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Estética e Filosofia Arte: O que é isto ? Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profo. Esp. André Luís Pereira dos Santos Revisão Textual: Profª. Esp. Kelciane da Rocha Campos 5 Nesta unidade, vamos conversar um pouco sobre as propriedades e fronteiras do que pode ser considerado artístico ou não. Lembre-se de refletir sobre os exemplos apresentados e de realizar as atividades com afinco. Esse processo certamente ampliará sua visão do tema, preparando-o(a) para compreender criticamente as situações cotidianas que estejam ligadas à apreciação e, até mesmo, ao próprio fazer artístico. Arte: O que é isto ? Além de se apropriar dos textos da unidade, é importante que, aqueles que desejem se aprofundar mais nas questões relativas entre arte e filosofia, criem um repertório de referências. O que isso quer dizer? É imprescindível que um bom estudioso de estética conheça pelo menos parte da obra de um bom número de pintores, escultores, dramaturgos, cineastas, literatos, entre outros, para que possa ampliar sua compreensão do universo das artes. No material complementar, há a indicação de um site com mais de 25.000 quadros que podem auxiliar seus estudos. Além desse, há um outro com vários livros de arte (em inglês) que podem ser consultados e baixados gratuitamente. · Arte: O que é isto? · Por uma Definição de Arte · Arte como Cultura · Arte como Discurso · Formas e Expressões da Arte 6 Unidade: Arte: O que é isto ? Contextualização Esta imagem é de uma escultura representando uma cabeça de Ile Ifé, cidade do povo Iorubá, datada aproximadamente de um período entre o século XII e o século XV depois de Cristo. Ao olharmos para ela, encontramos traços semelhantes aos da arte clássica ocidental. Porém, o que intrigou os arqueólogos foi o fato de eles acreditarem que essa escultura não poderia ter sido feita por africanos. Excetuando-se o preconceito dessa afirmação, a arte africana por muito tempo foi vista como algo exótico ligada apenas ao culto. Hoje sabemos que a produção artística da África e de outros povos que vivem a ancestralidade é extremamente elaborada e diversificada. Pense Agora que avançamos um pouco em nossas discussões sobre a arte, partindo das ideias expostas acima, reflita sobre os seus limites, levando em consideração as seguintes questões: • Que critérios você costuma utilizar para decidir se determinada obra pode ser considerada “Arte”? • Você já olhou para a produção artística de outros povos com curiosidade? Respeita o valor artístico dessas manifestações? • Já pensou naquilo que pode legitimar uma obra de arte como tal? Glossário Ancestralidade - processo pelo qual a pessoa se reconhece parte de uma herança ancestral, de uma comunidade, uma origem comum. Por meio dela, acredita-se que não há dissensões entre tempo e espaço. O passado, o presente e o futuro se confundem, dialogando com toda a história de determinado povo. Britsh Museum - Ife head: Brass head of a ruler Wunmonije Compound, Ife, Nigeria, probably 1300s – early 1400s 7 Arte: O que é isto? Até agora, buscamos discutir sobre as relações possíveis entre a estética e a filosofia. No entanto, propositalmente, não tentamos buscar definições específicas sobre a arte. Em algum momento, você já se perguntou o que realmente seria a arte? Primeiramente, é importante lembrar que, se nos aprofundarmos nessa discussão, surgirão mais perguntas do que respostas. Assim, podemos considerar essa definição também como um problema filosófico. Problema no sentido de que há divergências, conflitos e concessões em relação ao campo artístico e também muitas maneiras de usufruirmos dele. Desse modo, veremos que é uma tarefa muito difícil definir o que é arte. Essa palavra assume diversas significações ao longo da história e se define de muitas maneiras. Por enquanto, recorreremos a uma primeira definição apenas para iniciarmos a conversa. Por uma Definição de Arte No dicionário Houaiss, encontramos o seguinte significado para ela: “produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”. Partindo dessa definição, vemos que a arte tenta dialogar com o mundo em que vivemos e dar sentido à nossa existência. No entanto, ela não está pautada somente por regras racionais. Certamente, a imaginação e a criatividade são partes de nossa racionalidade. Porém, quando dizemos que a arte não se guia por regras racionais, queremos dizer que ela, na verdade, tem a liberdade de exprimir sensações, intuições e percepções que não necessariamente precisam ser