o primeiro fechamento do complexo do Édipo. O chão onde a 
‘casa’ será construída está praticamente pronto. 
Com isso inicia-se a grande socialização do sujeito, onde ele receberá os 
valores e códigos morais que posteriormente serão objeto de recusa e 
questionamento, como mostra o mito do herói através do momento da separação. 
Neste período a criança vive um período de relativa tranqüilidade, sendo 
 13 
ensinada, protegida e modelada de acordo com sua cultura e meio social. 
Este é o período de latência, que se inicia por volta dos 6 anos, estendendo-
se até a adolescência, quando há a reedição do complexo de Édipo e o início da 
transição para vida adulta. 
 Durante este período as pulsões sexuais serão desviadas de sua finalidade. 
Assim sentimentos de ternura e amizade substituirão os sentimentos eróticos que 
caracterizaram a fase anterior. 
A criança, feita a “imagem e semelhança” dos pais, continua a ver neles um 
ideal a ser aspirado, porém, outras figuras começam a se incorporar em sua rede de 
relações, com importância semelhante, ou mesmo maior, como os amigos, 
professores, etc. É nesta época que ela começa a desenvolver suas habilidades 
lúdicas e cognitivas, dentro de um contexto sócio-educativo, que inclui a família,a 
escola, a igreja, e outras instituições sociais. 
Com isso está se construindo o que no mito do herói é chamado de ‘casa’, o 
local que representa o espaço de aprendizado e de aquisição dos valores 
norteadores da cultura na qual o sujeito está inserido. Outras formas de se designar 
a ‘casa’ é a terra natal, o povoado, a cidade de origem, etc. 
 Passado alguns anos de relativa estabilidade do aparelho psíquico, tem início 
um dos períodos mais conturbados e fascinantes do desenvolvimento humano, o 
momento de deixar o lar. A mitologia, as religiões, lendas e contos de fada estão 
repletos de personagens que retratam, através da figura do herói, este momento na 
vida psíquica do sujeito. 
Antes de começar a “aventura”, que no mito surge como o momento de 
separação, é preciso entender que o sujeito chega nesta fase da vida com um corpo 
biologicamente transformado, e apto a exercer a sexualidade de forma genital. 
O corpo, até então um corpo infantil, fragilizado e dependente, não é mais o 
mesmo. O sentimento de impotência que vinha sendo compensado pela proteção 
conferida pelas figuras de autoridade, principalmente os pais, começa a ceder 
espaço para a vontade e o desejo de liberdade. Com isso, surgem também as 
dúvidas quanto à benevolência e onipotência daqueles que representam a Lei. 
A vida, que até então estava restrita aos limites do Éden, onde o indivíduo era 
levado a acreditar que tudo é belo e perfeito sob aos auspícios da Lei, começa a 
vislumbrar novos horizontes. 
O corpo torna-se genitalmente erotizado, apto a consumar a relação sexual, 
 14 
inclusive para fins reprodutivos. 
As mudanças corporais que ocorrem com o adolescente trazem a estranheza 
e o desconforto característico do encontro com o real ainda não simbolizado, ou 
seja, este novo corpo é um corpo sexualizado, mas não integrado psiquicamente, 
daí o seu caráter de estranheza. A jornada do herói começa, portanto, com a 
exploração e descoberta deste novo corpo. 
Esta busca, que coincide com o despertar da sexualidade, implica também no 
encontro com o outro enquanto alteridade, ou seja, aquele que se apresenta como 
alguém totalmente diferente, com uma existência própria que difere, ou mesmo se 
opõe à existência do eu. 
No contexto do mito, esta alteridade que leva ao encontro e descoberta do 
outro está representada pelas terras distantes e pelos seres estranhos que as 
habitam, ou seja, a alteridade do outro é aquilo que chega ao sujeito como o 
desconhecido. 
Para o adolescente este é um momento de grande ansiedade e incerteza 
sobre aquilo que o espera devido a todas estas transformações de ordem psíquica, 
social e biológica. 
 Em termos psicológicos está ocorrendo uma reedição do complexo de Édipo, 
com a diferença de que a sexualidade está agora voltada quase que exclusivamente 
para os órgãos genitais, e não mais dispersa pelo corpo. 
Neste sentido, sair de casa significa também abandonar o corpo infantil, auto-
erótico, para buscar a sexualidade através do encontro com o outro, condição esta 
para que ela seja consumada. 
 
