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BONIFÁCIO FERREIRA COLATINO RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS NOS CASOS DE DANOS AMBIENTAIS MACEIÓ-AL 2013 RESUMO Crimes econômicos e ambientais na nossa sociedade, com a crescente participação das empresas para a sua eficácia, o crescimento econômico, a globalização, implicam uma desnacionalização real, e especialmente a despersonalização dos fenômenos relacionados levaram a uma discussão mundiall sobre a necessidade de sua responsabilidade penal. Este artigo mostra a responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica de direito privado, mostrando uma apreciação de sua aplicabilidade no nosso sistema jurídico. Avaliando a responsabilidade penal ambiental das pessoas jurídicas , tal como previsto pelo Legislador Constitucional como instrumento de controle da qualidade ambiental em casos de grave ameaça ao meio ambiente, a partir de uma análise da evolução do Direito Ambiental brasileiro desde o seu início até os tempos modernos, a análise da evolução constitucional e legislativa sobre a proteção ambiental e a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, com a demonstração do papel do Direito Penal ambiental como ferramenta para combater a degradação ambiental por meio de repressão e prevenção, apresentando as atuais questões doutrinárias sobre o assunto em questão. Palavras-chave: responsabilidade penal, crimes ambientais, pessoa jurídica. ABSTRAT Economic and environmental crimes in our society, the growing participation of companies for their effectiveness, economic growth, globalization, imply a real denationalization, and especially the depersonalization of the phenomena related worldwide led to a discussion about the need for criminal responsibility. This article shows the environmental criminal liability of the legal entity of private law, showing an appreciation of its applicability in our legal system. Evaluating the environmental criminal liability of legal persons , as provided for by Constitutional Legislator as an instrument of environmental quality control in cases of serious threat to the environment , from an analysis of the evolution of the Brazilian Environmental Law from its inception to modern times the analysis of the constitutional and legislative developments on environmental protection and preservation of an ecologically balanced environment , with the demonstration of the role of environmental criminal law as a tool to fight environmental degradation through suppression and prevention, presenting the current doctrinal issues about the subject matter. Keywords: criminal liability, environmental crimes, legal entity SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................10 2. METODOLOGIA....................................................................................................12 3. BEM JURÍDICO MEIO AMBIENTE E SUA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL... 13 3.1 CONCEITO DE MEIO AMBIENTE.......................................................................13 3.2 PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO...........14 3.2.1 A Constituição de 1988 aborda o tema Meio Ambiente...............................15 3.2.2 A Constituição de 1988 e a responsabilidade penal do ente coletivo........17 3.2.3 Do Meio Ambiente, Artigo 225 da Constituição Federal..............................18 3.2.4 Princípio da intervenção mínima do direito penal.......................................19 4. PONTOS TEÓRICOS DA RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA.....20 4.1 A RESPONSABILIDADE DIRETA DA PESSOA JURÍDICA................................21 4.2 A RESPONSABILIDADE INDIRETA DA PESSOA JURÍDICA.............................23 4.3 A CONDUTA E A VONTADE DA PESSOA JURÍDICA........................................25 4.4 A CULPABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA......................................................28 5. RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO...........30 5.1 PONTOS CONTRÁRIOS À RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO........31 5.2 PONTOS FAVORÁVEIS À RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO........3.2 6. CONCLUSÃO........................................................................................................36 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................38 5 1. INTRODUÇÃO Ao longo dos últimos anos o estudo do meio ambiente, tem se intensificado e se convertido em alvo de profundas observações, não tão somente pelos operadores do direito, mas pelos operadores das mais diversas ciências. O ambiente mostra-se que cada vez mais é urgente compreendê-lo e preservá-lo, como um conjunto complexo de vida que é. A complexidade do