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Estrutura da Lírica Moderna - Hugo Friedrich

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Prévia do material em texto

Equipederealização:
AssessoriaeditorialdeMara VaIles
RevisãodeValériaC. SaIles,ElisabeteOréficeeHelaineL Viotti
CapadeLuis Díaz
Traduçãodo texto:MariseM. Curioni
Traduçãodaspoesias:DoraF. da Silva
1
J
I
I1
1
ESTRUTURA DA LíRICA MODERNA
(da metade do século XIX a meados do século XX)
Hugo Friedrich
••
!
!
[fi] Livraria
[fi] Duas Cidades
PROBLEMAS ATUAIS E SUAS FONTES - 3
DireçãodeErnestoGrassi
Originalmentepublicadosobo titulode
Die Struktur der ModernenLyrik
nasérie"Rowohtsdeutscheenzyklopadie"
EditorgeralErnestoGrassi
© RowohltTaschenbuchVerlagGmbH, Hamburgo,1956
(5LJ
Sumário
DEDALUS - Acervo - FFLCH-GE
I111111111111111111111111111111111111111111111111111111I111I11111
21100028582
2~Edição
Direitosparaa línguaportuguesareservadospor
LivrariaDuasCidadesLtda.
RuaBentoFreitas,158- SãoPaulo
1991
1, Do prefácioà primeiraedição .
Prefácioà nova edição .
I. Perspectivae retrospecto .
Perspectivada lírica contemporânea:dissonânciase
anormalidade,15.Categoriasnegativas,19.Prelúdios
teóricosno séculoXVIII: Rousseaue Diderot,23.
Novalis sobrea poesiafutura, 27. O Romantismo
francês,30. A teoriado grotescoe do fragmentá-
rió, 32.
I C--,...~I 11. 8audela1re,)...............•.................
I O poetada modernidade,35.Despersonalização,36.
, Concentraçãoe consciênciada forma:lírica e mate-
mática,38.Tempofinal e modernidade,42. Estética
do feio, 44. "O prazer aristocráticode desagra-
dar", 45. Cristianismoem ruína, 45. A idealidade
vazia,47. Magia da linguagem,49. Fantasiacriati-
I va,53.Decomposiçãoe deformação,55.Abstraçãoe
j arabesco,57.
111. Rimbaud .
Característicaspreliminares,59. Desorientação,60.
"Lettresd'un voyant" (transcendênciavazia, anor-
malidadedesejada,"música"dissonante),61.Ruptura
da tradição,64.Modernidadee poesiada cidade,66.
Insurreiçãocontraa herançacristã: "Une Saisonen
Enfer",66.O euartificial;adesumanização,69.Rup-
turadoslimites,71. "Le bateauivre", 73.Realidade
destruída,75. Intensidadedo feio, 77. Irrealidade
sensível,79. Fantasiaditatorial,81. "Les Illumina-
tions",83.Técnicada fusão,84.Poesiaabstrata,87.
Poesiaemformademonólogo,90, Dinâmicadomo-
vimentoe magiada linguagem,90. Julgamentofi-
nal, 93.
9
13
15
35
59
IV. Mallarmé ' . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Característicapreliminar,95. Interpretaçãode três
poesias:"Sainte", "I!ventail(de Mme. Mallarmé)"
e "Surgide Ia croupe",97. Evoluçãodo estilo,108.
Desumanização,110.Amor e mortesãodesumaniza-
dos, 112.A lírica comooposição,comotrabalhoe
comojogo,113.O Nadae a forma,115.Dizero que
nuncafoi dito; algunsrecursosestilísticos,116.A
proximidadedo silêncio,118.Obscuridade;confron-
to comGóngora,119.PQesiasugestiva,não compre-
ensível,121.6 esquemaontológico,122."Sespurs
ongles",128.A dissonânciaontológica,130.Ocultis-
mo, magiae magialingüística,134. "Poésiepure",
135. Fantasiaditatorial,abstraçãoe "olhar abso-
luto", 13&1O estarsócoma linguagem,138.
V. A lírica européiano séculoXX 141
Observaçõesmetodológicas,141. "Festado intelec-
to" e "derrocadado intelecto",143.A lírica espa-
nholado séculoXX, 145. Duas reflexõessobrea
lírica: Apollinairee GarGÍaLorca, 147.O estilo in-
congruentee a "nova liguagem",·149. Ulteriores
consideraçõessobre a "nova linguagem",153. A
funçãoindeterminadadosdeterminantes,160.ApoIo
emlugardeDioniso,162.Duplarelaçãoparacoma
modernidadee a herançaliterária,165.Isolamentoe
angústia,173. Obscuridade,"Hermetismo",Unga-
retti,178.Magiada linguagem-esugestão,182.Paul
Valéry,184.Jorge Guillén,187.Poesiaalógica,190.
GarGÍaLorca, "Romancesonâmbulo",193.O absur-
do; o "humorismo",194.Realidade,195.T. S. Eliot,
197.Saint-JohnPerse,200. Fantasiaditatorial,202.
Os efeitosda fantasiaditatorial,203. Técnica da
fusãoe metáforas,206. Conclusão,210.
Apêndice I -Poesias do séculoXX 213
Apêndice 11- Quatrointerpretações. . . . . . . . . . . . . . . 287
Apêndice111- Cronologiadalíricamoderna.. . . . . . .. 305
Bibliografia 311
lndice de autores 143
A ErnestoGrassi
em seu65.0 aniversário
2 de maiode 1967
I
L
I
I)
,.~.
l
Do Prefácio à Primeira Edição
Estelivro é o frutode anosde reflexõessobrea lírica mo-
derna.Reflexõesiniciadasna épocaem que chegoua minhas
mãosa antologiaMenschheitsdãmmerung(O crepúsculoda hu-
manidade),publicadapor K. Pinthus.Estávamos?m 1920e eu
fazia o cursocolegial.Como era de se esperar,tais reflexões
permaneceram,a princípio,desordenadas.Somentemuitomais
tarde,quandovima conheceroslíricosfrancesesdo séculoXIX
e, posteriormente,os líricos francesese espanhói$do século
XX, delinearam-seos perfisquepassarama meorientarneste
campotão vasto.Percebique os poetasalemãesanterioresa
1920,bemcomoos queescreverampor voltadaqueleano,ex-
tràídosdo "séculoXIX agonizante"por seueditor,nãoeramtão
dissociadosentresi, comopodiaparecer,à primeiravista.Tam-
bémnão o sãoos poetasposterioresàquelese os atuais,tanto
na Alemanhaquantono restoda Europa.A crítica da lírica
contemporâneacometequasesempreo erro de considerarso-
menteo paísqueestásendofocalizadoe nosseusúltimosvinte
ou trintaanos.Assim, a poesiapareceassumircaracterísticas
deumaextraordinária"ruptura"e,entrea líricade 1945e a de
1955,nota-se,comespanto,umadistânciaque,na verdade,não
correspondenem mesmoao intervaloexistenteentredois se-
gundos.
Os fundadorese, aindahoje,mestresda lírica modernada
Europasãodoisfrancesesdo séculoXIX, Rimbaude Mallarmé.
Entre·elese a poesiade nossaépoca,perduramelementosem
comumqL(enãosepodeexplicarcomosimplesinfluxosnemse
precisaexplicarcomotal, mesmonos lugaresem queos influ-
xossejamreconhecíveis.Trata-sedeelementosestruturaisemco-
mumou, melhor,de uma tessiturabásica,surpreendentemente
constantenosmaisvariadosfenômenosda lírica moderna.Essa
estrutura,origináriademuitosfilõesalgunsdosquaisjá existen-
tesnoséculoXVIII, fundiu-se- porvoltade1850nateoriapoé-
9
ticae por voltade 1870,naprática- emumtodoqueé,cer-
tamente,muitocomplexo,mastambémmuitocoerente.Isto ocor-
reu na França.As leis estilísticasdos poetasatuaistornam-se
clarasa partir de Rimbaude Mallarmé,e, por outro lado, o
espantosomodernismodestesúltimosé explicadoa partir dos
poetashodiernos.E necessário,alémdisso,decidir-sea deixar
de ladoas classificaçõescostumeiras,comas quaisa críticae a
ciêncialiteráriatêmsubdivididoa lírica européiados últimos
cemanos.E, alémdisso,é necessáriodecidir-sea abandonara
limitaçãodo campovisuala um autor isoladoou a um tipo
estilísticoisolado.Só entãopode-sevisualizaraquelaelucidação
recíproca(entreos poetasfrancesescitadose os modernos)e,
comisto,a unidadeestruturalda lírica européiamoderna.
O qu.eo presentelivropretende(e,peloqueeusaiba,ainda
nãofoi feito)estáexpressoemseutítuloprincipal.Não tenciona
serumahistóriada lírica moderna.Se assimfosse,muitosou-
trosautoresteriamde ser analisados.O conceitode estrutura
tornasupérfluaa análisede todoo materialhistórico.Principal-
menteseo materialsó trazdigressõesda estruturafundamental,
como,por exemplo,no casode Lautréamontque, é verdade,
exercehoje algumainfluência,emboranão passede merava-
riantede Rimbaud- a quemnão conheceu,tão poucocomo
esteàquele.Pelo mesmomotivo- alémde muitosoutros-
prescindetambémdetratarda lírica confessionale da líricapo-
lítica do séculoXX. O valordestalírica - noscasosemque
eleexista- nãoseoriginada fé nemdasidéiaspolíticas- e
muitomenosaindada políticapartidária.
E naturalque eu, comoromanista,tenhaido buscarnas
literaturasromânicasa maiorpartedos exemplosdo capítulo
quinto.O leitornãodevevernistoumadepreciaçãodospoetas
alemãese anglo-saxões,sobretudoporquemeempenhei,na me-
dida do necessário,em incluir um representantealemãoe um
inglês,a fim deexpora suagrandeza,mastambémparamostrar
a comunhãode estiloestruturalcomos franceses,espanhóise
italianos.De qualquerforma,a apresentaçãoemmeulivro dos
fundadoresda líricamodernae deseuprecursor,Baudelaire,nãoé fruto casualde meusinteressesespecíficos,masumanecessi·
dadeobjetiva.
O queé a lírica moderna?Não querome arriscara dar
umadefinição.A respostadevesurgirdo própriolivro. Este li-
vro devetambémresponderpor que omiti tão grandeslíricos
comoGeorgee Hofmannstha,l,assimcomoCarossa,R. A. Schro-
der,Loerke,RicardaHuch,Th. Diiubler.Elessãoosherdeirose
os novospontosaltosde umestilolírico plurissecular- justa-
10
,Ir
mentedaqueleestilodo quala Françasedesprendeuhá oitenta
anos.Acreditoque ninguémirá deduzirque eu os considere
superados.Eu mesmonão sou vanguardista.Sinto-memaisà
vontadecomGoethedo quecomT. S. Eliot. Mas istonãoé o
que importa.Aquilo queme interessaé identificaros sintomas
do modernismorigoroso,e pensoquenossasciênciasfilológicas
teriamde fazeraindamuitomaispor tal identificaçãodo que
temacontecidoatéagora.
O livro estaráexpostoa muitosequívocos.Os poetassão
pessoassensíveis,zelosasdesuaoriginalidadeeseusadmiradores
alentamestasensibilidade.Por isso conto já, principalmente,
com um equívoco:o de ter julgadocom o mesmoparâmetro
todosospoetasquecito.Pois bem,esteequívocoendereçar-se-ia
justamentecontrao intuitodo livro, o qual pretendedar uma
visãodossintomasda lírica modernaqueatingemparaalémdo
pessoal,do nacionale dosdecênios.