provadas ou conduzidas racionalmente. Mesmo a visão política de um artista é subjetiva, ou seja, faz sentido para ele. Podemos partilhar de sua visão e refletirmos ou nos emocionarmos com ela. No entanto, aquilo que ele produziu faz parte de um processo criativo que é somente dele. Não podemos exigir da arte o mesmo rigor argumentativo que exigimos da ciência. Assim, aquilo que, em determinado território ou determinada época é considerado belo e artístico, em outra pode não o ser. Além disso, ela vai além da religião porque não se permite limitar por dogmas de fé ou por outras verdades estabelecidas. A arte é um diálogo com seu tempo, com aquilo que está acontecendo no momento em que a obra é produzida. Mas algumas obras ultrapassam seu tempo e se tornam universais, refletindo sobre questões que sempre serão atuais. Ezra Pound dizia que “os artistas são a antena da raça”, isto é, teriam, segundo ele, uma sensibilidade maior em captar as questões essenciais do ser humano. Ademais, o fazer artístico é uma maneira de perpetuar-se para além da morte, deixar algo de significativo para os que vêm depois de nós, dar sentido ao fato de nos perguntarmos: por que estamos aqui? 8 Unidade: Arte: O que é isto ? Diálogo com o Autor Artistas partilham da vocação, de acordo com suas disciplinas e artes, de fundir as novas imagens da mitologia, ou seja, eles produzem as metáforas contemporâneas que nos permitem compreender a natureza transcendente, infinita e abundante do ser como ele é. Suas metáforas constituem os elementos essenciais dos símbolos que tornam manifesto o esplendor do mundo como este é, isto em lugar de argumentar que este deveria ser de um modo ou outro. Elas o revelam como é. CAMPBELL, Joseph. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. SãoPaulo: Landy, 2002. p.36. Certamente, as pessoas não se perguntam se a Mona Lisa de Da Vinci é uma obra de arte ou se uma grande ópera como o barbeiro de Sevilha, se tem valor artístico. Mas, ainda temos dificuldades de perceber o poder artístico das manifestações culturais populares, como o bumba meu boi, a congada e o maracatu. Vemos a arte africana como algo mais exótico do que artístico e não sabemos muito bem como classificar a dança e a literatura dentro do campo das artes. Antes de mais nada, é preciso que nos livremos de preconceitos e olhares estéticos limitadores e empobrecidos quando buscamos compreender as fronteiras entre a arte e as outras formas de conhecimento. A contadora de histórias Regina Machado costuma dizer que para adentrar o maravilhoso mundo dos contos tradicionais é preciso virar o olho (2004. p. 89). Isto é, para compreendermos verdadeiramente as narrativas da tradição oral, precisamos aprender a olhar para as coisas de outra maneira, partilhar do instante criador, revivê-lo e ressignificá-lo, vivenciando novas formas de compreensão da história que escutamos. A arte exige um processo semelhante. É necessário reeducar o olhar para adentrar o universo artístico, despir-se de interpretações pré-concebidas e colocar-se diante da obra como um discípulo que até aquele momento não foi iniciado naquela linguagem, aprender com elae olhar com atenção para suas possibilidades de significação. Diálogo com o Autor Se admitirmos que o poder básico da imaginação é o de configurar imagens, é mais difícil perceber que sua função primordial é configurar significações, responsáveis por um genuíno e pessoal processo de aprendizagem. MACHADO, R. Acordais: Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004. p. 31. 9 Assim, seria uma irresponsabilidade pensar a noção de arte como algo singular. Deveríamos pensar então em discutir “as artes”. Visto que qualquer que seja a definição necessária de “artes”, ela deve se conjugar de maneira plural. Da mesma maneira, os parâmetros que podem estabelecer um estatuto para a obra de arte são primordialmente culturais. Temos territórios que são pensados como espaços de reconhecimento para as obras de arte: Os museus, as galerias, os teatros, entre outros. Abrigar a arte nesses espaços corresponde a reconhecê-las como tal. Mas quem decide aquilo que deve ou não ser exibido nesses espaços? Essa resposta também não é muito complexa. Pois temos peritos, críticos, negociadores e historiadores da arte. Esses profissionais desenvolveram com o tempo um discurso competente, rigoroso e de autoridade sobre os limites da arte. Portanto, podemos começar nossa pequena apropriação do escopo da arte, partindo desses dois parâmetros iniciais: o da cultura e o do discurso. Arte como