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Disciplina: Leitura de monografias antropológicas (2017); Profª Beatriz Perrone-Moisés Aluna: Patricia Moser Montini, Ciências Sociais, noturno. (Obs: esse texto está no meu blog: https://enquantoensaio.blogspot.com.br/) Resenha: História de Lince (Claude Lévi-Strauss) Último volume das “pequenas Mitológicas”, História de Lince foi publicada na França em 1991, e traduzida para o português em 1993, por Beatriz Perrone-Moisés. Assim como A Via das Máscaras e A Oleira Ciumenta, que a precederam, a obra não constitui um balanço das “grandes Mitológicas”, mas remete, segundo Lévi-Strauss, a questões que lhe “pareceram bastante interessantes e que não tinham lugar (...) no desenrolar da argumentação” (PERRONE-MOISÉS, 1999). No Prefácio, o autor já antecipa tais questões – por ele tratadas anteriormente, todavia sem considerar sua inter-relação –, ligadas às organizações dualistas sul americanas e a mitos do vento e nevoeiro presentes numa região a noroeste da América do Norte; acrescentando que os dois problemas na verdade seriam um só, o segundo, como caso particular, constituindo uma ilustração e verificação da solução outrora proposta para o primeiro. O livro foi dividido em três partes, do lado do nevoeiro, clareando, e do lado do vento; subdivididas em capítulos que organizam sua argumentação, fortemente fundada na análise estrutural de mitos. O autor parte de mitos norte americanos referentes aos antagonistas Lince e Coiote, utilizando duas versões Nez-Percé: uma mínima e outra bastante desenvolvida; material que poderia favorecer a percepção do motivo de base comum a todas as versões, além da avaliação das propriedades do campo semântico no qual o mito se desdobra. Ligado ao nevoeiro, Lince apresenta natureza ambígua: velho, feio e doente no início, jovem e belo no final. Em seus contornos essenciais, história de Lince se insere em relatos mais complexos, que ampliam a participação de Coiote e seu filho. Por sua vez, essa família agrupada sob o nome de história de Lince se encaixa em outra sequência de mitos, por ele denominada as ladras de dentais; a qual ilustraria, na América do Norte, um conjunto mítico que se estende pelos dois hemisférios, apresentando formas muito próximas, facilmente identificáveis e pouco afetadas pelo tempo e distância. Objetivando essa demonstração, Lévi-Strauss recorre à versão registrada pelo frade Thevet por volta de 1550, entre os Tupinambá; verdadeira Gênese ameríndia, onde os mitos citados anteriormente participam apenas como episódio, todavia perfeitamente articulado ao todo, conforme evidenciado por suas análises estruturais. A história explora um conjunto de oposições em várias dimensões, envolvendo uma sucessão de demiurgos e ressaltando a questão da gemelaridade; manifestando, por meio do mito, o princípio de uma dicotomia que constitui, segundo o autor, um elemento invariante do sistema. Trata-se da história de Maíra-Pochy, a qual prefigura, com exatidão, mitos da América do Norte colhidos séculos depois – como as versões salish da história de Lince –, embora com diferenças importantes: versões norte americanas trazem duas irmãs, engravidadas respectivamente por Coiote e Lince (estes concebidos como anatomicamente gêmeos, antes da proposital diferenciação), enquanto as sul americanas, uma mulher grávida de duas crianças com pais diferentes (Maíra- Ata e Gambá, no caso Tupinambá); ou seja, primos paralelos no primeiro caso, e gêmeos, todavia não exatamente, no segundo. No citado mito Tupinambá várias bipartições são produzidas pelos demiurgos, a divisão entre os seres celestes e terrestres, brancos e índios, estrangeiros e concidadãos, estes, por sua vez, bons e maus. Para o autor, a partição referente aos brancos merece destaque, pois é notável que apenas meio século após sua chegada ao Brasil, em profundo desequilíbrio com os indígenas, já tenham sido perfeitamente integrados à sua mitologia, inclusive inseridos nas operações do demiurgo. Segundo Lévi-Strauss, isso foi possível porque os indígenas já dispunham “de um modelo dicotômico que permitia transpor em bloco essa oposição e suas sequelas para um sistema de pensamento no qual seu lugar estava, de certo modo, reservado” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 66); como se a criação dos indígenas pelo demiurgo tornasse necessária também aquela dos não-índios. Outros povos inseriram os brancos em sua mitologia, como ilustra o mito Jê sobre Aukê, inverso daquele dos Tupinambá. O autor ressalta que suas aproximações entre os mitos