aprendizado do meio ambiente é diretamente proporcional a complexidade de sua realidade, uma vez que, a união dos corpos que a compõem não está unida a um resultado previamente estabelecido. A cada ação pode ter uma reação totalmente diferente daquilo já conhecido. Neste ponto temos o claro entendimento que ao estudarmos o meio ambiente há uma contribuição para a existência de uma convivência pacífica, ainda que difícil, em nosso mundo. Aparece no momento da interação do homem com a natureza, o Direito Ambiental nas suas diversas modalidades. O direito penal, contudo, não pôde ficar fora da relação do meio ambiente com o ser humano, de modo que este mesmo direito penal necessariamente, através de sua evolução enquanto ciência teve que prover socorros jurídicos penais, para a agregação aquele bem, instituindo o Direito Penal Ambiental. Após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, a discussão quanto à probabilidade de responsabilidade da pessoa jurídica no campo de atuação penal recebeu novas adjacências provocando um alongado debate em esfera doutrinária. De um juízo, ambientalistas que reconheceram na norma insculpida no art. 225, § 3º, da Constituição Federal o adiantamento imperativo à consolidação da tutela essencial do meio ambiente. Nesse debate as questões apresentadas são muitas: pertinência da aplicação dos conceitos jurídico-penais de dolo, conduta e culpabilidade à responsabilização penal do ente coletivo, violação ou não ao princípio da individualização da pena, bis in idem, objetivação da responsabilidade penal, penas aplicáveis às pessoas jurídicas, ineficácia da dilatação da proibição estatal e debate com a ideia de direito penal mínimo, dentre outras tantas que regulam a discussão do assunto. 6 Tais modelos exibem a riqueza de detalhes abrangidos no debate quanto à probabilidade de se responsabilizar criminalmente o ente coletivo, o que confirma a dificuldade encontrada no andamento de sua implementação na prática judiciária brasileira e em todo o mundo. Em meio a essa variedade de aspectos que compreendem a responsabilização penal da pessoa jurídica, surge um ponto ainda mais instigante: é aceitável responsabilizar o ente público penalmente? Essa é uma das perguntas que o atual estudo se digna a, ao menos, aventurar-se responder, valendo-se, para tanto, de estudas e trabalhos realizados sobre o tema em esfera nacional e internacional, bem como de alguns experimentos propostos até agora. Assim sendo, o primeiro passo neste trabalho se volta ao exame do meio ambiente como bem jurídico resguardadopelo ordenamento pátrio e probo da tutela penal. Quanto a esse ponto é proeminente ponderar o caminho corrido pelo legislador brasileiro até a concretização do meio ambiente como bem jurídico independente, desvinculado, de certo modo, de outros objetos de tutela pela constituição, a exemplo da vida e saúde humana. Em seguida, expor o tratamento dado pela Constituição de 1988 ao meio ambiente, com destaque à expansão dos meios de salvaguarda desse bem jurídico. A ênfase dada a essa parte do trabalho procura primordialmente retratar a crescente apreensão com os temas ambientais e o imperativo de se aperfeiçoar as ferramentas de amparo e defesa do meio ambiente em face do reconhecimento da impotência atual dos dispositivos que se proporcionam a esse fim. E ainda, o enfoque do meio ambiente como bem jurídico tutelado constitucionalmente admite rebater aos questionamentos que abrangem a compatibilização da criminalização da pessoa jurídica aos princípios penais da obrigação e da fragmentaridade, embasamentos esses empregados por muitos para o não reconhecimento da responsabilidade penal do ente coletivo. Em um segundo andamento, almeja-se abordar os múltiplos exemplos de responsabilização da pessoa jurídica, exibindo como são estruturadas as informações de adequação da responsabilidade penal em cada um deles, de modo a considerar ao final qual se coaduna mais perfeito à nossa realidade normativa. Enfim, passa-se a investigar a probabilidade de responsabilização penal do ente público frente à atual conjuntura do ordenamento pátrio sobre o tema. 7 2. METODOLOGIA Para o desenvolvimento deste trabalho foram utilizadas pesquisas qualitativas com procedimentos e técnicas de revisão para o embasamento teórico do texto e pesquisas de artigos referentes ao tema estudado, realizadas em fontes usando o método histórico, como livros didáticos mais antigos e alguns mais atuais (sendo comparada a historiografia). A metodologia escolhida para trabalhar foi a da pesquisa bibliográfica, abordando a literatura sobre o tema. Elegemos o estudo qualitativo por considerarmos que esta abordagem permite uma aproximação do sujeito com o objeto, e ajuda a descrever e analisar a interação de variáveis