Cultura Primeiramente, para entendermos o que é cultura, precisamos definir o que é natureza. Esse conceito pode adquirir inúmeros significados. Natureza pode ser tanto um princípio vital quanto a essência de um ser, ou ainda, como afirma Marilena Chauí, “tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas. Assim natureza ou natural opõe-se à técnica e a tecnologia (por esse motivo, opomos natural e técnico)” (CHAUÍ, 2010. p. 218). Realmente, o que diferencia o ser humano dos outros animais é a capacidade de produzir meios que alteram o seu ambiente, adaptando-o à sua realidade. O homem, justamente por escapar abstratamente de um presente contínuo, na verdade essa é a única realidade temporal que ele vivencia, cria culturalmente uma noção de passado e uma noção de futuro. Assim, uma das definições possíveis que podemos dar à cultura é concebendo-a como a junção dos recursos materiais e imateriais que nos auxiliam a deixarmos nossa marca na história da humanidade. Pense Leia o texto abaixo e reflita sobre as possibilidades de criação de cultura presentes no processo artístico. Cada instante criador corresponde à intensidade de um momento de vida. Ele é o esquecimento do passado com todo o acúmulo de conhecimentos e o despertar do presente em plenitude e riqueza. O ato de criação é um ato de presença. Criar é viver no presente. Neste aqui e agora estão contidas as nossas vivências individuais enriquecidas das vivências do mundo a que pertencemos. Este mundo está conosco, não podemos nos separar dele. O momento criador, quando vivido intensamente, é um retorno à unidade inicial. É, portanto, um momento de intensa alegria. Através da intuição, as ideias se harmonizam. A intuição é a claridade que vem dentro de nós mesmos e não é buscada fora, através de ensinamentos. Desperta num momento inesperado, quando o pensamento lógico foi transcendido (...). ANDRÉS, M. H. Os Caminhos da Arte. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 53. 10 Unidade: Arte: O que é isto ? Você já deve ter ouvido a história de Mowgli, que foi criado por lobos, ou mesmo a de Tarzan, criado por macacos. Além disso, podemos acrescentar a história de Robinson Crusoé, náufrago solitário que, pelo seus conhecimentos, altera a realidade da ilha em que se viu obrigado a sobreviver. Os dois primeiros casos são baseados nas histórias de crianças que foram criadas por animais e, justamente por isso, imitavam e reproduziam comportamentos animais. Realmente, é muito improvável que uma criança criada por lobos ou por macacos adquirisse características humanas, visto que essas são culturais, geradas pela convivência, mas, sobretudo, aprendidas por intuição, por convivência ou por ensino. Porém, no terceiro caso, o de Crusoé, há verossimilhança na concepção dessa história. É perfeitamente possível que uma pessoa com recursos à mão reproduza o que recebeu como herança de aprendizado; o homem cria a partir daquilo que aprendeu. Desse modo, como arte e cultura se relacionam? Ora, as manifestações artísticas obedecem aos padrões e costumes da região, da tradição em que estão inseridas. Logo, as definições do que é ou não artístico se estabelecem por padrões culturais e se multiplicam tanto quanto o ser humano se difere em seus povos e suas culturas. Decorre daí que a arte não pode ser considerada natural. Podemos, por exemplo, encontrar uma paisagem magnífica e esteticamente avassaladora. No entanto, não podemos considerar essa paisagem como uma obra de arte, visto que não houve a intervenção de um artista em sua produção. Obviamente, pode haver proporção, equilíbrio de cores e texturas nessa imagem, entretanto ela é fruto de um ordenamento da natureza que está submetido à regularidade do meio ambiente, provocado por leis universais a que nós também estamos racionalmente submetidos. A paisagem só se torna arte quando é representada artisticamente por meio de uma técnica: a pintura ou a fotografia, por exemplo. Apontamos anteriormente que o termo “arte” tem origem na palavra latina Ars, que é a tradução do termo grego Téchné, “técnica” ou um “saber fazer”. Gostaríamos de retornar a essa discussão para reforçá-la com alguns dados. Na antiguidade, havia uma identificação necessária entre a arte e a técnica. A técnica pode ser definida como toda ação ou atividade do homem que, guiada por regras, visa à fabricação de alguma coisa. Tanto o artesão quanto o artista utilizam-se de seu ofício no sentido de produzir ou criar uma obra. Por isso, nessa perspectiva, podemos conceber a técnica, ou a arte, por