Com efeito, a grande massa de energia pulsional, que foi justamente 
pré-genital durante todo o período infantil, devido, sobretudo, à 
insuficiência dos aparelhos orgânicos genitais, tem agora, na 
adolescência a ocasião de se satisfazer (KUSNETZOFF,1982, p. 
110) 
 
Com a reedição do complexo de Édipo a libido é novamente reinvestida nos 
objetos primários da infância, ou seja, o pai e a mãe, sendo mais uma vez 
confrontada e forçada a desviar-se para objetos substitutos. O adolescente precisa 
definitivamente deixar sua casa. 
Uma das formas de ocorrer esta ruptura é através da busca por novas figuras 
de autoridade, encontradas, por exemplo, nos ídolos da juventude, uma imagem do 
 15 
herói que desperta o interesse e o desejo do adolescente em ser como ele, num 
processo de identificação semelhante ao que ocorreu com o pai durante o complexo 
de Édipo. Nesse sentido, esta relação é marcada pela ambivalência, ou seja, pelo 
sentimento de amor decorrente da admiração que este outro suscita, e pelo ódio, por 
ver nele um rival que dispõe de uma potência que o sujeito não possui. É o que 
mostra os inúmeros casos onde o ídolo é assassinado pelo seu fã e admirador, que 
comete este ato movido pelo desejo de ocupar o lugar daquele que ama, tornando-o 
assim vítima da hostilidade inconsciente que acompanha o amor. 
Ao recorrer a novas formas de autoridade o adolescente questiona a ordem 
estabelecida, podendo libertar-se da autoridade dos pais por meio da revolta e da 
contestação, vivendo aquilo que se pode chamar de período de marginalidade (nos 
ritos primitivos a marginalidade é representada pelo isolamento social e perda da 
identidade habitual) 
Com o questionamento da autoridade vigente, e a busca por outras 
referências, a idéia de limite é posta em questão, pois o adolescente entende que só 
ele, enquanto autoridade auto-instituída, pode decidir sobre o certo e o errado, sobre 
o que se pode ou não fazer. Ele deixa a posição de submissão infantil ao outro, que 
lhe determinava os limites a serem seguidos, para buscar uma outra posição nesta 
nova trama. 
Isto se refletirá inclusive na forma como ele lida com seu próprio corpo, pois 
os limites fisiológicos e anatômicos são ignorados ou mesmo desprezados, como 
mostra a clássica imagem da força descomunal do herói, que tem como equivalente 
psicológico a onipotência juvenil. 
O novo corpo adquirido com a adolescência é levado ao seu limite máximo, 
como mostram os ritos de passagem, onde as transformações corporais são 
acompanhadas por práticas que trazem a marca da dor e do abandono, uma forma 
de extrair deste corpo o seu máximo, mas também de expor-lhe na carne o 
sofrimento pela sua debilidade constitucional. 
Ao sair de casa em busca de novas identificações o adolescente se depara 
também com a necessidade de construir novas formas de organização psíquica, 
substituindo o grupo familiar pelo grupo social, que lhe propicia a possibilidade de 
construir uma identidade que facilite sua inserção no mundo a ser desvelado. 
Apreender este novo universo é uma forma de designar aquilo que no mito é 
chamado de “aventura”. 
 16 
No percurso deste trajeto, uma das tarefas mais difíceis é resolver os 