O livro apresenta,emalgunstrechos,os princípiosmetodo-
lógicosque nortearamminhaexposição.Quero apenasanteci-
parqueo capítuloquintonãodeveriaserlido semconhecimento
dosquatrooutrosanteriores,pois,do contrário,não se distin-
guiria quão íntimaéa conexãodos poetashodiernoscom os
poetasfrancesesdo séculoXIX. Teriasidofaslidiosocontinuar,
todavez,a demonstraristoem cadacaso.Além disso,devese
lembrarque,quandodigo "moderno",refiro-mea todaa época
a partir de Baudelaireel ao invés,digo "contemporâneo"ou
"atual",quandosetrataexclusivamentedepoesiasdoséculoXX.
Em atençãoao leitor,apresenteiquasetodasascitaçõestra-
duzidas,no decorrerde cadaumdoscapítulos.No ApêndiceI,
foramtranscritosalgunstextosoriginais,juntamentecomtenta-
tivasde tradução.Com certeza,todoaquelequeestáfamiliari-
zadocoma lírica bemsabecomoé difícil traduzi-Ia,especial-
mentea líricamoderna.
Hugo Friedrich
Freiburg,in Brisgau,
Páscoa,1956
11
~ .-9: ._n __"_ .__
~<
J'
Prefácio à Nova Edição
Por propostado editordestasériede estudos,estelivro foi
reelaboradoem muitosaspectos:correçãode erros,alterações
estilísticase acréscimosreais,entreos quaisse desejasalientar
o queserefereà "NovaLinguagem".O ApêndiceI foi aumen-
tadode algumaspoesias.Segue-sea ele,comonovoapêndice,
a interpretaçãode algumaspoesias.A bibliografiafoi também
ampliada;a notapreliminar,à página311,informasobreo sen-
tido,e osprincípiosda mesma.Citaçõese resumos,maisdo que
nas ediçõesprecedentes,sãoregistradasno decorrerda exposi-
ção. Isto sucededo seguintemodo: o algarismoindicadoem
grifo refere-seao títulocorrespondenteà bibliografia,agoranu-
merada.EstesalgarismosfaltamsomentenoscapítulosIUlI-/V;
as citaçõessão colhidasda respectivaediçãoda obra, assim:
Baudelaire= 103;Rimbaud:::::144;MallaJ;'mé:::::171.Ao lado
dascitações,constaapenaso númeroda página.
O conceito"estrutura",usadono títulodo livro,foi muitas
vezesmal-entendido.Assimseguisverno termo"estrutura",por
vezes,algo "rijo, petrificado"ou, então,nãose acreditavaque
esteconceitopudesseseraplicadoa "algotãoincorpóreocomo
a lírica". Obviamente"nãoseentendepor "estrutura"umendu-
recimentoou algo semelhante,sobretudoporque,nas ci~ncias
humanasdesdeDilthey,o conceitoperdeuo significadooriginá-
rio deinorgânico.Nos fenômenosliterários,"estrutura"designa
umatessituraorgânica,umacomunhãotipológicado diverso.No
casoem questão,trata-sedo elementocomumde criaçãolírica
que consisteno abandonodas tradiçõesclássicas,românticas,
naturalísticas,declamatórias,emoutraspalavras,justamenteem
suamodernidade."Estrutura"significaaqui a configuraçãoco-
mumde umasériede numerosaspoesiaslíricas que,de modo
algum,necessitamter-seinfluenciadoreciprocamente,cujasca-
racterísticasisoladascoincideme, todavia,podemserexplicadas
separadamente;em todoo caso,ocorremtãofreqüentementee,
13
no mesmocontexto,quenãopodemserconsideradascomofenô-
menosfortuitos.Aliás, já sealudiu'a isso,em termosum tanto
diferentes,na primeiraeqição,no parágrafoinicial do capítulo
quinto.
Confessoque teria preferidoevitar o termo "estrutura",
nestaediçãoreformulada.Poisagora,muitomaisdo quenaépo-
ca da primeiraedição,a palavratornou-seuma expressãode
moda,difundindo-senoscamposmaisdiversos.Tive, aindaas-
sim,de conservá-Iapor dois motivos:primeiro,porqueo livro
ficou conhecidosob estetítulo e, depois,porquehoje como
ontem,devomeresguardardaexpectativadeterescritoumahis-
tóriadalíricamoderna.Tal empresateriaexigidooutrosmétodos
e outrasdisposiçõesda matéria,algosemelhanteao quese en-
contrano excedentelivro de G. Siebenmann,Die ModernLyrik
in Spanien(378),livro deorientaçãoclaramentehistóricae que
inclui tambéma evoluçãode cadaum doslíricos.
Mudeio subtítulo.Anteschamava-se:De Baudelaireatéo
presente.No títuloatual,constamdatasaproximadasque,por-
tanto,devemser entendidascomflexibilidade.A limitaçãodo
períodoem 1950é, no entanto,maisdefinidado queo início,
em1850.Muito foi publicadona líricaeuropéia,desdea metade
de nossoséculo,quepodeinspirar respeito.Apesardisso,eu
nãosaberiadizerquema ultrapassou,definitivamente,e de for-
maválidaparao futuro,nocampoquefoi abertopelosclássicos
à poesiamoderna.Observaram-se,antes,distensões,aqui e ali,
sensívelretornoà lírica tornadamaishumana,pessoal,mais
simplesaoexpressaro sofrimentoe a alegria.Apesarde tudo,a
lírica permaneceu,comoforça suavee todaviagrandiosa,uma
dasliberdadese dasaudáciascomas quaisnossaépocaescapa
aos liamesfuncionais.E, talvez,minhaculpa,se não consigo
maisreconhecer,emsuapossíveloriginalidade,emseudestaque
dentrode umcontextopoético,emaproximadamenteumséculo
depoesia,muitacoisaquepoderiaser,realmente,nova.No en-
tanto,a chamada"poesiaconcreta",comseuentulhode pala-
vrase.sílabasjogadasmecanicamente,permanece,graçasà sua
esterilidade,totalmentefora de consideração.
Hugo Friedrich
Freiburg,in Breisgau,
outubrode 1966
14
"
I. Perspectiva e retrospecto
Perspectiva da lírica contemporânea:
dissonâncias e anormalidade
A lírica européiado séculoXX nãoé de fácil acesso.Fala
de maneiraenigmáticae obscura.Mas é de umaprodutividade
surpreendente.A obradoslíricosalemães,do Rilke dosúltimos
tempose de Trakl a G. Benn,dosfranceses,de Apollinairea
Saint-JohnPerse,dos espanhóis,de García Lorca a Guillén,
dos italianos,de Palazzeschia Ungaretti,dos anglo-saxôni-
cos, de Yeatsa T. S. Eliot, não podemais ser colocadaem
dúvidaquantoà suasignificação.Estaobramostraquea força
deexpressãoda lírica, na situaçãoespiritualdo presente,nãoé
inferiorà forçadeexpressãodafilosofia,do romance,doteatro,
da pinturae da música.
Comestespoetas,o leitorpassapor uma experiênciaque
o conduz- tambémaindaantesquesepercebadisto- muito
próximoà característicaessencialde tal lírica. Suaobscuridade
o fascina,namesmamedidaemqueo desconcerta.A magiade
suapalavrae seusentidode mistérioagemprofundamente,em-
bora a compreensãopermaneçadesorientada."A poesiª_pode
comunicar-se.L."ª-in<iaant~Ld!LseJ'compJ:'eendia",observouT. S.
Eliot em seusensaios.futa j'lln窺.de incompreensibilidadee
de_fascioªçã.opode.serchamada.dedissonância,Pois..gerauma
tensªº.Q'lletende.maisª.i!1q\.!.jet'lld~__Q'llJ~jUJ;~renidªd_e.A tensão
dissonanteé um o.bj~iyº_das._.artesIrlQclel"tlalictJ:!_.&eral.Stra-
winsky escreveem sua PoétiqueMusicale(1948):"Nada nos
constrangea buscara satisfaçãosempree somenteno repouso.
Há maisde um século,acumulam-seexemplosde um estilono
qualadissQnânciatornou-seautônoma.Transformou-seemuma
15
Belezadissonante,afastamentodo coraçãodo objetoda
poesia,estadosde consciênciaanormais,idealidadevazia,des-
concretização,sentidodemistério,geradosnas forçasmágicas
da linguageme da fantasiaabsoluta,aproximadosàs abstrações
da matemáticae às curvasmelódicasda música:comestesele-
mentos,Baudelairepreparouas possibilidadesquese tornariam
realidadena lírica dospoetasvindouros.
Estaspossibilidadessãoencetadaspor um poetaque traz
os estigmasdo Romantismo.Do jogo romântico,Baudelairefez
umaseriedadenão romântica;comas idéiasmarginaisde seus
mestres,construiuum edifíciodepensamento,cujafachadalhes
voltouas costas.Por isto,pode-sechamara lírica de seusher-
deirosde "Romantismodesromantizado".
58
J
I
i, ,I,
I
I
lItJ.
11I.Rimbaud
Características preliminares
Umavidadetrintae seteanos;umaatividadepoéticaco-
meçandona adolescênciae interrompendo-sedepoisde quatro
anos;o resto,um completosilêncioliterário,um irrequietovia-
jar por todaa parte:do quemaisteriagostadoseriade chegar
à Ásia, mastevede se contentarcomo OrientePróximoe a
Africa Central;dedicadoa todoo gênerodeocupaçõesemexér-
citoscoloniais,pedreiras,firmasde exportaçãoe, por fim, no
tráficodearmasparao Negusda Abissínia;alémdisso,a rela-
tórios para sociedadesgeográficassobre territóriosda África
atéentãoinexplorados.Naquelebreveperíododeatividadepoé-
tica,umritmofuriosode evoluçãoque,já apósdoisanos,tinha
feitoir pelosaresnãosó o próprioinício,mastambéma tradi-
çãoliteráriaqueseachavaatrásdestee a criar umalinguagem
que, aindahoje, continuasendouma linguagemorigináriada
lírica moderna:estessãoalgunsfeitosda pessoade Rimbaud.
Suaobracorrespondeà essaimpetuosidade.É exígua;mas
a elasepodeaplicarumapalavra-chavede Rimbaud:explosão.
Começoucomversosencadeados,passouao versolivre e desar-
ticulado,e daí às poesiasemprosa,ritmadasassimetricamente,
de Les Illuminations(1872-73)e de Une Saison en Enter
(1873)1.Estasimplificaçãodasformas,preparadapelospoetas
precedentes,serealizaa favor de uma lírica dinâmica,quese
servetantodo concretoe do formal,quantode meiosarbitrá-
rios de sualiberdade.De resto,podemosprescindirda divisão
1. Estas datas foram contestadaspor Bouillane de Lacoste, com
algumasargumentaçõessugestivas,mas não irrefutáveis,segundoas quais
Les Illuminationsseriama última obra de Rimbaud.
59
da obra em verso e prosa. Outra divisão seria mais adequada:
um primeiro período de poesiaacessível,que atingeaté por vol"
ta da metadede 1871,e um segundoperíodo de poesia obscura,
esotérica.
Pode-se compreendera poesia de Rimbaud, em primeiro
lugar, como realizaçãodaquelesesboçosteóricos de Baudelaire.
Mas nos ofereceum quadro totalmentemudado.As tensõesnão
resolvidas,masordenadase expressasnas formas severasde Les
Fleursdu Mal, tornam-seaqui dissonânciasabsolutas.Os temas
só às vezesse juntam ainda de modo vagamentecompreensível,
e apresentamum sem-fimde interrupções,entrelaçam-se,o mais
dasvezes,confusamente.O núcleo destapoesiaquasenão é mais
de caráter temático,parece, antes, uma excitação efervescente.