meio de uma oposição ao que é casual ou espontâneo. Isto é, por extensão, também ao que é natural. Na verdade, até o século XVIII, podemos entender a arte como uma maneira que o ser humano encontrou de usar a natureza em seu favor, um saber fazer. É somente a partir do século XVIII que se inicia uma separação de concepções que distingue a técnica das belas-artes (a pintura, a escultura, a música, a dança, o teatro e a literatura). O ato de transformar a natureza, dominando-a, consolida-se como tecnologia, o que não deixa de ser um artifício, ou seja, algo não natural. Esse processo leva a uma separação de concepções que leva as artes a se definirem por sua utilidade. Desse processo de reflexão, surgem dois grupos distintos, classificados a partir da finalidade de suas ações. O primeiro reunindo as artes mecânicas, que conjugam aquelas práticas e saberes que são úteis na manutenção da vida cotidiana. Fazem parte desse grupo a agricultura, a culinária, a arquitetura e a medicina, por exemplo. Mas também os artesanatos, como a marcenaria, a tecelagem, a jardinagem, a joalheria e a tapeçaria, entre outros. Essas formas de arte acabaram por constituir mais o campo das “técnicas”, perdendo gradativamente o estatuto de “arte”. 11 No segundo grupo, ficaram as artes que possuem por finalidade a produção do belo e as sensações análogas à sua contemplação: A música, a poesia, o teatro, a escultura e a dança, entre outras. Essa parte das artes mecânicas consiste naquilo que nos acostumamos a chamar de belas-artes e, portanto, a tudo que hoje procuramos conceber como artístico. Desse modo, fica muito claro que há, nesse processo, uma contraposição entre utilidade e beleza. O que, em um olhar mais superficial, pode levar a uma falsa interpretação de que as belas-artes sejam ocupações supostamente inúteis. De formaalguma. Atualmente, há um consenso de que a arte traduz e materializa de forma particular sentimentos, sensações, visões de mundo, concepções políticas e críticas sociais de maneira que outras formas de conhecimento e outras linguagens não poderiam propiciar. Tanto como fenômeno social quanto como experiência estética, em todos os lugares, a arte e os artistas são imprescindíveis na construção histórica e social da humanidade. Assim, podemos pensar que o artista constrói uma visão particular do mundo que ultrapassa a forma com que as outras pessoas lidam e percebem cotidianamente esse mesmo mundo, partindo de coisas que, de alguma forma, sempre estiveram lá, mas foram ressignificadas pela intervenção pessoal do artista, produzindo algo que dialoga com os outros em uma perspectiva inovadora e essencial. Trocando Ideias Vik Muniz Ao pensarmos na relação entre o artista e a sociedade, o papel desempenhado pelo fotógrafo e artista plástico Vik Muniz é fundamental. Um dos mais reconhecidos e respeitados nomes brasileiros no circuito internacional de arte, suas obras dialogam com a sociedade, não só pelo produto final, mas também pelo processo de criação. Muitos de seus trabalhos consistem em releituras de grandes obras, feitas a partir de materiais cotidianos e inusitados como chocolate, café, material reciclável, açúcar, entre outros. Foi a partir da série “Crianças de Açúcar”, realizada na ilha de St. Kitts, no Caribe, que o artista começou a ficar conhecido mundialmente. Nesta série, ele fotografou sete crianças filhas de trabalhadores que ganham sua vida na colheita de cana-de-açúcar, trabalho árduo e desgastante. Vik recriou os retratos dessas crianças modelando-as com açúcar. A metáfora que se coloca aí é muito importante. Pois, o produto da subsistência dessas famílias é também o que se insere no processo de criação da obra. Ele conviveu com essas famílias, conhecendo um pouco de seus anseios e agruras, tornando assim a sua obra indissociável de sua produção. O doce do açúcar se choca com o amargor da exploração do trabalho infantil e da luta pela subsistência daqueles que são esquecidos pela sociedade. Fo nt e: W ik ia rt .o rg Desse modo, retornando então aos critérios que nos permitem definir e classificar a arte, para alguns as obras de Mozart podem ser definitivas e muito mais complexas do que as de Ernesto Nazareth. Seguindo a mesma linha de pensamento, Rafael ou Da Vinci sempre serão mais reconhecidos do que Almeida Júnior ou Rubens Caribé? Não necessariamente. 