Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Equipederealização: AssessoriaeditorialdeMara VaIles RevisãodeValériaC. SaIles,ElisabeteOréficeeHelaineL Viotti CapadeLuis Díaz Traduçãodo texto:MariseM. Curioni Traduçãodaspoesias:DoraF. da Silva 1 J I I1 1 ESTRUTURA DA LíRICA MODERNA (da metade do século XIX a meados do século XX) Hugo Friedrich •• ! ! [fi] Livraria [fi] Duas Cidades PROBLEMAS ATUAIS E SUAS FONTES - 3 DireçãodeErnestoGrassi Originalmentepublicadosobo titulode Die Struktur der ModernenLyrik nasérie"Rowohtsdeutscheenzyklopadie" EditorgeralErnestoGrassi © RowohltTaschenbuchVerlagGmbH, Hamburgo,1956 (5LJ Sumário DEDALUS - Acervo - FFLCH-GE I111111111111111111111111111111111111111111111111111111I111I11111 21100028582 2~Edição Direitosparaa línguaportuguesareservadospor LivrariaDuasCidadesLtda. RuaBentoFreitas,158- SãoPaulo 1991 1, Do prefácioà primeiraedição . Prefácioà nova edição . I. Perspectivae retrospecto . Perspectivada lírica contemporânea:dissonânciase anormalidade,15.Categoriasnegativas,19.Prelúdios teóricosno séculoXVIII: Rousseaue Diderot,23. Novalis sobrea poesiafutura, 27. O Romantismo francês,30. A teoriado grotescoe do fragmentá- rió, 32. I C--,...~I 11. 8audela1re,)...............•................. I O poetada modernidade,35.Despersonalização,36. , Concentraçãoe consciênciada forma:lírica e mate- mática,38.Tempofinal e modernidade,42. Estética do feio, 44. "O prazer aristocráticode desagra- dar", 45. Cristianismoem ruína, 45. A idealidade vazia,47. Magia da linguagem,49. Fantasiacriati- I va,53.Decomposiçãoe deformação,55.Abstraçãoe j arabesco,57. 111. Rimbaud . Característicaspreliminares,59. Desorientação,60. "Lettresd'un voyant" (transcendênciavazia, anor- malidadedesejada,"música"dissonante),61.Ruptura da tradição,64.Modernidadee poesiada cidade,66. Insurreiçãocontraa herançacristã: "Une Saisonen Enfer",66.O euartificial;adesumanização,69.Rup- turadoslimites,71. "Le bateauivre", 73.Realidade destruída,75. Intensidadedo feio, 77. Irrealidade sensível,79. Fantasiaditatorial,81. "Les Illumina- tions",83.Técnicada fusão,84.Poesiaabstrata,87. Poesiaemformademonólogo,90, Dinâmicadomo- vimentoe magiada linguagem,90. Julgamentofi- nal, 93. 9 13 15 35 59 IV. Mallarmé ' . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 Característicapreliminar,95. Interpretaçãode três poesias:"Sainte", "I!ventail(de Mme. Mallarmé)" e "Surgide Ia croupe",97. Evoluçãodo estilo,108. Desumanização,110.Amor e mortesãodesumaniza- dos, 112.A lírica comooposição,comotrabalhoe comojogo,113.O Nadae a forma,115.Dizero que nuncafoi dito; algunsrecursosestilísticos,116.A proximidadedo silêncio,118.Obscuridade;confron- to comGóngora,119.PQesiasugestiva,não compre- ensível,121.6 esquemaontológico,122."Sespurs ongles",128.A dissonânciaontológica,130.Ocultis- mo, magiae magialingüística,134. "Poésiepure", 135. Fantasiaditatorial,abstraçãoe "olhar abso- luto", 13&1O estarsócoma linguagem,138. V. A lírica européiano séculoXX 141 Observaçõesmetodológicas,141. "Festado intelec- to" e "derrocadado intelecto",143.A lírica espa- nholado séculoXX, 145. Duas reflexõessobrea lírica: Apollinairee GarGÍaLorca, 147.O estilo in- congruentee a "nova liguagem",·149. Ulteriores consideraçõessobre a "nova linguagem",153. A funçãoindeterminadadosdeterminantes,160.ApoIo emlugardeDioniso,162.Duplarelaçãoparacoma modernidadee a herançaliterária,165.Isolamentoe angústia,173. Obscuridade,"Hermetismo",Unga- retti,178.Magiada linguagem-esugestão,182.Paul Valéry,184.Jorge Guillén,187.Poesiaalógica,190. GarGÍaLorca, "Romancesonâmbulo",193.O absur- do; o "humorismo",194.Realidade,195.T. S. Eliot, 197.Saint-JohnPerse,200. Fantasiaditatorial,202. Os efeitosda fantasiaditatorial,203. Técnica da fusãoe metáforas,206. Conclusão,210. Apêndice I -Poesias do séculoXX 213 Apêndice 11- Quatrointerpretações. . . . . . . . . . . . . . . 287 Apêndice111- Cronologiadalíricamoderna.. . . . . . .. 305 Bibliografia 311 lndice de autores 143 A ErnestoGrassi em seu65.0 aniversário 2 de maiode 1967 I L I I) ,.~. l Do Prefácio à Primeira Edição Estelivro é o frutode anosde reflexõessobrea lírica mo- derna.Reflexõesiniciadasna épocaem que chegoua minhas mãosa antologiaMenschheitsdãmmerung(O crepúsculoda hu- manidade),publicadapor K. Pinthus.Estávamos?m 1920e eu fazia o cursocolegial.Como era de se esperar,tais reflexões permaneceram,a princípio,desordenadas.Somentemuitomais tarde,quandovima conheceroslíricosfrancesesdo séculoXIX e, posteriormente,os líricos francesese espanhói$do século XX, delinearam-seos perfisquepassarama meorientarneste campotão vasto.Percebique os poetasalemãesanterioresa 1920,bemcomoos queescreverampor voltadaqueleano,ex- tràídosdo "séculoXIX agonizante"por seueditor,nãoeramtão dissociadosentresi, comopodiaparecer,à primeiravista.Tam- bémnão o sãoos poetasposterioresàquelese os atuais,tanto na Alemanhaquantono restoda Europa.A crítica da lírica contemporâneacometequasesempreo erro de considerarso- menteo paísqueestásendofocalizadoe nosseusúltimosvinte ou trintaanos.Assim, a poesiapareceassumircaracterísticas deumaextraordinária"ruptura"e,entrea líricade 1945e a de 1955,nota-se,comespanto,umadistânciaque,na verdade,não correspondenem mesmoao intervaloexistenteentredois se- gundos. Os fundadorese, aindahoje,mestresda lírica modernada Europasãodoisfrancesesdo séculoXIX, Rimbaude Mallarmé. Entre·elese a poesiade nossaépoca,perduramelementosem comumqL(enãosepodeexplicarcomosimplesinfluxosnemse precisaexplicarcomotal, mesmonos lugaresem queos influ- xossejamreconhecíveis.Trata-sedeelementosestruturaisemco- mumou, melhor,de uma tessiturabásica,surpreendentemente constantenosmaisvariadosfenômenosda lírica moderna.Essa estrutura,origináriademuitosfilõesalgunsdosquaisjá existen- tesnoséculoXVIII, fundiu-se- porvoltade1850nateoriapoé- 9 ticae por voltade 1870,naprática- emumtodoqueé,cer- tamente,muitocomplexo,mastambémmuitocoerente.Isto ocor- reu na França.As leis estilísticasdos poetasatuaistornam-se clarasa partir de Rimbaude Mallarmé,e, por outro lado, o espantosomodernismodestesúltimosé explicadoa partir dos poetashodiernos.E necessário,alémdisso,decidir-sea deixar de ladoas classificaçõescostumeiras,comas quaisa críticae a ciêncialiteráriatêmsubdivididoa lírica européiados últimos cemanos.E, alémdisso,é necessáriodecidir-sea abandonara limitaçãodo campovisuala um autor isoladoou a um tipo estilísticoisolado.Só entãopode-sevisualizaraquelaelucidação recíproca(entreos poetasfrancesescitadose os modernos)e, comisto,a unidadeestruturalda lírica européiamoderna. O qu.eo presentelivropretende(e,peloqueeusaiba,ainda nãofoi feito)estáexpressoemseutítuloprincipal.Não tenciona serumahistóriada lírica moderna.Se assimfosse,muitosou- trosautoresteriamde ser analisados.O conceitode estrutura tornasupérfluaa análisede todoo materialhistórico.Principal- menteseo materialsó trazdigressõesda estruturafundamental, como,por exemplo,no casode Lautréamontque, é verdade, exercehoje algumainfluência,emboranão passede merava- riantede Rimbaud- a quemnão conheceu,tão poucocomo esteàquele.Pelo mesmomotivo- alémde muitosoutros- prescindetambémdetratarda lírica confessionale da líricapo- lítica do séculoXX. O valordestalírica - noscasosemque eleexista- nãoseoriginada fé nemdasidéiaspolíticas- e muitomenosaindada políticapartidária. E naturalque eu, comoromanista,tenhaido buscarnas literaturasromânicasa maiorpartedos exemplosdo capítulo quinto.O leitornãodevevernistoumadepreciaçãodospoetas alemãese anglo-saxões,sobretudoporquemeempenhei,na me- dida do necessário,em incluir um representantealemãoe um inglês,a fim deexpora suagrandeza,mastambémparamostrar a comunhãode estiloestruturalcomos franceses,espanhóise italianos.De qualquerforma,a apresentaçãoemmeulivro dos fundadoresda líricamodernae deseuprecursor,Baudelaire,nãoé fruto casualde meusinteressesespecíficos,masumanecessi· dadeobjetiva. O queé a lírica moderna?Não querome arriscara dar umadefinição.A respostadevesurgirdo própriolivro. Este li- vro devetambémresponderpor que omiti tão grandeslíricos comoGeorgee Hofmannstha,l,assimcomoCarossa,R. A. Schro- der,Loerke,RicardaHuch,Th. Diiubler.Elessãoosherdeirose os novospontosaltosde umestilolírico plurissecular- justa- 10 ,Ir mentedaqueleestilodo quala Françasedesprendeuhá oitenta anos.Acreditoque ninguémirá deduzirque eu os considere superados.Eu mesmonão sou vanguardista.Sinto-memaisà vontadecomGoethedo quecomT. S. Eliot. Mas istonãoé o que importa.Aquilo queme interessaé identificaros sintomas do modernismorigoroso,e pensoquenossasciênciasfilológicas teriamde fazeraindamuitomaispor tal identificaçãodo que temacontecidoatéagora. O livro estaráexpostoa muitosequívocos.Os poetassão pessoassensíveis,zelosasdesuaoriginalidadeeseusadmiradores alentamestasensibilidade.Por isso conto já, principalmente, com um equívoco:o de ter julgadocom o mesmoparâmetro todosospoetasquecito.Pois bem,esteequívocoendereçar-se-ia justamentecontrao intuitodo livro, o qual pretendedar uma visãodossintomasda lírica modernaqueatingemparaalémdo pessoal,do nacionale dosdecênios. O livro apresenta,emalgunstrechos,os princípiosmetodo- lógicosque nortearamminhaexposição.Quero apenasanteci- parqueo capítuloquintonãodeveriaserlido semconhecimento dosquatrooutrosanteriores,pois,do contrário,não se distin- guiria quão íntimaéa conexãodos poetashodiernoscom os poetasfrancesesdo séculoXIX. Teriasidofaslidiosocontinuar, todavez,a demonstraristoem cadacaso.Além disso,devese lembrarque,quandodigo "moderno",refiro-mea todaa época a partir de Baudelaireel ao invés,digo "contemporâneo"ou "atual",quandosetrataexclusivamentedepoesiasdoséculoXX. Em atençãoao leitor,apresenteiquasetodasascitaçõestra- duzidas,no decorrerde cadaumdoscapítulos.No ApêndiceI, foramtranscritosalgunstextosoriginais,juntamentecomtenta- tivasde tradução.Com certeza,todoaquelequeestáfamiliari- zadocoma lírica bemsabecomoé difícil traduzi-Ia,especial- mentea líricamoderna. Hugo Friedrich Freiburg,in Brisgau, Páscoa,1956 11 ~ .