envolvidas, compreendendo e classificando as experiências sociais vividas pelos sujeitos. A coleta das informações foi obtida por meio de pesquisas efetuadas dos teóricos mencionados nas referências bibliográficas e foi realizada e construídos em conformidade com as normas da ABNT. 8 3. BEM JURÍDICO MEIO AMBIENTE E SUA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL 3.1 CONCEITO DE MEIO AMBIENTE A discussão sobre a probabilidade de responsabilização penal dos entes morais em delitos contra o meio ambiente compreende, em modo inicial, a concepção concisa do bem jurídico tutelado pela regra incriminadora, de maneira a explicar os embasamentos que autenticam a tipificação do ponto de vista da obrigação de amparo. Nesse sentido, faz-se imperiosa uma precedente apreciação do ajustamento jurídico dado pelo ordenamento pátrio a esse bem de caráter tão peculiar, oferecendo suas principais características e seu alargamento ao longo do tempo. Como ponto de partida, é válida a tradicional lição de José Afonso da Silva ao se referir à aparente redundância no emprego do termo ―meio ambiente‖ nos textos legislativos brasileiros, destacando a maior riqueza de sentido na utilização das duas palavras em conjunto, já que, segundo o renomado constitucionalista, esta composição exprime não só o conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que integram a esfera de convivência social, mas também a interação entre esses elementos (SILVA, 2007, p. 20). Essa primeira concepção já indica o aspecto dinâmico e a complexidade envolvida na definição do bem jurídico ambiental. A Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, define em seu art. 3º, inciso I, meio ambiente como ―o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas‖, restringindo seu conteúdo somente aos recursos naturais, em contrapartida à concepção mais ampla defendida na atualidade, a qual engloba, além da natureza, outros dois aspectos: a) meio ambiente artificial, formado pelas transformações operadas pelo homem no espaço físico em que vive; b) meio ambiente cultural, constituído pelo patrimônio histórico, arqueológico, paisagístico e turístico, ao qual se agrega especial valor (FREITAS, 2006, p.18). 9 3.2 PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO Segundo ARAÚJO (2007), o histórico de alargamento normativo da proteção ao ambiente é usualmente dividido pela doutrina em três fases, partindo-se do período abrangido desde o descobrimento do Brasil no ano de 1500 até quase metade do século XX. Essa primeira etapa é distinguida como fase da exploração ambiental desregrada. (ARAÚJO, 2007, p.61). Em que incida falar-se em carência de assistência normativa, acham-se nas ordenações portuguesas que regeram o país até a promulgação da carta civil de 1916 tratamentos exatos e esparsos sobre assuntos pautados ao meio ambiente, mas sob uma abordagem completamente diferente do intento de amparo desse bem jurídico. Como exemplo, cite-se aqui a proibição esculpida nas Ordenações Filipinas em seu Livro V, Título LXXVIII, quanto ao abate de animais por mera sagacidade, cuja transgressão poderia proporcionar o cumprimento de pena em caráter perpétuo no Brasil. Contudo, a finalidade por trás da mencionada norma se dirige à preservação do patrimônio individual, dos interesses da Coroa Portuguesa e das classes dominadoras fixadas na colônia, e não à proteção do ambiente, como bem expõe Edis Milaré: ―Toda essa legislação antiga, complexa, esparsa e inadequada, deixava imune (se é que não o incentivava) o esbulho do patrimônio natural, despojado do seu caráter de bem comum e tratado ignominiosamente como propriedade privada, gerido e explorado sem escrúpulos, com discricionariedade acima de qualquer legislação coerente, de qualquer interesse maior‖ (MILARÉ, 2007, p. 136). Moacir Martini de Araújo denomina essa segunda etapa de fase fragmentária, em que se nota no ordenamento pátrio um maior cuidado à preservação de certas categorias de recursos naturais. Entretanto, a preferência dos domínios de tutela do regulamento ainda se apresenta vinculada a áreas de interesse econômico, de maneira a resguardar somente de forma pontual alguns aspectos do ambiente (ARAÚJO, 2005, p.62). 