12 Unidade: Arte: O que é isto ? Da mesma forma que Mozart pode não fazer o menor sentido para um índio bororo ou a pintura clássica não tocar de maneira alguma uma senhorinha que pita seu cachimbo de fumo de corda no interior de Minas Gerais, a apreciação e a definição do que é artístico também é cultural, no sentido de que os especialistas em arte vão estabelecer critérios que permitam perceber quão mais universais são os questionamentos a que uma obra nos leva. Talvez a coisa não seja tão simples, mas algo que propicie reflexões estéticas diversas em pessoas de diferentes origens certamente pode merecer o estatuto de “Arte”, mas há um consenso que se dá por meio do discurso para que isso aconteça. O derrubador Brasileiro José Ferraz de almeida Júnior foi um pintor brasileiro que durante a segunda metade do século XIX retratou as características do povo brasileiro em seus quadros. Ficou famoso por assumir o regionalismo como tônica de suas obras, retratando a simplicidade da cultura caipira, por meio de personagens anônimos e intrigantes. J os é Fe rr az d e A lm ei da J ún io r (1 85 0– 18 99 )/ W ik im ed ia C om m on s Pense Vamos refletir sobre a frase abaixo e sua interpretação pela filósofa Marilena Chauí. Você já havia pensado na obra de arte da maneira que este texto propõe? O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais “humanos” dos homens o espetáculo de que participam sem perceber. MERLEAU-PONTY, M. A Dúvida de Cézanne. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 120. A obra de arte “fixa e torna acessível” o mundo em que vivemos e que percebemos sem nos darmos conta dele e de nós mesmos nele. A obra de arte nos dá a ver o que sempre vimos sem ver, a ouvir o que sempre ouvimos sem ouvir, a sentir o que sentimos sem sentir, a pensar o que sempre pensamos sem pensar, a dizer o que sempre dissemos sem dizer. Por isso, nela e por ela, a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto, ouvido ou até mesmo dito, sentido ou pensado. Eis por que o artista é o que passa pela experiência de nascer todo dia para a “eterna novidade do mundo”. CHAUÍ, M. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2010. p. 246. 13 Arte como Discurso Quando defendemos que uma das maneiras primordiais de definirmos a arte se dá pelo discurso, na verdade estamos especificando a noção de que o belo também é aquilo que se define como tal, por meio do que afirmamos sobre cada obra específica. A fala do especialista, portanto, legitima certos objetos como obras de arte dignas de atenção e afasta outros do domínio das coisas que podem ser consideradas como dotadas de valor artístico. Tomemos as artes plásticas, por exemplo. O Estudioso que se debruça sobre os tratados de história da arte, que frequenta museus pelo mundo e tem contato com inúmeros objetos de valor artístico incontestável, desenvolve também a condição, o discurso e o vocabulário necessário para nos orientar na interpretação da arte, dotando-nos de parâmetros para também percebermos as nuances e significações impregnadas nas obras de maneira específica. Podemos acrescentar o fato de que se um desses estudiosos escolhe expor determinado quadro ou escultura em uma galeria ou em um museu, o próprio fato dessa exposição já reconhece aquele objeto como algo dotado de valor artístico, sendo, portanto, esteticamente interessante e compartilhável. O que estamos querendo dizer é que a anuência do especialista, por meio de seu discurso, legitimou a presença daquela obra em um território que é primordialmente da arte. O que, nesse momento, seria o mesmo que dizer: “Estamos afirmando que este objeto é uma obra de arte e merece ser observado com mais atenção”. Assim, todo esse processo permite que a crítica tenha não só o poder de decidir o que é artístico e o que não é. Além disso, os especialistas podem também inserir as obras e os artistas em uma escala de excelência que segue parâmetros específicos, gerando a possibilidade de classificarmos alguns objetos artísticos como obras-primas e alguns artistas como gênios. Antigamente, o conceito de obra-prima estava ligado às corporações de ofício. Imaginemos uma guilda de escultores, por exemplo. Sua oficina, além de ser o local que abriga a sua produção, também era um ateliê em que se aprendia o ofício de esculpir, seguindo as orientações de um mestre de ofício, alguém que dominava plenamente os meandros ligados a aquele determinado tipo de criação técnica ou artística. Nesse lugar, o aprendiz deveria adquirir maestria e dominar gradativamente todos os processos envolvidos no ato de produzir uma escultura. Sua primeira obra, realizada com perfeição e maestria, era julgada pelos artistas que já dominavam aquela técnica e era também considerada como