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CAPITULO 1 Uma DescriçãoDensa: Por umaTeoria Interpretativada Cultura I Em seulivro Philosophyin a NewKey,SusanneLangerobservaque certasidéiassurgemcomtremendoímpetonopanoramaintelectual. Elassolucionamimediatamentetantosproblemasfundamentaisque parecemprometertambémresolvertodosos problemasfundamen- tais,esclarecertodosos pontosobscuros.Todosseagarrama elas comoum"abre-tesésamo"dealgumanovaciênciapositiva,o ponto centralemtermosconceituaisemtornodoqualpodeserconstruído um sistemadeanáliseabrangente.A modarepentinadetal grande idée,queexcluipraticamentetudoo maisporummomento,deve-se, dizela,"ao fatodetodasasmentessensíveiseativassevoltaremlogo paraexplorá-Ia.Utilizamo-Iaemcadaconexão,paratodosospropó- sitos,experimentamoscadaextensãopossíveldeseusignificadopre- ciso,comgeneralizaçõese derivativos." Entretanto,ao nosfamiliarizarmoscoma novaidéia,apóselase tornarpartedo nossosuprimentogeraldeconceitosteóricos,nossas expectativassãolevadasa ummaiorequilíbrioquantoàssuasreais utilizações,eterminaasuapopularidadeexcessiva.Algunsfanáticos persistememsuaopiniãoanteriorsobreela,a "chaveparao univer- so", maspensadoresmenosbitolados,depoisde algumtempo,fi- xam-senosproblemasquea idéiagerouefetivamente.Tentamapli- cá-Iae ampliá-Iaondeelarealmenteseaplicae ondeépossívelex- pandi-Ia,desistindoquandoelanãopodeseraplicadaou ampliada. Sefoi naverdadeumaidéiaseminal,elasetorna,emprimeirolugar, partepermanenteeduradouradonossoarsenalintelectual.Mas não temmaiso escopograndioso,promissor,a versatilidadeinfinitade aplicaçãoap~rentequeumdiateve.A segundaleidatermodinâmica ou princípioda seleçãonatural,a noçãoda motivaçãoinconscíente ou a organizaçãodos meiosde produçãonão explicamtudo, nem mesmotudoo queéhumano,masaindaassimexplicamalgumacoi- sa.Nossaatençãoprocuraisolarjustamenteessealgo,paranosdes- vencilharde umaquantidadede pseudociênciaà qualeletambém deuorigem,no primeirofluxo da suacelebridade. Não sei seé exatamentedessaformaque todosos conceitos científicosbasicamenteimportantessedesenvolvem.Todavia,esse padrãoseconfirmanocasodoconceitodecultura,emtornodoqual surgiutodooestudodaantropologiaecujoâmbitoessamatériatem sepreocupadocadavezmaisemlimitar,especificar,enfocarecon- ter.É justamenteaessareduçãodoconceitodeculturaaumadimen- sãojusta,querealmenteassegurea suaimportânciacontinuadaem vezdedebilitá-Io,queosensaiosabaixosãodedicados,emsuasdife- rentesformase direções.Todoselesargumentam,àsvezesdeforma explícita,muitasvezessimplesmenteatravésdaanáliseparticularque desenvolvem,emproldeumconceitodeculturamaislimitado,mais especializadoe, imagino,teoricamentemaispoderoso,parasubsti- tuir o famoso"o todomaiscomplexo"deE. B. Tylor, o qual,embo- ra eunãocontestesuaforçacriadora,parece-meterchegadoaopon- to emqueconfundemuitomaisdo queesclarece. O pantanalconceptualparao qualpodeconduzira espéciede teorizaçãopot-au-feutylorianasobreculturaéevidentenaquelaque aindaéumadasmelhoresintroduçõesgeraisà antropologia,o Mir- rorfor Man.deClydeKluckhohn.Em cercadevinteesetepáginasdo seucagítulosobreo conceito,Kluckhohnconseguiudefinira culturacomo:~l)"o mododevidaglobaldeumpovo";(2)"o legadosocial queo mdivíduoadquiredo seugrupo";(3) "umaformadepensar, sentire acredita.r";(4) "uma abstraçãodo comportamento";(5) "umateoria.elaboradapeloantropólogo,sobrea formapelaqualum grupodepessoassecomportarealmente;(6)"umceleirodeaprendi- zagememcomum";(7)"um conjuntodeorientaçõespadronizadas para os problemasrecorrentes";(8) "comportamentoaprendido"; (9)"um mecanismoparaaregulamentaçãonormativadocomporta- mento";(10) "um conjuntodetécnicasparaseajustartantoaoam- bienteexternocomoemrelaçãoaosoutroshomens";(11) "umpreci- pitadodahistória",_evoltando-se,talvezemdesespero,paraascom- parações,comoum mapa,comoumapeneiraecomoumamatriz. Diantedessaespéciededifusãoteórica,mesmoumconceitodecultu- ra um tantocomprimidoe não totalmentepadronizado,quepelo menossejainternamentecoerentee,o queémaisimportante,quete- 11 15POR UMA TEORIA INTERPRETATlVA DA CULTURA O operacionismocomodogmametodológiconuncafezmuitosen- tidonoqueconcerneàsciênciassociaise,anãoserporalgunscantos já bemvarridos- o "behavorismo"skinneriano,os testesdeinteli- gência,etc.- estáagorapraticamentemorto.Todavia,eapesardisso, elateveumpapelimportanteeaindatemumacertaforça,qualquer quesejaa forcaquesintamosao tentarmosdefiniro carismaou a alienaçãoemtermosdeoperações:sevocêquercompreenderoqueé a ciência,vocêdeveolhar,emprimeirolugar,nãoparaassuasteo- riasou assuasdescobertas,ecertamentenãoparao queseusapolo- gistasdizemsobreela;vocêdevevero queospraticantesdaciência fazem. Em antropologiaou, de qualquerforma,emantropologiaso- cial, o queos praticantesfazemé a etnografia.E é justamenteao compreendero queéaetnografia,oumaisexatamente,o queéaprá- ticadaetnografia,équesepodecomeçaraentenderoquerepresenta a análiseantropológicacomoformadeconhecimento.Devemosfri- sar.no entanto,queessanãoé umaquestãodemétodos.Segundoa opiniãodoslivros-textos,praticaraetnografiaéestabelecerrelações, selecionarinformantes,transcrevertextos,levantargenealogias,ma- pearcampos,manterumdiário,eassimpordiante.Mas nãosãoes- sascoisas,astécnicase os processosdeterminados,quedefinemri empreendimento.O queo defineé o tipo deesforçointelectualque elerepresenta:umriscoelaboradoparauma"descriçãodensa",to- mandoemprestadaumanoçãodeGilbert Ryle. A discussãode Ryle sobre"descriçãodensa"apareceemdois recentesensaiosdesuaautoria(orareimpressosnosegundovolume nhaumargumentodefinidoa propor,representaumprogresso(co- mo, para serhonesto,o próprio Kluckhohnperspicazmentecom- preendeu).O ecletismoé umaautofrustração,não porquehajaso- menteumadireçãoapercorrercomproveito,masporquehámuitas: é necessárioescolher. _9concel!9d~s,ll!!!!r.l!~~~udefend_~.L~~~j~~!i!i~~ªe~.sensaios abaixotentamdemonstrar,éessencialmentesemiótico.Acreditando, comoMâxWeber,'qÜe() homem'éUínanimalámlirril.d(),,",ª.teiasdç' significadosqueelemesmoteceu,assuOloaculturacomo~end()~ssas teias'e-'asUa.análise;poi'tanto, rí'ão"coinolima'ciêI1cia~){l'_erjI}1ental,,_ embUscadeleIS,'rriil.scómo~uma'ciêriciaJI1terpr_efaííva;àprocurado significado.É justamerite"umaexplicaçãoqueeuprocuro,ao cons- ti'iiifêxpressõessociaisenigmáticasna suasuperfície.Todavia,essa afirmativa,umadoutrinanumacláusula,requerpor si mesmauma explicação. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS14 de seusCol/ectedPapers)e dirigidaao temagenéricosobreo que, comoelediz,o "Le Penseur"estáfazendo:"PensandoeRefletindo" e"O PensardosPensamentos".Vamosconsiderar,dizele,doisgaro- tospiscandorapidamenteo olhodireito.Num deles,esseéumtique involuntário;no outro,é umapiscadelaconspiratóriaa umamigo. Como movimentos,os doissãoidênticos;observandoos doissozi- nhos,comosefosseumacâmara,numaobservação"fenomenalis- ta", ninguémpoderiadizerqualdelasseriaumtiquenervosoouuma piscadelaou,naverdade,seambaserampiscadelasoutiquesnervo- sos.No entanto,emboranãoretratável,a diferençaentreumtique nervosoe umapiscadelaégrande,comobemsabeaquelequetevea infelicidadedevero primeirotomadopelasegunda.O piscadorestá secomunicandoe,defato,comunicandodeumaformaprecisaees- pecial:(I) deliberadamente,(2)a alguémemparticular,(3)transmi- tindo umamensagemparticular,(4)deacordocomum códigoso- cialmenteestabelecidoe(5)semo conhecimentodosdemaiscompa- nheiros.ConformesalientaRyle, o piscadorexecutouduasações - contrairapálpebraepiscar- enquantooquetemumtiquenervoso apenasexecutouuma- contraiuapálpebra.Contrairaspálpebrasde propósito,quandoexisteumcódigopúbliconoqualagirassimsigni- fica umsinalconspiratório,épiscar.É tudoqueháa respeito:uma partículadecomportamento,umsinaldeculturae- voilà!- umges- to. Todavia,issoé apenaso princípio.Suponhamos,continuaele, quehajaumterceirogarotoque,"paradivertirmaliciosamenteseus companheiros",imita o piscardo primeirogarotode uma forma propositada,grosseira,óbvia,etc.Naturalmente,eleo fazdamesma maneiraqueo segundogarotopiscouecomo tiquenervosodopri-meiro:contraindosuapálpebradireita.Ocorre,porém,queessega- rotonãoestápiscandonemtemumtiquenervoso,eleestáimitando alguémque,nasuaopinião,tentapiscar.Aqui tambémexisteumcó- digosocialmenteestabelecido(eleirá "piscar"laboriosamente,supe- robviamente,talvezfazendoumacareta- os artifícioshabituaisdo mímico),e o mesmoocorrecoma mensagem.Só queagoranãose tratadeumaconspiração,masderidicularizar.Seos outrospensa- remqueeleestárealmentepiscando,todoo seupropósitovaiporá- guaabaixo,emboracom resultadosum tantodiferentesdo quese elespensassemqueeletinhaumtiquenervoso.Podeir-semaisalém: emdúvidasobresuacapacidadedemímica,o imitadorpodepraticar emcasa,diantedeumespelho,enessecasoelenãoestácomumti- quenervoso,nempiscandoou imitando- eleestáensaiando.Entre- tanto,paraa câmara,umbehavoristaradicalou umcrenteemsen- tençasprotocolares,o queficariaregistradoéqueeleestácontraindo rapidamentesuapálpebradireita.comoosdoisoutros.As complexi- dadessãopossíveis,senãopraticamenteinfindáveis,pelomenosdo pontodevistada lógica.O piscadororiginalpoderia,por exemplo, estarapenasfingindo,paralevaroutrosa pensaremquehaviauma conspiração,quandodefatonadahavia,e nessecasonossasdescri- çõesdo queo imitadorestáimitandoe o ensaiadorensaiandomudam completamente.O casoéque,entreo queRylechamade"descrição superficial"do queoensaiador(imitador,piscador.aquelequetemo