-9: ._n __"_ .__ ~< J' Prefácio à Nova Edição Por propostado editordestasériede estudos,estelivro foi reelaboradoem muitosaspectos:correçãode erros,alterações estilísticase acréscimosreais,entreos quaisse desejasalientar o queserefereà "NovaLinguagem".O ApêndiceI foi aumen- tadode algumaspoesias.Segue-sea ele,comonovoapêndice, a interpretaçãode algumaspoesias.A bibliografiafoi também ampliada;a notapreliminar,à página311,informasobreo sen- tido,e osprincípiosda mesma.Citaçõese resumos,maisdo que nas ediçõesprecedentes,sãoregistradasno decorrerda exposi- ção. Isto sucededo seguintemodo: o algarismoindicadoem grifo refere-seao títulocorrespondenteà bibliografia,agoranu- merada.EstesalgarismosfaltamsomentenoscapítulosIUlI-/V; as citaçõessão colhidasda respectivaediçãoda obra, assim: Baudelaire= 103;Rimbaud:::::144;MallaJ;'mé:::::171.Ao lado dascitações,constaapenaso númeroda página. O conceito"estrutura",usadono títulodo livro,foi muitas vezesmal-entendido.Assimseguisverno termo"estrutura",por vezes,algo "rijo, petrificado"ou, então,nãose acreditavaque esteconceitopudesseseraplicadoa "algotãoincorpóreocomo a lírica". Obviamente"nãoseentendepor "estrutura"umendu- recimentoou algo semelhante,sobretudoporque,nas ci~ncias humanasdesdeDilthey,o conceitoperdeuo significadooriginá- rio deinorgânico.Nos fenômenosliterários,"estrutura"designa umatessituraorgânica,umacomunhãotipológicado diverso.No casoem questão,trata-sedo elementocomumde criaçãolírica que consisteno abandonodas tradiçõesclássicas,românticas, naturalísticas,declamatórias,emoutraspalavras,justamenteem suamodernidade."Estrutura"significaaqui a configuraçãoco- mumde umasériede numerosaspoesiaslíricas que,de modo algum,necessitamter-seinfluenciadoreciprocamente,cujasca- racterísticasisoladascoincideme, todavia,podemserexplicadas separadamente;em todoo caso,ocorremtãofreqüentementee, 13 no mesmocontexto,quenãopodemserconsideradascomofenô- menosfortuitos.Aliás, já sealudiu'a isso,em termosum tanto diferentes,na primeiraeqição,no parágrafoinicial do capítulo quinto. Confessoque teria preferidoevitar o termo "estrutura", nestaediçãoreformulada.Poisagora,muitomaisdo quenaépo- ca da primeiraedição,a palavratornou-seuma expressãode moda,difundindo-senoscamposmaisdiversos.Tive, aindaas- sim,de conservá-Iapor dois motivos:primeiro,porqueo livro ficou conhecidosob estetítulo e, depois,porquehoje como ontem,devomeresguardardaexpectativadeterescritoumahis- tóriadalíricamoderna.Tal empresateriaexigidooutrosmétodos e outrasdisposiçõesda matéria,algosemelhanteao quese en- contrano excedentelivro de G. Siebenmann,Die ModernLyrik in Spanien(378),livro deorientaçãoclaramentehistóricae que inclui tambéma evoluçãode cadaum doslíricos. Mudeio subtítulo.Anteschamava-se:De Baudelaireatéo presente.No títuloatual,constamdatasaproximadasque,por- tanto,devemser entendidascomflexibilidade.A limitaçãodo períodoem 1950é, no entanto,maisdefinidado queo início, em1850.Muito foi publicadona líricaeuropéia,desdea metade de nossoséculo,quepodeinspirar respeito.Apesardisso,eu nãosaberiadizerquema ultrapassou,definitivamente,e de for- maválidaparao futuro,nocampoquefoi abertopelosclássicos à poesiamoderna.Observaram-se,antes,distensões,aqui e ali, sensívelretornoà lírica tornadamaishumana,pessoal,mais simplesaoexpressaro sofrimentoe a alegria.Apesarde tudo,a lírica permaneceu,comoforça suavee todaviagrandiosa,uma dasliberdadese dasaudáciascomas quaisnossaépocaescapa aos liamesfuncionais.E, talvez,minhaculpa,se não consigo maisreconhecer,emsuapossíveloriginalidade,emseudestaque dentrode umcontextopoético,emaproximadamenteumséculo depoesia,muitacoisaquepoderiaser,realmente,nova.No en- tanto,a chamada"poesiaconcreta",comseuentulhode pala- vrase.sílabasjogadasmecanicamente,permanece,graçasà sua esterilidade,totalmentefora de consideração. Hugo Friedrich Freiburg,in Breisgau, outubrode 1966 14 " I. Perspectiva e retrospecto Perspectiva da lírica contemporânea: dissonâncias e anormalidade A lírica européiado séculoXX nãoé de fácil acesso.Fala de maneiraenigmáticae obscura.Mas é de umaprodutividade surpreendente.A obradoslíricosalemães,do Rilke dosúltimos tempose de Trakl a G. Benn,dosfranceses,de Apollinairea Saint-JohnPerse,dos espanhóis,de García Lorca a Guillén, dos italianos,de Palazzeschia Ungaretti,dos anglo-saxôni- cos, de Yeatsa T. S. Eliot, não podemais ser colocadaem dúvidaquantoà suasignificação.Estaobramostraquea força deexpressãoda lírica, na situaçãoespiritualdo presente,nãoé inferiorà forçadeexpressãodafilosofia,do romance,doteatro, da pinturae da música. Comestespoetas,o leitorpassapor uma experiênciaque o conduz- tambémaindaantesquesepercebadisto- muito próximoà característicaessencialde tal lírica. Suaobscuridade o fascina,namesmamedidaemqueo desconcerta.A magiade suapalavrae seusentidode mistérioagemprofundamente,em- bora a compreensãopermaneçadesorientada."A poesiª_pode comunicar-se.L."ª-in<iaant~Ld!LseJ'compJ:'eendia",observouT. S. Eliot em seusensaios.futa j'lln窺.de incompreensibilidadee de_fascioªçã.opode.serchamada.dedissonância,Pois..gerauma tensªº.Q'lletende.maisª.i!1q\.!.jet'lld~__Q'llJ~jUJ;~renidªd_e.A tensão dissonanteé um o.bj~iyº_das._.artesIrlQclel"tlalictJ:!_.&eral.Stra- winsky escreveem sua PoétiqueMusicale(1948):"Nada nos constrangea buscara satisfaçãosempree somenteno repouso. Há maisde um século,acumulam-seexemplosde um estilono qualadissQnânciatornou-seautônoma.Transformou-seemuma 15 Belezadissonante,afastamentodo coraçãodo objetoda poesia,estadosde consciênciaanormais,idealidadevazia,des- concretização,sentidodemistério,geradosnas forçasmágicas da linguageme da fantasiaabsoluta,aproximadosàs abstrações da matemáticae às curvasmelódicasda música:comestesele- mentos,Baudelairepreparouas possibilidadesquese tornariam realidadena lírica dospoetasvindouros. Estaspossibilidadessãoencetadaspor um poetaque traz os estigmasdo Romantismo.Do jogo romântico,Baudelairefez umaseriedadenão romântica;comas idéiasmarginaisde seus mestres,construiuum edifíciodepensamento,cujafachadalhes voltouas costas.Por isto,pode-sechamara lírica de seusher- deirosde "Romantismodesromantizado". 58 J I i, ,I, I I lItJ. 11I.Rimbaud Características preliminares Umavidadetrintae seteanos;umaatividadepoéticaco- meçandona adolescênciae interrompendo-sedepoisde quatro anos;o resto,um completosilêncioliterário,um irrequietovia- jar por todaa parte:do quemaisteriagostadoseriade chegar à Ásia, mastevede se contentarcomo OrientePróximoe a Africa Central;dedicadoa todoo gênerodeocupaçõesemexér- citoscoloniais,pedreiras,firmasde exportaçãoe, por fim, no tráficodearmasparao Negusda Abissínia;alémdisso,a rela- tórios para sociedadesgeográficassobre territóriosda África atéentãoinexplorados.Naquelebreveperíododeatividadepoé- tica,umritmofuriosode evoluçãoque,já apósdoisanos,tinha feitoir pelosaresnãosó o próprioinício,mastambéma tradi- çãoliteráriaqueseachavaatrásdestee a criar umalinguagem que, aindahoje, continuasendouma linguagemorigináriada lírica moderna:estessãoalgunsfeitosda pessoade Rimbaud. Suaobracorrespondeà essaimpetuosidade.É exígua;mas a elasepodeaplicarumapalavra-chavede Rimbaud:explosão. Começoucomversosencadeados,passouao versolivre e desar- ticulado,e daí às poesiasemprosa,ritmadasassimetricamente, de Les Illuminations(1872-73)e de Une Saison en Enter (1873)1.Estasimplificaçãodasformas,preparadapelospoetas precedentes,serealizaa favor de uma lírica dinâmica,quese servetantodo concretoe do formal,quantode meiosarbitrá- rios de sualiberdade.De resto,podemosprescindirda divisão 1. Estas datas foram contestadaspor Bouillane de Lacoste, com algumasargumentaçõessugestivas,mas não irrefutáveis,segundoas quais Les Illuminationsseriama última obra de Rimbaud. 59 da obra em verso e prosa. Outra divisão seria mais adequada: um primeiro período de poesiaacessível,que atingeaté por vol" ta da metadede 1871,e um segundoperíodo de poesia obscura, esotérica. Pode-se compreendera poesia de Rimbaud, em primeiro lugar, como realizaçãodaquelesesboçosteóricos de Baudelaire. Mas nos ofereceum quadro totalmentemudado.As tensõesnão resolvidas,masordenadase expressasnas formas severasde Les Fleursdu Mal, tornam-seaqui dissonânciasabsolutas.Os temas só às vezesse juntam ainda de modo vagamentecompreensível, e apresentamum sem-fimde interrupções,entrelaçam-se,o mais dasvezes,confusamente.O núcleo destapoesiaquasenão é mais de caráter temático,parece, antes, uma excitação efervescente. A partir de 1871,ela não mais produz tessiturasde sentidocom- pleto mas, sim, fragmentos,linhas truncadas, imagensagudas, perceptíveisaos sentidos,mas irreais; tudo isto, porém, de tal forma que, naquela unidade, vibra o caos que foi necessário para a unidade tornar-selinguagem: na unidade de uma musi- calidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias e harmonias.O ato lírico desloca-secada vez mais da expressão do conteúdo a um modo de 'Ver ditatorial e, portanto, a uma insólita técnica de expressão.Esta técnica nem sequer precisa consistir na destruiçãodas ordens sintáticas.No vulcânico Rim- baud, isto acontece raras vezes enquanto, de modo estranho, encontra-semais amiúdeno pacato Mallarmé. A Rimbaud bastaj pôr os conteúdoscaóticos em frases que são simplificadas até o primitivistQo. Desorientação O efeito destapoesiaé desconcertante.J. Riviere escreveu, em 1920, sobre Rimbaud: "Sua missão consistia em nos deso- rientar". A frase é corretauma vez que reconheceuma missão em Rimbaud. Confirma isto uma carta de Claudel endereçada a Riviere, na qual Claudel fala de sua primeira leitura de Les Illuminationse prossegue:"Por fim saí do mundo repugnante de um Taine, de um Renan, daquele mecanismoatroz, guiado por leis inflexíveis e, além do mais, ainda fáceis de se reconhe- cer e de aprender. Foi a revelação do sobrenatural". Claudel alude ao positivismo científico que se baseia na convicção de que é possívelexplicar totalmenteo universo e o homem, sufo- 60 1 ..;' I o(C I cando, assim,as forças artísticase espirituaiscarentesde misté- rio. Portanto, uma poesia obscura, que se evade do mundo ex- plicável do pensamentoextremamentecientífico para lançar-se ao mundo extremamenteenigmáticoda fantasia,pode ter o efei- to de missãoque proporcione,a quemé sensívela ela, a mesma evasão.Talvez sejaestaa causafundamentalda força de atração que Rimbaud exerceunão só sobre Claudel, mas tambémsobre muitos outros leitores. Seu caos irreal era a redençãoda reali- dade oprimente.Claudel deve a ele o impulso inicial à conver- são; desta,só Claudel é responsável.Rimbaud pode, ainda me- nos do que Baudelaire, ser interpretadocomo cristão, embora sua poesia contenha forças análogas ao êxtase religioso. Tais forças, nele, se perdemno Nada de um sobrenaturalvazio. A impressãodos textosde Rimbaud é tanto mais desorien- tadora porquanto parte de uma linguagemque não só fere com golpesbrutais, comopode ser tambémcapazdasmaisencantado- ras melodias.