impasses que a sexualidade suscita, como a constatação da diferença anatômica 
entre os sexos, pois o sexo oposto apresenta uma alteridade tal que jamais 
complementará de fato o sujeito, que se percebe agora um ser faltante, que é 
justamente uma das condições para o sujeito ingressar na vida adulta. 
A questão da falta é paradigmática para se entender a importância do herói 
em não se deixar levar pela hybris, enquanto desejo de se satisfazer de forma 
narcísica e onipotente. 
Esta impossibilidade está representada no momento crítico da aventura, 
quando o herói, após uma seqüência inquestionável de êxitos, torna-se prestes a 
sucumbir, ou seja, quando ele descobre o seu “calcanhar de Aquiles”. 
Sua vulnerabilidade mostra que todo herói, por mais capaz que seja de 
realizar suas proezas, em algum momento da jornada irá se deparar com a 
possibilidade de fracassar, e não poder seguir adiante. Neste momento a ajuda vem 
de onde menos se espera, geralmente através de uma figura subestimada no 
decorrer da trama, como ocorreu com o mais moderno dos heróis, o Super-Homem, 
salvo pela empregada do vilão quando tudo parecia perdido. 
Esta particularidade do mito traz a questão da alteridade do outro como uma 
forma de impedir a satisfação narcísica e infantil ao qual o herói está sujeito. 
Se o mito do herói refere-se ao processo psicológico que leva a aquisição da 
consciênciae a autonomia do ego, estas somente serão alcançadas se o sujeito 
reconhecer e aceitar essa falta estruturante, a mesma falta que impede o herói de 
ser alguém absolutamente invencível. 
Portanto, ao longo deste processo, ou jornada, o sujeito torna-se consciente 
de que algo lhe falta. Ao aceitar este fato, ele encontra o seu tesouro, pois a 
verdadeira conquista do herói é reconhecer e aceitar suas limitações. 
Lidar com a frustração e a incompletude, simbolizando-as por meio da 
linguagem e do discurso subjetivo, é a condição para retornar para casa. 
 Esta é uma exigência da civilização e uma forma de passar à vida adulta, que 
se diferencia da infância justamente pela impossibilidade da satisfação de todos os 
desejos do sujeito. Com isso, uma parcela da felicidade para sempre está perdida. 
Assim ocorre o que se pode chamar de ingresso no processo civilizatório, 
permeado de exigências sociais, proibições e restrições de toda ordem, pois o 
sujeito não pode mais regular sua vida unicamente em função da busca pelo prazer, 
 17 
como acontecia em sua infância. 
Como é o ego que faz papel de mediador entre o desejo e a proibição, 
condição esta para o ingresso no processo civilizatório, ou seja, ao mundo adulto 
propriamente dito, o mito do herói e os ritos de passagem visam exatamente à 
consolidação deste ego para capacitá-lo a atender as demandas da realidade, o que 
justifica as privações e o sofrimento que lhes são impostos, pois este sofrimento é 
inerente à vida. Saber aceitá-lo é uma condição para a maturidade, e 
conseqüentemente uma forma de se tornar menos suscetível aos quadros de 
toxicomania, enquanto impossibilidade de se estabelecer o laço social com o outro, 
pois a relação é de exclusividade com a droga, a serviço da satisfação narcísica e 
do prazer absoluto. 
 