tique nervoso...) estáfazendo("contraindorapidamentesua pál- pebradireita")ea "descriçãodensa"doqueeleestáfazendo("prati- candoa farsadeum amigoimitandoumapiscadelaparalevarum inocenteapensarqueexisteumaconspiraçãoemandamento")estáo objetoda etnografia:umahierarquiaestratificadadeestruturassig- nificantesemtermosdasquaisos tiquesnervosos,aspiscadelas.as falsaspiscadelas,asimitações.osensaiosdasimitaçõessãoproduzi- dos,percebidoseinterpretados.esemasquaiselesdefatonãoexisti- riam(nemmesmoasformaszerodetiquesnervososasquais.como categoriacultural,sãotantonão-piscadelascomoaspiscadelassão não-tiques),nãoimportao quealguémfizesseounãocomsuapró- priapálpebra. Como tantashistorietasqueos filósofosdeOxfordgostamde inventarparaelesmesmos,todoessepiscar,a imitaçãodepiscar,a farsada imitaçãodo piscar,o ensaiodafarsadaimitaçãodepiscar, podeparecerum tantoartificial.Paraacrescentarumanotamais empírica,deixem-medar, semprecedê-Iodeliberadamentedequal- quercomentárioexplicativo.umexcertonãopoucotípicodo meu própriodiário de campo.parademonstrarque,mesmoaplainado parapropósitosdidáticos.o exemplodeRyleapresentaumaimagem extremamentecorretado tipo deestruturassuperpostasdeinferên- ciase implicaçõesatravésdasquaiso etnógrafotemqueprocuraro seucaminhocontinuamente: Os franceses(disseo informante)acabavamde chegar.Eles construíramcercadevintepequenosfortesentreestelocal,aci- dadee a áreadeMarmusha.no meiodasmontanhas,colocan- do-osempromontóriosdeformaapoderempesquisarocampo. Todavia.apesardissoelesnãopodemgarantira segurança,es- pecialmentedurantea noite.e assim,a despeitodo mezrag,o pacto comercial,ter sido supostamenteabolido do ponto de vistalegal,na verdadetudocontinuacomoantes. Umanoite,quandoCohen(quefalaberberefluentemente) estavaláemcima,emMarmusha,doisoutrosjudeusquenego- ciavamcomumatribo vizinhaapareceramparacomprardele algumasmercadorias.Algunsberberes,deumaoutratribovizi- nha,tentarampenetrarnacasadeCohen,maseledeuunstiros parao ar comseurifle. (Tradicionalmente,nãoerapermitido 17POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURAA INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS16 David Highlight 18 A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS aosjudeusportaremarmas,masa situaçãoeratãoinsegurana épocaquealgunsasadquiriam.)Issoatraiuaatençãodosfran- cesese os invasoresfugiram.. Na noiteseguinte,porém,elesvoltaram,eumdeles,disfar- çadodemulher,bateunaporta,contandoumahistória.Cohen desconfioue não quisdeixá-"la"entrar,masos outrosjudeus disseram,"ora, estátudobem,ésóumamulher".Elesabriram a portaetodoo bandoentrou;mataramosdoisjudeusvisitan- tes,masCohenconseguiuentrincheirar-seno aposentocontí- guo.Eleouviuosladrõesplanejaremqueimá-Iovivonaloja,de- poisderetiraremsuasmercadorias;abriuaportae,manobran- do umcacete,comoumlouco,conseguiuescaparpor umajane- la. Foi entãoatéo forte,paratratarseusferimentos,e quei- xou-seaocomandantelocal,umcertoCapitãoDumari,dizendo quequeriaser'ar-,istoé, quatroou cincovezeso valordamer- cadoriaquelheforaroubada.Os ladrõeseramdeumatriboain- da nãosubmetidaàsautoridadesfrancesaseestavamemrebe- liãoabertacontraelas,portantoelepediaumaautorizaçãopara ir como seuportador-mezrag,o xequetribalMarmusha,cobrara mdenizaçãoa quetinhadireito,segundoosregulamentostradi- cionais.O CapitãoDumarinão podiadar-lheumapermissão oficialparafazê-Io,umavezquehaviaumaproibiçãofrancesa paraa relaçãomezrtlg,maselelhedeuumaautorizaçãoverbal dizendo:"Se vocêfor morto,o problemaéseu." Assim, o xeque,o judeu e um pequenogrupo de Mar- musha,armados,percorreramdezou quinzequilômetrosatéa árearebelde,ondenaturalmentenãohaviafranceses,e furtiva- mentecapturaramopastordatribodosladrõeseroubaramseus rebanhos.A outratriboprontamente--veioemsuaperseguição, montadosa cavalo,armadosderiflese prontosa atacar.Mas quandoviramquemeramos"ladrõesdecarneiros",pensaram melhoredisseram,"muitobem,vamosconversar".Elesnãopo- diamnegarefetivamenteo queacontecera- quealgunsdosseus homenshaviamroubadoCohene matadoosdoisvisitantes- e nãoestavampreparadosparacomeçarumabrigasériacomos Marmushas,o quea lutacomos invasoresacarretaria.Assim, osdoisgruposfalaram,falaram,falaram,ali na planície,entre osmilharesdecarneiros,efinalmentedecidiramressarcirosda- noscomquinhentoscarneiros.Osdoisgruposberberesarmados alinharam-seemseuscavalos,nospontosopostosda planície, como rebanhodecarneirosentreeles,e Cohen,comseutraje negro,chapéu-cocoechinelosbatendo,percorreusozinhoo re- POR UMA TEORIA INTERPRETATlVA DA CULTURA 19 banho,escolhendoumporume,inteiramenteàvontade,osque eleachavamelhorcomopagamento. AssimCohenconsegüiuseuscarneirose levou-osdevoltaa Marmusha.Os franceses,lá no seuforte,escutaram-nochegar aindaa algumadistância.("Ba, ba,ba", diziaCohen,muitofe- liz, relembrandoo acontecido)eseperguntaram:"Que diaboé isso?"E Cohenrespondeu:"Isto éo meu'ar."Os francesesnão podiamacreditarqueelefizerao quediziaeacusaram-nodeser espiãodosberberesrebeldes,pondo-onaprisãoeapossando-se do seurebanho.Na cidade,suafamília,nãotendonotíciasdele durantetantotempo,o julgavamorto.Após algumtempoos francesessoltaram-noeelevoltouparacasa,porémsemo reba- nho.Dirigiu-se,então,aocoroneldacidade,umfrancêsencar- regadodetodaa região,paraqueixar-se.Todavia,o coronelres- pondeu:"Nada possofazera respeito.Não é meuproblema." Citadaliteralmente,comoumrecadonumagarrafa,essapassa- gemindica,comoqualqueroutrasemelhanteo faria,umsentidocor- retodomuitoqueexistenadescriçãoetnográficadaespéciemaisele- mentar- comoelaé extraordinariamente"densa".Nos escritoset- nográficosacabados,inclusiveos aqui selecionados,essefato - de queo quechamamosdenossosdadossãorealmentenossaprópria construçãodasconstruçõesde outraspessoas,do queelase seus compatriotassepropõem- estáobscurecido,poisa maiorpartedo queprecisamosparacompreenderumacontecimentoparticular,um ritual,umcostume,umaidéia,ou o quequerquesejaestáinsinua- docomoinformaçãodefundoantesdacoisaemsimesmaserexami- nadadiretamente.(Mesmorevelarqueessepequenodramaocorreu nasmontanhasdo Marrocoscentralem1912- ~foi novamentecon- tadoaquiem1968- édeterminarmuitodanossacompreensãodele.) Nadahádeerradonissoe,dequalquerforma,éinevitável.Todavia, issolevaàvisãodapesquisaantropológicacomoumaatividademais observadorae menosinterpretativado queelarealmenteé.Bemno fundoda basefatual,a rochadura,seé queexisteuma,detodoo empreendimento,nósjá estamosexplicandoe,o queépior,explican- do explicações.Piscadelasde piscadelasde piscadelas... A análiseé,portanto,escolherentreasestruturasdesignificação - o queRyle chamoudecódigosestabelecidos,umaexpressãoum tantomistificadora,poiselafazcomqueo empreendimeritosoemui-to parecidocoma tarefade um decifradorde códigos,quandona verdadeeleémuitomaisparecidocomadocríticoliterário- edeter- minarsuabasesocialesuaimportância.Aqui emnossotexto,tales- colhacomeçariacomo diferençarostrêsquadrosdesiguaisd~inter- pretação,ingredientesdasituação- ojudeu,o berbereeo francês- e passariaentãoamostrarcomo(eporque),naquelaocasião,naquele David Highlight III -1 A cultura,essedocumentode atuação,é portantopública,como umapiscadelaburlescaou umaincursãofracassadaaos carneiros. Emboraumaideação,nãoexistena cabeçadealguém;emboranão- física,nãoé umaidentidadeoculta.O debateinterminável,porque não-terminável,dentrodaantropologia,sobreseaculturaé"subjeti- va" ou "objetiva",ao ladoda trocamútuade insultosintelectuais ("idealista!"- "materialista!";"mentalista!"- "behavorista!";"im- pressionista!"- "positivista!")queo acompanha,é concebidode formatotalmenteerrônea.Umavezqueocomportamentohumanoé vistocomoaçãosimbólica(namaioriadasvezes;háduascontrações) - umaaçãoquesignifica,comoafonaçãonafala,o pigmentonapin- tura,a linhanaescritaoua ressonâncianamúsica,- o problemasea culturaéumacondutapadronizadaou umestadodamenteoumes- moasduascoisasjuntas,dealgumaformaperdeo sentido.O quese deveperguntara respeitodeumapiscadelaburlescaou de umain- cursãofracassadaaoscarneirosnão é qualo seustatusontológico. Representao mesmoquepedrasdeumladoesonhosdo outro- são coisasdestemundo.O quedevemosindagaréqualéasuaimportân- cia:o queestásendotransmitidocoma suaocorrênciae atravésda lu~ar,suaco-presençaproduziuumasituaçãona qualumdesentendi- mentosistemáticoreduziuumaformatradicionalaumafarsasocial. O quelevouCohena fracassar,ecomeletodoo antigopadrãodere- laçõessociaiseeconômicasdentrodo qualelefuncionava,foi uma confusãode idiomas. Voltareia esteaforismodemasiadocompactomaistarde,bem comoaosdetalhessobreo própriotexto.O pontoaenfocaragoraé somentequea etnografiaéumadescriçãodensa.O queo etnógrafo enfrenta,defato- a nãoserquando(comodevefazer,naturalmente) estáseguindoas rotinasmaisautomatizadasde coletardados- é umamultiplicidadedeestruturasconceptuaiscomplexas,muitasde- lassobrepostasou amarradasumasàs outras,quesãosimultanea- menteestranhas,irregularese inexplícitas,e queeletemque,dealgu- maforma,primeiroapreenderedepoisapresentar.E issoéverdade emtodosos níveisdeatividadedo seutrabalhodecampo,mesmoo maisrotineiro:entrevistarinformantes,observarrituais,deduziros termosdeparentesco,traçaraslinhasdepropriedade,fazero censo doméstico...escreverseudiário(Fazeraetnografiaécomotentarler (nosentidode"construirumaleiturade")ummanuscritoestranho, desbotado,cheiode elipses,incoerências,emendassuspeitase co- mentáriostendenciosos,escritonãocomos sinaisconvencionaisdo som,mascomexemplostransitóriosdecomportamentomodelado... 21POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA suaagência,sejaelaumridículoou umdesafio,umaironiaou uma zanga,um debocheou um orgulho. Issopodeparecerumaverdadeóbvia,mashá inúmerasformas deobscurecê-Ia.Umadelaséimaginarqueaculturaéumarealidade "superorgânica"autocontida,comforçasepropósitosemsimesma, istoé, reificá-Ia.Outraéalegarqueelaconsisteno padrãobrutode acontecimentoscomportamentaisquede fato observamosocorrer emumaououtracomunidadeidentificável- issosignificareduzi-Ia. Todavia,emboraessasduasconfusõesaindaexistam,esempreconti- nuarãoconosco,semdúvida,a fonteprincipaldedesordemteórica naantropologiacontemporâneaé umaopiniãoquesedesenvolveu emreaçãoaelasequehojeé largamentedifundida- a saber,"a cul- tura(estálocalizada)namenteenocoraçãodoshomens",paracitar Ward Goodenough,talvezseuproponentemaisfamoso. Chamadadiversamentedeetnociência,análisecomponencialou antropologiacognitiva(hesitaçãoterminológicaquerefleteumain- certezaprofunda),essaescoladepensamentoafirmaquea culturaé compostadeestruturaspsicológicaspormeiodasquaisosindivíduos ou gruposdeindivíduosguiamseucomportamento."A culturade umasociedade",paracitarnovamenteGoodenough,destaveznuma passagemquesetornouo /oeusc/assieusdetodoo movimento,"con- sisteno quequerquesejaquealguémtemquesaberou acreditara fimdeagirdeumaformaaceitapelosseusmembros."A partirdessa visãodo queéa cultura,segue-seoutravisão,igualmentesegura,do quesejadescrevê-Ia- aelaboraçãoderegrassistemáticas,umalgorit- moetnográficoque,seseguido,tornariapossíveloperá-Iodessama- neira,passarpor um nativo(deixandode lado a aparênciafísica). Destaforma,umsubjetivismoextremoécasadoaumformalismoex- tremo,como resultadojá esperado:umaexplosãodedebatessobre seas análisesparticulares(quesurgemsoba formadetaxonomias, paradigmas,tabelas,genealogiase outrasinventivas)refletemo que os nativospensam"realmente"ou sesãoapenassimulaçõesinteli- gentes,equivalenteslógicos,massubstantivamentediferentesdoque elespensam. Já que,numprimeirorelance,essaabordagempodeparecersu- ficientementepróximadaqueestásendodesenvolvidaaquiparaser tomadaporela,éútilserbemexplícitoquantoaoqueassepara.Dei- xandodelado,porummomento,nossaspiscadelasecarneiros,seto- mamos,porexemplo,umquartetodeBeethovencomoumaamostra decultura,muitoespecial,massuficientementeilustrativaparaestes propósitos,acreditoqueninguémo identificariacomos seusarran- jos musicais,coma habilidadeeo conhecimentonecessárioparato- cá-Io,coma compreensãodelequetêmseusinstrumentistasou ou- vintes,nem,paralevaremcontaenpassantosreducionistaseosreifi- , A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS20 David Highlight cadores,comumaexecuçãoparticulardo quartetoou comalguma entidademisteriosaquetranscendesuaexistênCiamaterial.Talveza expressão"ninguém"aquiutilizadasejademasiadoforte,poissem- preháosincorrigíveis.Todavia,o fatodeumquartetodeBeethoven serumaestruturatonaldesenvolvidatemporalmente,umaseqüência coerentedesonsmodulados- emsuma,umamúsica- enãooconhe- cimentoouacrençadequalquerpessoaemalgo,inclusivecomoexe- cutá-Ia,é umaproposiçãocoma qual,apósrefletir,concordaráa maioriadaspessoas. Paratocarviolinoénecessáriopossuircertoshábitos,habilida- des;conhecimentoe talento,estarcomdisposiçãodetocare(como piada)terumviolino.Mastocarviolinonãoénemohábito,ahabili- dade,o conhecimentoeassimpordiante,nemadisposiçãoou(ano- ção queos crentesna "culturamaterial"aparentementeseguem)o próprioviolino.ParafazerumtratadocomercialemMarrocosvocê temquefazercertascoisas,deumacertamaneira(entreoutras,en- quantocantaemárabeQuranic,cortara gargantade um cordeiro anteosmembrosmasculinosadultos,não-aleijados,desuatriboreu- nidos)e possuircertascaracterísticaspsicológicas(entreoutras,um desejodecoisasdistantes).Masumpactocomercialnãoénemcortar a gargantanemo desejo,emboraestesejabastantereal,conforme descobriramseteparentesdo nosso"xeque" Marmushaquando, numaocasiãoanterior,foramporeleexecutadosemseguidaaorou- bo de umapelede carneiroesfarrapadae praticamentesemvalor pertencentea Cohen. A culturaépúblicaporqueo significadoo é.Vocênãopodepis- car(ou caricaturara piscadela)semsabero queéconsideradouma piscadelaou comocontrair,fisicamente,suaspálpebras,evocênão podefazerumaincursãoaoscarneiros(ou imitá-Ia)semsabero que é roubarum carneiroe comofazê-Iona prática.Mas tirar detais verdadesaconclusãodequesabercomopiscarépiscaresabercomo roubarumcarneiroéfazerumaincursãoaoscarneirosérevelaruma confusãotãograndecomo,assumindoasdescriçõessuperficiaispor densas,identificaraspiscadelascomcontraçõesdepálpebrasou in- cursãoaoscarneiroscoma caçaaosanimaislanígerosforadospas- tos.A faláciacognitivista- dequea culturaconsiste(paracitarum outroporta-vozdomovimento,StephenTyler)"emfenômenosmen- taisquepodem(elequerdizer"poderiam")seranalisadosatravésde métodosformaissimilaresaosda matemáticae da lógica" - é tão destrutivado usoefetivodo conceitocomoo sãoasfalácias"beha- vorista"e "idealista",paraasquaiseleéumacorreçãomalconcluí- da.Comoseuserrossãomaissofisticadosesuasdistorçõesmaissu- tis, talvezsejaaindamaisdo queisso. IV Situar-nos,umnegócioenervantequesóébem-sucedidoparcialmen- te,eisno queconsistea pesquisaetnográficacomoexperiênciapes-soal.Tentarformulara basena qualseimagina,sempreexcessiva- mente,estar-sesituado,eis no queconsisteo textoantropológico como empreendimentocientífico.Não estamosprocurando,pelo menoseunãoestou,tornar-nosnativos(emqualquercaso,eisuma palavracomprometida)ou copiá-Ios.Somenteosromânticosou os espiõespodemacharissobom.O queprocuramos,no sentidomais amplodo termo,quecompreendemuitomaisdo quesimplesmente 23POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA oataquegeneralizadoàsteoriasdesignificadoconstitui,desde Husserl,chegandoaWittgenstein,partetãointegrantedopensamen- to modernoquenãoénecessáriodesenvolvê-Ioaquimaisumavez.O queé necessárioéverificarseasnotíciasa respeitochegamàantro- pologia;e emparticularesclarecerq~edizerq~ea culturaconsisteem estruturasde significadosocialmenteestabelecidas,nostermosdas quaisaspessoasfazemcertascoisascomosinaisdeconspiraçãoese aliamou percebemosinsultoserespondemaeles,nãoémaisdoque dizerque esseé um fenômenopsicológico,uma característicada mente,dapersonalidade,daestruturacognitivadealguém,oU';oque querqueseja,ou dizeraindao queétantrismo,a gençtie~(aforma progressivadoverbo,aclassificaçãodosvinhos,aCoinmonLawou'a noçãode "uma pragacondicional"(comoWestermarckdefiniuo conceitodo 'aremcujostermosCohenapresentousuaqueixadeda- nos),O queimpedea nós,quecrescemospiscandooutraspiscadelas ou cuidandodeoutroscarneiros,deentendercorretamente,numlugar comoMarrocos,queo quepretendemaspessoasnãoé a ignorância.• sobrecomoatuaa cognição(masprincipalmenteporque,presume- se,elaatuadamesmamaneiraqueentrenós,e seriabemmelhorse pudéssemospassartambémsobreisso)comoa faltadefamiliaridade como universoimaginativodentrodo qualos seusatossãomarcos determinados.Como já invocamosWittgenstein,podemosmuito bemtranscrevê-Io: Falamos... dealgumaspessoasquesãotransparentesparanós. Todavia,é importanteno tocanteaessaobservaçãoqueumser humanopossaserumenigmacompletoparaoutroserhumano. Aprendemosissoquandochegamosa um paísestranho,com tradiçõesinteiramenteestranhase,o queé mais,mesmoquese tenhaumdomíniototaldo idiomado país.Nós nãocompreen- demosopovo(enãopornãocompreendero queelesfalamentre si), Não nospodemossituarentr.eeles. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS22 falar,éconversarcomeles,o queémuitomaisdifícil,e nãoapenas comesuannos,do quesereconhecehabitualmente."Sefalarpor al- guémpareceserumprocessomisterioso",observouStanleyCavell, "issopodeserdevidoaofatodefalara alguémnãoparecerdemanei- ra algumamisterioso." -Vistosobesseângulo,o objetivodaantropologiaéo alargamen- to douniversododiscursohumano.Defato,essenãoéseuúnicoob- jetivo- a instrução,a diversão,o conselhoprático,o avançomorale a descobertadaordemnaturalnocomportamentohumanosãoou- tros,ea antropologianãoéa únicadisciplinaapersegui-Ios.No en- tanto,esseé umobjetivoao qualo conceitodeculturasemióticose adaptaespecialmentebem.Comosistemasentrelaçadosdesignosin- terpretáveis(o queeu chamariasímbolos,ignorandoas utilizações provinciais),aculturanãoéumpoder,algoaoqualpodemseratri- buídoscasualmenteosacontecimentossociais,oscomportamentos, as instituiçõesou os processos;elaé um contexto,algodentrodo qualelespodemserdescritosdeformainteligível- istoé, descritos com densidade. A famosaabsorçãoantropológica.como exótico(paranós)- os cavaleirosberberes,osnegociantesjudeus,oslegionáriosfranceses- é,assim,praticamenteumartifícioparadeslocarosensodefamiliari- dadeembotadorcomo qualo mistérioda nossaprópriahabilidade em relacioná-Ioscompreensivelmenteunsaosoutrosseescondede nós. Procuraro comumem locaisondeexistemformasnão-usuais ressaltanão,comosealegatantasvezes,aarbitrariedadedocompor- tamentohumano(nãohánadaespecialmentearbitrárioemtomaro roubode carneiroscomoinsolênciano Marrocos),maso grauno qualo seusignificadovariadeacordocomo padrãodevidaatravés doqualeleé informado.Compreenderaculturadeumpovoexpõea suanormalidadesemreduzirsuaparticularidade.