A partir de 1871,ela não mais produz tessiturasde sentidocom-
pleto mas, sim, fragmentos,linhas truncadas, imagensagudas,
perceptíveisaos sentidos,mas irreais; tudo isto, porém, de tal
forma que, naquela unidade, vibra o caos que foi necessário
para a unidade tornar-selinguagem: na unidade de uma musi-
calidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias
e harmonias.O ato lírico desloca-secada vez mais da expressão
do conteúdo a um modo de 'Ver ditatorial e, portanto, a uma
insólita técnica de expressão.Esta técnica nem sequer precisa
consistir na destruiçãodas ordens sintáticas.No vulcânico Rim-
baud, isto acontece raras vezes enquanto, de modo estranho,
encontra-semais amiúdeno pacato Mallarmé. A Rimbaud bastaj
pôr os conteúdoscaóticos em frases que são simplificadas até
o primitivistQo.
Desorientação
O efeito destapoesiaé desconcertante.J. Riviere escreveu,
em 1920, sobre Rimbaud: "Sua missão consistia em nos deso-
rientar". A frase é corretauma vez que reconheceuma missão
em Rimbaud. Confirma isto uma carta de Claudel endereçada
a Riviere, na qual Claudel fala de sua primeira leitura de Les
Illuminationse prossegue:"Por fim saí do mundo repugnante
de um Taine, de um Renan, daquele mecanismoatroz, guiado
por leis inflexíveis e, além do mais, ainda fáceis de se reconhe-
cer e de aprender. Foi a revelação do sobrenatural". Claudel
alude ao positivismo científico que se baseia na convicção de
que é possívelexplicar totalmenteo universo e o homem, sufo-
60
1
..;'
I
o(C
I
cando, assim,as forças artísticase espirituaiscarentesde misté-
rio. Portanto, uma poesia obscura, que se evade do mundo ex-
plicável do pensamentoextremamentecientífico para lançar-se
ao mundo extremamenteenigmáticoda fantasia,pode ter o efei-
to de missãoque proporcione,a quemé sensívela ela, a mesma
evasão.Talvez sejaestaa causafundamentalda força de atração
que Rimbaud exerceunão só sobre Claudel, mas tambémsobre
muitos outros leitores. Seu caos irreal era a redençãoda reali-
dade oprimente.Claudel deve a ele o impulso inicial à conver-
são; desta,só Claudel é responsável.Rimbaud pode, ainda me-
nos do que Baudelaire, ser interpretadocomo cristão, embora
sua poesia contenha forças análogas ao êxtase religioso. Tais
forças, nele, se perdemno Nada de um sobrenaturalvazio.
A impressãodos textosde Rimbaud é tanto mais desorien-
tadora porquanto parte de uma linguagemque não só fere com
golpesbrutais, comopode ser tambémcapazdasmaisencantado-
ras melodias.Às vezes,parececomo se Rimbaud se impelisse a
uma beatitude supraterrena,como se viesse de outro mundo,
extasiado.Gide chama-ode "silvado ardente". Para outros, con-
verte-seem anjo; Mallarmé fala do "anjo no exílio". A obra,
dissonante,provoca as apreciaçõesmais contraditórias,que vão
desde a exaltaçãode Rimbaud como poeta supremo à sua de-
preciação a jovem turbado da puberdade, em torno do qual
formaram-seas lendas mais exageradas.Uma análise fria pode
facilmente afastar aquelas que, de fato, são exageros: mas
todas serãovistas, justamente,como conseqüênciada força que
emana de Rimbaud. Quaisquer que sejam as avaliações,de to-
das deve-sededuzir que não se pode prescindir do fenômeno
Rimbaud, que apareceue declinou como um meteoro,mas con-
tinua brilhando com a faixa de fogo no céu da poesia. Autores
que não o conheceramatétarde e não haviamescritosob sua in-
fluência afirmam que suas obras derivam da mesma "necessi-
dade de expressão"que a de Rimbaud: necessidadede expressão
"de situaçõesinteriores", que se repetemem um período cultu-
ral. Assim se expressavaG. Benn, ainda em 1955 (586, p. 8).
tettres d'un voyant(transcendência vazia, anormalidade
desejada, "música" dissonante)
Em 1871, Rimbaud escreveuduas cartas, nas quais esbo-
çou o programa da poesia futura. O programa correspondeà
61
segundafasede suaprópriapoesia.Visto que as cartasse ba-
seiamno conceitodo vidente(voyant),costumou-sechamá-Ias
de Lettresd'un voyant(Cartasde um vidente)(p. 251 e ss.).
Confirmamque,tambémparaRimbaud,a poesiamodernadeve
ser acompanhadada reflexãosobrea artepoética.
Reivindicara condiçãodevidenteparao poeta,nãoé, cer-
tamente,umanovidade.Uma dasorigensdestepensamentore-
montaaosgregos.Tal pensamentofoi retomadopeloplatonismo
l'enascentista.ChegouatéRimbaudatravésde Montaigneque,
numensaio,combinoudoistrechosde Platãoacercada loucura
poética.Rimbattd,aindacomoestudante,haviaaprendidodecor
o capítulodeMontaigne.PodeserquereminiscênciasdeVictor
Hugotenhamsidoacrescentadas.Porémé decisivaa reviravolta
que Rimbaudconferea estepensamentoantigo.O que vê o
poetavidentee comose converteem tal? As respostasnada
têmde gregas;sãoextremamentemodernas.
O objetivodo poetaré "chegarao desconhecido",ou en-
tão,dito de outromodo:"escrutaro invisível,ouvir o inaudí-
vel". Já conhecemosestesconceitos:derivamde Baudelairee
são,aquie lá, palavras-chaveparaindicara transcendênciava-
zia. TampoucoRimbaudlhes dá uma definiçãomaisprecisa.
Permanecena caracterizaçãonegativadoobjetivoperseguido;
distingue-ocomoo não-usual,não-real,comoo outro pura e
simplesmente,masnãolhe dá conteúdo.As poesiasde Rimbaud
confirmamisso. Sua irrupçãovulcânicaque o joga acimada
realidadeé, emprimeirolugar,o desafogodestemesmoimpul-
so eruptivo;e, logo,é a deformaçãoda realidadeemimagens
que,mesmoirreais,nãosãosinaisdeumatranscendênciaverda-
deira.Tambémem Rimbaud,o "desconhecido"é um pólo de
tensãodestituídode conteúdo.A visãopoéticapenetrano mis-
tériovazioatravésde umarealidadeintencionalmentefeitaem
pedaços.
Qual é o sujeitodestavisão?As frasescomas quaisRim-
baudrespondea estaperguntatornaram-sefamosas."Pois 'eu'
é outro.Sea chapadeferrose despertana formade trombeta,
não se tem de lançar-lhea culpa. Assistoao desabrocharde
meupensamento,eu o vejo,eu o escuto.Desfiroum toquede
arco: a sinfoniajá se faz sentirno profundo.:e falso dizer:
penso.Dever-se-iadizer: pensa-seem mim." O sujeitoverda-
deironãoé, portanto,o eu empírico.Outrasforçasatuamem
seulugar,forçassubterrâneasde caráter"pré-pessoal",masde
umaviolênciade disposiçãoque coage.E só elassãoo órgão
apropriadoparaa visãodo "desconhecido".:e verdadequeem
taisfrasesse podereconhecero esquemamístico:o auto-aban-
62
,',
I
I
I
(
I
donodo eu porquea inspiraçãodivinao subjuga.Mas a subju-
gaçãovemagorade baixo.O eu emergee é desarmadopor
camadasprofundascoletivas(l'âmeuniverselle).Estamosno
umbralondea poesiamodernase deixalançarno caosdo in-
conscientea novasexperiênciasqueo desgastadomaterialdo
mundonãomaisproporciona.Compreende-seque os surrealis-
tas do séculoXX reivindiquemRimbaudcomoum de seus
ascendentes.
Tambémé muito importantea seqüênciadestalinha de
pensamento:o autodespojodo eu deveser alcançadomediante
um atooperativo.Vontadee inteligênciao dirigem."Querovir
a ser poetae trabalhoparasê-lo",é o princípiovolitivo.Sua
realizaçãoconsiste"em desordenarlenta,infinita e arrazoada-
mente,todosossentidos".E deformaaindamaisincisiva:"Tra-
ta-sede criar-seuma almadisforme,comoo homem'que itn-
plantaverrugasem seurostoe as cultiva",O impulsopoético
é ativadopormeiodesuaautomutilação,por meiodo afeamento
voluntárioda alma.Tudo para "chegarao desconhecido",O
poeta,aquelequeolha o desconhecido,torna-se"o grandeen-
fermo,o grandedelinqüente,o grandeproscrito- e o sumo
sábio".Assim,a anormalidadejá nãoé umdestinosimplesmente
suportável,comooutrora,em Rousseau,massim, um desterro
por firmedeliberação.A poesialiga-se.agoraaopressupostoque
a vontadedistorcea tessituraanímica,pois tal desfiguraçãopos-
sibilitaa cegaevasãoparao profundo"pré-pessoal",comotam-
bémparaa transcendênciavazia.Estamosmuitolongedo co-
movedorvidentedos gregos,a quemas musasfalavamdos
deuses.
A poesianascidamediantetais operaçõeschama-senova
linguagem,linguagemuniversal,paraa qualé indiferentesetem
ou não forma.É umaurdidura do "estranho,insondável,re-
pugnantee extasiante".Todasas categoriasse encontramnum
mesmoplano,atémesmoaquelasdo belo e do feio.A excita-
ção e a músicaconstituemseuatestadode valor. Por toda a
parte,emsuaobra,Rimbaudfala da música.Ele a chama"a
músicadesconhecida",escuta-aem "castelosconstruídoscom
ossos",na "cançãometálicadospostesdo telégrafo";é "canto
límpidode novadesgraça",é a "músicamaisintensa"na qual
foi suprimidotodoo "sofrimentosimplesmenteharmonioso"de
tiporomântico.Quandosuapoesiadeixaressoarcoisasou seres,
há sempregritose bramidosquese interpolamna cançãoe no
canto:músicadissonante.
Voltemosàscartas.Aqui seenunciaa belafrase:"O poeta
definiráa extensãodo desconhecidoquese faz sentirna alma
63
universal de sua época". Logo depois vem a anunciação pro-
gramáticada anormalidade: "Ele, poeta, é a anormalidadeque
se converte em norma". O auge destas anunciações diz: "O
poeta chega ao desconhecidoe, mesmoque ele finalmente não
mais compreendasuas próprias visões, ele as contemplou,toda-
via. Mesmo que possa sucumbir em seu salto gigantescoatravés
dascoisasinaudíveis e inomináveis, outros temíveis trabalha-
doresvirão e começarãopor aqueles horizontes onde ele pró-
prio sucumbiu".
O poeta: aquele que trabalha na explosão do mundo por
força de uma fantasia violenta que penetra o desconhecido e
contra este se despedaçade encontro a ele. Intuiu acaso Rim-
baud que os modernospoderesinimigos, antagônicosentre si, o
trabalhador técnico e o "trabalhador" poético, no fundo se
encontram,pois ambossão ditadores: um sobre a terra, o outro
sobre a alma?
Ruptura da tradição
A revolta implícita nesteprograma,e tambémnas próprias
poesias, dirige-se, simultaneamente,para trás, destruindo a tra-
dição. Por certo, se conhecea sede de leitura de Rimbaud me-
nino e jovem. Seus versos estão repletos de reminiscênciasde
autoresdo século XIX, contemporâneose anteriores. Contudo,
mesmoo que os faz lembrar possui o tom agudo que vem de
Rimbaud e não de seusmodelos. O patrimônio literário absor-
vido transformôu-senele, mediante superaquecimentoou con-
gelamento,numa substânciacompletamentediversa. Para uma
apreciaçãode Rimbaud, aquelas reminiscênciastêm apenasum
valor secundário.Confirmam o mesmoque todos os outros ca-
sos, isto é, que nenhum autor pode partir do nada. Quer dizer,
para Rimbaud, elas não levam a nenhumaconclusãoespecífica.