 
2.3. A TOXICOMANIA E A TRANSGRESSÃO DO MITO DO HERÓI 
 
Considerando-se que o mito do herói representa a passagem da infância para 
a vida adulta, transgredi-lo significa desviar sua função de conduzir o sujeito à 
maturidade, como acontece com o dependente ao estabelecer uma relação tóxica 
com a droga. 
 A conseqüência imediata desta transgressão, entendida também como uma 
forma de não se viver o mito, é a fixação do sujeito no estado infantil, onde ele se 
servirá das drogas para atender suas necessidades de satisfação imediata, evitando 
uma das condições para o ingresso na vida adulta, que é a renúncia ao princípio do 
prazer e a consciência da falta. 
 Neste ponto é importante distinguir o que é considerado uso ocasional ou 
esporádico das drogas do seu uso compulsivo, associado ao quadro de 
dependência. 
 No primeiro caso, onde também se enquadra o chamado uso abusivo 
(nocivo), cujo padrão de consumo acarreta algum prejuízo social e uma exposição 
maior a situações de risco, não há necessariamente a transgressão do mito do herói. 
Ao contrário, o sujeito pode estar buscando justamente viver este mito através da 
contestação das normas instituídas, uma forma de expressar a necessidade de 
novos ideais, alimentado por uma crença que supervaloriza o ego que está 
começando a desabrochar para o mundo, como mostram os grandes sonhos da 
 18 
juventude. 
Além disso, a atitude de oposição e questionamento também contribui para a 
dialética do desenvolvimento pessoal e coletivo, e por isso não deve ser considerada 
obrigatoriamente uma manifestação patológica. Estes casos têm que ser pensados 
dentro do seu contexto, considerando-se, obviamente a possibilidade de um quadro 
de uso ocasional evoluir para a dependência, mas sem tomar isso como uma regra, 
ao contrário do que supõe o senso comum. 
O primeiro aspecto a ser considerado na relação entre o mito do herói e a 
toxicomania é a recusa do sujeito em “sair de casa”, o que configura a permanência 
no estado infantil por priorizar a satisfação imediata do prazer, como acontece com a 
criança nos primórdios do desenvolvimento em sua relação incestuosa com a mãe. 
A conseqüência disso é a crença onipotente de que ele pode se satisfazer a 
todo custo, atitude essa que sustenta o uso compulsivo da droga. 
 Assim: 
“Ele institui a droga, não importa qual seja, como seu objeto, esperando que o 
fará gozar à vontade, ou seja, gozar segundo seu bem entender, seu bem querer”. 
(CLASTRES, 1999, p. 59) 
 Subjacente a recusa em deixar a casa, está o sentimento de abandono e 
desamparo que esta situação inevitavelmente traz, algo ao qual o herói não pode se 
furtar caso queira cumprir sua jornada até o fim. 
 O desamparo decorrente desta separação, uma condição para a aquisição da 
consciência de si, mostra o aspecto solitário do herói, pois somente a ele cabe 
cumprir a aventura de se reconhecer como ser faltante. Neste percurso ele tem que 
se haver com a própria morte e com a impossibilidade de se satisfazer plenamente, 
algo insuportável para o toxicômano, que se serve da droga para suprir o desamparo 
que ele não consegue tolerar. 
 Uma vez deixada a casa, o herói empreende sua busca solitária, recebendo o 
impacto decorrente das mudanças corporais na puberdade. Estas mudanças trazem 
o real do sexo ainda não simbolizado, demandando uma organização e integração 
psíquica difícil de ser operada, pois o adolescente se encontra diante de um impasse 
pela perda do corpo infantil, que está sendo abandonado juntamente com sua ‘casa’, 
e aquisição de um novo corpo que se lhe descortina para ser explorado como parte 
da jornada que leva a descoberta de si e ao encontro do outro. 
Novas posições são exigidas do adolescente, que se vê em conflito diante 
 19 
desta necessidade que demanda novas significações, gerando nele um mal estar 
que pode encontrar escape pela via do tóxico. 
Sobre isso, Pereira (1999, p. 96) diz que “outra função que a droga exerce e 
que podemos ouvir no discurso dos pacientes adolescentes, é o apaziguamento da 
angústia vivenciada na relação com o outro sexo”. 
Na toxicomania este artifício vai ainda mais além, pois através da droga o 
sujeito separa-se deste outro. Assim, se a descoberta do corpo adulto pressupõe um 
gozo que passa pelo corpo do outro, na toxicomania este outro está destituído, 
sendo então substituído pela droga 
 Com isso vem à tona a questão da impossibilidade do laço social, o que 
dificulta ainda mais o seu acesso ao aparato cultural e simbólico, onde este laço é 
constituído. Esta situação favorecerá a posição narcísica do sujeito, que ao se 
fechar em si mesmo encontrará nas drogas um substituto para este outro com quem 
ele dispensa o laço social e afetivo. Além disso, a satisfação que poderia ser 
encontrada em outros objetos oferecidos pela cultura, como a arte e a religião, uma 
forma de compensar a renúncia que lhe foi exigida, fica restrita a ele próprio, ou 
seja, a satisfação é buscada em seu próprio corpo por meio das drogas, o que 
justifica o caráter narcísico do toxicômano. 
 
“O que posso fazer para proporcionar a felicidade a mim mesmo? Uma 
das maneiras (desesperada, dirão alguns) de se chegar a esse ideal 
auto-referido da felicidade pode ser traduzido pela droga. Pois, afinal, 
se se trata de proporcionar-se satisfação, por que não fazê-lo pela via 
de um objeto que me permite esse gozo solitário? Assim, a concha 
humana se fecha, na posse dessa pérola mortífera que a droga é” 
(CORSO M. e CORSO D. Revista da Associação Psicanalítica de 
Porto Alegre n. 12, p.78). 
 