Às vezes,parececomo se Rimbaud se impelisse a uma beatitude supraterrena,como se viesse de outro mundo, extasiado.Gide chama-ode "silvado ardente". Para outros, con- verte-seem anjo; Mallarmé fala do "anjo no exílio". A obra, dissonante,provoca as apreciaçõesmais contraditórias,que vão desde a exaltaçãode Rimbaud como poeta supremo à sua de- preciação a jovem turbado da puberdade, em torno do qual formaram-seas lendas mais exageradas.Uma análise fria pode facilmente afastar aquelas que, de fato, são exageros: mas todas serãovistas, justamente,como conseqüênciada força que emana de Rimbaud. Quaisquer que sejam as avaliações,de to- das deve-sededuzir que não se pode prescindir do fenômeno Rimbaud, que apareceue declinou como um meteoro,mas con- tinua brilhando com a faixa de fogo no céu da poesia. Autores que não o conheceramatétarde e não haviamescritosob sua in- fluência afirmam que suas obras derivam da mesma "necessi- dade de expressão"que a de Rimbaud: necessidadede expressão "de situaçõesinteriores", que se repetemem um período cultu- ral. Assim se expressavaG. Benn, ainda em 1955 (586, p. 8). tettres d'un voyant(transcendência vazia, anormalidade desejada, "música" dissonante) Em 1871, Rimbaud escreveuduas cartas, nas quais esbo- çou o programa da poesia futura. O programa correspondeà 61 segundafasede suaprópriapoesia.Visto que as cartasse ba- seiamno conceitodo vidente(voyant),costumou-sechamá-Ias de Lettresd'un voyant(Cartasde um vidente)(p. 251 e ss.). Confirmamque,tambémparaRimbaud,a poesiamodernadeve ser acompanhadada reflexãosobrea artepoética. Reivindicara condiçãodevidenteparao poeta,nãoé, cer- tamente,umanovidade.Uma dasorigensdestepensamentore- montaaosgregos.Tal pensamentofoi retomadopeloplatonismo l'enascentista.ChegouatéRimbaudatravésde Montaigneque, numensaio,combinoudoistrechosde Platãoacercada loucura poética.Rimbattd,aindacomoestudante,haviaaprendidodecor o capítulodeMontaigne.PodeserquereminiscênciasdeVictor Hugotenhamsidoacrescentadas.Porémé decisivaa reviravolta que Rimbaudconferea estepensamentoantigo.O que vê o poetavidentee comose converteem tal? As respostasnada têmde gregas;sãoextremamentemodernas. O objetivodo poetaré "chegarao desconhecido",ou en- tão,dito de outromodo:"escrutaro invisível,ouvir o inaudí- vel". Já conhecemosestesconceitos:derivamde Baudelairee são,aquie lá, palavras-chaveparaindicara transcendênciava- zia. TampoucoRimbaudlhes dá uma definiçãomaisprecisa. Permanecena caracterizaçãonegativadoobjetivoperseguido; distingue-ocomoo não-usual,não-real,comoo outro pura e simplesmente,masnãolhe dá conteúdo.As poesiasde Rimbaud confirmamisso. Sua irrupçãovulcânicaque o joga acimada realidadeé, emprimeirolugar,o desafogodestemesmoimpul- so eruptivo;e, logo,é a deformaçãoda realidadeemimagens que,mesmoirreais,nãosãosinaisdeumatranscendênciaverda- deira.Tambémem Rimbaud,o "desconhecido"é um pólo de tensãodestituídode conteúdo.A visãopoéticapenetrano mis- tériovazioatravésde umarealidadeintencionalmentefeitaem pedaços. Qual é o sujeitodestavisão?As frasescomas quaisRim- baudrespondea estaperguntatornaram-sefamosas."Pois 'eu' é outro.Sea chapadeferrose despertana formade trombeta, não se tem de lançar-lhea culpa. Assistoao desabrocharde meupensamento,eu o vejo,eu o escuto.Desfiroum toquede arco: a sinfoniajá se faz sentirno profundo.:e falso dizer: penso.Dever-se-iadizer: pensa-seem mim." O sujeitoverda- deironãoé, portanto,o eu empírico.Outrasforçasatuamem seulugar,forçassubterrâneasde caráter"pré-pessoal",masde umaviolênciade disposiçãoque coage.E só elassãoo órgão apropriadoparaa visãodo "desconhecido".:e verdadequeem taisfrasesse podereconhecero esquemamístico:o auto-aban- 62 ,', I I I ( I donodo eu porquea inspiraçãodivinao subjuga.Mas a subju- gaçãovemagorade baixo.O eu emergee é desarmadopor camadasprofundascoletivas(l'âmeuniverselle).Estamosno umbralondea poesiamodernase deixalançarno caosdo in- conscientea novasexperiênciasqueo desgastadomaterialdo mundonãomaisproporciona.Compreende-seque os surrealis- tas do séculoXX reivindiquemRimbaudcomoum de seus ascendentes. Tambémé muito importantea seqüênciadestalinha de pensamento:o autodespojodo eu deveser alcançadomediante um atooperativo.Vontadee inteligênciao dirigem."Querovir a ser poetae trabalhoparasê-lo",é o princípiovolitivo.Sua realizaçãoconsiste"em desordenarlenta,infinita e arrazoada- mente,todosossentidos".E deformaaindamaisincisiva:"Tra- ta-sede criar-seuma almadisforme,comoo homem'que itn- plantaverrugasem seurostoe as cultiva",O impulsopoético é ativadopormeiodesuaautomutilação,por meiodo afeamento voluntárioda alma.Tudo para "chegarao desconhecido",O poeta,aquelequeolha o desconhecido,torna-se"o grandeen- fermo,o grandedelinqüente,o grandeproscrito- e o sumo sábio".Assim,a anormalidadejá nãoé umdestinosimplesmente suportável,comooutrora,em Rousseau,massim, um desterro por firmedeliberação.A poesialiga-se.agoraaopressupostoque a vontadedistorcea tessituraanímica,pois tal desfiguraçãopos- sibilitaa cegaevasãoparao profundo"pré-pessoal",comotam- bémparaa transcendênciavazia.Estamosmuitolongedo co- movedorvidentedos gregos,a quemas musasfalavamdos deuses. A poesianascidamediantetais operaçõeschama-senova linguagem,linguagemuniversal,paraa qualé indiferentesetem ou não forma.É umaurdidura do "estranho,insondável,re- pugnantee extasiante".Todasas categoriasse encontramnum mesmoplano,atémesmoaquelasdo belo e do feio.A excita- ção e a músicaconstituemseuatestadode valor. Por toda a parte,emsuaobra,Rimbaudfala da música.Ele a chama"a músicadesconhecida",escuta-aem "castelosconstruídoscom ossos",na "cançãometálicadospostesdo telégrafo";é "canto límpidode novadesgraça",é a "músicamaisintensa"na qual foi suprimidotodoo "sofrimentosimplesmenteharmonioso"de tiporomântico.Quandosuapoesiadeixaressoarcoisasou seres, há sempregritose bramidosquese interpolamna cançãoe no canto:músicadissonante. Voltemosàscartas.Aqui seenunciaa belafrase:"O poeta definiráa extensãodo desconhecidoquese faz sentirna alma 63 universal de sua época". Logo depois vem a anunciação pro- gramáticada anormalidade: "Ele, poeta, é a anormalidadeque se converte em norma". O auge destas anunciações diz: "O poeta chega ao desconhecidoe, mesmoque ele finalmente não mais compreendasuas próprias visões, ele as contemplou,toda- via. Mesmo que possa sucumbir em seu salto gigantescoatravés dascoisasinaudíveis e inomináveis, outros temíveis trabalha- doresvirão e começarãopor aqueles horizontes onde ele pró- prio sucumbiu". O poeta: aquele que trabalha na explosão do mundo por força de uma fantasia violenta que penetra o desconhecido e contra este se despedaçade encontro a ele. Intuiu acaso Rim- baud que os modernospoderesinimigos, antagônicosentre si, o trabalhador técnico e o "trabalhador" poético, no fundo se encontram,pois ambossão ditadores: um sobre a terra, o outro sobre a alma? Ruptura da tradição A revolta implícita nesteprograma,e tambémnas próprias poesias, dirige-se, simultaneamente,para trás, destruindo a tra- dição. Por certo, se conhecea sede de leitura de Rimbaud me- nino e jovem. Seus versos estão repletos de reminiscênciasde autoresdo século XIX, contemporâneose anteriores. Contudo, mesmoo que os faz lembrar possui o tom agudo que vem de Rimbaud e não de seusmodelos. O patrimônio literário absor- vido transformôu-senele, mediante superaquecimentoou con- gelamento,numa substânciacompletamentediversa. Para uma apreciaçãode Rimbaud, aquelas reminiscênciastêm apenasum valor secundário.Confirmam o mesmoque todos os outros ca- sos, isto é, que nenhum autor pode partir do nada. Quer dizer, para Rimbaud, elas não levam a nenhumaconclusãoespecífica. Esta pode ser encontradana violenta transformaçãodaquilo que ele aprendeu com as leituras e, em sua atitude de deliberada ruptura com a tradição,e de exacerbadoódio por ela. "Execrar os antepassados",constana segundade suasLettresd'unvoyant. Expressõessuas nos foram transmitidasonde ridiculariza o.Mu- seudo Louvre e incita ao incêndio da Biblioteca Nacional. Estas expressõespodem parecer pueris, mas coincidem perfeitamente com a própria mentalidadede sua última obra (UneSaisonen Enter),que - conquantoseu autor fosse ainda adolescente- 64 j, I certamentenão pode ser chamadade pueril. A incomunicabili- dade provocadorade Rimbaud com o público e com sua época torna-se conseqüentementetambém a incomunicabilidade com o passado.Seusargumentosnão sãode caráterpessoalmas, sim. estãovinculados ao espírito de seu tempo. O passadotornando- se