(Quantomaiseu tentoseguiro quefazemos marroquinos,maislógicose singulares elesmeparecem.)Isso ostornaacessíveis:colocá-Iosno quadrode 'masprópriasbanalidadesdissolvesuaopacidade.E essamanobra,a quesereferemhabitualmente,comumaca- sualidadeexcessiva,como"verascoisasdo pontodevistadeator", ou muitolivrescamentecomo"a abordagemverstehen",ou muito lecnicamentecomo"análiseêmica",quetantasvezeslevaànoçãode quea antropologiaéumavariedadedeleituradamentea longadis- tânciaouumafantasiadailhadoscanibaiseque,paraalguémansio soemnavegarporsobreo naufrágiodeumadúziadefilosofias,deve serexecutadacom o máximode cuidados.Nada maisnecessário paracompreendero queé a interpretaçãoantropológica,e emque grauelaé umainterpretação,doqueacompreensãoexatado queela sepropõedizer- ounãosepropõe- dequenossasformulaçõesdos I Não apenasoutrospovos:aantropologiapode sertreinadanoexamedaculturada qualelaprópriaéparte- eo é demaneiracrescente.Esseé umfatodeprofundaim- portância,mas,comodáorigema algunsproblemasespeciaisdeordemsecundáriae umtantocomplicados,deixá-lo-eià parteno momento. 2 O problemadaordem,novamente,écomplexo.TrabalhosantropológiCOSbaseados emoutrasobrasantropológicas(Lévi-Strauss,por exemplo)podemseratédequarta mãooumais,e mesmoosinformantesfreqüentemente,atémesmohabitualmente,fa- lem interpretaçõesdesegundamão- o quepassoua serconhecidocomo"modelos nativos".Nasculturasmaisadiantadas,ondea interpretação"nativa"podealcançar níveismaiselevados- comreferênciaao Maghreb,temosquepensarapenasemIbn Khaldun;quantoaosEstadosUnidos,emMargaretMead- essestemassetornam,na verdade,muitointrincados. sistemassimbólicosde outros povosdevemser orientadaspelos atos. Issosignificaqueasdescriçõesdasculturasberbere,judaicaou francesadevemsercalculadasemtermosdasconstruçõesqueimagi- namosqueosberberes,osjudeusouosfrancesescolocamatravésda vidaquelevam,a fórmulaqueelesusamparadefiniro queIhesacon- tece.O queissonãosignificaéquetaisdescriçõessãoelasmesmas berbere,judiaou francesa- istoé,partedarealidadequeelasdescre- vemostensivamente;elassãoantropológicas- istoé,partemdeum sistemaemdesenvolvimentodeanálisecientífica.Elasdevemseren- caradasemtermosdasinterpretaçõesàsquaispessoasdeumad~no- minaçãoparticularsubmetemsuaexperiência,umavezqueissoéo queelasprofessamcomodescrições.Sãoantropológicasporque,de fato,sãoosantropólogosqueasprofessam.Normalmente,nãoéne- cessárioressaltarde formatão laboriosaqueo objetode estudoé umacoisae o estudoéumaoutra.Estábastanteclaroqueo mundo físiconãoéa físicaequeA SkeletonKeytoFinnegan'sWakenãoéo Finnegan'sWake.Todavia,comono estudoda culturaa análisepe- netrano própriocorpodo objeto- istoé,começamoscomasnossas própriasinterpretaçõesdoquepretendemnossosinformantes,ouo que achamosqueelespretendem,e depoispassamosa sistematizá-Ias-, a linhaentrecultura(marroquina)comoum fato naturale cultura (marroquina)comoentidadeteóricatendea serobscurecida.Isso ocorreaindamaisna medidaemquea últimaé apresentadasoba formadeumadescriçãodoatordasconcepções(marroquinas)deto- dasascoisas,desdeaviolência,ahonra,adivindadeeajustiça,atéa tribo,a propriedade,a patronageme a chefia. Rt:Sumindo,os textosantropológicossãoelesmesmosinterpreta- çõese,naverdade,desegundaeterceiramão.(Por definição,somen- teum"nativo" faza interpretaçãoemprimeiramão:éa suacultu- ra.)2 Trata-se,portanto,deficções;ficçõesnosentidodequesão"al- 25POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURAA INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS24 David Highlight • No original,soltscience,emoposiçãoàshard sciences,debasematemática,consi- deradasmaisexatas. goconstruído","algomodelado"- o sentidooriginaldefict;o - não quesejamfalsas,não-fatuaisou apenasexperimentosdepensamen- to. Construirdescriçõesoriéntadaspeloatordosenvolvimentosde umchefeberbere,ummercadorjudeueumsoldadofrancêsunscom osoutrosno Marrocosde1912eclaramenteumatodeimaginação, nãomuitodiferentedaconstruçãodedescriçõessemelhantesde,di- gamos,osenvolvimentosunscomosoutrosdeummédicofrancêsde província,coma mulherfrívolae adultéraeseuamanteincapaz,na Françado séculoXIX. Nesteúltimocaso,osatoressãorepresenta- dos comohipotéticose os acontecimentoscomose não tivessem ocorrido,enquantono primeirocasoelessãorepresentadoscomo verdadeiros,ou pelomenoscomoaparentementeverdadeiros.Essa nãoé umadiferençade pequenaimportância:éprecisamentea que MadameBovarytevedificuldadeemapreender.Mas a importância nãoresideno fatoçlahistóriadelatersidoinventadaenquantoa de Cohenfoi apenasanotada.As condiçõesdesuacriaçãoeo seuenfo- que(paranãofalardamaneiraedaqualidade)diferem,todaviauma é tantoumafict;o - "uma fabricação"- quantoa outra. Nemsempreos antropólogostêmplenaconsciênciadessefato: queemboraaculturaexistanopostocomercial,nofortedacolinaou no pastoreiodecarneiros,a antropologiaexisteno livro, no artigo, naconferência,naexposiçãodomuseuou,comoocorrehoje,nosfil- mes.Convencer-sedissoécompreenderquea linhaentreo modode representaçãoe o conteúdosubstantivoé tão intraçávelna análise culturalcomoénapintura.E estefato,porsuavez,pareceameaçaro statusobjetivodo conhecimentoantropológico,sugerindoquesua fontenãoé a realidadesocial,masum artifícioerudito. Essaameaçaexiste,naverdade,maselaésuperfitial.A exigên- ciadeatençãodeumrelatórioetnográficonãorepousatantonaca- pacidadedo autoremcaptaros fatosprimitivosemlugaresdistan- tese levá-Iasparacasacomoumamáscaraou um entalho,masno grauemqueeleé capazdeesclarecero queocorreemtaislugares, parareduzira perplexidade- quetiposdehomenssãoesses?- aque naturalmentedãoorigemos atosnão-familiaresquesurgemdeam- bientesdesconhecidos.Issonaturalmentelevantaalgunsproblemas sériosdeverificação- ou,se"verificação:'éumapalavramuitoforte paraumaciênciatãosoft*(pormimeupreferiria"avaliação")- de quemaneiradiferençarumrelatomelhordeumpior.Todavia,essaé tambémasuamelhorvirtude.Seaetnografiaéumadescriçãodensa 29POR liMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA tJiho dosofcnsores,aindaresistentesà autoridadefrance- ~;JIsiderllr11 incursãocomo"verdadeira"e lutaremvez o <::> " I' . h b I.r:- 'ó -,j.lllceses,sc ossemmaIs a iesemenosdurs( como '2. ~ ~ '?t~ tardc,soh11 tutclagemsenhorialdo Marechal r;J. ~ p..'ô~ 'Ulitir11 ('ohcnconservarseuscarneiros,con-? ._~? <J'l<J'l t' - d d - d '.,.. ~ é d" o ç. ';.com11 con lOuaçaoo pa rao ecomer-,.). ~ ç;.<J'l~''''? ~'C..~~ <J'l~ ~l~dedeles.E háaindaoutraspossibili- ~ ~.o &§-% ~ ~ \!I lItulIçàodosfrancesescomoum 40 •~ . ~ ~ '{)'ôoo'<1""idcIlCillentreeles;osfranceseso o o -o o -o ,~'" .. d'd' l O·Ú ç. ~ o ~ o <.! 9,"Gil,IllasImporme I asmaist. •••••..• <J'l...•-o ~.~ ~'t .%, ~ ~ %..~.:::. o ~ ~ ~~~tcrconcluídoqueentre 4 o .~'ó o 'a ~ '?t~ o <fl~':~stc"nãovaliamaisa.,.. o ~ p.."" o é-O :---0, .u.; o •.'!J. 0·0 ~ ç;.'7 u ç. IQ e retuar-separa r;t. o? ? <J'lo -ó o 'a ...•~ o ~ d ' Ora ~ ~ d"'tio '{)~ ~ 'fy ?l~-o ~ ~'f.gSou menoso porto ',", ç. \ '; 'f},~ '2. ~ o ....·o.~ p..~ o 1.(\0avançou.,.. o <J'lO· ? ..•-ó ...•• "0" é p...;:. antes '1-"à,~ ....~<J'lt:. "Ó- o 'C. <J'l'a I';.. 'ô ~ 'é édescre- ~ •••••<.Y w ç;. o ~ é -ó 00 ~ ••••~ "O" o ".numa 4 \ ~ 'é ~ 'é '0 o;;. ~ ~ o>o ç. ~ o ~ \'t~.sin-ç. ~...-.~ . -ó 'é o ~-o ....•~ ~ Propri. <J'l.;:;.~ ~ .....'~ ~.;::,? ",,'S <!:."" fy ~ '7;."&l-oç;.~<fl~""'~~ <J'léO~éç.""'~p.. o comp ~ o o O ~ o ? ? 'ó'';J, <;- ';;' 'f},~ ~ ~:.. d ?-o Ooll<J'lOo •.•<fl'é?oo .....mo o rr, o ~~ ~ •o -ó o o ,o~ ç. . b' I' <J'l ...•u. ~ ? 'é ""sim o ICI o o d" .•..•'<J'l'ó o d" isolamem ~ ~ 9, ~ %. 'é "" treessese, ~ ~.~ / ..' ..••de umaform~ ~ AIltôrno dos quaiselaé .~úasdasquaiséuma expressãoSl A loeológicosnosquaiselase baseia.Embl ..•Inamelhoriaacentuadaemrelaçãoàs noçõesde "(. ."mentoaprendido"e "fenômenomental"do queéa culturaefontedealgumasdasidéiasteóricasmaispoderosas daantropologiacontemporânea,essaabordagemherméticadascoi- sasparece-mecorrero perigodefechar(edesersuperadacadavez maisporela)aanáliseculturallongedoseuobjetivocorreto,alógica informaldavidareal.Hápoucavantagememseextrairumconceito dosdefeitosdopsicologismoapenasparamergulhá-Io,imediatamen- te,nosdo esquematismo. Deveatentar-separao comportamento.ecomexatidão,poisé atravésdo fluxo do comportamento- ou, maisprecisamente,da açãosocial- queasformasculturaisencontramarticulação.Elasen- contram-natambém,certamente,emváriasespéciesde artefatose váriosestadosde consciência.Todavia,nestescasoso significado emergedopapelquedesempenham(Wittgensteindiriaseu"uso") no padrãodevidadecorrente,nãodequaisquerrelaçõesintrínsecasque mantenhamumascomasoutras.