dos dois hemisférios lhe permitiram retomar o debate sobre a posição dos gêmeos na mitologia ameríndia; os quais ocupam lugar importante, todavia não por serem gêmeos, mas por não o serem exatamente ou serem incompatíveis, contradizendo esta condição. Um grande ciclo mitológico da América do Norte (que se aproxima dos mitos Tupinambá) representa outro exemplo, sendo o nascimento de gêmeos marcado por circunstâncias que já sugerem seus temperamentos opostos. O autor se dedica, na sequência, à outra complexa série de análises estruturais, desta vez partindo de um conjunto de transformações por ele demonstradas para a América do Sul, objetivando localizá-las na América do Norte; reforçando, assim, também a profunda unidade da mitologia ameríndia, evidenciada nas Mitológicas. Na parte final do livro, agora “do lado do vento”, Lévi-Strauss passa a discutir os mitos referentes à captura do vento, presentes no noroeste da América setentrional; retomando também um problema já assinalado em O Homem Nu, referente à adoção de contos franco-canadenses por parte dos indígenas. O desaninhador de pássaros, ligado à instauração da cultura e mito base das Mitológicas – escolhido como mais apropriado para articular o corpus mitológico das duas américas –, também surge em seu “último retorno”, nessa região onde suas versões justamente apresentam maior semelhança com o mito M1. Ressalta-se o fato de que este é invertido pelo mito sobre a captura do vento dos Thompson (cujo protagonista é Coiote), numa inversão que todavia não constitui um fato simples, pois o mito inclui as citadas “adoções” franco- canadenses, perfeitamente encaixadas no todo; “empréstimo” que supre alguma ausência, assim como aquela dos não-índios, no mito Tupinambá. O autor discorda, assim, da noção de empréstimo simples, tendo em vista que não houve uma recepção passiva por parte dos ouvintes, mas transformações dos relatos estrangeiros, adaptados às tradições. Constata, também – além do fato de que fenômenos meteorológicos são relacionados a gêmeos –, que as séries míticas relativas ao nevoeiro e ao vento revelam construções opostas, inesperadas por serem fenômenos da mesma categoria: uma reunindo os principais temas da mitologia ameríndia e a outra buscando sua inspiração alhures, nos contos franco-canadenses. Em tais construções divergentes, Lévi-Strauss percebe, no plano formal, o reflexo de uma “disparidade inerente às entidades concretas de que falam os mitos”, vento e nevoeiro, Lince e Coiote, mitos em relação de simetria: “gêmeos impossíveis, como todos os outros candidatos à união que o pensamento ameríndio renuncia a emparelhar” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p.184). O autor observa, assim, que a gemelaridade não-homogênea dos mitos ameríndios – ao contrário dos gêmeos idênticos europeus – é a chave para todo o sistema, seu desequilíbrio dinâmico constituindo um motor que não permite a inércia e coloca o universo em movimento; ressaltando também a diferença entre as disposições de brancos e indígenas, estes desde o inícioevidenciando, nas atitudes e no “espírito”, sua imensamente maior abertura para o outro. O problema etnográfico mencionado no início, referente às organizações dualistas sul americanas conecta-se, assim, ao campo da ética e filosofia indígenas: trata-se de de um princípio de organização, não de uma instituição social, e da fundamental noção de dualismo em perpétuo desequilíbrio, a desigualdade alcançando todos os domínios: “a cosmologia e a sociologia indígenas lhe devem sua mola mestra” (LÉVI- STRAUSS, 1993, p. 206). Os dois problemas citados no Prefácio finalmente reuniram-se num só, por meio das duas vias paralelas seguidas no livro, que convergiram no tema da impossível gemelaridade: de um lado índios e brancos, de outro, nevoeiro e vento; convergência que, segundo o autor, pôde ser evidenciada “pelas construções formalmente heterogêneas de um mito sobre a origem do nevoeiro, que reflete como um microcosmo o universo da mitologia ameríndia, e de mitos sobre o regime dos ventos, que condensam tudo o que os índios conheciam do folclore europeu” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 209). Referências LÉVI-STRAUSS, Claude. História de Lince. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. PERRONE-MOISÉS, Beatriz (1999). Entrevista: Claude Lévi-Strauss, aos 90. Revista de Antropologia, vol. 42, n. 1-2, São Paulo, 1999 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77011999000100002>. Acesso em: 24 set. 2017.
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