um peso, devido ao extinguir-seda genuína consciênciade continuidade e à sua substituiçãopelo historicismo e pelas co- leções em museus,produz em alguns espíritos do século XIX uma reaçãoque conduz à repulsade tudo aquilo que é passado. Esta permaneceráuma característicapermanenteda arte e da poesia modernas. Durante sua época escolar,Rimbaud foi um humanista de valor. Todavia, em seus textos, a antigüidadeaparecede forma desfigurada.O mito é degradadomedianteassociaçãocom o or- dinário: "bacantes dos subúrbios"; Vênus dá aguardente aos operários; numa cidadegrande,cervossugamos seiosde Diana. O grotesco,que Victor Hugo havia recolhido de chistesmedie- vais, estende-se,como em Daumier, ao mundo mitológico da antigüidade.O enfeamentoé radical no soneto "Vénus anadyo- mene". O título mencionaum dos mitos figurativos mais belos: () nascimentode Afrodite das espumasdo mar. Porém, o con- teúdo está em contraste bizarro: de uma banheira verde de ferro emergeum obeso corpo de mulher, com o pescoçocinza e a coluna dorsal avermelhada;nas ancas,estágravadaa inscri- ção "Clara Vénus"; num lugar indicado com exatidão anatô- mica há um abscesso.Quis-se ver nestesoneto uma paródia a certas poesiasem moda naquela época, sobretudo as de estilo parnasiano.Mas é uma paródia sem graça. O ataque dirige-se contra o próprio mito, contra a tradição em geral, contra a beleza; é um ataque movido pelo desafogo de uma tendência à deformação, que - e aqui está o mais curioso - possui, por outro lado, suficiente qualidadeartística para imprimir nas fealdadeso vigor de uma lógica estilística. Ainda mais violento é o desabafocontra a beleza e a tra- dição na poesia"Se qu'on dit au poeteà propos de fleurs". Um escárnioà lírica das flores, das rosas, das violetas, dos lírios e dos lilases. Pois, com a nbva poesia condiz outra flora: nãocantaas videiras,cantao tabaco,as plantasde algodãoe a doen-' ça das batatas;a lágrima de uma vela vale mais do que a fbr; o tecido lenhoso,transpirante,de plantasexóticasvale mais que a vegetaçãode nossa terra. Sob um céu escuro na idade do ferro devemsurgir poesias foscas, nas quais a rima brote "co- mo um jato de carbonato de sódio, como borracha líquida". Postes de telégrafosão sua lira e alguém virá e dirá o grande amor/, "Ladrão de sombrias indulgências". 65 Modernidade e poesia da cidade Um texto como este revela o comportamentode Rimbaud, concernenteà modernidade.É dúplice como o de Baudelaire~ aversãoà modernidade,enquanto progressomaterial e raciona- lismo científico; apegoà modernidade,enquanto conduz a no- vas experiências,cuja dureza e obscuridade exigem uma poe- sia dura e "negra". Daí a poesia citadina de Rimbaud, que se encontraem Les /lluminations. É de uma potênciagrandiosa que transferea cidade de sonho de Baudelaireao "superdimen- sional". Os poemas melhores são aqueles que têm por título Ville e Villes (p. 180 e ss.). Com imagensincoerentes,acumu- ladas, criam cidadesda fantasia ou do futuro, superandotodos os tempos,invertendo toda ordem espacial; as massasestãoem movimento,ressoame bramem;o real e o irreal se cruzam; entre chalés de cristal e palmeirasde cobre, por cima de desfiladei- ros e abismos,ocorre o "desmoronamentodas apoteoses";jar- dins artificiais, mar artificial, uma cúpula de igreja, em aço, de quinze mil pés de diâmetro, candelabrosgigantescos,a parte superior da cidade construída tão no alto que já não se vê a parte inferior ... ; e além do mais, as frases (p. 180): tais cio dades repeliram tudo o que é familiar, aí não existe qualquer monumento ao devaneio,nenhum dos milhões de homens co- nhece o outro e contudo a vida de um está sujeita à mesma coação uniforme como a de todos os outros; fantasmas são esteshomens,de carvão ç sua sombra dos bosquese sua noite de verão; morre-sesem lágrimas, ama-sesem esperançae "um crime encantadorgemeno lodo das ruas". Não se poderá destrinçar a urdidura destasimagens,não se poderá encontrar nelas um sentido tranqüilizador, pois seu sentido reside na confusão de suas próprias imagens. Nascido de uma fantasia excitada, seu caos superdimensionaltorna-se indefinível para a inteligência,mas perceptívelpara os sentidos; sinal visível dos elementostanto materiaisquanto espirituais da modernidademetropolitanae seus temores,que são as forças que a dominam. Insurreição contra a herança cristã: Une Saisonen Enfer Agora, a questãoacercado cristianismode Rimbaud. Não um cristianismoem ruína como em Baudelaire.Os textosmos- 66 , , .- tram que ele começa com a revolta e termina com o martírio de não poder escaparà coaçãoda herançacristã. Por certo, isto é ainda muito mais cristão do que a indiferença ou a ironia racionalista.A oposição de Rimbaud é uma daquelasoposições que ficam sob o domínio justamentedaquilo contra o qual se insurge. Ele mesmosabia disso. Tal consciênciatorna-Stpoesia em Une Saison en Enfe!".Mas a indignação contra o cristianis- mo não se acalmou.Torna-se apenasmais atormentadae mais inteligente- e termina no silêncio. É um aspectode sua insur- reição contra as tradiçõesem geral,mas tambémum aspectode sua paixão pelo "desconhecido",por aquela transcendênciava- zia que ele não pode indicar de outra forma a não ser mediante a redução a pedaços do que lhe é dado. Os textos da primeira fase contêm os ataquesmais aber- tos e passampor uma decomposiçãopsicologizanteda alma cris- tã. Assim, na poesia "Les premierescommunions",uma adoles- cente sucumbeao tumulto dos instintos, cuja culpa vem impu- tada ao cristianismo, pois este foi culpado da sua repressão. Mas Rimbaud vai além. Possivelmentepor volta de 1872, es- creveu um trecho em prosa que começa com as seguintespa- lavras: "Bethsaida, Ia piscine des cinq galéries", que tem por base o relato do evangelhode São João acerca da cura mila- grosa de um enfermo por Cristo à beira do lago Bethsaida(Be- thesda).Mas o relato está completamentetransformado.Aleija- dos entram na água amarela,mas não chega anjo algum, nin- guém os cura. Cristo está encostadoa uma coluna e olha im- passível os banhistas, através de cujas fisionomias Satanás ri zombeteiramentepara ele. Então levanta-seum e vai com passo firme rumo à cidade. Quem o curou? Cristo não disse uma só palavra, não lançou sequer um olhar aos paralíticos. Talvez Satanás? O texto emudecea respeito, contenta-seem colocar Cristo espacialmentena proximidade do doente. Justamentedaí pode surgir a suspeita: Cristo não curou, talvez tampoucoSa- tanás,mas sim uma força que ninguémsabeonde reside e qual seja. Transcendência vazia. Aqui se deve discorrer brevementesobre Une Saison en Enfe!",pois contém a última palavra de Rimbaud sobre o cris- tianismo. Este texto consistede seteextensospoemasem prosa. Sua linguagemapresentamovimentosmúltiplos, justapostossem transição: golpes inopinados que iniciam uma expressãosem conduzi-Ia a termo; palavras que se acumulam de forma verti- ginosa ou agitada,perguntasque não têm respostase, em meio a tudo isto, a melodia louca, tão mágicacomo inquietante,das amplascurvasdos períodos. Quanto ao conteúdo,a obra é uma revisão de todas as fasesprecedentesde Rimbaud. Todavia, ve- 67 rifica-sequeele,na tentativade repelirfasespassadas,voltaa sevalerdelase s~entãoas repele.E assimresultaum descon- certantevaivém:o que ele amava,agoraodeia,voltaa amá-lo e a odiá-lo.O quenumafraseestáexpostoemformaafirmativa, é negadona fraseseguinte,para ser repetidona sucessiva.A revoltavira-secontrasi própria.Tão-somentea conclusãopre- cipita tudo a um final, no adeusa todaexistênciaespiritual. Sempátriano mundotradicionaldo real,do espiritual,do racional:assimpode-seresumiro sentidogeral destaslinhas em ziguezague,que determinamtambémas páginasacercado cristianismo.Vocábuloscristãosfiguramaí - inferno,demônio, anjo-, masoscilamentrea significaçãoliterale a metafórica, e sãoconstantessó no sentidode constituíremsinaisde excita- çõescegas."Páginasfeiasde meudiário de condenado",apre- sentadasao demônio,assimé como Rimbaudchamavaesta obra."O sanguepagãoretorna,o evangelhojá passou,deixoa Europa,queronadar,cortarerva,caçar;bebersucosardentes comoQ metalfervente... Remido."Porém,entreestasfrases, consta:"Esperocomavidezpor Deus",e algumaspáginasmais além:"Nuncafui cristão,sou da raça daquelesquecantavam no suplício". Invoca as "delíciasda condenação".Estasnão vêm.NãovemCristo,nemSatanás.Mas Rimbaudsenteseugri- lhão. "Sei-meno inferno,portantoestounele."O infernoé a escravidãosobo jugodo catecismo;ospagãosnãotêminferno. Por isso,tambémo paganismoopõe-sea ele. Tais frasesparecemdizerqueaquelequeaspronunciaso- fre sob o cristianismocomosofrede um trauma.A excitação torna-setrejeito,é moverao ataquee estarcaído,ao mesmo tempo.Estarno infernosignifica,paraele,justamenteisto.Que tenhade chamar-seinfernoé imposiçãocristã.A perguntanão explícita,masperceptível,paira sobreo texto:o desnorteiodo mundomoderno,comotambémda própria interióridade,não seráumperversodestinocristão?Mas Rimbaudlevantaa ques- tão, semsolvê-Ia.Põe-seem evidênciao segundotemafun- damentalde Une Saison: deixaro continente,ir-seemborados "pântanosocidentais",do desatinodo Ocidentede "quererde- monstraro óbvio" e não perceberque,como nascimentode Cristo,nasceuo burguêsmesquinho.Estetemavai selibertando cadavezmaisdaslinhasemziguezague,adotaum estilodefini- do, conduzao outono,inverno,à noite,intencionalmenteà mi- séria,- "vermesem meuscabelos,minhasaxilase em meu coração".Da totalconsumpçãovema determinaçãode "abra- çar a realidadeáspera",de fugir da Europa e começaruma vida de difícil ação. Rimbaudrealizousuadeterminação.Capitulaanteàs ten- sõesda existênciaespiritual,insolúveispara ele. O poetase - ,- -~ ([1 deslocouo maislongepossíveldetodosno "desconhecido",não pôde chegarater a clarezado que sejao desconhecido.Ele voltaparatráse acolheemsi a morteinterior,emudecidoante