É o queCohen,o "xeque"eo "Ca- pitãoDumari" estavamfazendoquandotropeçavamnosobjetivos A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS26 • No original,sofrscience.emoposiçãoàshard sciences.debasematemática,consi- deradasmaisexatas. goconstruído","algomodelado"- o sentidooriginaldefictio - não quesejamfalsas,não-fatuaisou apenasexperimentosdepensamen- to. Construirdescriçõesorientadaspeloatordosenvolvimentosde umchefeberbere,ummercadorjudeueumsoldadofrancêsunscom osoutrosno Marrocosde1912eclaramenteumatodeimaginação, nãomuitodiferentedaconstruçãodedescriçõessemelhantesde,di- gamos,osenvolvimentosunscomosoutrosdeummédicofrancêsde província,coma mulherfrívolae adultéraeseuamanteincapaz,na Françado séculoXIX. Nesteúltimocaso,os atoressãorepresenta- dos comohipotéticose os acontecimentoscomo se não tivessem ocorrido,enquantono primeirocasoelessãorepresentadoscomo verdadeiros,ou pelomenoscomoaparentementeverdadeiros.Essa nãoé umadiferençade pequenaimportância:éprecisamentea que MadameBovarytevedificuldadeemapreender.Mas a importância nãoresideno fato<,iahistóriadelatersidoinventadaenquantoa de Cohenfoi apenasanotada.As condiçõesdesuacriaçãoeo seuenfo- que(paranãofalardamaneiraedaqualidade)diferem,todaviauma é tantoumafictio - "uma fabricação"- quantoa outra. Nemsempreos antropólogostêmplenaconsciênciadessefato: queemboraaculturaexistanopostocomercial,no fortedacolinaou no pastoreiodecarneiros,a antropologiaexisteno livro,no artigo, naconferência,naexposiçãodomuseuou,comoocorrehoje,nosfil- mes.Convencer-sedissoécompreenderquea linhaentreo modode representaçãoe o conteúdosubstantivoé tão intraçávelna análise culturalcomoénapintura.E estefato,porsuavez,pareceameaçaro statusobjetivodo conhecimentoantropológico,sugerindoquesua fontenãoé a realidadesocial,masum artifícioerudito. Essaameaçaexiste,naverdade,maselaésuperfitial.A exigên- ciadeatençãodeumrelatórioetnográficonãorepousatantonaca- pacidadedo autoremcaptaros fatosprimitivosemlugaresdistan- tese levá-losparacasacomoumamáscaraou umentalho,masno grauemqueeleé capazdeesclarecero queocorreemtaislugares, parareduzira perplexidade- quetiposdehomenssãoesses?- aque naturalmentedãoorigemos atosnão-familiaresquesurgemdeam- bientesdesconhecidos.Issonaturalmentelevantaalgunsproblemas sériosdeverificação- ou,se"verificação:'éumapalavramuitoforte paraumaciênciatãosoft*(pormimeupreferiria"avaliação")- de quemaneiradiferençarumrelatomelhordeumpior.Todavia,essaé tambéma suamelhorvirtude.Seaetnografiaéumadescriçãodensa v 27POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA Ora,essílproposição,dequenãoé do nossointeresseretirardo com- portamentohumanojustamenteaspropriedadesquenosinteressam antesde começara examiná-lo,temsido,por vezes,dimensionada numagrandealegação:asaber,dequeumavezquesãoapenasessas propriedadesquenosinteressam,nãoprecisamosnospreocuparcom o comportamento,anãosersuperficialmente.A culturaétratadade modomaisefetivo,prossegueoargumento,puramentecomosistema simbólico(a expressão-chaveé, "em seusprópriostermos"),pelo isolamentodosseuselementos,especificandoasrelaçõesinternasen- treesseselementosepassandoentãoacaracterizartodoo sistemade umaformageral- deacordocomossímbolosbásicosemtornodos quaiselaé organizada,asestruturassubordinadasdasquaiséuma expressãosuperficial,ou os princípiosideológicosnosquaiselase baseia.Emborasetratejá deumamelhoriaacentuadaemrelaçãoàs noçõesde "comportamentoaprendido"e "fenômenomental"do queéa culturae fontedealgumasdasidéiasteóricasmaispoderosas daantropologiacontemporânea,essaabordagemherméticadascoi- sasparece-mecorreroperigodefechar(edesersuperadacadavez maisporela)aanáliseculturallongedoseuobjetivocorreto,alógica informaldavidareal.Hápoucavantagememseextrairumconceito dosdefeitosdopsicologismoapenasparamergulhá-lo,imediatamen- te,nosdo esquematismo. Deveatentar-separao comportamento,e comexatidão,poisé atravésdo fluxo do comportamento- ou, maisprecisamente,da açãosocial- queasformasculturaisencontramarticulação.Elasen- contram-natambém,certamente,emváriasespéciesde artefatose váriosestadosde consciência.Todavia,nestescasoso significado emergedopapelquedesempenham(Wittgensteindiriaseu"uso")no padrãodevidadecorrente,nãodequaisquerrelaçõesintrínsecasque mantenhamumascomasoutras.É o queCohen,o "xeque"eo "Ca- pitãoDumari" estavamfazendoquandotropeçavamnosobjetivos eos etnógrafossãoaquelesquefazema descrição,entãoa questão determinanteparaqualquerexemplodado,sejaumdiáriodecampo sarcásticoou umamonografiaalentada,dotipo Malinowski,éseela separaas piscadelasdostiquesnervosose aspiscadelasverdadeiras dasimitadas.Não precisamosmedira irrefutabilidadedenossasex- plicaçõescontraumcorpodedocumentaçãonão-interpretada,des- criçõesradicalmentesuperficiais,mascontrao poderdaimaginação científicaquenoslevaaocontactocomasvidasdosestranhos.Con- formedisseThoreau,nãovaleapenacorrero mundoparacontaros gatosde Zanzibar. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS26 unsdosoutros- fazendoo comércio,defendendoa honra,estabele- cendoa dominação- quecriou nessedramapastoral,e é "sobre" issoqueo dramasurgiu,portanto.Quaisquerquesejam,ou onde querqueestejamessessistemasdesímbolos"emseuspróprioster- mos",ganhamosacessoempíricoa elesinspecionandoos aconteci- mentosenãoarrumandoentidadesabstratasempadrõesunificad9s. Outraimplicaçãoéqueacoerêncianãopodesero principaltes- te de validadede umadescriçãocultural.Os sistemasculturaistêm queterumgraumínimodecoerência,do contrárionãooschamaría- mossistemas,e atravésdaobservaçãovemosquenormalmenteeles têmmuitomaisdo queisso.Mas nãohánadatãocoerentecomoa ilusãode um paranóicoou a estóriade umtrapaceiro.A forçade nossasinterpretaçõesnãopoderepousar,comoacontecehojeemdia comtantafreqüência,narigidezcomqueelassemantêmounasegu- rançacomquesãoargumentadas.Creio quenadacontribuiumais paradesacreditarIIanáliseculturaldoqueaconstruçãoderepresen- taçõesimpecáveisde ordemformal,emcuja existênciaverdadeira praticamenteninguémpodeacreditar. Sea interpretaçãoantropológicaestáconstruindoumaleitura do queacontece,entãodivorciá-Iado queacontece- do que,nessa ocasiãoou naquelelugar,pessoasespecíficasdizem,o queelasfa- zem,o queé feitoaelas,apartirdetodoovastonegóciodomundo- édivorciá-Iadassuasaplicaçõese torná-Iavazia.Umaboainterpre- taçãodequalquercoisa- umpoema,umapessoa,umaestória,um ritual,umainstituição,umasociedade- leva-nosaocernedoquenos propomosinterpretar.Quandoissonãoocorreenosconduz,aocon- trário,aoutracoisa- a umaadmiraçãodasuaprópriaelegância,da inteligênciado seuautoroudasbelezasdaordemeuclidiana-, isso podeterencantosintrínsecos,maséalgomuitodiferentedoqueata- refaquetemos- exigedescobriro quesignificatodaa tramacomos carneiros. .A tramacomoscarneiros- atapeaçãodoroubo,a transferência reparadora,o confiscopolíticodeles- é (ou foi) essencialmenteum discursosocial.mesmoquetenhasido feito,comosugerianterior- mente,emdiversosidiomase tantoem açãocomoempalavras. Ao reclamaro seu'ar,Coheninvocouo pactocomercial;reco- nhecendoaalegação,o xequedesafiouatribodosofensores;aceitan- do a responsabilidade,a tribo dos ofensorespagoua indenização; ansiosopor demonstrartanto aos xequescomo aos negociantes quemestavano poder,o francêsmostrouamãodominadora.Como emqualquerdiscurso,o códigonãodeterminaaconduta,eo quefoi dito nãoprecisavasê-Io,na verdade.Dadaa suailegitimidadeaos olhosdo Protetorado,Cohennãoprecisavaserescolhidoparapres- sionarsuaqueixa.Por motivossemelhantes,o xequepoderiatê-Iare- Não oacontecimentodefalar,maso quefoi "dito", ondecom- preendemos,peloquefoi "dito" no falar,essaexteriorizaçãoin- tencionalconstitutivado objetivodo discursograçasaoqualo sagen- o dito- torna-seAus-sage- aenunciação,o enunciado. Resumindo,o queescrevemoséo noema("pensamento","con- teúdo","substância")do falar.É o significadodoacontecimen- to de falar,nãoo acontecimentocomoacontecimento. O etnógrafo"inscreve"o discursosocial:eleo anota.Ao fazê-Io, eleo transformadeacontecimentopassado,queexisteapenasemseu própriomomentodeocorrência,emumrelato,queexisteemsuains- criçãoequepodeserconsultadonovamente.O xequejá estámorto há muito tempo, assassinadono processo de "pacificação" como o chamaramos franceses:o "Capitão Dumari", seupaci- ficador,morano Sul da França,aposentadojuntamentecomsuas lembranças:eCohenfoi noanopassadopara"casa",paraIsrael,em partecomorefugiado,empartecomoperegrinoeemp~rtecomopa- triarcamoribundo.Todavia,no meusentidoamplo,o queeles"dis- seram"unsaosoutros,há sessentaanos,nosplanaltosdo Atlas - emboralongedaperfeição- estáconservadoparaestudo.Paul Ri- coeur,dequemfoi emprestadaeumtantodistorcidatodaa idéiada inscriçãoda ação,pergunta,"O quea escritafixa?" 29POR UMA TEORIA INTERPRETATlVA DA CULTURA cusado.A tribo dosofensores,aindaresistentesàautoridadefrance- sa,poderiaconsiderara incursãocomo"verdadeira"e lutaremvez denegociar.Osfranceses,sefossemmaishabilesemenosdurs( como ocorreude fato,maistarde,soba tutelagemsenhorialdo Marechal Lyautey),poderiampermitira Cohenconservarseuscarneiros,con- cordando- comodizemos- comacontinuaçãodopadrãodecomér- cio esuaslimitaçõesà autoridadedeles.E háaindaoutraspossibili- dades:os Marmushaspodiamvera atuaçãodosfrancesescomoum insultomuitogrande,eentraremdissidênciaentreeles;osfranceses poderiamtentarnãoapenasapertarCohen,masimpormedidasmais drásticasao próprioxeque;eCohenpoderiaterconcluídoqueentre os renegadosberberese os soldados"BeauGeste"nãovaliamaisa penafazernegócionaregiãomontanhosado Atlas,eretirar-separa o recintoda cidade,melhorgovernada.Aliás, foi maisou menoso queaconteceu,umpoucomaistarde,quandoo Protetoradoavançou paraumasoberaniagenuína.Entretanto,o pontoaquinãoédescre- vero queaconteceuounãono Marrocos.(A partirdessesimplesin- cidente,podechegar-sea complexidadesenormesde experiênciaso- cial.)Issoé apenasparademonstraremqueconsisteumtipo dein- terpretaçãoantropológica:traçaracurvadeumdiscursosocial;fixá- 10 numaformainspecionável. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS28 3 Ou maisumavez,maisexatamente,"inscreve".Aliás,a maiorpartedaetnografiaé encontradaemlivrose artigos,emvezdefilmes,discos,exposiçõesde museus,etc. Mesmoneleshá, certamente,fotografias,desenhos,diagramas,tabelase assimpor diante.Temfeitofaltaà antropologiaumaautoconsciênciasobremodosderepresen- tação(paranão falar deexperimentoscomelas). 