Esta pode ser encontradana violenta transformaçãodaquilo que
ele aprendeu com as leituras e, em sua atitude de deliberada
ruptura com a tradição,e de exacerbadoódio por ela. "Execrar
os antepassados",constana segundade suasLettresd'unvoyant.
Expressõessuas nos foram transmitidasonde ridiculariza o.Mu-
seudo Louvre e incita ao incêndio da Biblioteca Nacional. Estas
expressõespodem parecer pueris, mas coincidem perfeitamente
com a própria mentalidadede sua última obra (UneSaisonen
Enter),que - conquantoseu autor fosse ainda adolescente-
64
j,
I
certamentenão pode ser chamadade pueril. A incomunicabili-
dade provocadorade Rimbaud com o público e com sua época
torna-se conseqüentementetambém a incomunicabilidade com
o passado.Seusargumentosnão sãode caráterpessoalmas, sim.
estãovinculados ao espírito de seu tempo. O passadotornando-
se um peso, devido ao extinguir-seda genuína consciênciade
continuidade e à sua substituiçãopelo historicismo e pelas co-
leções em museus,produz em alguns espíritos do século XIX
uma reaçãoque conduz à repulsade tudo aquilo que é passado.
Esta permaneceráuma característicapermanenteda arte e da
poesia modernas.
Durante sua época escolar,Rimbaud foi um humanista de
valor. Todavia, em seus textos, a antigüidadeaparecede forma
desfigurada.O mito é degradadomedianteassociaçãocom o or-
dinário: "bacantes dos subúrbios"; Vênus dá aguardente aos
operários; numa cidadegrande,cervossugamos seiosde Diana.
O grotesco,que Victor Hugo havia recolhido de chistesmedie-
vais, estende-se,como em Daumier, ao mundo mitológico da
antigüidade.O enfeamentoé radical no soneto "Vénus anadyo-
mene". O título mencionaum dos mitos figurativos mais belos:
() nascimentode Afrodite das espumasdo mar. Porém, o con-
teúdo está em contraste bizarro: de uma banheira verde de
ferro emergeum obeso corpo de mulher, com o pescoçocinza
e a coluna dorsal avermelhada;nas ancas,estágravadaa inscri-
ção "Clara Vénus"; num lugar indicado com exatidão anatô-
mica há um abscesso.Quis-se ver nestesoneto uma paródia a
certas poesiasem moda naquela época, sobretudo as de estilo
parnasiano.Mas é uma paródia sem graça. O ataque dirige-se
contra o próprio mito, contra a tradição em geral, contra a
beleza; é um ataque movido pelo desafogo de uma tendência
à deformação, que - e aqui está o mais curioso - possui,
por outro lado, suficiente qualidadeartística para imprimir nas
fealdadeso vigor de uma lógica estilística.
Ainda mais violento é o desabafocontra a beleza e a tra-
dição na poesia"Se qu'on dit au poeteà propos de fleurs". Um
escárnioà lírica das flores, das rosas, das violetas, dos lírios e
dos lilases. Pois, com a nbva poesia condiz outra flora: nãocantaas videiras,cantao tabaco,as plantasde algodãoe a doen-'
ça das batatas;a lágrima de uma vela vale mais do que a fbr;
o tecido lenhoso,transpirante,de plantasexóticasvale mais que
a vegetaçãode nossa terra. Sob um céu escuro na idade do
ferro devemsurgir poesias foscas, nas quais a rima brote "co-
mo um jato de carbonato de sódio, como borracha líquida".
Postes de telégrafosão sua lira e alguém virá e dirá o grande
amor/, "Ladrão de sombrias indulgências".
65
Modernidade e poesia da cidade
Um texto como este revela o comportamentode Rimbaud,
concernenteà modernidade.É dúplice como o de Baudelaire~
aversãoà modernidade,enquanto progressomaterial e raciona-
lismo científico; apegoà modernidade,enquanto conduz a no-
vas experiências,cuja dureza e obscuridade exigem uma poe-
sia dura e "negra". Daí a poesia citadina de Rimbaud, que
se encontraem Les /lluminations. É de uma potênciagrandiosa
que transferea cidade de sonho de Baudelaireao "superdimen-
sional". Os poemas melhores são aqueles que têm por título
Ville e Villes (p. 180 e ss.). Com imagensincoerentes,acumu-
ladas, criam cidadesda fantasia ou do futuro, superandotodos
os tempos,invertendo toda ordem espacial; as massasestãoem
movimento,ressoame bramem;o real e o irreal se cruzam; entre
chalés de cristal e palmeirasde cobre, por cima de desfiladei-
ros e abismos,ocorre o "desmoronamentodas apoteoses";jar-
dins artificiais, mar artificial, uma cúpula de igreja, em aço, de
quinze mil pés de diâmetro, candelabrosgigantescos,a parte
superior da cidade construída tão no alto que já não se vê a
parte inferior ... ; e além do mais, as frases (p. 180): tais cio
dades repeliram tudo o que é familiar, aí não existe qualquer
monumento ao devaneio,nenhum dos milhões de homens co-
nhece o outro e contudo a vida de um está sujeita à mesma
coação uniforme como a de todos os outros; fantasmas são
esteshomens,de carvão ç sua sombra dos bosquese sua noite
de verão; morre-sesem lágrimas, ama-sesem esperançae "um
crime encantadorgemeno lodo das ruas".
Não se poderá destrinçar a urdidura destasimagens,não
se poderá encontrar nelas um sentido tranqüilizador, pois seu
sentido reside na confusão de suas próprias imagens. Nascido
de uma fantasia excitada, seu caos superdimensionaltorna-se
indefinível para a inteligência,mas perceptívelpara os sentidos;
sinal visível dos elementostanto materiaisquanto espirituais da
modernidademetropolitanae seus temores,que são as forças
que a dominam.
Insurreição contra a herança cristã: Une Saisonen Enfer
Agora, a questãoacercado cristianismode Rimbaud. Não
um cristianismoem ruína como em Baudelaire.Os textosmos-
66
, ,
.-
tram que ele começa com a revolta e termina com o martírio
de não poder escaparà coaçãoda herançacristã. Por certo, isto
é ainda muito mais cristão do que a indiferença ou a ironia
racionalista.A oposição de Rimbaud é uma daquelasoposições
que ficam sob o domínio justamentedaquilo contra o qual se
insurge. Ele mesmosabia disso. Tal consciênciatorna-Stpoesia
em Une Saison en Enfe!".Mas a indignação contra o cristianis-
mo não se acalmou.Torna-se apenasmais atormentadae mais
inteligente- e termina no silêncio. É um aspectode sua insur-
reição contra as tradiçõesem geral,mas tambémum aspectode
sua paixão pelo "desconhecido",por aquela transcendênciava-
zia que ele não pode indicar de outra forma a não ser mediante
a redução a pedaços do que lhe é dado.
Os textos da primeira fase contêm os ataquesmais aber-
tos e passampor uma decomposiçãopsicologizanteda alma cris-
tã. Assim, na poesia "Les premierescommunions",uma adoles-
cente sucumbeao tumulto dos instintos, cuja culpa vem impu-
tada ao cristianismo, pois este foi culpado da sua repressão.
Mas Rimbaud vai além. Possivelmentepor volta de 1872, es-
creveu um trecho em prosa que começa com as seguintespa-
lavras: "Bethsaida, Ia piscine des cinq galéries", que tem por
base o relato do evangelhode São João acerca da cura mila-
grosa de um enfermo por Cristo à beira do lago Bethsaida(Be-
thesda).Mas o relato está completamentetransformado.Aleija-
dos entram na água amarela,mas não chega anjo algum, nin-
guém os cura. Cristo está encostadoa uma coluna e olha im-
passível os banhistas, através de cujas fisionomias Satanás ri
zombeteiramentepara ele. Então levanta-seum e vai com passo
firme rumo à cidade. Quem o curou? Cristo não disse uma só
palavra, não lançou sequer um olhar aos paralíticos. Talvez
Satanás? O texto emudecea respeito, contenta-seem colocar
Cristo espacialmentena proximidade do doente. Justamentedaí
pode surgir a suspeita: Cristo não curou, talvez tampoucoSa-
tanás,mas sim uma força que ninguémsabeonde reside e qual
seja. Transcendência vazia.
Aqui se deve discorrer brevementesobre Une Saison en
Enfe!",pois contém a última palavra de Rimbaud sobre o cris-
tianismo. Este texto consistede seteextensospoemasem prosa.
Sua linguagemapresentamovimentosmúltiplos, justapostossem
transição: golpes inopinados que iniciam uma expressãosem
conduzi-Ia a termo; palavras que se acumulam de forma verti-
ginosa ou agitada,perguntasque não têm respostase, em meio
a tudo isto, a melodia louca, tão mágicacomo inquietante,das
amplascurvasdos períodos. Quanto ao conteúdo,a obra é uma
revisão de todas as fasesprecedentesde Rimbaud. Todavia, ve-
67
rifica-sequeele,na tentativade repelirfasespassadas,voltaa
sevalerdelase s~entãoas repele.E assimresultaum descon-
certantevaivém:o que ele amava,agoraodeia,voltaa amá-lo
e a odiá-lo.O quenumafraseestáexpostoemformaafirmativa,
é negadona fraseseguinte,para ser repetidona sucessiva.A
revoltavira-secontrasi própria.Tão-somentea conclusãopre-
cipita tudo a um final, no adeusa todaexistênciaespiritual.
Sempátriano mundotradicionaldo real,do espiritual,do
racional:assimpode-seresumiro sentidogeral destaslinhas
em ziguezague,que determinamtambémas páginasacercado
cristianismo.Vocábuloscristãosfiguramaí - inferno,demônio,
anjo-, masoscilamentrea significaçãoliterale a metafórica,
e sãoconstantessó no sentidode constituíremsinaisde excita-
çõescegas."Páginasfeiasde meudiário de condenado",apre-
sentadasao demônio,assimé como Rimbaudchamavaesta
obra."O sanguepagãoretorna,o evangelhojá passou,deixoa
Europa,queronadar,cortarerva,caçar;bebersucosardentes
comoQ metalfervente... Remido."Porém,entreestasfrases,
consta:"Esperocomavidezpor Deus",e algumaspáginasmais
além:"Nuncafui cristão,sou da raça daquelesquecantavam
no suplício". Invoca as "delíciasda condenação".Estasnão
vêm.NãovemCristo,nemSatanás.Mas Rimbaudsenteseugri-
lhão. "Sei-meno inferno,portantoestounele."O infernoé a
escravidãosobo jugodo catecismo;ospagãosnãotêminferno.
Por isso,tambémo paganismoopõe-sea ele.
Tais frasesparecemdizerqueaquelequeaspronunciaso-
fre sob o cristianismocomosofrede um trauma.A excitação
torna-setrejeito,é moverao ataquee estarcaído,ao mesmo
tempo.Estarno infernosignifica,paraele,justamenteisto.Que
tenhade chamar-seinfernoé imposiçãocristã.A perguntanão
explícita,masperceptível,paira sobreo texto:o desnorteiodo
mundomoderno,comotambémda própria interióridade,não
seráumperversodestinocristão?Mas Rimbaudlevantaa ques-
tão, semsolvê-Ia.Põe-seem evidênciao segundotemafun-
damentalde Une Saison: deixaro continente,ir-seemborados
"pântanosocidentais",do desatinodo Ocidentede "quererde-
monstraro óbvio" e não perceberque,como nascimentode
Cristo,nasceuo burguêsmesquinho.Estetemavai selibertando
cadavezmaisdaslinhasemziguezague,adotaum estilodefini-
do, conduzao outono,inverno,à noite,intencionalmenteà mi-
séria,- "vermesem meuscabelos,minhasaxilase em meu
coração".Da totalconsumpçãovema determinaçãode "abra-
çar a realidadeáspera",de fugir da Europa e começaruma
vida de difícil ação.