10 3.2.1 A Constituição de 1988 aborda o tema Meio Ambiente A Constituição da República de 1988 representa a síntese da gradual e crescente relevância que veio ganhando o tema ambiental nos textos normativos pátrios. Nenhuma outra constituição brasileira abordou o meio ambiente como bem específico e autônomo digno de ser elevado ao patamar de direito fundamental. A extensão do tratamento constitucional deferido ao tema na Carta de 1988 se refletiu na alcunha a si posta de Constituição verde, considerada um dos textos constitucionais mais avançados do mundo em matéria ambiental. O art. 225, caput, da Constituição dispõe que ―Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações‖. A primeira consideração a ser feita sobre esta definiçãose refere à caracterização do meio ambiente como bem de uso comum do povo. Tal denominação se difere da utilizada no Direito Administrativo por não retratar um bem que seja de propriedade de um ente de direito público, mas de titularidade difusa, com atributos que rompem a dicotomia clássica entre o direito público e privado. Moacir Martini de Araújo ilustra essa peculiaridade do bem ambiental ao afirmar: ―A natureza jurídica diferenciada do bem ambiental leva a um pequeno reparo: não é o meio ambiente um direito de que se possa dispor na acepção da palavra. Trata-se de bem jurídico que, por ser dirigido a todos, conforme reza o próprio caput do art. 225 da Constituição Federal de 1988, deve ser meramente gozado por todos, não podendo ninguém, individual ou coletivamente, impedir este gozo, dele apropriando-se indevidamente, quer diretamente, impedindo que outros venham dele se beneficiar, quer indiretamente, por meio de degradação que prejudique as suas funções essenciais‖ (ARAÚJO, 2007, P88). Essa afirmativa tem do mesmo modo um aproveitamento prático proeminente, pois garante a preservação do ambiente não só em relação aos bens públicos, como também em domínio privado, por meio de intervenções na propriedade particular, como bem recomenda Paulo de Bessa Antunes: 11 ―Não se olvide, contudo, que o conceito de uso comum de todos rompe com o tradicional enfoque de que os bens de uso comum só podem ser bens públicos. Não, a Constituição Federal estabeleceu que, mesmo no domínio privado, podem ser fixadas obrigações para que os proprietários assegurem a fruição, por todos, dos aspectos ambientais de bens de sua propriedade. A fruição, contudo, é mediata, e não imediata. O proprietário de uma floresta permanece proprietário da mesma, pode estabelecer interdições quanto à penetração e permanência de estranhos no interior de sua propriedade. Entretanto, está obrigado a não degradar as características ecológicas que, estas sim, são de uso comum, tais como a beleza cênica, a produção de oxigênio, o equilíbrio térmico gerado pela floresta, o refúgio de animais silvestres, etc.‖ (ANTUNES, 2004, p. 68). Segundo atendimento a respeito da avaliação constitucional trata do dever conjunto tanto do Poder Público como da sociedade de proteger e preservar o meio ambiente. Essa deliberação remove o indivíduo da atitude puramente indiferente em relação ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se a ele a performance direta na advocacia do ambiente, não só frente aos demais cidadãos como ainda frente ao próprio Estado. Como se pode notar, o destaque dado ao meio ambiente na Constituição Federal de 1988 procede de um progressivo procedimento de conscientização da essencialidade desse bem jurídico a conservação da vida humana saudável e da rápida deterioração de suas características. Deste modo, como de outro formato não poderia ser a preocupação constitucional com a conservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado foi acompanhada da obrigação de desenvolvimento dos instrumentos de sua assistência, tanto do ponto de vista jurisdicional como administrativo. É nessa conjuntura de acréscimo da tutela ambiental que brota a prevenção de responsabilização da pessoa jurídica em domínio penal. Outros autores, a exemplo de Luiz Vicente Cernicchiaro, defendem que a interpretação conjunta do art. 225, § 3º, com os princípios fundamentais expressos no art. 5º da Constituição impede aceitar que o constituinte tenha rompido com a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica, posicionamento que foi alvo de duras críticas por parte de Guilherme Guimarães Feliciano, negando que a referida norma constitucional tenha tratado, de modo exaustivo, de todos os princípios ligados à responsabilização criminal (CERNICCHIARO, 1990, p. 242). 12 3.2.2 A Constituição de 1988 e a responsabilidade penal do ente coletivo A questão da possibilidade ou não de se responsabilizar penalmente o ente coletivo é tema a muito debatido na doutrina brasileira desde a promulgação da Carta Constitucional de 1988. Antes da mudança constitucional, não se questionava a vigência no direito penal brasileiro do princípio societas delinquere non potest, havendo poucas vozes na doutrina pátria a ventilar a possibilidade de criminalização das pessoas jurídicas. Contudo, a Constituição Federal de 1988 trouxe em dois dispositivos os fundamentos para a quebra da irresponsabilidade penal dos entes morais, quais sejam, o art. 173, § 5º (―A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular‖) e o art. 225, § 3º (―As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados‖). Em