4 Na medidaemquereforçouo impulsodo antropólogoemengajar-secomseusin- formantescomopessoasaoinvésdeobjetos,anoçãode"observaçãoparticipante"foi umanoçãovaliosa.Todavia.elasetransformanafontemaispoderosademáféquan- do levao antropólogoa bloqueardasuavisãoanaturezamuitoespecial,culturalmen- teenquadrada,do seuprópriopapele imaginar-sealgomaisdo queuminteressado (nosjois sentidosda palavra)temporário. Issonãoestámuitobem"dito" - seos filósofosdeOxfordre- correma historietas,os fenomenológicosempregamfraseslongas. Dequalquerforma,issonoslevaaumarespostamaisprecisaànossa indagação:"O quefaz o etnógrafo?"- eleescr~ve.Isso também podeparecerumadescobertaumtantosurpreendenteetalvezatéim- plausívelparaquemestáfamiliarizadocoma "literatura"corrente. Entretanto.comoa respostapadrãoà nossaquestãotemsido"ele observa.eleregistra,eleanalisa"- umaespéciedeconcepçãodeveni, I'idi.vincido assunto- elapodeterconseqüênciasbemmaisprofun- dasdoquenaaparência,sendoquetalveza menordelas,adedistin- guiressastrêsfasesdabuscadeconhecimento,podenãosernormal- mentepossível.naverdade,edefato,como"operações"autônomas elaspodemnemsequerexistir. \ A situaçãoéaindamaisdelicadaporque,comojá foi observado, oqueinscrevemos(outentamosfazê-Io)nãoéodiscursosocialbrutoao qualnãosomosatores,nãotemosacessodiretoa nãosermargi- nalmente.oumuitoespecialmente,masapenasàquelapequenaparte delequeos nossosinformantesnos podemlevara compreender.4 Issonãoétãofatalcomosoa,pois,naverdade,nemtodososcreten- sessãomentirosos,enãoénecessárioconhecertudoparapoderen- tenderumacoisa.Todavia,issotornaa visãodaanáliseantropológi- cacomomanipulaçãoconceptualdosfatosdescobertos,umarecons- truçãológicadeumasimplesrealidade,parecerumtantoincomple- ta.Apresentarcristaissimétricosdesignificado,purificadosdacom- plexidadematerialnosquaisforamlocalizados,edepoisatribuirsua existênciaa princípiosdeordemautógenos,atributosuniversaisda mentehumanaou vastos,a priori, Weltanschauungen,é pretender umaciênciaquenãoexistee imaginarumarealidadequenãopode serencontrada.A análiseculturalé(oudeveriaser)umaadivinhação dos significados,umaavaliaçãodasconjeturas,umtraçardecon- clusõesexplanatóriasa partirdasmelhoresconjeturase não a des- 30 A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS I POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA 31 cobertado ContinentedosSignificadoe o mapeamentodasuapai- sagemincorpórea. VI Assim,hátrêscaracterísticasdadescriçãoetnográfica:elaéinterpre- tativa;o queelainterpretaéo fluxododiscursosocialea interpreta- çãoenvolvidaconsisteemtentarsalvaro "dito" numtaldiscursoda suapossibilidadedeextinguir-see fixá-Ioemformaspesquisáveis.O kuladesapareceuou foi alterado,mas,dequalquerforma,OsArgo- nautq:sdo PacíficoOcidentalcontinuaa existir.Há ainda,emadita- mento,umaquartacaracterísticadetaldescrição,pelomenoscomo eu a pratico:elaé microscópica. Issonãosignificaquenãohajainterpretaçõesantropológicasem grandeescala,de sociedadesinteiras,civilizações,acontecimentos mundiaise assimpor diante.Aliás, é justamenteessaextensãode nossasanálisesa contextosmaisamplosque,juntamentecomsuas implicaçõesteóricas,asrecomendaà atençãogeralejustificanosso empenhoemconstruí-Ias.Ninguémsepreocupamais,nemmesmo Cohen(bem...podeserqueele),comoscarneiroscomotal.A histó- ria podeter seuspontoscríticosdiscretos,"muito barulhopor na- da", e certamenteessapequenacomédianão foi um deles, É paradizer,simplesmente,queo antropólogoabordacaracte- risticamentetaisinterpretaçõesmaisamplaseanálisesmaisabstratas a partirdeumconhecimentomuitoextensivodeassuntosextrema- mentepequenos.Eleconfrontaasmesmasgrandesrealidadesqueos outros- historiadores,economistas,cientistaspolíticos,sociólogos- enfrentamem conjunturasmais decisivas:Poder, Mudança,Fé, Opressão,Trabalho,Paixão,Autoridade,Beleza,Violência,Amor, Prestígio.Maseleasconfrontaemcontextosmuitoobscuros- luga~ rescomoMarmushaevidascomoasdeCohen- pararetirardelesas maiúsculas.Essasconstânciasdemasiadohumanas,"essaspalavras altissonantesqueassustamatodos",assumemumaformadoméstica emtaiscontextoscaseiros.Masessaéjustamenteavantagem;já exis- temsuficientesprofundidadesno mundo. Entretanto,o problemadecomoretirarde umacoleçãodemi- niaturasetnográficasa respeitoda nossaestóriadecarneiros- um conjuntodeobservaçõese anedotas- umaamplapaisagemcultural danação,daépoca,docontinenteoudacivilização,nãosefazfacil- mentepassandoporcimacomvagasalusõesàsvirtudesdoconcreto eda mentecomum.Paraumaciêncianascidaemtribosindígenas, ilhasdo Pacífico e linhagensafricanas,e subseqüentementeapro- priadaa grandesambições,issotornou-seumimportanteproblema metodológico,na maiorpartedasvezesmuitomal manuseado.Os modelosqueos própriosantropólogoselaboraramparajustificara mudançadeverdadeslocaisparavisõesgeraistêmsido.defato,tão responsáveisemminaro esforçocomoqualquercoisaqueseuscríti- cos- sociólogosobcecadoscomtamanhosdeamostragem.psicólo- goscommedidasoueconomistascomoutrasmedidas- foramcapa- zesde inventarcontraeles. Desses,osdoisprincipaisforam:o modelo"microcósmico"Jo- nesville-é-osEstadosUnidos;e o modelo"experimentonatural"a Ilha dePáscoa-é-um-caso-de-teste.Ou o paraísonumgrãodeareia ou os pontosmaisafastadosda possibilidade. A falácia.Ionesville-é-a-Américaempontopequeno(oua Amé- rica-é-Jonesvilleempontogrande)étãoóbviaquea únicacoisaque exigeexplicaçãoé comoaspessoasconseguiamacreditarnissoe le- varoutrosaacreditaremtambém.A noçãodequesepodeencontrar a essênciadesociedadesnacionais,civilizações,grandesreligiõesou o quequerqueseja,resumidaesimplificadanasassimchamadaspe- quenascidadese aldeias"típicas"é umabsurdovisível.O queseen- contraempequenascidadese vilasé (porsinal)a vidadepequenas cidadesevilas.Seosestudoslocalizados,microscópicos,fossemreal- mentedependentesdetaispremissasparasuamaiorrelevância- se pudessemcapturaro mundoamplono pequeno- elesnão teriam qualquerrelevância. Todavia,issonãoocorrerealmente.O locusdo estudonãoéo objetodoestudo.Os antropólogosnãoestudamasaldeias(tribos,ci- dades,vizinhanças...), elesestudamnasaldeias.Vocêpodeestudar diferentescoisasemdiferenteslocais,e algumascoisas- por exem- plo,o queadominaçãocolonialfazàsestruturasestabelecidasdeex- pectativamoral- podemsermelhorestudadasemlocalidadesisola- das.Issonão faz do lugaro quevocêestáestudando.Nas remotas provínciasdo Marrocoseda Indonésiaeuluteicomasmesmasques- tõescomqueoutroscientistassociaislutaramemlugaresmaiscen- trais- por exemplo,por queas alegaçõesmaisinsistentesdosho- mensemfavordehumanidadesãofeitasemtermosdeorgulhogru- pai?- echegamosquasequeàmesmaconclusão.Podeacrescentar-se umadimensão- especialmentenecessáriano atualclimadelevante- se-e-resolvadaciênciasocial-, masissoétudo.Sevocêtiverquedis- corrersobreaexploraçãodasmassas,háumcertovaloremtervisto ummeeirojavanêsrevolvendoa terraduranteumtemporaltropical ou umalfaiatemarroquinobordandokaftansà luzdeumalâmpada de20watts.Masa noçãoqueissolhedá(equeo colocanumasitua- çãomoralvantajosa,deondevocêpodeolharparaosmenosprivile- giadoseticamente)éno seutodoumaidéiaquesomentealguémque ficou muitotempono matopodeter, possivelmente. CEUB-B1Bl i 33POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA A noçãode"laboratórionatural"temsidoigualmentepernicio- sa,nãoapenasporqueaanalogiaé falsa- queespéciedelaboratório éesseondenenhumdosparâmetrosémanipulável?-, masporqueela levaà noçãodequeos dadosobtidoscomos estudosetnográficos sãomaispuros,ou maisfundamentais,ou maissólidos,ou menos condicionados(a palavrafavoritaé "elementar")do que aqueles conseguidosatravésdeoutrasespéciesdepesquisasocial.A grande variaçãonaturalde formasculturaisé, semdúvida,não apenaso grande(edesperdiçado)recursoda antropologia,maso terrenodo seumaisprofundodilemateórico:dequemaneiratalvariaçãopode enquadrar-secoma unidadebiológicadaespéciehumana?Mas não se trata,mesmometaforicamente,de umavariaçãoexperimental, umavezqueo contextona qualelaocorrevariasimultaneamente comelae nãoépossível(emborahajaaquelesquetentam)isolaros y's dosx's paraescrevera funçãoadequada. Os famososestudosquesepropuserammostrarqueocomplexo deÉdipo funcionavaaocontrárionasilhasTrobriand,queospapéis dosexoestavaminvertidosemTchambuliequefaltavaagressividade aosíndiosPueblo(é característicoquetodoseleseramnegativos- "masnãonoSul"),qualquerquesejaasuavalidadeempírica,sãohi- pótesesnão"testadase aprovadascientificamente".Sãointerpreta- ções,ou interpretaçõeserrôneas,comotantasoutras,a quechega- mosda mesmamaneiraquetantosoutros,e tão inerentementein- conclusivascomotantasoutras,eatentativadeinvesti-Iasdaautori- dadedaexperimentaçãofísicanãopassadeumaprestidigitaçãome- todológica.Os achadosetnográficosnãosãoprivilegiados,apenas particulares:umoutropaísdo qualseouvefalar.Vê-Ioscomoqual- quercoisamais(ouqualquercoisamenos)doqueissodistorcea am- bose àssuasimplicaçõesparaa teoriasocial,muitomaisprofundas queo simplesprimitivismo. Um outropaísdo qual seouviufalar:o motivopor queessas descriçõesalongadas sobredistantesincursõesaos carneirostêm umarelevânciageral(eumetnógraforealmentebomchegariaapon- todedizerqueespéciedecarneiroseram)estáno fatodefornecerem à mentesociológicamaterialsufícienteparaalimentar.O queé im- portantenosachadosdoantropólogoésuaespecificidadecomplexa, suacircunstancialidade.