Rimbaudrealizousuadeterminação.Capitulaanteàs ten-
sõesda existênciaespiritual,insolúveispara ele. O poetase
-
,- -~
([1
deslocouo maislongepossíveldetodosno "desconhecido",não
pôde chegarater a clarezado que sejao desconhecido.Ele
voltaparatráse acolheemsi a morteinterior,emudecidoante
o mundofragmentadopor ele próprio.O maisduroobstáculo
ao mundofoi, paraele,a herançacristã,quenãosaciavasua
fome desmedidado supra-reale lhe aparecialimitada,como
todacoisaterrena.Com a explosãoqueRimbaudinflamouem
tudoo queé reale herdado,tambémo cristianismose desfez.
Baudelairepôdeaindafazerdesuacondenaçãoumsistema.Em
Rimbaud,essasetornaemcaose,por fim, emsilêncio.Comtu-
do istoconcordao fatodequeo relatodesuairmã,segundoo
qualeleteriamorridocrente,revelou-seumapiedosamentira.
o eu artificial; a desumanização
O eu quefala naspoesiasde Rimbaudnãopodesercon-
cebidoa partir da pessoado autor,assimcomoo eu de Les
Fleurs du Mal. As experiênciasdo meninoe do jovempodem,
certamente,contribuirparamuitasexplicaçõespsicológicasdos
textos,casose tenhavontadedisso.Mas poucoservempara
chegarconhecimentode seusujeitopoético.O processode de-
sumanizaçãoacelera-se.O eu deRimbaud- emsuamultiplici-
dade dissonantede vozes- é o produtodaquelaautotransfor-
maçãooperante,da qual falamosacima,e, portanto,daquele
mesmoestiloimaginativodo qualnascemtambémos conteúdos
de suaspoesias.Esteeu podevestirtodasas máscaras,esten-
der-sea todasas formasde existência,a todosos tempose
povos.QuandoRimbaud,no início de Une Saison, fala de seus
antepassadosgálicos,aindase podetomaristo ao pé da letra.
Mas, algumasfrasesdepois,lê-se:"Vivi por todaa parte,não
existeumafamíliaquenão conheça.Há, emminhacabeça,ca-
minhosdaplaníciedaSuábia,vistasdeBizâncio,circunvalações
de Jerusalém".Estaé fantasiamotrize nãoautobiografia.O eu
artificialnutre-sede "imagensidiotas",de assuntosestimulan-
tesdo Orientee do mundoprimitivo,torna-seplanetário,trans-
forma-seem anjo e em mago.Com Rimbaud,começouaquela
separaçãoanormalentreo sujeitopoéticoe o eu empírico,que
se reencontrará,no presente,em Ezra Pound, em Saint-John
Persee que,por si só, já impediriade entendera lírica moder-
na comoexpressãobiográfica.
TambémRimbaudinterpretaseu destinoespiritualpelas
relaçõessuprapessoaisda modernidade."A lutaespiritualé tão
brutal como a batalha entre homens" (p. 230), diz no mesmo
texto onde, contra Verlaine, defende sua determinaçãode ser
quem se precipitou mais profundo e, portanto, vê tambémdis-
tânciasmaiores,mas não pode ser compreendidopor ninguém,
produzindo efeito mortal, mesmo na suavidade.Tem orgulho
de saber que "este sofrimento possui uma autoridade inquie-
tante" (p. 161). Chegou até nós uma frase sua: "Minha supe-
rioridade consisteno fato que não tenho coração".Tem aversão,
na poesia romântica, aos "corações sensíveis". Uma estrofe de
uma poesiasua diz: "Assim te libertas do sufrágiohumano, das
ambiçõesignóbeise voas... " (P. 132).
Não são meros programas.A própria poesia de Rimbaud
é desumanizada.Não falando a ninguém, monologa,portanto,
procurando atrair quem escute, com palavra alguma: parece
conversarcom uma voz para a qual não existe intérprete con-
cebível, sobretudo lá, onde o Eu imaginadocedeulugar a uma
expressãosem o Eu. Sentimentosidentificáveis abrem caminho
a um vibrar neutro, de modo mais intenso ainda que em E. A.
Poe. Vê-se isto, por exemplo,numa poesiaem prosa, "Angoisse"
(p. 188). O título parece aludir a um estadode alma preciso.
Mas é estemesmoqUl falta. Até a angústianão tem mais um
rosto familiar. Ela existeou não? O que sepercebeé uma inten-
sidadeindeterminável,mescladacom toda a sorte de elementos,
de esperança,ruína, júbilo, trejeito, dúvida - tudo dito rapida-
mentee rapidamentesuperadode novo, até que o texto desem-
boca em feridas, suplícios, torturas, dos quais não se sabe o
que queremdizer, nem de onde nascem.O todo, uma vertigem
do indeterminado,tanto na imagemcomo na emoção,tão inde-
finido como aqueles dois seres femininos que o texto cita, de
passagem.Mesmo se com a emoção se entendatambém a an-
gústia, esta está tão livre dos contornos normais da vida senti-
mental que já não pode levar o nome humano de "angústia".
Quando Rimbaud se vale dos homenspara formar o con-
teúdo de uma poesia, eles aparecemcomo estrangeirossem pá-
tria ou como caricaturas',J\JlAistitlta,spartes.do...corpo em des-
proporção com a figura geral do mesmo,-são· íliiiiltmrclas-de
forma excessiva,descritascom expressõesanatômicase técnicas
que objetivamuma materializaçãorija. Até uma poesia que soa
tão tranqüilamente,como "Le dormeur du vaI", pode ser men-
cionadacomo exemplodestadesumanização.Ela conduz à mor-
te, a partir de um pequenoprado no vale, que "espumeja de
raios". Paralelamente,a linguagempassa dos versos do início,
suavementeem êxtase,à frase final, sóbria, a qual faz saber
que o moço adormecido, silencioso é um soldado morto. A
descida à morte sucede muito devagar, Rimbaud a retarda e
70
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•••
a deixa surgir só bem no final, rápida e inesperadamente.O
conteúdoartístico da poesia éo desenrolarde sua ação da cla-
ridade à obscuridade.Todavia é um desenrolarque se realiza
semparticipaçãodo poeta,em placidez fria, que tampoucopro-
fere o nome da morte, mas emprega,para indicá-Ia, a mesma
palavra que antesdesignarao prado do vale: primeiro, "um va-
zio (trou) de verde", depois, no plural, "dois vazios (trous) no
lado direito". O morto é uma imagempura na visão do que
olha. O possível sobressaltodo coraçãopermaneceexcluso.Em
seu lugar, há um estilo artístico de ação que se serveda morte
de um homemcomo uma chicotada,para reduzir assim o mo-
vimento à brusca imobilidade.
Rupturados limites
No tema poético de Rimbaud penetra, cada vez mais,
uma excitação que impele a amplidões imaginárias. A neces-
sidade imperiosade lançar-seao "desconhecido"o faz falar, co-
mo Baude1aire,do "abismo do azul". Anjos povoamestaaltura
que é, ao mesmo tempo, abismo da derrota, uma "fonte de
fogo, onde marese fábulas se encontram".Os anjos são pontos
de luz e de intensidade, sinais que relampejame, logo a se-
guir, desaparecemdaquela altura, daquela amplidão, de uma
exuberância impalpável; são, contudo, anjos sem Deus e sem
mensagem.Já nas primeiras poesias,impressionacomo o limi-
tado é impelido à amplidão. Assim, é tambémem "Ophélie".
Esta Ofélia nada mais tem a ver com a figura de Shakespeare:
flutua rio abaixo, mas um espaçoulterior abre-sea seu redor,
com astros de ouro dos quais vem um canto misterioso,com
ventos que sopram de montes longínquos, com a voz ronque-
jante dos mares,com o temor ante o infinito. Ela mesmaé ele-
vada a uma figura perpétua;há mais de mil anos flutua no rio,
há mais de mil anos sua canção canta a loucura daqueles a
quem as "grandes visões" estrangulavama palavra.
Esta elevaçãoda proximidadepor meio da amplidão atra-
vessa toda a obra de Rimbaud, como um esquemadinâmico.
Sucede cada vez mais rápido, muitas vezes numa só frase. A
excitaçãotorna-seditirâmbica. "Estendi cordas de torre a torre,
guirlandas de janela a janela, correntes de ouro de estrela a
estrela, e eu danço." (p. 178). É a dança insensatados que
não têm meta, como já no final dos "Les sept vieillarcls", de
71
Baudelaire. Por fim, a amplidão não mais eleva e sim destrói.
A poesia em prosa "Nocturne vulgaire" (p. 187), começacom
as palavras: "Uma tempestadeabre brechasnas paredes.. , dis-
persa os limites das moradias". Podem-se ver, nestas linhas,
palavrasprogramáticasda poesiarimbaudiana.A própria poesia
as realiza com imagens fragmentadas,tiradas de todas as ca-
madasespaciaise repete,no final, como um estribilho, as pala-
vras do início. O ilimitado caótico não é represadopela forma
relativamentebreve desta poesia em prosa. O final de textos
deste tipo poderia, do mesmo modo, vir antesou depois.
Uma poesia de sentido obscuro da fase tardia, "Larme"
(p. 125), apresentaenigmasque não podem ser decifradosnem
através do título, totalmentesem relação com o conteúdo da
poesia, nem através dos conteúdosisolados. Como quase sem-
pre na lírica moderna, a partir de então,tambémaqui convém
interpretara poesia a partir do desenrolarde sua ação em vez
das imagenssuscitadas.Um homem bebe, sentado à beira de
um rio. Aquilo que bebe causa-lherepugnância.Esta é a nota
inicial. N\l.m ponto assimétricoocorre um embate: a tempesta-
de transforma o céu; de pronto, surgem lugares negros, lagos,
estacas,colunas sob a noite azul, estações;massasde águaaba-
tem-sesobre os bosques, pedaços de gelo nos charcos. O que
aconteceu?Uma paisagemterrestrelimitada transformou-se,de
súbito, numa paisagemdiluvial do céui da qual tambéma terra
participa. O texto termina com as palavras delirantes do ébrio
- uma conclusãoque não conclui, mas renova o enigmaonde
uma coisa era perceptível: o ato que dissolve os limites me-
diante a irrupção de amplidõesborrascosas.
"Fome" e "sede" estãoentre as palavras mais freqüentes
na linguagemde Rimbaud; são as mesmasque outrora usaram
a mística e Dante, segundoo modelo bíblico, para designar o
anseio sagrado.Mas, em Rimbaud, os trechos correspondentes
revelam a tendênciaà insaciabilidade. A conclusãode "Comé-
die de Ia Soif" diz o seguinte: "todos os seres,os pombos, a
caça, os peixes, as últimas borboletas têm sede - mas quem
poderia 'fondre ou fond ce nuage sans guide'" (p. 128). Do
mesmoano, 1872, é o poema "Fêtes de Ia faim". Estas festas
da fome consistem,contudo, em comer pedras, carvões, ferro,
calhau, sob pedaços de ar negro e sob um azul atordoante.A
fome nunca saciável,pois o caminhojunto ao azul estávedado,
aferra-sena dureza, converte-seem poesia daquilo que oferece
resistência,em "festa" do furor obscuro que sabe ser um mal.
"A sededoentia obscureceminhas veias" ("Chanson de Ia plus
haute tour", p. 131).
72
••••
t",
1'1.
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J.