 Como o mito do herói representa a transição da infância para a vida adulta, 
através deste período chamado adolescência, cumprir o mito é também uma forma 
de ingressar no mundo civilizado, identificado com a vida adulta, pois o 
desenvolvimento libidinal do sujeito, que leva a uma sexualidade 
predominantementegenital, coincide com o próprio processo civilizatório (FREUD, 
1929). 
 Quanto a civilização, entendida aqui como a soma das realizações que 
retiraram o homem da sua condição animal, esta tem como um dos seus propósitos 
ajustar os relacionamentos humanos em favor da coletividade e da vida em comum. 
 20 
Neste sentido podemos entender a civilização como sendo uma forma mais 
abrangente de ‘casa’, para onde o sujeito se encaminha em seu processo de 
amadurecimento, ou seja, a civilização designa também a família em um sentido 
mais amplo, algo como a fraternidade que une os seres humanos por laços comuns. 
Para isso é exigido do sujeito um pesado sacrifício, a renúncia a uma parcela da 
satisfação instintiva, traduzida como uma renúncia a uma parcela da felicidade 
enquanto “experiência de intensos sentimentos de prazer” (FREUD, 1929, p. 84) 
É quando então ele percebe que “a vida, tal qual a encontramos, é árdua 
demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas 
impossíveis” (FREUD, 1929, p. 83). 
Para suportar a angústia e o sofrimento decorrente desta constatação, onde o 
sujeito se reconhece impotente diante da morte, ameaçado pelas forças da natureza 
e limitado pelas restrições que o outro impõe aos seus desejos, algo que os ritos 
mostram de forma extremamente eficaz, o ser humano passou a se utilizar de 
medidas paliativas. 
Entre estas medidas paliativas está o uso de substâncias tóxicas, que se 
constituem, devido ao seu potencial de alterar a química do corpo, como um dos 
métodos mais “eficazes”, porém, demasiadamente “grosseiros”, como salientou 
Freud (1929), de se evitar o sofrimento, proporcionando aquilo que Aldus Huxley 
chamou de Paraísos Artificiais: 
 
“Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo 
geral, jamais seja capaz de passar sem Paraísos Artificiais. A maioria 
dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos 
baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que 
os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns 
breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais 
apetites da alma” (HUXLEY, 2006, p.35). 
 
Os Paraísos Artificiais apontam também outro recurso muito utilizado para se 
evitar o sofrimento, a alteração na percepção da realidade, considerada pelo ser 
humano como “a única inimiga e a fonte de todo sofrimento” (FREUD, 1929, p. 88). 
As drogas, perigosamente, oferecem esta possibilidade. Por isso elas estão 
entre “os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento” (FREUD, 1929, p.85), 
de forma, obviamente, insatisfatória e danosa. 
Segundo Freud: 
 
 21 
O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade 
e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um 
benefício, que tanto indivíduos quanto povos que lhes concederam 
um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais 
veículos não só a produção imediata de prazer, mas também, um 
grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois 
sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é 
possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e 
encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de 
sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa 
propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua 
capacidade de causar danos (FREUD, 1929, p.86) 
 
A capacidade de causar danos que estes veículos intoxicantes proporcionam 
está diretamente relacionada à forma como o sujeito se relaciona com eles. Assim, 
ao manter uma relação de exclusividade com a droga, um dos fatores que 
caracterizam a toxicomania, o sujeito não se socializa, e, portanto, não adere aos 
preceitos da civilização. 
Neste sentido, não aderir é também manter-se à margem, separado do desejo 
do outro, em um permanente estado de ruptura. É a recusa em voltar para casa, o 
que implica em um estado de marginalidade como uma forma de não se consumar o 
laço social, e, conseqüentemente, não regular as relação com o outro. 
A separação, por meio da oposição e da contestação, ocorre através de uma 
violência dirigida contra aquilo que foi instituído, como a lei imposta pelo pai. Ao 
invés de uma separação simbólica, no plano da palavra, que favoreça a consciência 
de si como condição para o diálogo e o reconhecimento da alteridade do outro, a 
separação ocorre de forma literal, podendo levar, nas situações mais extremas, a 
prisão ou mesmo a morte, como mostram os casos de violência e criminalidade 
relacionada ao uso de drogas, onde a idéia de marginalidade coincide com a 
transgressão da lei penal. 
Considerando-se o contexto da adolescência, Kusnetzoff (1982, p.115) diz 
que: 
“a contestação pode atingir níveis-limites e até patológicos, como 
verdadeiras fugas para se subtrair às imposições que são sentidas 
como intoleráveis. Estas fugas podem ser motoras e/ou perceptuais, 
sendo estas últimas ativadas, por exemplo, pelo consumo de drogas”. 
 