que pese a clara dicção dos dispositivos acima referidos, importantes nomes da doutrina penal sustentaram a manutenção do princípio societas delinquere non potest se valendo de interpretações dos citados dispositivos das mais diversas. Juarez Cirino dos Santos afirma, ao interpretar a norma contida no art. 173, § 5º da Constituição Federal, que o texto constitucional não especifica o tipo de responsabilidade a que se refere a norma, tampouco especifica a área de incidência dessa possível responsabilidade penal. Segundo o autor, ―a Constituição fala em responsabilidade – e não em responsabilidade penal; a Constituição fala em atos – e não de crimes; finalmente, a Constituição delimita as áreas de incidência da responsabilidade pela prática desses atos, exclusivamente, à ordem econômica e financeira e à economia popular, sem incluir o meio ambiente‖ (SANTOS, 2007, p. 429). 13 3.2.3 Do Meio Ambiente, Artigo 225 da Constituição Federal Todos têm direito em meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Parágrafo 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: I – Preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II – Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III – Definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV – Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V – Controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI – Promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. 143.2.4 Princípio da intervenção mínima do direito penal Há ainda outras barreiras, sob o ponto de vista constitucional, impostas por doutrinadores mais conservadores no que toca à responsabilidade penal da pessoa jurídica. Seriam elas decorrentes do princípio da intervenção mínima do direito penal. Tal princípio vincula a atuação do direito criminal à noção de proteção de bens jurídicos relevantes como sua finalidade precípua, referindo-se tanto à questão da escolha desses bens pelo ordenamento jurídico como à exigência ou não da interferência penal para a tutela daquele bem específico, ou seja, a existência de meios eficientes no campo civil e administrativo para a proteção do bem que sejam menos gravosos ao destinatário da sanção. Em relação ao primeiro aspecto, o direito penal deve tutelar somente aqueles bens jurídicos essenciais à convivência em sociedade, como forma de controle de sua própria legitimidade. Na lição do ilustre penalista Luigi Ferrajoli: ―Se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidadãos e de minimizar a violência, as únicas proibições penais justificadas por sua ―absoluta necessidade‖ são, por sua vez, as proibições mínimas necessárias, isto é, as estabelecidas para impedir condutas lesivas que, acrescentadas à reação informal que comportam, suporiam uma maior violência e uma mais grave lesão de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal‖ (FERRAJOLI, 2006, p. 427). A afirmação do nobre jurista italiano nos traz um critério muito razoável do controle que pode ser feito sobre as normas incriminadoras no tocante ao princípio da intervenção mínima, qual seja, o balanceio entre a gravidade da lesão ao bem protegido e a resposta estatal subsequente. No caso do meio ambiente, não restam dúvidas quanto à relevância desse bem frente a sua inclusão, pela Constituição Federal de 1988, no rol dos direitos fundamentais. A dificuldade encontrada na sua aceitação no plano penal reside no seu caráter difuso, que foge à fácil visualização da lesão como ocorre nas violações de bens individuais. Eladio Lecey ilustra bem a situação ao lembrar a fácil determinação dos tradicionais bens penais, ligados diretamente à pessoa humana e em caráter micro social, em contraposição ao panorama moderno onde se tem bens jurídicos voltados não diretamente à pessoa, mas ao funcionamento do sistema, em caráter macros social, cuja determinação se torna um tanto complexa (LECEY, 2002, p. 27). 15 4. PONTOS TEÓRICOS DA RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA Iniciando-se do ajustamento constitucional dada à responsabilidade penal das pessoas morais no ordenamento jurídico brasileiro, abrem-se, sob o ponto de vista da estruturação dogmática dessa nova realidade, basicamente três alternativas: a) responsabilizar o ente coletivo com base nos elementos fornecidos pela teoria clássica do delito, com as adaptações necessárias a sua aplicação às pessoas jurídicas; b) criação de uma teoria do delito própria à responsabilização dos entes morais; c) manutenção da teoria tradicional do delito aplicada às pessoas físicas com a ampliação da responsabilidade às pessoas jurídicas beneficiadas com a infração penal. As duas primeiras alternativas cogitam com o conhecimento de responsabilização direta da pessoa coletiva por crimes ambientais cometidos