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Teoria da Literatura II - AD2 02.2017 GABARITO

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Fundação CECIERJ/ UFF 
Graduação em Letras 
 
Disciplina: Teoria da Literatura II 
Coordenadora: Profa. Diana Klinger 
AD2- 2º semestre de 2017 
 
GABARITO 
 
Leia o texto de Julio Cortazar e depois explique, em uma lauda, a importância 
que tem para o formalismo russo o “estranhamento” na criação artística e 
literária, de acordo com o texto de Victor Cklovski “A arte como procedimento”. 
Se possível cite outros exemplos. 
 
Instruções para subir uma escada 
Julio Cortázar 
 
Ninguém terá deixado de observar que freqüentemente o chão se dobra de tal 
maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a 
parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova 
perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada 
até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda 
numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na 
posse momentânea de um degrau ou de um escalão. Cada um desses 
degraus, formados, como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais 
acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que 
qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, 
mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar. As 
escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se 
particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os 
braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os 
olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está 
pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por 
levantar aquela parte do corpo situada em baixo à direita, quase sempre 
envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe 
exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para 
simplificar chamaremos pé, recolhesse a parte correspondente do lado 
esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já 
mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la 
no segundo degrau, com o que neste descansará o pé. (Os primeiros degraus 
são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência 
de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado 
especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.) Chegando-se dessa 
maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os 
movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, 
com um ligeiro golpe de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se 
moverá até o momento da descida. 
 
 
 
 
 O texto de Julio Cortázar produz estranhamento ao mimetizar a linguagem 
de um tipo de texto com uma função prática muito comum dentro da linguagem 
cotidiana, ou seja, trata-se de um gênero textual marcadamente familiar, mas 
esse gênero é reproduzido para uma ação que se realiza de forma 
automatizada pelo corpo e que não precisa de tais instruções. Podemos 
relacionar esse miniconto de Cortazar com a concepção que os formalistas 
russos tinham da literatura. 
 Com o propósito de estudar os traços específicos da arte literária, os 
formalistas russos diferenciam a língua poética, responsável por dar à 
linguagem poética o valor autônomo das palavras no campo da criação, da 
língua cotidiana, cujo objetivo prático estaria na comunicação diária entre os 
falantes. Essa distinção visa buscar fatos concretos nos objetos literários que 
constituem a sua existência própria ao mesmo tempo em que propõe 
desenvolver uma ciência autônoma e concreta sobre o problema da forma 
artística e de sua evolução literária. 
 Para isso, os estudiosos combatem a automatização da percepção gerada 
pelo uso corrente da língua como consequência de sua atividade habitual, o 
que implicaria uma “máxima economia de forças perceptivas”. Tal 
automatização nada mais é do que o processo que inviabiliza a percepção no 
indivíduo, quando instala nele a impossibilidade de ver e, consequentemente, a 
perda de sentidos das coisas circundantes (como subir uma escada, por 
exemplo). Diante desse obstáculo inerente ao âmbito cotidiano, a arte objetiva 
superar essa baixa da percepção devolvendo ao indivíduo o que Chklovski 
denomina como a “sensação de vida”, quer dizer, possibilitando-lhe ver de fato 
o objeto observado, percebê-lo em si mesmo, tirando-o do enfraquecimento da 
percepção propiciado pelo automatismo que apenas reconhece-o, mas não é 
mais capaz de pensar sobre ele. 
 A maneira como a arte, segundo Chklovski, encontra para desautomatizar 
esse estado geral visto na sociedade é através dos procedimentos de 
singularização dos objetos. O caráter estético da língua poética, dessa forma, 
busca “liberar a percepção do automatismo” a partir de suas especificidades. 
Nessa perspectiva, o estranhamento vai produzir um efeito que devolve a 
sensação do objeto à medida que o procedimento dado obscurece a forma 
aumentando a dificuldade e a duração de sua percepção. Assim, o 
estranhamento consiste no efeito causado pela obra literária para nos 
distanciar do modo como apreendemos as coisas que nos cercam, já que o 
habitual traz a automatização dos objetos. A percepção artística, então, habilita 
a nossa consciência nos fazendo experimentar a forma como visão e não como 
reconhecimento. 
 Por meio dos procedimentos formais, a arte produz o estranhamento que 
tornou-se o procedimento geral da arte na concepção de técnica ou de artifício, 
podendo ser empreendido por diferentes meios na construção poética.

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