o mundofragmentadopor ele próprio.O maisduroobstáculo ao mundofoi, paraele,a herançacristã,quenãosaciavasua fome desmedidado supra-reale lhe aparecialimitada,como todacoisaterrena.Com a explosãoqueRimbaudinflamouem tudoo queé reale herdado,tambémo cristianismose desfez. Baudelairepôdeaindafazerdesuacondenaçãoumsistema.Em Rimbaud,essasetornaemcaose,por fim, emsilêncio.Comtu- do istoconcordao fatodequeo relatodesuairmã,segundoo qualeleteriamorridocrente,revelou-seumapiedosamentira. o eu artificial; a desumanização O eu quefala naspoesiasde Rimbaudnãopodesercon- cebidoa partir da pessoado autor,assimcomoo eu de Les Fleurs du Mal. As experiênciasdo meninoe do jovempodem, certamente,contribuirparamuitasexplicaçõespsicológicasdos textos,casose tenhavontadedisso.Mas poucoservempara chegarconhecimentode seusujeitopoético.O processode de- sumanizaçãoacelera-se.O eu deRimbaud- emsuamultiplici- dade dissonantede vozes- é o produtodaquelaautotransfor- maçãooperante,da qual falamosacima,e, portanto,daquele mesmoestiloimaginativodo qualnascemtambémos conteúdos de suaspoesias.Esteeu podevestirtodasas máscaras,esten- der-sea todasas formasde existência,a todosos tempose povos.QuandoRimbaud,no início de Une Saison, fala de seus antepassadosgálicos,aindase podetomaristo ao pé da letra. Mas, algumasfrasesdepois,lê-se:"Vivi por todaa parte,não existeumafamíliaquenão conheça.Há, emminhacabeça,ca- minhosdaplaníciedaSuábia,vistasdeBizâncio,circunvalações de Jerusalém".Estaé fantasiamotrize nãoautobiografia.O eu artificialnutre-sede "imagensidiotas",de assuntosestimulan- tesdo Orientee do mundoprimitivo,torna-seplanetário,trans- forma-seem anjo e em mago.Com Rimbaud,começouaquela separaçãoanormalentreo sujeitopoéticoe o eu empírico,que se reencontrará,no presente,em Ezra Pound, em Saint-John Persee que,por si só, já impediriade entendera lírica moder- na comoexpressãobiográfica. TambémRimbaudinterpretaseu destinoespiritualpelas relaçõessuprapessoaisda modernidade."A lutaespiritualé tão brutal como a batalha entre homens" (p. 230), diz no mesmo texto onde, contra Verlaine, defende sua determinaçãode ser quem se precipitou mais profundo e, portanto, vê tambémdis- tânciasmaiores,mas não pode ser compreendidopor ninguém, produzindo efeito mortal, mesmo na suavidade.Tem orgulho de saber que "este sofrimento possui uma autoridade inquie- tante" (p. 161). Chegou até nós uma frase sua: "Minha supe- rioridade consisteno fato que não tenho coração".Tem aversão, na poesia romântica, aos "corações sensíveis". Uma estrofe de uma poesiasua diz: "Assim te libertas do sufrágiohumano, das ambiçõesignóbeise voas... " (P. 132). Não são meros programas.A própria poesia de Rimbaud é desumanizada.Não falando a ninguém, monologa,portanto, procurando atrair quem escute, com palavra alguma: parece conversarcom uma voz para a qual não existe intérprete con- cebível, sobretudo lá, onde o Eu imaginadocedeulugar a uma expressãosem o Eu. Sentimentosidentificáveis abrem caminho a um vibrar neutro, de modo mais intenso ainda que em E. A. Poe. Vê-se isto, por exemplo,numa poesiaem prosa, "Angoisse" (p. 188). O título parece aludir a um estadode alma preciso. Mas é estemesmoqUl falta. Até a angústianão tem mais um rosto familiar. Ela existeou não? O que sepercebeé uma inten- sidadeindeterminável,mescladacom toda a sorte de elementos, de esperança,ruína, júbilo, trejeito, dúvida - tudo dito rapida- mentee rapidamentesuperadode novo, até que o texto desem- boca em feridas, suplícios, torturas, dos quais não se sabe o que queremdizer, nem de onde nascem.O todo, uma vertigem do indeterminado,tanto na imagemcomo na emoção,tão inde- finido como aqueles dois seres femininos que o texto cita, de passagem.Mesmo se com a emoção se entendatambém a an- gústia, esta está tão livre dos contornos normais da vida senti- mental que já não pode levar o nome humano de "angústia". Quando Rimbaud se vale dos homenspara formar o con- teúdo de uma poesia, eles aparecemcomo estrangeirossem pá- tria ou como caricaturas',J\JlAistitlta,spartes.do...corpo em des- proporção com a figura geral do mesmo,-são· íliiiiltmrclas-de forma excessiva,descritascom expressõesanatômicase técnicas que objetivamuma materializaçãorija. Até uma poesia que soa tão tranqüilamente,como "Le dormeur du vaI", pode ser men- cionadacomo exemplodestadesumanização.Ela conduz à mor- te, a partir de um pequenoprado no vale, que "espumeja de raios". Paralelamente,a linguagempassa dos versos do início, suavementeem êxtase,à frase final, sóbria, a qual faz saber que o moço adormecido, silencioso é um soldado morto. A descida à morte sucede muito devagar, Rimbaud a retarda e 70 - t' , r~"7 ••• a deixa surgir só bem no final, rápida e inesperadamente.O conteúdoartístico da poesia éo desenrolarde sua ação da cla- ridade à obscuridade.Todavia é um desenrolarque se realiza semparticipaçãodo poeta,em placidez fria, que tampoucopro- fere o nome da morte, mas emprega,para indicá-Ia, a mesma palavra que antesdesignarao prado do vale: primeiro, "um va- zio (trou) de verde", depois, no plural, "dois vazios (trous) no lado direito". O morto é uma imagempura na visão do que olha. O possível sobressaltodo coraçãopermaneceexcluso.Em seu lugar, há um estilo artístico de ação que se serveda morte de um homemcomo uma chicotada,para reduzir assim o mo- vimento à brusca imobilidade. Rupturados limites No tema poético de Rimbaud penetra, cada vez mais, uma excitação que impele a amplidões imaginárias. A neces- sidade imperiosade lançar-seao "desconhecido"o faz falar, co- mo Baude1aire,do "abismo do azul". Anjos povoamestaaltura que é, ao mesmo tempo, abismo da derrota, uma "fonte de fogo, onde marese fábulas se encontram".Os anjos são pontos de luz e de intensidade, sinais que relampejame, logo a se- guir, desaparecemdaquela altura, daquela amplidão, de uma exuberância impalpável; são, contudo, anjos sem Deus e sem mensagem.Já nas primeiras poesias,impressionacomo o limi- tado é impelido à amplidão. Assim, é tambémem "Ophélie". Esta Ofélia nada mais tem a ver com a figura de Shakespeare: flutua rio abaixo, mas um espaçoulterior abre-sea seu redor, com astros de ouro dos quais vem um canto misterioso,com ventos que sopram de montes longínquos, com a voz ronque- jante dos mares,com o temor ante o infinito. Ela mesmaé ele- vada a uma figura perpétua;há mais de mil anos flutua no rio, há mais de mil anos sua canção canta a loucura daqueles a quem as "grandes visões" estrangulavama palavra. Esta elevaçãoda proximidadepor meio da amplidão atra- vessa toda a obra de Rimbaud, como um esquemadinâmico. Sucede cada vez mais rápido, muitas vezes numa só frase. A excitaçãotorna-seditirâmbica. "Estendi cordas de torre a torre, guirlandas de janela a janela, correntes de ouro de estrela a estrela, e eu danço." (p. 178). É a dança insensatados que não têm meta, como já no final dos "Les sept vieillarcls", de 71 Baudelaire. Por fim, a amplidão não mais eleva e sim destrói. A poesia em prosa "Nocturne vulgaire" (p. 187), começacom as palavras: "Uma tempestadeabre brechasnas paredes.. , dis- persa os limites das moradias". Podem-se ver, nestas linhas, palavrasprogramáticasda poesiarimbaudiana.A própria poesia as realiza com imagens fragmentadas,tiradas de todas as ca- madasespaciaise repete,no final, como um estribilho, as pala- vras do início. O ilimitado caótico não é represadopela forma relativamentebreve desta poesia em prosa. O final de textos deste tipo poderia, do mesmo modo, vir antesou depois. Uma poesia de sentido obscuro da fase tardia, "Larme" (p. 125), apresentaenigmasque não podem ser decifradosnem através do título, totalmentesem relação com o conteúdo da poesia, nem através dos conteúdosisolados. Como quase sem- pre na lírica moderna, a partir de então,tambémaqui convém interpretara poesia a partir do desenrolarde sua ação em vez das imagenssuscitadas.Um homem bebe, sentado à beira de um rio. Aquilo que bebe causa-lherepugnância.Esta é a nota inicial. N\l.m ponto assimétricoocorre um embate: a tempesta- de transforma o céu; de pronto, surgem lugares negros, lagos, estacas,colunas sob a noite azul, estações;massasde águaaba- tem-sesobre os bosques, pedaços de gelo nos charcos. O que aconteceu?Uma paisagemterrestrelimitada transformou-se,de súbito, numa paisagemdiluvial do céui da qual tambéma terra participa. O texto termina com as palavras delirantes do ébrio - uma conclusãoque não conclui, mas renova o enigmaonde uma coisa era perceptível: o ato que dissolve os limites me- diante a irrupção de amplidõesborrascosas. "Fome" e "sede" estãoentre as palavras mais freqüentes na linguagemde Rimbaud; são as mesmasque outrora usaram a mística e Dante, segundoo modelo bíblico, para designar o anseio sagrado.Mas, em Rimbaud, os trechos correspondentes revelam a tendênciaà insaciabilidade. A conclusãode "Comé- die de Ia Soif" diz o seguinte: "todos os seres,os pombos, a caça, os peixes, as últimas borboletas têm sede - mas quem poderia 'fondre ou fond ce nuage sans guide'" (p. 128). Do mesmoano, 1872, é o poema "Fêtes de Ia faim". Estas festas da fome consistem,contudo, em comer pedras, carvões, ferro, calhau, sob pedaços de ar negro e sob um azul atordoante.A fome nunca saciável,pois o caminhojunto ao azul estávedado, aferra-sena dureza, converte-seem poesia daquilo que oferece resistência,em "festa" do furor obscuro que sabe ser um mal. "A sededoentia obscureceminhas veias" ("Chanson de Ia plus haute tour", p. 131). 