por seus integrantes enquanto que a última opção ilustra um perfil de responsabilização secundária do ente moral. O diagnóstico que será feito em seguida acometerá a possibilidade de responsabilização direta ou indireta de modo individualizado. A edificação da composição dogmática de responsabilização penal do ente coletivo tem como conjetura inicial o estudo da natureza da pessoa jurídica, como forma de averiguar a compatibilidade entre suas características fundamentais e os dados que provocam a sua responsabilidade nesse campo. O significado quanto a esse ponto é acentuado especialmente na discussão quanto à aptidão de ação da pessoa jurídica para a comissão de um ilícito penal. Inicialmente, vale advertir aqui o conceito de pessoa jurídica. Esta pode ser definida como o agrupamento de pessoas naturais ou de bens conectados a consecução de certo desígnio benquisto pelo direito, formando uma unidade distinguida juridicamente como sujeito de direitos e obrigações. Nota-se, portanto, que a pessoa jurídica acumula como características fundamentais a personalidade distinta da de seus instituidores, donde transcorre sua existência jurídica autônoma, o fim lícito de suas atividades, bem como a composição de patrimônio próprio. 16 4.1 A RESPONSABILIDADE DIRETA DA PESSOA JURÍDICA Da existência de inúmeras hipóteses para esclarecer a natureza jurídica do ente moral, três delas possuem particular relevo, quais sejam, a teoria da ficção jurídica, da realidade objetiva ou orgânica e, finalmente, a da realidade jurídica. Principiemos pela conjectura da ficção. Segundo esta teoria, que teve destaque na figura ilustre de Savigny, unicamente o ser humano seria capaz de conceituar as relações jurídicas, por ser o único dotado de real vontade e capacidade de ação. Nesse sentido, a personificação de grupos humanos ou patrimoniais não passaria de uma criação legal, sem qualquer aplicação prática, não havendo sentido em se estabelecer a possibilidade de cometimento de um ato ilícito por parte do ente coletivo que se destina à realização de um fim lícito. O primeiro julgamento voltado a esse entendimento da natureza jurídica do ente moral reside justamente na ausência de utilidade prática da pessoa jurídica, pois se só o ser humano pode ser responsabilizado pelos atos praticados em âmbito coletivo, não se justificaria a criação de outro sujeito de direito. Outro ponto de questionamento ainda mais robusto se refere à existência do próprio Estado. Ao considerar que toda pessoa jurídica é uma criação jurídica sem respaldo na realidade, a teoria da ficção acaba por negar também a existência do Estado, tendo por consequência o entendimento de que a lei, como expressão máxima de sua soberania, é fruto de uma mera ficção, ou seja, seria possível afirmar que uma criação sem existência real poderia atribuir a si mesmo efeitos jurídicos. Como bem se pode observar, a teoria da ficção jurídica além de não apresentar relevância prática nos moldes em que é proposta, não consegue explicar a existência do Estado como pessoa autônoma dos indivíduos que o integram. Roberto de Ruggiero subscreve a inconsistência dessa teoria: ―Compreende-se facilmente como uma tal concepção seja inadequada para descrever a verdadeira essência da pessoa jurídica. A ficção é um mero artifício e não é com ela que se cria um ente, que seja distinto das simples pessoas dos componentes da corporação, ou dos administradores ou destinatários dos bens da fundação. Se o sujeito de direitos só pode ser o homem e aqui não existe tal sujeito, nada se obtém fingindo que ele existe. Nem vale de muito declarar que a ficção se deve reduzir a uma relação de analogia, em virtude da qual, devendo o direito referir-se a um sujeito diverso do homem, a entidade se concebe antromorficamente, sendo a ela que como sujeito se atribui o direito, anàlogamente ao que sucede com a pessoa física. Na verdade, também nada há de real no sujeito se a sua existência é e permanece apenas imaginária‖ (RUGGIERO, 1971, p.382- 383). 17 Mostrando que a hipótese da ficção não se presta à responsabilização da pessoa jurídica em âmbito civil, tampouco penalmente, passemos a análise da teoria da realidade objetiva. O assunto chave para a determinação da natureza da pessoa jurídica segundo a teoria da realidadeobjetiva estaria, num primeiro momento, na vontade. Para essa teoria, a vontade dos instituidores da pessoa jurídica seria o núcleo de surgimento do ente coletivo, capaz de criar um novo sujeito de direitos. Defende-se que essa vontade que cria a entidade estaria apartada das vontades individuais dos membros que a instituíram, não se traduzindo igualmente na reunião dessas vontades, formando assim uma vontade complexa.. Entretanto, essa teoria começou por sofrer igual crítica à