"Le bateauivre"
Vamos falar agorada mais famosapoesiade Rimbaud, "Le
bateau ivre" (1871). Ele a escreveusem conheceros mares e
países exóticos que nela resplandecem.Supôs-seque ele havia
sido incitado a tais imagenspor revistas ilustradas. Pode ser
verdade, mas o fato serve apenas para confirmar o que se
pode deduzir da própria poesia. Esta não tem nada a ver com
qualquer realidade. Uma fantasia potente e violenta cria uma
visão febril de espaçosdilatados,turbulentos,totalmenteirreais.
A pesquisa costumaapontar vagas lembrançasisoladas de ou-
tros poetas. Todavia estas reminiscências- que, aliás, são
reelaborações- não podem ocultar o fato de que a poesia
tem um centro energéticointeiramenteseu. Ela foi comparada
com "Plein ciel" (em La LégendedesSiecles):tanto aqui como
lá, apareceum navio que se choca contra o céu. Mas em Victor
Hugo, as massasde imagensestãoa serviço de um pathastrivial
do progressoe da felicidade. "Le bateauivre" desemboca,ao in-
vés, na liberdade destrutiva de um solitário e náufrago. Para
a tessitura de ação desta poesia não existe outro modelo que
o próprio Rimbaud. É uma sobrelevaçãoextrema,conseqüente,
daquela elevaçãoque já atua em "Ophélie", do limitado me-
diante o infinito.
O protagonistada narrativa é um navio. Não estáexpresso
mas, de forma inequívoca, os acontecimentosdenotam,ao mes-
mo tempo, os acontecimentosdo sujeito poético. As imagens
possuemuma potência tão veementeque a equivalênciasimbó-
lica entre navio e homem mostra-seapenasno curso dinâmico
de todo o conjunto. As próprias imagenssuscitadassão parti-
cularidades visíveis, agudamenteindicadas. Quanto mais estra-
nhas e irreais se tornam as imagens,tanto mais sensível é sua
linguagem.Favorece este fato a técnica poética de construir o
texto exclusivamentecom metáforasabsolutas, falando só do
navio, nunca do eu simbolizado. O fato de Banville, para quem
Rimbaud havia lido a poesia, censurar que, infelizmente, ela
não começassecom as palavras: "Eu sou um navio que... ",
demonstra o quanto este procedimentopareceu ousado. Ban-
ville não compreendeuque a metáfora aqui já não é apenas
uma figura de comparação,mas cria uma identidade.A metá-
fora absolutapermaneceráum meio estilístico dominanteda lí-
rica posterior.Em Rimbaud, correspondea um traço fundamen-
tal de sua poesia que será tratadomais adiante sob o título de
"irrealidade sensível".
73
"te bateauivre" éum atoúnico deexpansão.Pausasoca-
sionaissão inseridas,depoisdas quais a expansãorecomeça,
comveemênciarenovada,paraconduzir,em algunstrechos,a
uma explosãocaótica.O processonarrativocomeçaprimeiro
com certacalma,o navio apenasflutua rio abaixo.Mas até
estacalmaeraprecedidapor um embate:o navionãosepreo-
cupacom suatripulação,assassinadaà margemdo rio. Então,
deimproviso,tudosedesfaz.O flutuarsegundoa correntetrans-
forma-seemumadançadonavioquesedespedaçaemtempesta-
dese mares,passandopor todasasterras:umadançaemnoites
verdes,entreputrefações,entreperigos,sinaisdemortee "fosfo-
rescênciacantante",arremessadoao alto,ao étersempássaros,
abrindobrechasno céu avermelhadocomoum muro - até
sobrevira reviravolta,a saudadeda Europa.Mas a saudadejá
não conduza pátriaalguma.O navioevocaum breveidílio,
o de umacriançaque,no perfumedo entardecer,brincaperto
deumapoça.Mas issoé um sonhoquenãoconsola,porqueo
navio sabeestarviciadopara a mesquinhezda Europa,pois
respiroua amplidãodos marese dos arquipélagosde estrelas.
Comona tranqüilidadedo início o embatehaviasido absorvi-
do, na tranqüilidadeentedianteda conclusão,a expansãoani-
quiladoradasestrofesprecedentesé absorvida.:É a tranqüilidade
do nãopodermais,do naufrágiono infinito,comotambémda
inaptidãoparao queé limitado.
A poesiaapresentaumaltoníveldecorreçãotécnico-estilís-
tica.Além disso,possuiumaestruturasimplesde períodoque
confereao quefoi expressoumatransparênciaformal.A explo-
sãoocorrenãona sintaxe,masnasrepresentações.Ou melhor,
o efeitoda explosãoé tantomais violentoporquantose acha
em desarmoniaformalcom as ligaçõesentreos váriosperío-
dos. As representações,em si, são protuberânciasda fantasia
que,nãosódeestrofea estrofe,mastambémdeversoa versoe,
àsvezes,atémesmodentrodeummesmoverso,acrescentamao
longíquoe selvagemmaiorselvageriae distância.As imagens
são incoerentesentresi. Nenhumaderivanecessariamenteda
outra,de modoquedelasresultaumaarbitrariedadequeper.·
mitiriatrocarestrofesinteirasentresi. Comoagravante,acresce
o fato de que os complexosde imagensisoladasnascemda
misturadas coisasmais opostas,da combinaçãodaquiloque,
objetivamente,é inconciliável,do belo com o repugnante,do
sórdidocomo extático,mastambémdeumempregosingularde
expressõestécnicas,preponderantementenáuticas.Num quadro
sintático,aindanão abalado,fermentao caos.
E, todavia,tambémestecaostemsuaarticulação.De novo,
as direçõesda açãosãomaisimportantesqueos conteúdossus-
74
'J
t,
J
I
_;,. (~,
citados.A dinâmicada poesiapermiteà imagensa manifes-
taçãoarbitráriae incoerente,pois sãoapenassustentáculosdos
movimentosautônomos.Estesprocedemclaramenteemtrêsatos: I,repulsae revolta,fugaparao superdimensional,mergulhona .'
tranqüilidadedo aniquilamento.Estestrêsatos constituema
tessiturada ação,não só de "Le bateauivre", masde todaa
poesiadeRimbaud.Em muitosparticulares,o caosdo conteúdo
já nãoseprestaà interpretação.Mas tal lírica torna-seinterpre-
távelquandosepenetrana tessituradesuaação.Por conseguin-
te, é lógicoque tal lírica se tornecadavez maisabstrata.O
conceitodo abstrato,assimcomoé usadoaqui,não se limita
à significaçãodo não visível,não concreto.Deveantesdesig-
nar aquelesversos,gruposde versos,frasesque,bastando-sea
si mesmos,representemdinamismoslingüísticospuros e, por
meio destes,destruamaté à incompreensibilidade,ou não to-
lerem,de modoalgum,um possívelvínculo de realidadedos
conteúdos.Deve-seter presenteestefato ao analisargrande
parteda lírica moderna,sobretudodaquelaqueestáaparenta-
da como tipo da lírica de Rimbaud.
Nestepoetaa tríplicetessiturada açãorepresentaseure-
lacionamentotantocoma realidadecomocoma transcendência:
deformaçãoda realidade,ímpetoà amplidão,final na ruína
pois a realidadeé restritademais,a transcendência,vazia de-
mais.Umperíodoem prosaresumeo que acabamosde dizer
numa cadeiade conceitos:"mistériosreligiososou naturais,
morte,nascimento,futuro,passado,cosmogonia,Nada"(p.213).
No elo final estáo Nada.
Realidadedestruída
Não sequererá,certamente,avaliarpoesiaalguma,e mui-
to menosa lírica,pelamedidaemqueseusconteúdosde ima-
gem,referidosà realidadeexterior,sãoaindaexatose comple-
tos.A poesiasempretevea liberdadede deslocar,reordenaro
real, reduzindo-oa alusões,expandindo-odemoniacamente,fa-
zendo-omeio de uma interioridade,símbolode uma ampla
condiçãode vida.Pode-seestimaratéquepontoestastransfor-
maçõeslevamem consideraçãoas relaçõesobjetivamenteexis-
tentes,atéqueponto,mesmosendoinvençãopoética,continuam
a ser relaçõespossíveisdo mundoreal e permanecemno qua-
dro daquelasforçasimaginativasmetafóricasque,desdeo iní-
cio, sãoinerentesa todasas línguase são,portanto,compreen-
75
síveis. Desde Rimbaud, a lírica não cuida de tais considerações
a não ser em proporções cada vez menores.Ela se preocupa
sempre menos com a relação das partes do discurso entre si
e de sua ordem de valor no próprio discurso. Tanto mais ne-
cessárioé, portanto, para o crítico, tomar a realidade heuristi-
camente para confronto; pois só então se poderá avaliar a
extensãoda destruiçãoda realidade que agora se sucede,assim
como a violência da ruptura do velho estilo metafórico.
Em sua última poesia,Rimbaud faz falar o amigoVerlaine:
"Quantas noites velei junto a seu corpo dormentepara sondar
por que ele (Rimbaud) queria tanto se evadir do real" (p. 216).
Nas palavras fictícias de Verlaine, fala o próprio Rimbaud.
Ele mesmonão consegueinterpretar os motivos de sua evasão.
Mas sua obra mostra-nosuma correspondênciacompletamente
clara entre a atitudepara com a realidadee a paixão pelo "des-
conhecido". Este desconhecidojá não pode ser saciacb pela fé,
pela filosofia ou pelo mito, é - de forma mais intensa ainda
que em Baudelaire - pólo de uma tensãoque, porque o pólo
está vazio, rechaça a realidade. A partir do momento em que
esta é vivenciada na sua insuficiência frente à transcendência
- mesmosevazia -, a paixãopela transcendênchtorna-seuma
destruiçãocega da realidade. Esta realidade destruída constitui
agora o sinal caótico da insuficiência do real em geral, como
também da inacessibilidadedo "desconhecido". Eis o que se
pode chamarde dialética da modernidade.Ela determinaa poe-
sia e a arte européiamuito além de Rimbaud. "Para mim, um
quadro é a somadas destruições",dirá mais tardePablo Picasso.
Recorde-sea frase de Baudelairesegundoa qual o ato ini-
cial da fantasia é uma "decomposição". Esta decomposiçãoa
cujo âmbito conceitual,já em Baudelaire,pertencea "deforma-
ção", tornou-se,com Rimbaud, o efetivo procedimentoda poe-
sia. Na medida em que se pode dizer que ainda existerealidade
(ou que podemosmedir heuristica::nentea poesia com base na
realidade), esta é objeto de expansão, desmembramento,afea-
mento, tensõesem contraste,a tal ponto que semprevem a ser
uma passagemao irreal. Entre os elementosprimordiais no mun-
do concretode Rimbaud figuram a águae o vento. Ainda con-
tidos nas primeiras poesias,elevam-semais tarde a estrondose
tormentas,a potênciasdiluviais, sob as quais as ordens, tanto
de tempo como de espaço,se despedaçam,"planura, desertos,
horizontes tornam-sevestesdas tempestades"(p. 124). Toman-
do-se em conjunto os objetos e os seresque emergemem suas
poesias, vê-se com quanta inquietude o poeta se estende.por
todas as amplitudes,alturas e profundezas,como não se detém
em parte alguma, transformandoo familiar em estranho (o que
76
r,
I
J
I
I
acontece,na maior parte das vezes, porque não o vincula a
qualquer circunstânciaespacialou temporal): estradasdo cam-
po, vagabundos,prostitutas,ébrios, tabernas,mas tambémbos-
ques, estrelas, anjos, crianças e depois, de novo, crateras de
vulcão, armaçõesde aço, geleiras, mesquitas ou o mundo do
circo e das barracas,do qual diz que é "o paraíso dos trejeitos
raivosos" (p. 172).