72 •••• t", 1'1. ':--, J. "Le bateauivre" Vamos falar agorada mais famosapoesiade Rimbaud, "Le bateau ivre" (1871). Ele a escreveusem conheceros mares e países exóticos que nela resplandecem.Supôs-seque ele havia sido incitado a tais imagenspor revistas ilustradas. Pode ser verdade, mas o fato serve apenas para confirmar o que se pode deduzir da própria poesia. Esta não tem nada a ver com qualquer realidade. Uma fantasia potente e violenta cria uma visão febril de espaçosdilatados,turbulentos,totalmenteirreais. A pesquisa costumaapontar vagas lembrançasisoladas de ou- tros poetas. Todavia estas reminiscências- que, aliás, são reelaborações- não podem ocultar o fato de que a poesia tem um centro energéticointeiramenteseu. Ela foi comparada com "Plein ciel" (em La LégendedesSiecles):tanto aqui como lá, apareceum navio que se choca contra o céu. Mas em Victor Hugo, as massasde imagensestãoa serviço de um pathastrivial do progressoe da felicidade. "Le bateauivre" desemboca,ao in- vés, na liberdade destrutiva de um solitário e náufrago. Para a tessitura de ação desta poesia não existe outro modelo que o próprio Rimbaud. É uma sobrelevaçãoextrema,conseqüente, daquela elevaçãoque já atua em "Ophélie", do limitado me- diante o infinito. O protagonistada narrativa é um navio. Não estáexpresso mas, de forma inequívoca, os acontecimentosdenotam,ao mes- mo tempo, os acontecimentosdo sujeito poético. As imagens possuemuma potência tão veementeque a equivalênciasimbó- lica entre navio e homem mostra-seapenasno curso dinâmico de todo o conjunto. As próprias imagenssuscitadassão parti- cularidades visíveis, agudamenteindicadas. Quanto mais estra- nhas e irreais se tornam as imagens,tanto mais sensível é sua linguagem.Favorece este fato a técnica poética de construir o texto exclusivamentecom metáforasabsolutas, falando só do navio, nunca do eu simbolizado. O fato de Banville, para quem Rimbaud havia lido a poesia, censurar que, infelizmente, ela não começassecom as palavras: "Eu sou um navio que... ", demonstra o quanto este procedimentopareceu ousado. Ban- ville não compreendeuque a metáfora aqui já não é apenas uma figura de comparação,mas cria uma identidade.A metá- fora absolutapermaneceráum meio estilístico dominanteda lí- rica posterior.Em Rimbaud, correspondea um traço fundamen- tal de sua poesia que será tratadomais adiante sob o título de "irrealidade sensível". 73 "te bateauivre" éum atoúnico deexpansão.Pausasoca- sionaissão inseridas,depoisdas quais a expansãorecomeça, comveemênciarenovada,paraconduzir,em algunstrechos,a uma explosãocaótica.O processonarrativocomeçaprimeiro com certacalma,o navio apenasflutua rio abaixo.Mas até estacalmaeraprecedidapor um embate:o navionãosepreo- cupacom suatripulação,assassinadaà margemdo rio. Então, deimproviso,tudosedesfaz.O flutuarsegundoa correntetrans- forma-seemumadançadonavioquesedespedaçaemtempesta- dese mares,passandopor todasasterras:umadançaemnoites verdes,entreputrefações,entreperigos,sinaisdemortee "fosfo- rescênciacantante",arremessadoao alto,ao étersempássaros, abrindobrechasno céu avermelhadocomoum muro - até sobrevira reviravolta,a saudadeda Europa.Mas a saudadejá não conduza pátriaalguma.O navioevocaum breveidílio, o de umacriançaque,no perfumedo entardecer,brincaperto deumapoça.Mas issoé um sonhoquenãoconsola,porqueo navio sabeestarviciadopara a mesquinhezda Europa,pois respiroua amplidãodos marese dos arquipélagosde estrelas. Comona tranqüilidadedo início o embatehaviasido absorvi- do, na tranqüilidadeentedianteda conclusão,a expansãoani- quiladoradasestrofesprecedentesé absorvida.:É a tranqüilidade do nãopodermais,do naufrágiono infinito,comotambémda inaptidãoparao queé limitado. A poesiaapresentaumaltoníveldecorreçãotécnico-estilís- tica.Além disso,possuiumaestruturasimplesde períodoque confereao quefoi expressoumatransparênciaformal.A explo- sãoocorrenãona sintaxe,masnasrepresentações.Ou melhor, o efeitoda explosãoé tantomais violentoporquantose acha em desarmoniaformalcom as ligaçõesentreos váriosperío- dos. As representações,em si, são protuberânciasda fantasia que,nãosódeestrofea estrofe,mastambémdeversoa versoe, àsvezes,atémesmodentrodeummesmoverso,acrescentamao longíquoe selvagemmaiorselvageriae distância.As imagens são incoerentesentresi. Nenhumaderivanecessariamenteda outra,de modoquedelasresultaumaarbitrariedadequeper.· mitiriatrocarestrofesinteirasentresi. Comoagravante,acresce o fato de que os complexosde imagensisoladasnascemda misturadas coisasmais opostas,da combinaçãodaquiloque, objetivamente,é inconciliável,do belo com o repugnante,do sórdidocomo extático,mastambémdeumempregosingularde expressõestécnicas,preponderantementenáuticas.Num quadro sintático,aindanão abalado,fermentao caos. E, todavia,tambémestecaostemsuaarticulação.De novo, as direçõesda açãosãomaisimportantesqueos conteúdossus- 74 'J t, J I _;,. (~, citados.A dinâmicada poesiapermiteà imagensa manifes- taçãoarbitráriae incoerente,pois sãoapenassustentáculosdos movimentosautônomos.Estesprocedemclaramenteemtrêsatos: I,repulsae revolta,fugaparao superdimensional,mergulhona .' tranqüilidadedo aniquilamento.Estestrêsatos constituema tessiturada ação,não só de "Le bateauivre", masde todaa poesiadeRimbaud.Em muitosparticulares,o caosdo conteúdo já nãoseprestaà interpretação.Mas tal lírica torna-seinterpre- távelquandosepenetrana tessituradesuaação.Por conseguin- te, é lógicoque tal lírica se tornecadavez maisabstrata.O conceitodo abstrato,assimcomoé usadoaqui,não se limita à significaçãodo não visível,não concreto.Deveantesdesig- nar aquelesversos,gruposde versos,frasesque,bastando-sea si mesmos,representemdinamismoslingüísticospuros e, por meio destes,destruamaté à incompreensibilidade,ou não to- lerem,de modoalgum,um possívelvínculo de realidadedos conteúdos.Deve-seter presenteestefato ao analisargrande parteda lírica moderna,sobretudodaquelaqueestáaparenta- da como tipo da lírica de Rimbaud. Nestepoetaa tríplicetessiturada açãorepresentaseure- lacionamentotantocoma realidadecomocoma transcendência: deformaçãoda realidade,ímpetoà amplidão,final na ruína pois a realidadeé restritademais,a transcendência,vazia de- mais.Umperíodoem prosaresumeo que acabamosde dizer numa cadeiade conceitos:"mistériosreligiososou naturais, morte,nascimento,futuro,passado,cosmogonia,Nada"(p.213). No elo final estáo Nada. Realidadedestruída Não sequererá,certamente,avaliarpoesiaalguma,e mui- to menosa lírica,pelamedidaemqueseusconteúdosde ima- gem,referidosà realidadeexterior,sãoaindaexatose comple- tos.A poesiasempretevea liberdadede deslocar,reordenaro real, reduzindo-oa alusões,expandindo-odemoniacamente,fa- zendo-omeio de uma interioridade,símbolode uma ampla condiçãode vida.Pode-seestimaratéquepontoestastransfor- maçõeslevamem consideraçãoas relaçõesobjetivamenteexis- tentes,atéqueponto,mesmosendoinvençãopoética,continuam a ser relaçõespossíveisdo mundoreal e permanecemno qua- dro daquelasforçasimaginativasmetafóricasque,desdeo iní- cio, sãoinerentesa todasas línguase são,portanto,compreen- 75 síveis. Desde Rimbaud, a lírica não cuida de tais considerações a não ser em proporções cada vez menores.Ela se preocupa sempre menos com a relação das partes do discurso entre si e de sua ordem de valor no próprio discurso. Tanto mais ne- cessárioé, portanto, para o crítico, tomar a realidade heuristi- camente para confronto; pois só então se poderá avaliar a extensãoda destruiçãoda realidade que agora se sucede,assim como a violência da ruptura do velho estilo metafórico. Em sua última poesia,Rimbaud faz falar o amigoVerlaine: "Quantas noites velei junto a seu corpo dormentepara sondar por que ele (Rimbaud) queria tanto se evadir do real" (p. 216). Nas palavras fictícias de Verlaine, fala o próprio Rimbaud. Ele mesmonão consegueinterpretar os motivos de sua evasão. Mas sua obra mostra-nosuma correspondênciacompletamente clara entre a atitudepara com a realidadee a paixão pelo "des- conhecido". Este desconhecidojá não pode ser saciacb pela fé, pela filosofia ou pelo mito, é - de forma mais intensa ainda que em Baudelaire - pólo de uma tensãoque, porque o pólo está vazio, rechaça a realidade. A partir do momento em que esta é vivenciada na sua insuficiência frente à transcendência - mesmosevazia -, a paixãopela transcendênchtorna-seuma destruiçãocega da realidade. Esta realidade destruída constitui agora o sinal caótico da insuficiência do real em geral, como também da inacessibilidadedo "desconhecido". Eis o que se pode chamarde dialética da modernidade.Ela determinaa poe- sia e a arte européiamuito além de Rimbaud. "Para mim, um quadro é a somadas destruições",dirá mais tardePablo Picasso. Recorde-sea frase de Baudelairesegundoa qual o ato ini- cial da fantasia é uma "decomposição". Esta decomposiçãoa cujo âmbito conceitual,já em Baudelaire,pertencea "deforma- ção", tornou-se,com Rimbaud, o efetivo procedimentoda poe- sia. Na medida em que se pode dizer que ainda existerealidade (ou que podemosmedir heuristica::nentea poesia com base na realidade), esta é objeto de expansão, desmembramento,afea- mento, tensõesem contraste,a tal ponto que semprevem a ser uma passagemao irreal. Entre os elementosprimordiais no mun- do concretode Rimbaud figuram a águae o vento. Ainda con- tidos nas primeiras poesias,elevam-semais tarde a estrondose tormentas,a potênciasdiluviais, sob as quais as ordens, tanto de tempo como de espaço,se despedaçam,"planura, desertos, horizontes tornam-sevestesdas tempestades"(p. 124). Toman- do-se em conjunto os objetos e os seresque emergemem suas poesias, vê-se com quanta inquietude o poeta se estende.por todas as amplitudes,alturas e profundezas,como não se detém em parte alguma, transformandoo familiar em estranho (o que 76 r, I J I I acontece,na maior parte das vezes, porque não o vincula a qualquer circunstânciaespacialou temporal): estradasdo cam- po, vagabundos,prostitutas,ébrios, tabernas,mas tambémbos- ques, estrelas, anjos, crianças e depois, de novo, crateras de vulcão, armaçõesde aço, geleiras, mesquitas ou o mundo do circo e das barracas,do qual diz que é "o paraíso dos trejeitos raivosos" (p. 172). Intensidade do feio