anterior, sob o argumento de que ―desde que não se finja existir uma pessoa, se eleva à categoria de sujeito uma entidade abstrata: a vontade, personificando-se esta vontade com um procedimento que não corresponde à realidade das coisas‖. Tal dificuldade consentiu o alargamento da teoria da realidade objetiva sob fundamento diverso, qual seja o caráter orgânico do ente coletivo. Nessa acepção, tem-se uma comparação entre o organismo humano e a estrutura organizacional da pessoa jurídica no tocante à independência do todo em relação às partes que o compõe. Conforme essa teoria, a pessoa jurídica é um ente dotado de interesses próprios, realizando atividades no meio social para a consecução de seus fins. Bevilaqua, defensor da teoria orgânica da pessoa jurídica, explica de maneira magistral a lógica de personificação dos entes morais: ―O direito é alguma coisa de vivo, que consiste em transformações constantes e que necessita de renovações ininterruptas, pois que a natureza se evolve, mudam as necessidades e, com estas, o direito. Daí resulta que o sujeito do direito deve ser formado de modo que possa acompanhar as mutações do movimento, de modo que possa entrar nesse movimento de uma maneira correspondentemente racional, isto é, conforme às [sic] determinações do direito. Por isso a ordem jurídica exige que os sujeitos de direito sejam, ao menos em sua generalidade, capazes de agir racionalmente. Na primeira linha, aparece o homem, que é um ser dotado de razão, e, depois, os seres aos quais se pode fornecer a razão humana pela anexação de órgãos. Assim, naturalmente, se constituem dois gêneros de pessoas: as corpóreas ou físicas e as morais ou jurídicas. Umas e outras são igualmente reais; a distinção está em que uma são dotadas, naturalmente, de razão, ao passo que, às outras, a racionalidade é parcialmente adquirida, mediante um arranjo especial do homem; umas receberam o seu organismo da própria natureza, ao passo que as outras somente conseguem a forma orgânica, porque as penetra a natureza humana‖ (BEVILAQUA, 1972, p. 127-128). 18 4.2 A RESPONSABILIDADE INDIRETA DA PESSOA JURÍDICA Existe ainda outro modo de se descobrir a estrutura de responsabilização penal da pessoa jurídica. Por vezes, considera-se inapropriada a aplicação da teoria do delito à responsabilização do ente coletivo, ainda que se interpretem seus elementos à luz das peculiaridades da natureza da pessoa jurídica, adaptando-os a essa nova realidade. Tal entendimento decorre principalmente do fato de ter a teoria do delito sido construída e aprimorada no decorrer da história sob o enfoque da conduta humana, valendo-se, portanto, de referenciais do ponto de vista psicológico, principalmente no que concerne ao dolo e à culpabilidade. Nessa acepção, procura-se a conservação da doutrina clássica do delito aplicada às pessoas físicas, ao mesmo tempo em que se estende a responsabilidade penal à pessoa jurídica com base em outros parâmetros. Considerando que toda a ação desempenhada pela pessoa jurídica no seio social se dá, inexoravelmente, por meio de uma ou mais pessoas físicas que a compõe, realizando a vontade produzida no âmbito interno do ente coletivo, fala-se na presença necessária de um substrato humano sobre o qual deva recair a análise subjetiva da conduta penal imputada à pessoa jurídica. Conforme esse entendimento, a pessoa jurídica seria inabilitada por si só de praticar a conduta prevista no tipo penal, havendo sempre a necessidade de que um representante seu o faça. Assim, a responsabilidade do ente coletivo se daria somente de forma reflexa, denominada também ―por ricochete‖, já que dependeria necessariamente da realização de um fato criminoso por indivíduo a ele vinculado. Nessa acepção, ter-se-iam duas vias de imputação distintas frente a um mesmo feito delitivo, uma voltada à pessoa jurídica e outra à pessoa física, esta última nos moldes da teoria do delito clássica. A esse sistema, deu-se o nome de dupla imputação. Conforme o sistema de dupla imputação, o embasamento principal para a extensão da responsabilidade penal ao ente coletivo convive na reprovação da vontade apregoada pelos órgãos de deliberação da pessoa jurídica e alcançada pelo autor material do delito, pautando-se, assim, em critérios genuinamente objetivos. 