sua obra-prima. Com o passar do tempo esse conceito mudou, vindo a designar a obra mais perfeita ou a melhor obra de um artista. Mas em que isso se relaciona ao papel no discurso na obra de arte? Simples e ao mesmo tempo complexo. A ideia de obra-prima hoje não se relaciona diretamente com um saber fazer. Atualmente, os critérios que os especialistas usam para determinar isso são menos precisos e exigem uma percepção diversa daquela que os mestres de ofíciousavam para julgar o trabalho de seus pupilos. Por outro lado, não podemos apenas alegar que o consenso é uma maneira de determinarmos a grandeza de um artista. Como anteriormente apontamos, aquilo que hoje é considerado grande e majestoso, amanhã pode tornar-se ultrapassado e simplório. Na música, por exemplo, esse fenômeno ocorre com frequência. Determinados estilos e compositores são exaltados em uma época, enquanto que logo depois são deixados de lado. Porém, esse aspecto relaciona-se mais ao fato de encararmos a música prioritariamente como objeto de consumo. Entenderemos isso melhor quando, em outro momento, tratarmos do conceito de indústria cultural. 14 Unidade: Arte: O que é isto ? Dessa maneira, legitimar a arte parte de uma equação complexa que relaciona, entre outros fatores, a qualidade do artista, a maestria da obra, o consenso da crítica, a anuência do público e a prova do tempo. Esses fatores se interconectam, influenciando-se mutuamente, permitindo que estabeleçamos parâmetros mínimos na apreciação da obra de arte. Entretanto, não podemos afirmar que a competência dos especialistas e autoridades tragam segurança na definição do belo artístico. Os estetas e críticos de arte, por muitas vezes, demonstram inconstância, contrariedades e falta de objetividade em seu trabalho, trazendo mais confusão ao processo de quem quer se iniciar no mundo da estética. Todavia, é a partir desse caldeirão de influências que podemos nos aproximar dos grandes mestres e aprender a traçar rumos que nos levam ao caráter múltiplo da arte, que consiste em uma linguagem construída por meio da racionalidade, sem se prender aos rígidos requisitos da lógica científica. O processo artístico, então, fala muito mais dos fenômenos e sensações que a experiência artística nos provoca do que de certezas, regularidades e solidez na interpretação das obras. Na mesma linha desta discussão, talvez valha a pena lermos a feliz definição de Umberto Eco para a arte, pautada sobre o seu conceito de Obra Aberta. Tem-se discutido, de fato, em estética, sobre a “definitude” e a “abertura” de uma obra de arte: e esses dois termos referem-se a uma situação fruitiva que todos nós experimentamos e que frequentemente somos levados a definir: isto é, uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa compreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual. No fundo, a forma torna-se esteticamente válida na medida em que pode ser vista e compreendida segundo multíplices perspectivas, manifestando riqueza de aspectos e ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria (...). (ECO, 1991, p. 40). A intenção do artista ainda permanece lá na obra, no entanto não se pode negar que o espectador contribui grandemente com o seu olhar, enxergando significados onde o artista, nem em sonho, teve o intuito de propiciar. A obra se torna aberta porque literalmente se abre para o surgimento de novos significados a cada novo olhar. E, quanto mais formas de se olhá-la, mais significados serão gestados. O discurso competente pode nos aproximar da fruição das obras, entretanto é na regularidade de nosso contato com a arte que podemos compreender os detalhes que permitem o seu consumo, levando-nos a experiências estéticas de tirar o fôlego. Ao tomarmos, por exemplo, um vinho de Bordeaux ou um espumante do novo mundo, somente compreenderemos a complexidade de seus sabores e aromas se possuirmos um repertório extenso de sensações causadas, além dos vinhos daquela região, por outros vinhos de outras cepas (uvas) e de 15 outras regiões. Da mesma maneira, a arte também necessita ser experimentada extensivamente para que possamos traçar paralelos, percebermos referências e citações e, sobretudo, nos aproximarmos daquela obra em sua totalidade. Talvez o termo totalidade não seja o mais adequado nessa definição, visto que as grandes obras sempre permitiram que surgissem novas interpretações e novos aspectos a se descobrir. Formas e expressões da arte Quando falamos de arte, é muito comum assumirmos a pintura como sua representante mais ilustre. Porém, apesar