Estas realidadesjá não estãocoordenadaspor um sistema em que uma coisa, um país ou um ser serviria de medida a outras realidades.São apenas traços de calor de uma intensi- dade febril. Sua representaçãonão tem nada em comum com qualquer realismo. Por intensidade,deve-setambémentendera fealdade que Rimbaud imprime ao que resta de real em seus textos e, certamente,deve-setambém entender a beleza. Há, em conjunto, trechos "belos", em Rimbaud, belos pelas ima- gens, ou, então pelo canto da linguagem.Todavia, o fato de- cisivo é que estestrechos não estão isolados mas, sim, muito próximos de outros "feios". Belo e feio já não são valores opostos, mas digressõesde estímulos.Sua diferença objetiva é eliminada, como a diferençaentreverdadeiroe falso. A estreita aproximaçãodo belo e do feio produz aquela dinâmica de con- traste, que é o que importa. Porém esta deve tambémsurgir a partir do próprio feio. Na poesia precedente,a fealdadeera preponderantemente o sinal burlesco ou polêmico para indicar a inferioridade mo- ral. Pense-seno Tersites da Ilíada, no Inferno de Dante, na poesia t'alacianada alta Idade Média que revestiade fealdade os homens não cortesãos.O demônio era feio. Já na segunda metade do século XVIII, depois em Novalis, mais tarde em Baudelaire, o feio torna-seadmissívelcomo algo "interessante" e vem ao encontro de uma vontade artística que se serve da intensidade e da expressividade.Com Rimbaud, ele recebe, então, a tarefa de Eervir a uma energiasensitiva que impele à mais violenta deformaçãodo real sensível.Uma poesia que to- ma por metanos seus objetosmenosos conteúdosque as rela- ções de tensãosobre-objetivanecessitatambémdo feio porque este,como provocaçãoao sentimentonatural da beleza,produz aquela dramaticidade chocante que se deve estabelecerentre texto eleitor. 77 Em 1871, escreveua poesia "Les assistI-- "Os sentados". Segundo uma informação dada por Verlaine, esta poesia deve referir-sea um bibliotecário comunal de Charleville, com quem Rimbaud havia se agastado.Pode ser, mas pouco ajuda à com- preensãoda poesia. Com uma linguagemtoda salpicada de ter- mos anatõmicos,de neologismose de palavras de gíria, o poe- ma cria um mito da mais monstruosa fealdade. Não fala de um bibliotecário, nem de bibliotecários, tampouco de livros. Fala de uma horda de anciões embrutecidos,encolhidos, mal- dosos. De início, nem sequer fala deles, mas de detalhes macabros:tumoresnegros,cicatrizes de varíola, olhos rodeados de verde, dedos ceráceosque coçam fêmures, "rabugices con- fusas" sobre a face anterior do crânio semelhanteà florescência leprosa nos muros velhos. Só em seguidaaparecemas figuras: armaçõesbizarras de ossos,escarranchados,em desejoepilético, nos esqueletosdas cadeiras;seuspés entrelaçam-seàs raquíticas varas dos assentos,da manhã à noite, sempree para sempre; sóis ardentesrequeimamsua pele, os olhos vão à janela, "onde a neve esmorece"; na palha das cadeiras chamejamsufocados os sóis antigos,sob cujo calor, outrora, levedavao trigo; os joe- lhos contra os dentes,assim encolhem-seos "pianistas verdes"; com dez dedos, tamborilam sob os assentos,suas cabeçasvaci- lam no balanço amorosode sua fantasiasenil. Chamando-os,res- mungam como gatos esbofeteados,abrem pouco a pouco suas omoplatas, pés tortos aproximam-se,arrastando-se,os crânios calvos tropeçamnas paredescinzentas,os botões de suas casa- cas ferem o olhar até na escuridãodos corredores,de seu olhar mortal filtra o venenode cãesespancados.Sentando-sede novo, afundamseuspunhosnasmangassujas; sob o queixo ressequido, tremeo cacho dos gânglios;sonhamcom cadeirasmais bonitas; flores de tinta embalamseu sonho, cuspindo sêmensem forma de vírgula. Esta fealdadenão é copiada da realidade,mas é produzida por esta. Seres plurais de toda a parte e de sempre; não ho- mens, mas esqueletos,formam um todo com as coisas, e tam- bém as coisas são as companheirasdaquelesquese agacham sobre elas; e além de tudo, °ser mau, impotente,e a condição crepuscularda sensualidadesenil. Tudo isto é dito com escár- nio subterrâneooculto nos versos que quasecantam: o todo é uma dissonânciaentre melodia e imagem.Também os restosdo "belo", que aí estão inseridos, servem à dissonância ou são eles mesmos dissonantes,vinculando potências líricas primor- diais ao banal: "flores de tinta", "sêmens de vírgula", tendo esta última expressão,em seguida, embelezadapela compara- ção com o võo de libélulas sobre gladíolos. O papel do feio é claro. Querendo-secompará-Io com a feiura, por assim dizer, 78 .~ .> I J I normal, tomar-se-iaevidenteque esta fealdade poética deforma também o feio real, assim como deforma tudo aquilo que é real para, no desmantelamento,tomar perceptível aquela eva- são ao suprarreal,que é, todavia, uma evasãoao vazio. Doze anos antes, Baudelaire havia composto "Les sept vieil lards". Também nestepoema se fala da fealdade dos ho- mens e das coisas.Mas estafealdadetem uma orientaçãomúlti- pla. Cena e ação desenvolvem-senuma sucessãoprecisa; pri- meiro, a cidade pululante, depois,a calma da rua do subúrbio, a indicação de tempo (madrugada);apareceum ancião, repre- sentado,com precisão, de corpo inteiro, e logo outro, até que, por fim, são sete. O eu lírico respondecom reaçõesprecisas: horror, arrepio, e logo, para terminar, um juízo. O feio existe em toda a sua agudezasensível,embora moderadoem si pró- prio e, sobretudo,coordenadoa espaço,tempo e afeto. Um dos anciõesé comparadoa Judas, o que tambémé uma orientação. Conquanto o texto se refira a uma figura conhecida, toma-se possível um retorno ao habitual, assim como as excitaçõesdo sujeito trazemuma espéciede calor ao espetáculohorrendo,pois elas, não obstantetodo o tormento,sãoexcitaçõeshumanas.Tais orientaçõesfaltam, completamente,em Rimbaud. Seus anciões só aparecemcomo grupo coletivo e o grupo constade detalhes anatõmicose patológicos,não de figuras. Só há algunsresquícios de espaço;o tempoé um "sempre". f: significativoque Rimbaud não tenha mencionadoem sua poesia,semsequerde forma alu- siva, aquelemotivo real, citado por Verlaine (bibliotecade Char- leville); teria introduzido demasiadaorientaçãopara o real. O excessode fealdadeproduzido não é refreado por nenhum ele- mento familiar que ainda seria possível mesmono horrível. A vontade deformantedo lírico moderno impeliu aquele excesso a um ponto desvinculadode tudo. Irrealidade sensível Mas tomar a realidade como medida dos conteúdos das imagensde Rimbaud só pode ter um valor heurístico.Tão logo a observaçãopenetre mais profundamente,deve-sereconhecer que conceitoscomo "real" ou "irreal" já não satisfazem.Outro conceitoparecemais apropriado: o de irrealidade sensível.Com este termo entendemoso que vem a seguir. A substânciada realidade deformada fala muito amiúde por meio de grupos 79 depalavras,dosquaiscadaparteintegrantetemumaqualidade sensível2• Todavia,tais gruposreúnemaquiloque é objetiva- menteinconciliávelde um modotão anormalque,das quali- dadessensíveis,resultaumaimagemirreal.Trata-sesemprede imagensque se podemcontemplar,massãode tal formaque o olho humanonuncapoderiaencontrá-Ias.Superamde longe aquelaliberdadeque semprefoi possívelà poesia,graçasàs forçasmetafóricasfundamentaisda língua."O biscoitoda es- trada"; "o rei, de pé, sobresuabarriga";"mucoazul": estas imagenspodem,semdúvida,expressar,às vezes,as qualidades existentesnas própriasrealidadescom eficáciamais cortante, porémnãotendemaoreal:seguemumadinâmicadestrutivaque - em substituiçãoao "desconhecido"invisível- converteo realemum desconhecidosensivelmenteexcitadoe excitante,re- movendoos limitesde suasfiguras,forçandoseusextremosa seunirem.Mudar a ordemreal e, todavia,permanecerno sen- sível é um procedimentotambémda poesiaantiga.Às vezes, aindahá,emRimbaud,exemplosmoderadosdeste.Umabandei- ra vermelhaé chamada"bandeirade carnesangrenta".O mo- tivo real destaimagem,a cor vermelha,nãovem nomeada;a linguagemassociaimediatamentea metáfora(característicapor sua inclinaçãoà crueza)à coisa.Mas, em tais casos,apenas se retransformouem germeaquilo quena maioriados outros casosestá plenamentedesenvolvidoe convertea irrealidade sensívelde Rimbaudemcenaverdadeirae própriade suadra- máticade choque. "Floresde carnequese abremem bosquesde estrelas"; "poesiaspastorais,calçadasdemadeira,resmungam.no jardim", "imundíciedas cidades,vermelhae negracomoum espelho, quandoa lâmpadagira no quartocontíguo":todosestessão, certamente,elementosdo sensivelmentereal, mas elevadosa uma super-realidademediantecontração,omissão,deslocação e recombinação.Justamenteassim,a novaimagemnãofaz vol- 'tar à realidade,masobrigao olhar a dirigir-seao próprioato criadopor ela. É o ato de uma fantasiaditatorial.Com este conceito,que designao impactoda poesiade Rimbaud,torna- se supérfluomedir,comode hábito,os textospelarealidadeà qualse recorresó por razõesheurísticas.Estamosnummundo cuja realidadeexistesó na língua. 2. Confronte-secomestaumaobservaçãode H. v. Hofmannsthal que se referea Novalis: "As frasespoéticasmaismaravilhosassão aquelasquedescrevemcomgrandeclarezae exatidãofísicas,o queé fisicamenteimpossível;sãoverdadeirascriaçõesdaspalavras"(Aujzej. chnungen,1959,p. 183). 80 Fantasia ditatorial A fantasiaditatorialnãoprocedeobservandoe descreven- do, mais sim com uma liberdadeilimitadamentecriativa. O mundoreal se rompesob a imposiçãode um sujeitoque não quer receberseusconteúdosmas,sim,querimporsuacriação. Do períodoparisiense,chegou-nosumaexpressãooral de Rim- baud: "Temosde arrancarà pinturaseuhábitoantigode co- piar, para fazê-Iasoberana.Em vez de reproduziros objetos, eladeveforçarexcitaçõesmedianteaslinhas,ascoreSe os con- tornoscolhidosdo mundoexterior,porémsimplificadose do- minados:umaverdadeiramagia."Recorreu-sea estaexpressão para tornarcompreensívela pinturado séculoXX (Catálogo da exposiçãoparisiensede Picasso,1955):atitudeestaperfei- tamentejustificadapois, de fato, estaexpressão,assimcomo as poesiasde Rimbaud,antecipaa pinturamoderna,quenão podeserinterpretadaa partirdo concretoe objetivo.A liberda- de absolutado sujeitoquerser consideradapor si mesma.Po- de-sereconhecer,semdificuldade,emquemedidaas reflexões deBaudelairesobrea fantasia,apesarde aindaligadasà teoria, tinham preparadoa práticapoéticae artística,estendendo-se pelo séculoXX adentro. Rousseau,Poe, Baudelairefalaramda "fantasiacriativa", masde modoque a importânciadestaexpressãoresidisseem sua"capacidadecriativa".