Assim, se a adolescência se caracteriza como uma fase de contestação 
contra o corpo da lei, as drogas podem ser o meio de se consumar uma separação 
que deveria ser simbolizada por meio da fala. 
 22 
Como a consciência, enquanto campo da linguagem e do pensamento, é a 
consciência da falta, condição esta para a constituição do sujeito, como mostra o 
mito do herói, na toxicomania isto não ocorre, pois no consumo compulsivo da droga 
não há espaço para o pensamento e a palavra. O sujeito, ao aliviar a dor do existir 
por meio de veículos intoxicantes, não verbaliza, não submete o ato à reflexão, 
evitando assim uma das mais importantes tarefas do herói que é a aquisição da 
consciência de si enquanto ser faltante. É deste modo que o sujeito retorna para 
casa, fazendo-se presente perante o outro por meio da fala e da palavra. 
 Por fim, a questão da toxicomania na adolescência tem que ser pensada 
dentro de um contexto maior, que inclua os mecanismos sociais e culturais 
presentes na formação do sujeito, e que são parte integrante da visão de mundo de 
uma determinada época. 
 Neste sentido, o mundo que prepara o adolescente para a vida adulta é um 
mundo materialista e capitalista que prega o prazer e a satisfação imediata. 
 A lógica do consumo é colocada como uma forma de recuperar a completude 
perdida, assegurando ao sujeito uma felicidade cada vez mais difícil de renunciar, 
pois “os objetos de consumo são oferecidos como promessa de satisfação ou 
supressão da falta, esforço de reduzir o desejo ao simples encontro com esses 
objetos” (BAHIA, et. al. 1999, p. 166). 
 Portanto: 
 
“Se não temos nenhuma transcendência a oferecer a nossos filhos, 
somente o espetáculo da banalidade iluminada com os holofortes de 
uma felicidade publicitária, virtual, não há por que estranharmos 
estarem nossos adolescentes mergulhados no embalo narcísico das 
drogas” (CORSO M. e CORSO D. Revista da Associação 
Psicanalítica de Porto Alegre n. 12, p.78) 
 
 
A completude narcísica almejada pelo sujeito através do consumismo, uma 
forma de pretensamente recuperar a satisfação perdida, também é prometida pelo 
racionalismo científico, que acredita ter uma resposta para aliviar o sofrimento 
humano. Tudo se torna possível por meio da razão científica, que já acena, inclusive 
com a possibilidade de se evitar a morte. 
O homem de hoje, seduzido pela crença de que é possível alcançar a 
completude prometida pelo ideal de consumo ou pelo racionalismo científico, busca 
elidir a falta, elemento essencial para se simbolizar o encontro angustiante com o 
 23 
real. Com isso os agentes culturais e sociais que deveriam proporcionar o 
amadurecimento do sujeito por meio da instauração e elaboraçãoda falta, mostram-
se não serem eles próprios seres faltantes. 
 Isto está bastante evidente no discurso dominante da razão científica ao se 
colocar como absoluta em seu saber, capaz, inclusive, de dar conta das limitações e 
do sofrimento humano, como se percebe na questão dos medicamentos que são 
comercializados como promessas de solução para o sofrimento humano, mostrando 
que a relação tóxica pode ser mantida também com outros objetos que não as 
drogas propriamente ditas. Assim, os bens de consumo socialmente valorizados 
também podem desempenhar uma função tóxica no psiquismo do sujeito, desde que 
seja estabelecida uma relação de dependência com estes objetos que chegam com 
a promessa de satisfação absoluta. 
 A conseqüência imediata disso é uma sociedade hedonista, um Paraíso 
Artificial incapaz de inserir o sujeito na vida adulta, o que nos leva a acreditar que o 
mundo de hoje, tal qual um toxicômano que não quer saber de sua angústia, 
também precisa aprender a viver a aventura do autoconhecimento, como mostram 
as inúmeras faces do mito do herói. 
 
 
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
 A questão do uso de drogas na adolescência, principalmente em um contexto 
de toxicomania, é um tema bastante complexo que tem que ser pensado dentro de 
um contexto maior, que leve em consideração inclusive os paradigmas de uma 
determinada época. 
 O presente artigo se propôs a esta reflexão através de um tema que instiga o 
imaginário do jovem, o herói. Deste modo, o conteúdo aqui levantado poderá ser 
utilizado na clínica como instrumento de auxílio ao adolescente toxicômano, 
contribuindo em sua difícil passagem para a vida adulta. 
 
 
Contato: 
f.massao@psicologiajunguiana.psc.br 
 
 24 
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