de, historicamente, haverem se construído escalas e hierarquias para artistas e manifestações artísticas, a arte se expressa de muitas maneiras e não podemos dizer que uma expressão da arte é melhor ou mais apurada do que as outras. Pensemos na dança, por exemplo. Há tanta dificuldade para se atingir o domínio técnico nas artes do corpo como o há na arte pictórica. Além disso, a execução de uma peça de Alexander Scriabin ao piano ainda exige anos e anos de muito estudo e dedicação. Desse modo, todas as expressões da arte possuem campos de ação e de investigação próprios, denotando tanto esforço quanto o necessário na obtenção do domínio técnico pertencente a aquela forma de vivenciar a arte. Fazendo um grande esforço, podemos, de maneira geral, classificar as manifestações artísticas nestes cinco grandes campos: as artes plásticas, as artes cênicas, as artes literárias, a dança e a música. No entanto, quando falamos de arte, geralmente nos esquecemos, por exemplo, de que os escritores também são artistas e produzem obras de arte literárias. Só recentemente os grafiteiros começaram a ser reconhecidos como artistas. Uma bailarina ainda hoje sofre para ser verdadeiramente reconhecida em sua profissão. Além disso, alguns críticos ainda insistem em considerar o cinema mais como um entretenimento do que como uma forma de arte. Essas questões estão longe de ser solucionadas. Mas, refletirmos sobre elas é uma maneira de fazermos essa discussão avançar, visto que podemos pensar na arte também como uma forma de aprendizado e uma forma de nos relacionarmos com o mundo. Como vimos, a definição da arte pode ser algo complexo e nebuloso sob alguns pontos de vista. Em filosofia, a compreensão estética do belo e dos limites da arte passa por todas essas expressões. São todas formas de criar. Porém, o processo criativo estabelece uma fronteira que se dá mais pela atitude e pela conceituação do que por um esforço de definição rígido e preciso. Portanto, não é demasiado afirmarmos que qualquer que seja a maneira de definirmos a arte e suas expressões, chegaremos à conclusão que essas definições serão sempre sócio-históricas, visto que se inserem em um campo de significação que se constrói culturalmente. As concepções de arte de cada povo, de cada território, são estabelecidas segundo seus costumes, suas crenças e o seu pensamento. Desse modo, é extremamente ilusório pensarmos que seja possível a uma definição particular de arte abarcar todo o universo artístico, em todos os tempos e todos os espaços. 16 Unidade: Arte: O que é isto ? Como vimos, cada cultura possui conceitos próprios para o que é arte. Dentro desse grupo específico esses conceitos são absolutos e verossímeis. Todavia, se compararmos essas concepções com as de outro grupo, elas se tornarão relativas. Toda definição de arte está relacionada ao tempo e ao espaço vivenciado por grupos específicos, criadores e herdeiros de cultura. Assim, há muitos modos de se especificar o que é arte. São definições mutantes e abrangentes que, nodiálogo entre si, nos aproximam daquilo que o homem contemporâneo concebe como arte, deixando o campo aberto para que novas definições sejam inseridas nesse grande arcabouço poético-teórico. 17 Material Complementar Textos ECO, U. A Definição da Arte. Lisboa: Edições 70, 2008. HAUSER, A. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes,1998. Filmes • Lixo Extraordinário, Direção de Lucy Walker. Reino Unido/Brasil, 2010 (Duração 90 min.). • O Sorriso de Monalisa, Direção de Mike Newell, Estados unidos, 2003 (Duração 125 min.). Sites • Publicações gratuitas do Metropolitan Museum of Art (Museu Metropolitano de Arte), de Nova York (Em inglês). ht tp: / /www.metmuseum.org/research/metpubl icat ions/ t i t les-wi th- fu l l - text- online?searchtype=F • Site da National Gallery of Art (Galeria de Arte Nacional), que disponibilizou para download gratuito 35 mil imagens de obras de arte em alta resolução. https://images.nga.gov/en/page/show_home_page.html 18 Unidade: Arte: O que é isto ? Referências ANDRÉS, M. H. Os Caminhos da Arte. Petrópolis: Vozes, 1977. CAMPBELL, J. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo: Landy, 2002. CHAUÍ, M. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2010. ECO, U. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991. MACHADO, R. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004. MERLEAU-PONTY, M. A Dúvida de Cézanne. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 19 Anotações
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