É significativoqueRimbauddinami- ze agoraestaexpressãotambémem seu substantivo.Fala do "impulsocriativo",numafrasequeé comoum resumode sua estética:"Tua memóriae teussentidosdevemser apenasali- mentode teu impulsocriativo.Mas o mundo,quandoum dia o tiveresdeixado,que serádele?Certo é: nadaterá, então, de sua aparênciaat1.1al"(p. 200). O impulsoartísticodeixa comolegadoumavisãodesfigurada,insólitado mundo.e um ato de violência.Uma das palavras-chavedos textosrimbau- dianosé "atroz" (atroce). A fantasiaditatorialinvertea ordemdo espaço.Alguns exemplos:cochescruzamo céu; há um salão,na profundeza de um lago; o mar paira acimados maiselevadoscumesda montanha;trilhos de trenscorrematravésde um hotele em cima dele.Mas a fantasiainvertetambéma relaçãonormal entrehomeme coisa:"O notáriopendeda correntede seure- lógio" (p. 59). Obrigaas coisasmaisdistantesa seunirem,o sensorialcomo imaginário:"aflito atéà mortepelomurmúrio do leitedamanhã,danoitedoúltimo.século"(p. 163).Introduz 81 coresirreais,istoé,coresquenãopertencemàscoisas,masque as tornammaisestranhas,paraefetivaraqueledesejobaudelai- riano: agriõesazuis, éguaazul, pianistasverdes,riso verde, azul verde,luas negras.Penetrandona amplidão,a fantasia pluralizacoisasquesó existemno singular:os :Êtnas,as Flóri- das,os Malstroms.Destamaneirase intensificame, ao mesmo tempo,subtraem-seao real. A esteprocedimentocorrespondeoutratendênciade Rimbaud,a de isentaro individualde toda limitaçãolocal,ou dequalqueroutraíndole,mediantea expres- sãogeneralizante"todos": "todosos homicídiose todasas ba- talhas";"todasas neves".O usode pluraise destasgeneraliza- çõesé um meiopotentedestafantasiaqueserevolve,comam- basas mãos,no real,deita-ofora, modelando-oa novassuper- realidades. ComoemBaudelaire,as visõesde sonhosevalemdo inor- gânicoparaseenrijecereme escaparemno desconhecido."Nas horas de amargura,imagino-mebolas de safira, de metal" (p. 170).Uma daspoesiasem prosamaisperfeitas,chama-se "Fleurs"(p. 186).Seusperíodosavançamcomoondas,produzin- do umatensãoque,emborase dissolvano final, não permite penetrarem seu significado.Os movimentosdas imagenssão curvaspurasda fantasiae da linguagemabsoluta.O inorgânico redundajustamenteem favor destascomosinal de irrealidade e - nestepoema- deumabelezamágica:"degraudourado", "veludoverde","discosde cristalque enegrecemcomobronze ao sol"; uma dedaleiraabre-sesobreum "tapetede filigranas deprata,de olhose cabelos";"pedaçosdeourosemeadossobre ágata,pilaresde mognoquesustentamumacatedralde esme- raldas,varetasdelgadasde rubi". Nesteambiente,a rosae as rosasadquiremumairrealidadedura e seharmonizam,empa- rentescosecreto,como tóxicoda dedaleira,porque,no profun- do destafantasia,a belezamágicae o aniquilamentoconstituem um todoúnico. Plantastóxicase rosas,emoutrostrechos,imundíciee ouro são,porassimdizer,a fórmulafiguradaparaindicarasdissonân- ciasquetal fantasiaconferea seusprodutos.Agudasdissonân- ciasléxicassãotambémfreqüentes,ou seja,gruposde palavras que concentramas coisasou valoresheterogêneas,no espaço lingüísticomaisbreve:um sol ébrio de alcatrão;umamanhã de julho com sabor de cinzasinvernais;palmeirasde cobre; sonhos"comoexcrementodepombas".Aquilo quepoderiadar a impressãodeusual,agradável,é reduzidoabofetadas,namaio- 82 r /;I f.' ' .," ria dasvezesno fim do texto,mediantea introduçãode uma palavrabrutalou vulgar.A vontadedestaartepoéticanão é concluir,masromper.Deve-sereparartambémna dissonância entreo mododeexpressare o queestáexpresso.Rimbaudcan- ta com o tom de uma cançãopopularuma de suas poesias maisobscuras("ChansondeIa plushautetour"). Outrapoesia, "Les chercheusesde poux", transformaa imundície,o calor sufocantedo instinto,o rito deprocurarpiolhos,na maispura vibraçãolingüística.Caose absurdoaparecememconcisãosó- bria, os opostosapresentam-seem ordemindiferente,semum "mas",um "porém",um "todavia". Les lIIuminations Partindodestaspremissas,pode-seexplicarcompropriedade Les Illuminations.Comsignificativaplurivalência,o títuloquer dizer tanto"miniaturas"como"iluminações".:Ê impossívelar- ticularestaobrasegundoo conteúdo.Imagense acontecimentos enigmáticossucedem-se.Na linguagem,alternam-seebriedadee durasinterrupções,repetiçõesinsistentesatéà monotoniae ca- deiasde palavrasnão fundamentadas.Raramente,o título de umapeçaé útil à suacompreensão.A temáticafragmentadaos- cila entreumolharparatráse umolharparafrente,entreódio e transfiguração,entreprofeciae renúncia.Excitaçõesse disse- minampor um espaçoquevai dasestrelasaostúmulose queé povoadoporfigurassemnomes,assassinose anjos.O Epiro,'Ja- pão, Arábia, Cartago,Brooklynencontram-seem umamesma cena.Ao contrário,as coisasquena realidadeestavamrelacio- nadas,separam-seaté perderemtodo contato(por ex. "Pro- montoire",p. 191).A dramaticidadedaspeçasconsisteemfrag- mentaro mundoparaquea desordemsetornea epifaniasensí- vel do mistérioinvisível.O começode um textojá partetão longeda idéiaou do objetoqueo impulsionoude modoa ad- quirir imediatamenteo caráterdeumfragmento,deumestilha- ço chegadoaténósdeoutromundo,por acaso.Às vezes,narra- se algumfato, comoem "Conte" (p. 170). Um príncipe- qual?- matamulheresqueo conhecerame elasretornam.O príncipemataseushomense eleso seguem."Comoalguémpode seextasiarantea destruição,rejuvenescer-secoma crueldade?" Um gêniode belezasobre-humanaencontrao príncipee am- 83 bos morrem."Mas o príncipeexpirouem seu palácioe na idadenormal."O matare morreremêxtasenãoé possível;os assassinadosvivem,aquelequemorreucomo gêniotem,mais tarde,suamortenormal.Talvez o sentidosejao de que até mesmoa destruiçãofracassa,atémesmoela conduzao trivial. Todavia,o maisestranhodesta"fábula"é queexprimeo absur- do com os meiosda exatidãonarrativamesmosabendoque tampoucoestebasta."A músicasábiafalta ao nossoanseio", diz, comoum fendente,o final. Les Illuminationssão um textoque não pensano leitor. Não pretendemsercompreendidas.Sãoumatempestadede de- safogosalucinantese pensamem despertarao mâximoaquele temordo perigo,do qualnasceo amorpor ele.Sãotambémum textosemeu,poiso eu queemergeemalgunstrechosé aquele euartificiale estranhoquehaviasidoesboçadonasLettresd'un voyant.De toda forma,Les Illuminationsconfirmamque seu poeta- comodiz um dosnossos- é um "inventordemérito completamentediversodetodosospredecessores"(p. 174).Estas poesiassãoo primeirograndemonumentoda fantasiamoderna tornadaabsoluta. Técnica da fusão A poesia"Marine" talvezpertençaàs Illuminations;edi- çõesrecentesincluíram-nanestaobra (p. 188).A poesiaé do anode 1872e é, na França,o primeiroexemplodeversocom- pletamentelivre: dezversosde metrodistinto;semrima, sem sucessãoregularde rimasmasculinase femininas.O abandono da métricarigorosafoi, na França(e o é aindahoje),maisno- tadoqueem outrospaísese tambémum sintoma(maisforte- mentesentido)da anormalidadena composiçãopoética.Rim- baudadaptou,tambémà suafantasiadesarticuladaa linguagem formal.Ele a transformaem imagensversificadasassimétricas quemuitoseaproximamdesuaprosalírica.Dá umpassoenér- gico, tambémno aspectoformal,maisalémde Baudelaire.A partirde "Marine",o versolivre dominacadavezmaisna líri- ca francesamoderna.G. Kahn,Apollinaire,M. Jacob, H. Rég- nier,P. EIuardserãoseusvirtuosesno séculoXX. O versolivre torna-seo indício formalpróprio daqueletipo lírico que - conscienteou inconscientemente- segueo exemplode Rim- baud.Eis o textodo poema: 84 .•.. .., r' 1 •... Marine Les charsd'argentet de cuivre- Les prouesd'acieret d'argent- Battentl'écume,- Soulêventles souchesdesronces. 5 Les courantsde Ia lande, Et les orniêresimmensesdu reflux, Filent circulairementvers l'est, Vers lespiliersde Ia fôret,- Vers les fUtsde Ia jetée, 10 Dontl'angleestheurtépardestourbillons [de lumiere. Marinha Carrosdepratae cobre- Proasde açoe prata- Golpeiama espuma,- Erguemtouceirasdesarças. As correntesda charneca, E os sulcosimensosdo refluxo, Corremcircularmenteparao leste, Para os pilaresda floresta,- Para os fustesdo dique, Cujoânguloébatidoporturbilhõesdeluz. A poesiaapresentaum duplo contraste:primeiro,entre a desarticulaçãométricae o mododeexpressar-sebemarticula- do, tranqüilo;e, depois,entreestee a ousadiaextraordinária do conteúdo. Com umaatitudecomedidao poemavai alinhandoverso apósverso.Só em dois trechoselesestãoligadosentresi, me- diantepartículasconjuntivas,aliáscompletamenteinsignifican- tes(v. 6 e 10).~ exatamenteestarenúnciaaosmeiosde cone-, xãoqueelevaa poesiaacimada simplesprosa,tornando-amis- teriosa- sobriedademágica- numalinguagemsóbria,sem o eu. Os versosnão sãoapenasum isolamentotipográficode articulaçõesda frase que tambémem prosaexigiamcesuras. Antes,tal isolamentoconfereumaintensidadeelevadaaosgru- pos de palavrasdestesversoslivrese, ao ritmo,um paralelis- moqueo aproximaà Bíblia,A istoseacrescequeo vocabulário 85 é preponderantementenominal.Os poucosverboscedemlugar aosobjetoscujovalorfigurativopassaa ser,agora,maisimpor- tantequeseumovimento.E, todavia,ocorrealgode subversor, algo provenientedo mundoque estáà disposiçãoda fantasia irreal.A poesia"Marine" começacomum versoquenão con- diz como título: "carrosdepratae decobre".A segundalinha é maisadequada:"proasde açoe de prata".Ambos,tantoos carroscomoas proas,"golpeiama espuma,erguemtouceiras de sarças".Além disso,fala-sedas
Compartilhar