Éjustamentecomessaespéciede material produzidopor um trabalhode campoquaseobsessivode peneira- mento,a longoprazo,principalmente(emboranãoexclusivamente) qualitativo,altamenteparticipanteerealizadoemcontextosconfina- dos,queosmegaconceitoscomosquaisseafligeaciênciasocialcon- temporânea- legitimamente,modernização,integração,conflito,ca- risma,estrutura... significado- podemadquirir toda a espéciede atualidadesensívelquepossibilitapensarnãoapenasrealistae con- A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS32 David Highlight David Highlight David Highlight VII cretamentesobreeles,mas,o queémaisimportante,criativaeimagi- nativamentecom eles. O problemametodológicoqueanaturezamicroscópicadaetno- grafiaapresentaétantorealcomocrítico.Maselenãoseráresolvido observandoumalocalidaderemotacomoo mundonumachávenaou comoo equivalentesociólogodeumacâmaradenuvens.Deveráser solucionado- ou tentarsê-Iodequalquermaneira- atravésdacom- preensãodequeasaçõessociaissãocomentáriosa respeitodemais doqueelasmesmas;deque,deondevemumainterpretaçãonãode- terminaparaondeelapoderáserimpelidaa ir. Fatospequenospo- demrelacionar-seagrandestemas,aspiscadelasàepistemologia,ou incursõesaoscarneirosàrevolução,por queelessãolevadosa isso. 35POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA cos,emembrutecimentosacadêmicoscomsimetriaformal.O ponto globalda abordagemsemióticadaculturaé,comojá disse,auxiliar- nosa ganharacessoao mundoconceptualno qualvivemos nossos sujeitos,de formaa podermos,numsentidoumtantomaisamplo, conversarcomeles.A tensãoentreo obstáculodessanecessidadede penetrarnumuniversonão-familiardeaçãosimbólicaeasexigências do avançotécnicona teoria da cultura,entre a necessidadede apreendere a necessidadedeanalisar,é,emconseqüência,tantone- cessariamentegrandecomo basicamenteirremovível.Com efeito, quantomaislongevaio desenvolvimentoteórico,maisprofundase tornaatensão.Essaéaprimeiracondiçãoparaateoriacultural:não éseuprópriodono.Comonãosepodedesligardasimediaçõesquea descriçãominuciosaapresentà,sualiberdadedemodelar-seemter- mosdeumalógicainternaé muitolimitada.Qualquergeneralidade queconseguealcançarsurgedadelicadezadesuasdistinções,nãoda amplidãodassuasabstrações. A partirdaí,segue-seumapeculiaridadenocaminho:comosim- ple3temade fatoempírico,nossoconhecimentodacultura... cultu- ras... umacultura...cresceaosarrancos.Emvezdeseguirumacurva ascendentede achadoscumulativos,a análisecultural separa-se numaseqüênciadesconexae,noentanto,coerentedeincursõescada vezmaisaudaciosas.Os estudosconstroem-sesobreoutrosestudos, nãono sentidodequeretomamondeoutrosdeixaram,masnosenti- dode que,melhorinformadose melhorconceitualizados,elesmer- gulhammaisprofundamentenasmesmascoisas.Cadaanálisecultu- ralsériacomeçacomumdesvioinicialeterminaondeconsegueche- gar antesde exaurirseuimpulsointelectual.Fatos anteriormente descobertossãomobilizados,conceitosanteriormentedesenvolvidos sãousados,hipótesesformuladasanteriormentesãotestadas,entre- tantoo movimentonãopartedeteoremasjá comprovadosparaou- trosrecém-provados,elepartedetateiodesajeitadopelacompreen- sãomaiselementarparaumaalegaçãocomprovadadequealguéma alcançou~asuperou.Um estudoéumavançoquandoémaisincisi- vo- o quequerqueistosignifique- do queaquelesqueo precede- ram;maseleseconservamenosnosombrosdoquecorreladoalado, desafiadoe desafiando. É por essarazão,entreoutras,queo ensaio,sejadetrintapági- nasoutrezentas,pareceo gêneronaturalno qualapresentarasinter- pretaçõesculturaiseasteoriasqueassustentameporque,.sealguém procuratratadossistemáticosna área,logosedesaponta,principal- mentese encontraalgum.Mesmoartigosde inventáriosão raros aquie,dequalquerforma,apenasdeinteressebibliográfico.As prin- cipaiscontribuiçõesteóricasnãoestãoapenasnosestudosespecíficos - o queéverdadeempraticamentequalquerárea-, masémuitodifí- I A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS O quenosleva,finalmente,àteoria.O pecadoobstruidordasabor- dagensinterpretativasdequalquercoisa- literatura,sonhos,sinto- mas,culturas- équeelastendemaresistir,ou lhesépermitidoresis- tir, à articulaçãoconceptuale,assim,escapara modosdeavaliação sistemáticos.Ou vocêapreendeumainterpretaçãoounão,vêo pon- to fundamentaldelaou não,aceita-aounão.Aprisionadanaimedia- çãodeseuprópriodetalhe,elaéapresentadacomoautovalidanteou, o queépior,comovalidadapelassensibilidadessupostamentedesen- volvidasda pessoaquea apresenta;qualquertentativadevero que elaéemtermosdiferentesdoseupróprioévistacomoumtravesti- comoetnocêntrico,o termomaisseverodoantropólogoparao abu- so moral. É claroqueissonãoserveparaumcampodeestudoque,embo- ra timidamente(emboraeu nãosejatímidoquantoao assunto,em absoluto),afirma-secomociência.Não háqualquerrazãoparaque sejamenosformidávela estruturaconceptualdeumainterpretação culturale,assim,menossuscetívelacânonesexplícitosdeaprovação do que,digamos,umaobservaçãobiológicaou umexperimentofísi- co- nenhumarazão,excetoqueostermosnosquaistaisformulações podemserapresentadassão,senão totalmenteinexistentes,muito próximosdisso.Estamosreduzidosa insinuarteoriasporquefalta- noso poderdeexpressá-Ias. Ao mesmotempo,deveadmitir-sequehá umasériedecarac- terísticasde interpretaçãoculturalquetornamaindamaisdifícil o seudesenvolvimentoteórico.A primeiraéa necessidadedea teoria conservar-semaispróximado terrenodo queparecesero casoem ciênciasmaiscapazesdeseabandonaremaumaabstraçãoimaginati- va.Somentepequenosvôosderaciocíniotendema serefetivosem antropologia;vôosmaislongostendema seperderemsonhoslógi- 34 David Highlight David Highlight David Highlight cil abstraí-Iasdessesestudose integrá-Iasemqualquercoisaquese poderiachamar"teoriacultural"comotal. As formulaçõesteóricas pairamtão baixosobreasinterpretaçõesquegovernamquenãofa- zemmuitosentidoou têmmuitointeresseforadelas.Isso acontece nãoporquenãosãogerais(senãosãogerais,nãosãoteóricas),mas porque,afirmadasindependentementedesuasaplicações,elaspare- cemcomunsouvazias.Pode-se,eissoédefatocomoaáreaprogride conceitualmente,assumirumalinhade ataqueteóricodesenvolvida emligaçãocomumexercíciodeinterpretaçãoetnográficaeutilizá-Ia emoutro,levando-aadiantea umaprecisãomaiore maiorrelevân- cia, masnãosepodeescreveruma"Teoria Geralde Interpretação Cultural" Ou sepode,de fato,maspare·cehaverpoucavantagem nisso,poisaquia tarefaessencialdaconstruçãoteóricanãoé codificar regularidadesabstratas,mastornarpossíveisdescriçõesminuciosas; nãogeneralizaratravésdos casos,masgeneralizardentrodeles. Generalizardentrodoscasosé chamadohabitualmente,pelo menosemmedicinae empsicologiaprofunda,umainferênciaclíni- ca.Em vezdecomeçarcomumconjuntodeobservaçõesetentarsu- bordiná-Iasa umalei ordenadora,essainferênciacomeçacomum conjuntodesignificantes(presumíveis)e tentaenquadrá-Iosdefor- mainteligível.As medidassãocalculadasparaasprevisõesteóricas, masos sintomas(mesmoquandomensurados)sãoescrutinadosem buscade peculiaridadesteóricas- istoé, elessãodiagnosticados.No estudodacultura,ossignificantesnãosãosintomasouconjuntosde sintomas,masatossimbólicosou conjuntosde atossimbólicose o objetivonãoéa terapia,masaanálisedo discursosocial.Masama- neirapela qual a teoriaé usada- investigara importâncianão- aparentedascoisas- é a mesma. Somoslevados,assim,àsegundacondiçãodateoriacultural:ela nãoé,pelomenosno sentidoestritodotermo,profética.O diagnos- ticadornãopredizo sarampo;eledecidequealguémo temou, no máximo,antecipaquealguémpodetê-Ioembreve.Mas essalimita- ção,queébemreal,temsidohabitualmentemalcompreendidae,ao mesmotempo,exagerada,umavezquefoi assumidacomosignifi- candoquea interpretaçãoculturaléapenaspostfacto:que,comoo camponêsnaantigahistória,primeirofazemosos buracosna cercae depoispintamososolhosdotouroemtornodeles.É difícilnegarque existemuitodissoemtornodenós,àsvezesemlugaresimportantes. Todavia,devenegar-sequesejaesseo resultadoinevitávelde uma abordagemclínicaao usoda teoria. É verdadequeno estiloclínicoda formulaçãoteóricaaconcei- tualizaçãoédirigidaparaatarefadegerarinterpretaçõesdeassuntosjá sobcontrole,nãoparaprojetarresultadosdemanipulaçõesexperi- mentaisouparadeduzirestadosfuturosdeumsistemadeterminado. 5 Admito queissopareceumaidealização.Comoasteoriasraramentesãodecisiva- mentedesaprovadasno usoclínico,tornando-seapenascrescentementecanhestras, improdutivas,deslocadasouvazias,muitasvezeselaspersistemdepoisquetodosper- demo interessenelas,excetoumpunhadodepessoas(emboraestassejamsempremui- to passionais).Com efeito,no queconcerneà antropologia,é quasesempreum problemamaiorconseguiridéiasjá exauridasna literaturado que C<?nseguirnela idéiasprodutivase, destaforma,grandeparteda discussãoteóricaé maiscriticado queconstrutiva,maisdoquesepoderiadesejar,ecarreirasinteirassetêmdevotadoa apressaramortedenoçõesmoribundas.À medidaqueo campoavança,seriadeespe- rarqueessaespéciedecontroleintelectualdeervasdaninhassetornasseumaparte menosproeminentedenossasatividades.Todavia,no momento,continuasendover- dadequeasantigasteoriastendemmenosa morrerdo queir parasegundasedições. 37POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA Todavia,issonãosignificaquea teoriatenhaapenasqueseajustara realidadespassadas(ou,maiscautelosamente,a gerarinterpretações convincentes);elatemquesobreviver- sobreviverintelectualmente - às realidadesqueestãopor vir. Emboraformulemosnossainter- pretaçãodeumasériedepiscadelasou umcasodeincursãoaoscar- neirosapósa suaocorrência,àsvezesmuitotempodepois,o arca- bouçoteóricoemtermosdosquaisé feitatal interpretaçãodeveser capazdecontinuara renderinterpretaçõesdefensáveisàmedidaque surgemnovosfenômenossociais.Apesardeseiniciarqualqueresfor- ço paraumadescriçãominuciosa,alémdo óbvioe do superficial,a partirdeumestadodeconfusãogerala respeitodoque,diabo,está acontecendo- tentandocolocaros pésno chão- ninguémcomeça (ounãodeveria)intelectualmentevazio.As idéiasteóricasnãoapare- ceminteiramentenovasacadaestudo;comojá disse,elassãoadota- dasde outrosestudosrelacionadose,refinadasduranteo processo, aplicadasanovosproblemasinterpretativos.Sedeixaremdeserúteis comreferênciaa taisproblemas,deixamtambémdeserusadasesão maisou menosabandonadas.Secontinuama serúteis,dandoà luz novascompreensões,sãoposteriormenteelaboradasecontinuama serusadas.5 Tal visãodecomoateoriafuncionanumaciênciainterpretativa sugerequeadiferença,relativaemqualquercaso,quesurgenasciên- ciasexperimentaisou observacionaisentre"descrição"e "explica- ção" aquiaparececomosendo,de formaaindamaisrelativa,entre "inscrição"("descriçãodensa")e "especificação"("diagnose")_ entreanotaro significadoqueasaçõessociaisparticularestêmpara os atorescujasaçõeselassãoe afirmar,tão explicitamentequanto nos for possível,o queo conhecimentoassimatingidodemonstra sobreasociedadenaqualéencontradoe,alémdisso,sobreavidaso- cial comotal. Nossaduplatarefaé descobriras estruturasconcep- tuaisqueinformamosatosdosnossossujeitos,o "dito" nodiscurso I, A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS36 David Highlight David Highlight David Highlight 6 o grossodoscapitulosseguintesrefere-seà Indonésiae nãoao Marrocos,poiseu haviajustamentecomeçadoaexaminarmeumaterialsobrea Áfricado Norterecolhi- domaisrecentemente,emsuamaioria.O trabalhodecamponaIndonésiafoi levadoa efeitoem1952-1954,1957-58e 1971;noMarrocos,foi feitoem1964,1965-1966,1968- 1969e 1972. social,econstruirumsistemadeanáliseemcujostermoso queége· néricoaessasestruturas,o quepertenceaelasporquesãoo quesão, sedestacamcontraoutrosdeterminantesdo comportamentohuma- no. Em etnografia,o deverda teoriaé fornecerumvocabuláriono qualpossaserexpressoo queo atosimbólicotema dizersobreele mesmo- istoé, sobreo papelda culturana vidahumana. À partealgunsdetalhesdeorientação,ligadosa assuntosmais deapoio,édessamaneiraquea teoriafuncionanosensaiosaquico- lecionados.Um repertóriode conceitosmuito gerais,feitos-na- academiae sistemasdeconceitos- "integração","racionalização", "símbolo"."ideologia","ethos","revolução","Ídentidade","metá- fora", "estrutura","ritual", "visão do mundo","ator", "função'\ "sagrado"e, naturalmente,a própria"cultura"- seentrelaçamno corpoda etnografiadedescriçãominuciosanaesperançadetornar cientificamenteeloqüentesassimplesocorrências.6 O objetivoétirar grandesconclusõesa partirdefatospequenos,masdensamenteen- trelaçados;apoiaramplasafirmativassobreo papelda culturana construçãodavidacoletivaempenhando-asexatamenteemespecifi- caçõescomplexas. Assim,nãoé apenasa interpretaçãoquerefaztodoo caminho atéo nívelobservacionalimediato:o mesmoacontececoma teoria daqualdependeconceptualmentetalinterpretação.Meuinteressena estóriadeCohen,comoo deRylenaspiscadelas,surgiunaverdade dealgumasnoçõesmuitogerais.O modeloda"confusãodelínguas" - a visãodequeo conflitosocialnãoéalgoqueacontecequando,a partirda fraqueza,da indefinição,daobsolescênciaou da negligência, asformasculturaiscessamdefuncionar,mas,aocontrário,algoque acontecequando,comoaspiscadelasimitadas,taisformassãopreso, sionadaspor situaçõesnão-usuaisou intençõesnão-habituaisde operardeformasnão-usuais- nãoé umaidéiaquemesurgiucoma históriadeCohen.Foi umaidéiaqueadpteiaela,instruídoporcole- gas,estudantese predecessores. Esse"recadonumagarrafa",deaspectotãoinocente,émaisdo queumretratodasestruturasdesignificadodosnegociantesjudeus, dosguerreirosberberese dos procônsulesfranceses,ou mesmoda suainterferênciamútua.É umargumentonosentidodequeremode- laro padrãodasrelaçõessociaiséreordenarascoordenadasdomun- 39POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA Há umahistóriaindiana- pelomenoseua ouvicomoindiana- sobre uminglêsa quemcontaramqueo mundorepousavasobreumapla- taformaapoiadanascostasde um elefante,o qual,.por suavez, apoiava-senascostasdeumatartaruga,equeindagou(talvezelefos- seumetnógrafo;éa formacomoelessecomportam),eondeseapóia a tartaruga?Em outratartaruga.E essatartaruga?"Ah, "Sahib;de- poisdessasãosó tartarugasatéo fim." De fato,essaé a situaçãodascoisas.Não seiatéquandoseria proveitosomeditarsobreo encontrodeCohen,do xequee de"Du- mari" (talvezo períodojá tenhasidoexcedido),masseique,por maisquetenhafeito,nãochegueinempertodo fundoda questão. Aliás, nãochegueipróximodo fundode qualquerquestãosobrea qualtenhaescrito,tantonosensaiosabaixocomoemqualqueroutro local.A análiseculturalé intrinsecamenteincompletae,o queépior, quantomaisprofunda,menoscompleta.É umaciênciaestranha. cujasafirmativasmaismarcantessãoasquetêma basemaistrêmula, naqualchegara qualquerlugarcomumassuntoenfocadoéintensi- ficara suspeita,asuaprópriaea dosoutros,dequevocênãoo está encarandodemaneiracorreta.Masessaéqueéavidadoetnógrafo, alémde perseguirpessoassutiscomquestõesobtusas. Há umasériedecaminhosparafugira isso- transformaracul- turaemfolcloreecolecioná-Io,transformá-Iaemtraçosecontá-Ios, transformá-Iaeminstituiçõeseclassificá-Ias,transformá-Iaemestru- turasebrincarcomelas.Todavia,issosão fugas.O fatoéquecom- prometer-secomumconceitosemióticodeculturaeumaabordagem Jnterpretativado seuestudoé comprometer-secom umavisãoda afirmativaetnográficacomo"essencialmentecontestável",tomando emprestadaa hojefamosaexpressãodeW. B. Gallie.A antropolo- gia,ou pelomenosa antropologiainterpretativa,éumaciênciacujo progressoé marcadomenospor umaperfeiçãodeconsensodo que porumrefinamentodedebate.O quelevaamelhoréaprecisãocom quenos irritamosunsaosoutros. Issoé muitodifícil deconstatarquandoa atençãodealguémé monopolizadapor apenasumadaspartesdo argumento.Os monó- logostêmpoucovaloraqui,poisnãoháconclusõesaseremapresen- tadas;háapenasumadiscussãoa sersustentada.Aliás, seosensaios aquireunidostêmalgumaimportância,é menospeloquedizemdo quepeloquetestemunham:umenormeaumentonointeresse,nãosó naantropologiacomonosestudossociaisemgeral,nopapeldasfor- VIII doexperimentado.As formasdasociedadesãoasubstânciadacultu- ra. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS38 David Highlight David Highlight David Highlight David Highlight David Highlight David Highlight Olhar as dimensõessimbólicasda açãosocial- arte,religião, ideologia,ciência,lei,moralidade,sensocomum- não é afastar-se dosdilemasexistenciaisdavidaemfavordealgumdomínioempírico deformasnão-emocionalizadas;émergulharnomeiodelas.A voca- massimbólicasna vidahumana.Isso significaqueaquelapseudo- entidadeimpalpávelemal-definida,quemaisdeumaveznosconten- tamosemdeixara cargodosfilósofose críticosliteráriosremexer, voltouao cernedanossadisciplina.Até mesmoos marxistascitam agoraCassirer.e atéos positivistascitamKennethBurke. Emmeioa tudoisso,minhaprópriaposiçãotemsidotentarre- ,istir ao subjetivismo,deum lado,e ao cabalismodeoutro,tentar mantera análisedas formassimbólicastão estreitamenteligadas quantopossívelaosacontecimentossociaise ocasiõesconcretas,o mundopúblicodavidacomum,eorganizá-Iadetalformaqueasco- nexõesentreas formulaçõesteóricase asinterpretaçõesdescritivas não sejamobscurecidaspor apelosàs ciênciasnegras(mágicas). Nuncameimpressioneicomo argumentodeque,comoéimpossível umaobjetividadecompletanessesassuntos(o quedefatoocorre),é melhorpermitirqueos sentimentoslevema melhor.Conformeob- servouRobertSolow,issoéo mesmoquedizerque,comoéimpossí- velumambienteperfeitamenteasséptico,éválidofazerumacirurgia numesgoto.De outrolado,tambémnãomeimpressionaramasale- gaçõesde queas lingüísticasestruturais,a engenhariadecomputa- ção,ou qualqueroutraformaavançadadepensamentopossibilitar- nos-ácompreenderos homenssemconhecê-Ios.Nada concorrerá maisparao descréditodeumaabordagemsemióticadaculturado quepermitirqueeladeslizeparaumacombinaçãodeintuiçãoeal- quimia,não importaquãoelegantementeseexpressemessasintui- çõesou quãomodernaa alquimiaseapresente. Na buscadastartarugasdemasiadoprofundas,estásemprepre- senteo perigode quea análisecuhuralpercacontactocomassu- perfíciesdurasdavida- comasrealidadesestratificadoraspolíticase econômicas,dentrodasquaisoshomenssãoreprimidosemtodosos lugares- ecomasnecessidadesbiológicasefísicassobreasquaisre- pousamessassuperfícies.A únicadefesacontraissoe,portanto,con- tratransformara análiseculturalnumaespéciedeesteticismosocio- lógicoé primeirotreinartaisanálisesemrelaçãoa taisrealidadese taisnecessidades.É por issoqueeuescrevisobrenacionalismo,vio- lência,identidade,a naturezahumana,a legitimidade,revolução,et- nicismo,urbanização,status,a morte,o tempoe, principalmente, sobreastentativasparticularesdepessoasparticularesdecolocares- sascoisasemalgumaespéciedeestruturacompreensivaesignificati- va. POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA 41 çãoessencialda antropologiainterpretativanãoéresponderàsnos- sasquestõesmaisprofundas,mascolocarà nossadisposiçãoasres- postasqueoutrosderam- apascentandooutroscarneirosemoutros vales- e assimincluí-Iasno registrodeconsultassobreo queo ho- memfalou. II I A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS40 David Highlight uturas psicológicas pormeiodasquaisosindivíduosougrupos deindivíduos gu
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