Intensidade do feio
Estas realidadesjá não estãocoordenadaspor um sistema
em que uma coisa, um país ou um ser serviria de medida a
outras realidades.São apenas traços de calor de uma intensi-
dade febril. Sua representaçãonão tem nada em comum com
qualquer realismo. Por intensidade,deve-setambémentendera
fealdade que Rimbaud imprime ao que resta de real em seus
textos e, certamente,deve-setambém entender a beleza. Há,
em conjunto, trechos "belos", em Rimbaud, belos pelas ima-
gens, ou, então pelo canto da linguagem.Todavia, o fato de-
cisivo é que estestrechos não estão isolados mas, sim, muito
próximos de outros "feios". Belo e feio já não são valores
opostos, mas digressõesde estímulos.Sua diferença objetiva é
eliminada, como a diferençaentreverdadeiroe falso. A estreita
aproximaçãodo belo e do feio produz aquela dinâmica de con-
traste, que é o que importa. Porém esta deve tambémsurgir a
partir do próprio feio.
Na poesia precedente,a fealdadeera preponderantemente
o sinal burlesco ou polêmico para indicar a inferioridade mo-
ral. Pense-seno Tersites da Ilíada, no Inferno de Dante, na
poesia t'alacianada alta Idade Média que revestiade fealdade
os homens não cortesãos.O demônio era feio. Já na segunda
metade do século XVIII, depois em Novalis, mais tarde em
Baudelaire, o feio torna-seadmissívelcomo algo "interessante"
e vem ao encontro de uma vontade artística que se serve da
intensidade e da expressividade.Com Rimbaud, ele recebe,
então, a tarefa de Eervir a uma energiasensitiva que impele à
mais violenta deformaçãodo real sensível.Uma poesia que to-
ma por metanos seus objetosmenosos conteúdosque as rela-
ções de tensãosobre-objetivanecessitatambémdo feio porque
este,como provocaçãoao sentimentonatural da beleza,produz
aquela dramaticidade chocante que se deve estabelecerentre
texto eleitor.
77
Em 1871, escreveua poesia "Les assistI-- "Os sentados".
Segundo uma informação dada por Verlaine, esta poesia deve
referir-sea um bibliotecário comunal de Charleville, com quem
Rimbaud havia se agastado.Pode ser, mas pouco ajuda à com-
preensãoda poesia. Com uma linguagemtoda salpicada de ter-
mos anatõmicos,de neologismose de palavras de gíria, o poe-
ma cria um mito da mais monstruosa fealdade. Não fala de
um bibliotecário, nem de bibliotecários, tampouco de livros.
Fala de uma horda de anciões embrutecidos,encolhidos, mal-
dosos. De início, nem sequer fala deles, mas de detalhes
macabros:tumoresnegros,cicatrizes de varíola, olhos rodeados
de verde, dedos ceráceosque coçam fêmures, "rabugices con-
fusas" sobre a face anterior do crânio semelhanteà florescência
leprosa nos muros velhos. Só em seguidaaparecemas figuras:
armaçõesbizarras de ossos,escarranchados,em desejoepilético,
nos esqueletosdas cadeiras;seuspés entrelaçam-seàs raquíticas
varas dos assentos,da manhã à noite, sempree para sempre;
sóis ardentesrequeimamsua pele, os olhos vão à janela, "onde
a neve esmorece"; na palha das cadeiras chamejamsufocados
os sóis antigos,sob cujo calor, outrora, levedavao trigo; os joe-
lhos contra os dentes,assim encolhem-seos "pianistas verdes";
com dez dedos, tamborilam sob os assentos,suas cabeçasvaci-
lam no balanço amorosode sua fantasiasenil. Chamando-os,res-
mungam como gatos esbofeteados,abrem pouco a pouco suas
omoplatas, pés tortos aproximam-se,arrastando-se,os crânios
calvos tropeçamnas paredescinzentas,os botões de suas casa-
cas ferem o olhar até na escuridãodos corredores,de seu olhar
mortal filtra o venenode cãesespancados.Sentando-sede novo,
afundamseuspunhosnasmangassujas; sob o queixo ressequido,
tremeo cacho dos gânglios;sonhamcom cadeirasmais bonitas;
flores de tinta embalamseu sonho, cuspindo sêmensem forma
de vírgula.
Esta fealdadenão é copiada da realidade,mas é produzida
por esta. Seres plurais de toda a parte e de sempre; não ho-
mens, mas esqueletos,formam um todo com as coisas, e tam-
bém as coisas são as companheirasdaquelesquese agacham
sobre elas; e além de tudo, °ser mau, impotente,e a condição
crepuscularda sensualidadesenil. Tudo isto é dito com escár-
nio subterrâneooculto nos versos que quasecantam: o todo é
uma dissonânciaentre melodia e imagem.Também os restosdo
"belo", que aí estão inseridos, servem à dissonância ou são
eles mesmos dissonantes,vinculando potências líricas primor-
diais ao banal: "flores de tinta", "sêmens de vírgula", tendo
esta última expressão,em seguida, embelezadapela compara-
ção com o võo de libélulas sobre gladíolos. O papel do feio é
claro. Querendo-secompará-Io com a feiura, por assim dizer,
78
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J
I
normal, tomar-se-iaevidenteque esta fealdade poética deforma
também o feio real, assim como deforma tudo aquilo que é
real para, no desmantelamento,tomar perceptível aquela eva-
são ao suprarreal,que é, todavia, uma evasãoao vazio.
Doze anos antes, Baudelaire havia composto "Les sept
vieil lards". Também nestepoema se fala da fealdade dos ho-
mens e das coisas.Mas estafealdadetem uma orientaçãomúlti-
pla. Cena e ação desenvolvem-senuma sucessãoprecisa; pri-
meiro, a cidade pululante, depois,a calma da rua do subúrbio,
a indicação de tempo (madrugada);apareceum ancião, repre-
sentado,com precisão, de corpo inteiro, e logo outro, até que,
por fim, são sete. O eu lírico respondecom reaçõesprecisas:
horror, arrepio, e logo, para terminar, um juízo. O feio existe
em toda a sua agudezasensível,embora moderadoem si pró-
prio e, sobretudo,coordenadoa espaço,tempo e afeto. Um dos
anciõesé comparadoa Judas, o que tambémé uma orientação.
Conquanto o texto se refira a uma figura conhecida, toma-se
possível um retorno ao habitual, assim como as excitaçõesdo
sujeito trazemuma espéciede calor ao espetáculohorrendo,pois
elas, não obstantetodo o tormento,sãoexcitaçõeshumanas.Tais
orientaçõesfaltam, completamente,em Rimbaud. Seus anciões
só aparecemcomo grupo coletivo e o grupo constade detalhes
anatõmicose patológicos,não de figuras. Só há algunsresquícios
de espaço;o tempoé um "sempre". f: significativoque Rimbaud
não tenha mencionadoem sua poesia,semsequerde forma alu-
siva, aquelemotivo real, citado por Verlaine (bibliotecade Char-
leville); teria introduzido demasiadaorientaçãopara o real. O
excessode fealdadeproduzido não é refreado por nenhum ele-
mento familiar que ainda seria possível mesmono horrível. A
vontade deformantedo lírico moderno impeliu aquele excesso
a um ponto desvinculadode tudo.
Irrealidade sensível
Mas tomar a realidade como medida dos conteúdos das
imagensde Rimbaud só pode ter um valor heurístico.Tão logo
a observaçãopenetre mais profundamente,deve-sereconhecer
que conceitoscomo "real" ou "irreal" já não satisfazem.Outro
conceitoparecemais apropriado: o de irrealidade sensível.Com
este termo entendemoso que vem a seguir. A substânciada
realidade deformada fala muito amiúde por meio de grupos
79
depalavras,dosquaiscadaparteintegrantetemumaqualidade
sensível2• Todavia,tais gruposreúnemaquiloque é objetiva-
menteinconciliávelde um modotão anormalque,das quali-
dadessensíveis,resultaumaimagemirreal.Trata-sesemprede
imagensque se podemcontemplar,massãode tal formaque
o olho humanonuncapoderiaencontrá-Ias.Superamde longe
aquelaliberdadeque semprefoi possívelà poesia,graçasàs
forçasmetafóricasfundamentaisda língua."O biscoitoda es-
trada"; "o rei, de pé, sobresuabarriga";"mucoazul": estas
imagenspodem,semdúvida,expressar,às vezes,as qualidades
existentesnas própriasrealidadescom eficáciamais cortante,
porémnãotendemaoreal:seguemumadinâmicadestrutivaque
- em substituiçãoao "desconhecido"invisível- converteo
realemum desconhecidosensivelmenteexcitadoe excitante,re-
movendoos limitesde suasfiguras,forçandoseusextremosa
seunirem.Mudar a ordemreal e, todavia,permanecerno sen-
sível é um procedimentotambémda poesiaantiga.Às vezes,
aindahá,emRimbaud,exemplosmoderadosdeste.Umabandei-
ra vermelhaé chamada"bandeirade carnesangrenta".O mo-
tivo real destaimagem,a cor vermelha,nãovem nomeada;a
linguagemassociaimediatamentea metáfora(característicapor
sua inclinaçãoà crueza)à coisa.Mas, em tais casos,apenas
se retransformouem germeaquilo quena maioriados outros
casosestá plenamentedesenvolvidoe convertea irrealidade
sensívelde Rimbaudemcenaverdadeirae própriade suadra-
máticade choque.
"Floresde carnequese abremem bosquesde estrelas";
"poesiaspastorais,calçadasdemadeira,resmungam.no jardim",
"imundíciedas cidades,vermelhae negracomoum espelho,
quandoa lâmpadagira no quartocontíguo":todosestessão,
certamente,elementosdo sensivelmentereal, mas elevadosa
uma super-realidademediantecontração,omissão,deslocação
e recombinação.Justamenteassim,a novaimagemnãofaz vol-
'tar à realidade,masobrigao olhar a dirigir-seao próprioato
criadopor ela. É o ato de uma fantasiaditatorial.Com este
conceito,que designao impactoda poesiade Rimbaud,torna-
se supérfluomedir,comode hábito,os textospelarealidadeà
qualse recorresó por razõesheurísticas.Estamosnummundo
cuja realidadeexistesó na língua.
2. Confronte-secomestaumaobservaçãode H. v. Hofmannsthal
que se referea Novalis: "As frasespoéticasmaismaravilhosassão
aquelasquedescrevemcomgrandeclarezae exatidãofísicas,o queé
fisicamenteimpossível;sãoverdadeirascriaçõesdaspalavras"(Aujzej.
chnungen,1959,p. 183).
80
Fantasia ditatorial
A fantasiaditatorialnãoprocedeobservandoe descreven-
do, mais sim com uma liberdadeilimitadamentecriativa. O
mundoreal se rompesob a imposiçãode um sujeitoque não
quer receberseusconteúdosmas,sim,querimporsuacriação.
Do períodoparisiense,chegou-nosumaexpressãooral de Rim-
baud: "Temosde arrancarà pinturaseuhábitoantigode co-
piar, para fazê-Iasoberana.Em vez de reproduziros objetos,
eladeveforçarexcitaçõesmedianteaslinhas,ascoreSe os con-
tornoscolhidosdo mundoexterior,porémsimplificadose do-
minados:umaverdadeiramagia."Recorreu-sea estaexpressão
para tornarcompreensívela pinturado séculoXX (Catálogo
da exposiçãoparisiensede Picasso,1955):atitudeestaperfei-
tamentejustificadapois, de fato, estaexpressão,assimcomo
as poesiasde Rimbaud,antecipaa pinturamoderna,quenão
podeserinterpretadaa partirdo concretoe objetivo.A liberda-
de absolutado sujeitoquerser consideradapor si mesma.Po-
de-sereconhecer,semdificuldade,emquemedidaas reflexões
deBaudelairesobrea fantasia,apesarde aindaligadasà teoria,
tinham preparadoa práticapoéticae artística,estendendo-se
pelo séculoXX adentro.
Rousseau,Poe, Baudelairefalaramda "fantasiacriativa",
masde modoque a importânciadestaexpressãoresidisseem
sua"capacidadecriativa".É significativoqueRimbauddinami-
ze agoraestaexpressãotambémem seu substantivo.Fala do
"impulsocriativo",numafrasequeé comoum resumode sua
estética:"Tua memóriae teussentidosdevemser apenasali-
mentode teu impulsocriativo.Mas o mundo,quandoum dia
o tiveresdeixado,que serádele?Certo é: nadaterá, então,
de sua aparênciaat1.1al"(p. 200). O impulsoartísticodeixa
comolegadoumavisãodesfigurada,insólitado mundo.e um
ato de violência.Uma das palavras-chavedos textosrimbau-
dianosé "atroz" (atroce).
A fantasiaditatorialinvertea ordemdo espaço.Alguns
exemplos:cochescruzamo céu; há um salão,na profundeza
de um lago; o mar paira acimados maiselevadoscumesda
montanha;trilhos de trenscorrematravésde um hotele em
cima dele.Mas a fantasiainvertetambéma relaçãonormal
entrehomeme coisa:"O notáriopendeda correntede seure-
lógio" (p. 59). Obrigaas coisasmaisdistantesa seunirem,o
sensorialcomo imaginário:"aflito atéà mortepelomurmúrio
do leitedamanhã,danoitedoúltimo.século"(p. 163).Introduz
81
coresirreais,istoé,coresquenãopertencemàscoisas,masque
as tornammaisestranhas,paraefetivaraqueledesejobaudelai-
riano: agriõesazuis, éguaazul, pianistasverdes,riso verde,
azul verde,luas negras.Penetrandona amplidão,a fantasia
pluralizacoisasquesó existemno singular:os :Êtnas,as Flóri-
das,os Malstroms.Destamaneirase intensificame, ao mesmo
tempo,subtraem-seao real. A esteprocedimentocorrespondeoutratendênciade Rimbaud,a de isentaro individualde toda
limitaçãolocal,ou dequalqueroutraíndole,mediantea expres-
sãogeneralizante"todos": "todosos homicídiose todasas ba-
talhas";"todasas neves".O usode pluraise destasgeneraliza-
çõesé um meiopotentedestafantasiaqueserevolve,comam-
basas mãos,no real,deita-ofora, modelando-oa novassuper-
realidades.
ComoemBaudelaire,as visõesde sonhosevalemdo inor-
gânicoparaseenrijecereme escaparemno desconhecido."Nas
horas de amargura,imagino-mebolas de safira, de metal"
(p. 170).Uma daspoesiasem prosamaisperfeitas,chama-se
"Fleurs"(p. 186).Seusperíodosavançamcomoondas,produzin-
do umatensãoque,emborase dissolvano final, não permite
penetrarem seu significado.Os movimentosdas imagenssão
curvaspurasda fantasiae da linguagemabsoluta.O inorgânico
redundajustamenteem favor destascomosinal de irrealidade
e - nestepoema- deumabelezamágica:"degraudourado",
"veludoverde","discosde cristalque enegrecemcomobronze
ao sol"; uma dedaleiraabre-sesobreum "tapetede filigranas
deprata,de olhose cabelos";"pedaçosdeourosemeadossobre
ágata,pilaresde mognoquesustentamumacatedralde esme-
raldas,varetasdelgadasde rubi". Nesteambiente,a rosae as
rosasadquiremumairrealidadedura e seharmonizam,empa-
rentescosecreto,como tóxicoda dedaleira,porque,no profun-
do destafantasia,a belezamágicae o aniquilamentoconstituem
um todoúnico.
Plantastóxicase rosas,emoutrostrechos,imundíciee ouro
são,porassimdizer,a fórmulafiguradaparaindicarasdissonân-
ciasquetal fantasiaconferea seusprodutos.Agudasdissonân-
ciasléxicassãotambémfreqüentes,ou seja,gruposde palavras
que concentramas coisasou valoresheterogêneas,no espaço
lingüísticomaisbreve:um sol ébrio de alcatrão;umamanhã
de julho com sabor de cinzasinvernais;palmeirasde cobre;
sonhos"comoexcrementodepombas".Aquilo quepoderiadar
a impressãodeusual,agradável,é reduzidoabofetadas,namaio-
82
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ria dasvezesno fim do texto,mediantea introduçãode uma
palavrabrutalou vulgar.A vontadedestaartepoéticanão é
concluir,masromper.Deve-sereparartambémna dissonância
entreo mododeexpressare o queestáexpresso.Rimbaudcan-
ta com o tom de uma cançãopopularuma de suas poesias
maisobscuras("ChansondeIa plushautetour"). Outrapoesia,
"Les chercheusesde poux", transformaa imundície,o calor
sufocantedo instinto,o rito deprocurarpiolhos,na maispura
vibraçãolingüística.Caose absurdoaparecememconcisãosó-
bria, os opostosapresentam-seem ordemindiferente,semum
"mas",um "porém",um "todavia".
Les lIIuminations
Partindodestaspremissas,pode-seexplicarcompropriedade
Les Illuminations.Comsignificativaplurivalência,o títuloquer
dizer tanto"miniaturas"como"iluminações".:Ê impossívelar-
ticularestaobrasegundoo conteúdo.Imagense acontecimentos
enigmáticossucedem-se.Na linguagem,alternam-seebriedadee
durasinterrupções,repetiçõesinsistentesatéà monotoniae ca-
deiasde palavrasnão fundamentadas.Raramente,o título de
umapeçaé útil à suacompreensão.A temáticafragmentadaos-
cila entreumolharparatráse umolharparafrente,entreódio
e transfiguração,entreprofeciae renúncia.Excitaçõesse disse-
minampor um espaçoquevai dasestrelasaostúmulose queé
povoadoporfigurassemnomes,assassinose anjos.O Epiro,'Ja-
pão, Arábia, Cartago,Brooklynencontram-seem umamesma
cena.Ao contrário,as coisasquena realidadeestavamrelacio-
nadas,separam-seaté perderemtodo contato(por ex. "Pro-
montoire",p. 191).A dramaticidadedaspeçasconsisteemfrag-
mentaro mundoparaquea desordemsetornea epifaniasensí-
vel do mistérioinvisível.O começode um textojá partetão
longeda idéiaou do objetoqueo impulsionoude modoa ad-
quirir imediatamenteo caráterdeumfragmento,deumestilha-
ço chegadoaténósdeoutromundo,por acaso.Às vezes,narra-
se algumfato, comoem "Conte" (p. 170). Um príncipe-
qual?- matamulheresqueo conhecerame elasretornam.O
príncipemataseushomense eleso seguem."Comoalguémpode
seextasiarantea destruição,rejuvenescer-secoma crueldade?"
Um gêniode belezasobre-humanaencontrao príncipee am-
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bos morrem."Mas o príncipeexpirouem seu palácioe na
idadenormal."O matare morreremêxtasenãoé possível;os
assassinadosvivem,aquelequemorreucomo gêniotem,mais
tarde,suamortenormal.Talvez o sentidosejao de que até
mesmoa destruiçãofracassa,atémesmoela conduzao trivial.
Todavia,o maisestranhodesta"fábula"é queexprimeo absur-
do com os meiosda exatidãonarrativamesmosabendoque
tampoucoestebasta."A músicasábiafalta ao nossoanseio",
diz, comoum fendente,o final.
Les Illuminationssão um textoque não pensano leitor.
Não pretendemsercompreendidas.Sãoumatempestadede de-
safogosalucinantese pensamem despertarao mâximoaquele
temordo perigo,do qualnasceo amorpor ele.Sãotambémum
textosemeu,poiso eu queemergeemalgunstrechosé aquele
euartificiale estranhoquehaviasidoesboçadonasLettresd'un
voyant.De toda forma,Les Illuminationsconfirmamque seu
poeta- comodiz um dosnossos- é um "inventordemérito
completamentediversodetodosospredecessores"(p. 174).Estas
poesiassãoo primeirograndemonumentoda fantasiamoderna
tornadaabsoluta.
Técnica da fusão
A poesia"Marine" talvezpertençaàs Illuminations;edi-
çõesrecentesincluíram-nanestaobra (p. 188).A poesiaé do
anode 1872e é, na França,o primeiroexemplodeversocom-
pletamentelivre: dezversosde metrodistinto;semrima, sem
sucessãoregularde rimasmasculinase femininas.O abandono
da métricarigorosafoi, na França(e o é aindahoje),maisno-
tadoqueem outrospaísese tambémum sintoma(maisforte-
mentesentido)da anormalidadena composiçãopoética.Rim-
baudadaptou,tambémà suafantasiadesarticuladaa linguagem
formal.Ele a transformaem imagensversificadasassimétricas
quemuitoseaproximamdesuaprosalírica.Dá umpassoenér-
gico, tambémno aspectoformal,maisalémde Baudelaire.A
partirde "Marine",o versolivre dominacadavezmaisna líri-
ca francesamoderna.G. Kahn,Apollinaire,M. Jacob, H. Rég-
nier,P. EIuardserãoseusvirtuosesno séculoXX. O versolivre
torna-seo indício formalpróprio daqueletipo lírico que -
conscienteou inconscientemente- segueo exemplode Rim-
baud.Eis o textodo poema:
84
.•..
..,
r' 1
•...
Marine
Les charsd'argentet de cuivre-
Les prouesd'acieret d'argent-
Battentl'écume,-
Soulêventles souchesdesronces.
5 Les courantsde Ia lande,
Et les orniêresimmensesdu reflux,
Filent circulairementvers l'est,
Vers lespiliersde Ia fôret,-
Vers les fUtsde Ia jetée,
10 Dontl'angleestheurtépardestourbillons
[de lumiere.
Marinha
Carrosdepratae cobre-
Proasde açoe prata-
Golpeiama espuma,-
Erguemtouceirasdesarças.
As correntesda charneca,
E os sulcosimensosdo refluxo,
Corremcircularmenteparao leste,
Para os pilaresda floresta,-
Para os fustesdo dique,
Cujoânguloébatidoporturbilhõesdeluz.
A poesiaapresentaum duplo contraste:primeiro,entre
a desarticulaçãométricae o mododeexpressar-sebemarticula-
do, tranqüilo;e, depois,entreestee a ousadiaextraordinária
do conteúdo.
Com umaatitudecomedidao poemavai alinhandoverso
apósverso.Só em dois trechoselesestãoligadosentresi, me-
diantepartículasconjuntivas,aliáscompletamenteinsignifican-
tes(v. 6 e 10).~ exatamenteestarenúnciaaosmeiosde cone-,
xãoqueelevaa poesiaacimada simplesprosa,tornando-amis-
teriosa- sobriedademágica- numalinguagemsóbria,sem
o eu. Os versosnão sãoapenasum isolamentotipográficode
articulaçõesda frase que tambémem prosaexigiamcesuras.
Antes,tal isolamentoconfereumaintensidadeelevadaaosgru-
pos de palavrasdestesversoslivrese, ao ritmo,um paralelis-
moqueo aproximaà Bíblia,A istoseacrescequeo vocabulário
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é preponderantementenominal.Os poucosverboscedemlugar
aosobjetoscujovalorfigurativopassaa ser,agora,maisimpor-
tantequeseumovimento.E, todavia,ocorrealgode subversor,
algo provenientedo mundoque estáà disposiçãoda fantasia
irreal.A poesia"Marine" começacomum versoquenão con-
diz como título: "carrosdepratae decobre".A segundalinha
é maisadequada:"proasde açoe de prata".Ambos,tantoos
carroscomoas proas,"golpeiama espuma,erguemtouceiras
de sarças".Além disso,fala-sedas

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