19 Na visão de Fernando Galvão da Rocha: ―Para a responsabilização da pessoa jurídica utiliza-se a teoria do delito apenas para identificar a autoria de crime naquele que atua em nome ou benefício do ente moral. Sempre dependente da intervenção de pessoa física, que responde criminalmente de maneira subjetiva, a pessoa jurídica não apresenta elemento subjetivo ou consciência da ilicitude que viabilize comparação com as construções da teoria do delito. A responsabilidade da pessoa física é subjetiva, pois deve-se aplicar a teoria do delito com as suas exigências de natureza subjetiva. A responsabilidade da pessoa jurídica, no entanto, decorre da relação objetiva que a relaciona ao autor do crime‖ (ROCHA, 2003, p. 513-514). Embora a mencionada teoria deslíngüe as personalidades da pessoa física e da pessoa jurídica, não ficou ela isenta de críticas, principalmente sob o ponto de vista ontológico, devido à permanência de sérias restrições à concepção do ente coletivo como um ente natural. É justamente com base nesse ponto que se constrói a teoria da realidade jurídica. Conforme esta conjectura, a pessoa jurídica é dotada de existência real, porém, sua realidade não é igual a das pessoas naturais. Não se pode negar a atuação dos entes coletivos no seio social, com direitos e interesses próprios, todavia isso não os torna seres integrantes do mundo naturalístico, estando sua existência condicionada ao plano abstrato criado ordem jurídica. Embora, mesmo que pese a referida hipótese guardar mais semelhanças do que diferenças em relação à teoria da realidade objetiva, a questão referente à distinção de realidades entre a pessoa física e jurídica será importante na determinação do modelo teórico de responsabilização criminal do ente coletivo, como se verá mais a frente. Ressalta-se, deste modo, que no modelo teórico de responsabilização reflexa é indispensável a indicação da pessoa física que realiza o ato delituoso, apesar de haver experiências jurisprudenciais, em países que adotam esse modelo, que relativizam esse aspecto. Do mesmo modo, faz-se imperioso a prova da relação de vínculo entre a pessoa física e a jurídica para que se estabeleça a responsabilidade desta última, bem como a realização de uma aspiração produzida no seio da corporação, tida como própria do ente coletivo. 20 4.3 A CONDUTA E A VONTADE DA PESSOA JURÍDICA Ao se aplicar a doutrina clássica do delito, na qual se cogita o julgamento analítico de crime como fato característico, antijurídico e culpável, às pessoas jurídicas, há que se analisar necessariamente os pontos relativos à capacidade de ação e de vontade do ente coletivo. Muitos dos argumentos contrários à responsabilização da pessoa jurídica partem desses dois elementos para negar a sua possibilidade sob a alegação de que o ser humano é o único capazde realizar o núcleo do tipo penal com consciência e vontade, dirigindo-se à realização de certa finalidade. René Ariel Dotti, (2001) é um dos defensores da exclusividade humana na concretização de uma conduta proeminente no âmbito jurídico-penal, apontando uma série de conceituações de conduta, retiradas de obras de ilustres penalistas do direito nacional, para ratificar seu ponto de vista, destacando em todas elas a menção ao termo humano. Ainda segundo o referido autor, o entendimento de que somente o ser humano é capaz de realizar conduta se justifica pelo fato de que a atuação de modo voluntário lhe é particular. Cezar Roberto Bittecourt compartilha esse entendimento ao afirmar: ―Enfim, sem estes dois elementos – consciência e vontade - exclusivos da pessoa natural, é impossível se falar, tecnicamente, em ação, que é o primeiro elemento estrutural do crime. A menos que se pretenda destruir o Direito Penal e partir, assumidamente, para a responsabilidade objetiva. Mas para isso – adoção da responsabilidade objetiva - não é preciso suprimir essa conquista histórica da civilização contemporânea, o Direito Penal como meio de controle social formalizado, na medida em que existem tantos outros ramos do direito, com menores exigências e garantias que podem ser muito mais eficazes e funcionais que o Direito Penal, dispondo de um arsenal de sanções avassaladoras da pessoa jurídica, algumas até extremistas, como, por exemplo, a decretação da extinção da corporação que, em outros termos, equivaleria à pena de morte da empresa, algo inadmissível no âmbito do Direito Penal da culpabilidade‖ (BITTENCOURT, 2009, p, 123) Nota-se, pois, que os atendimentos feitos pelos doutrinadores acima citados procuram proteger o caráter psicológico da noção de vontade de modo a obstaculizar sua expansão às pessoas jurídicas. Em contrapeso, parte da doutrina, apoiada na teoria da realidade orgânica da pessoa jurídica, não visualiza qualquer obstáculo ao atendimento da capacidade de ação e vontade do ente coletivo. 21 Conforme ela, como a aspiração da pessoa jurídica não se manifesta na expressão da vontade individual de seus integrantes, nem representa a reunião dessas vontades, a ação de seus agentes, no papel de membros da corporação, que caracterize a prática de um ilícito penal não corresponderá a um ato da pessoa física individualmente considerada, mas sim da própria pessoa jurídica, por intermédio de um dos seus representantes, já que sua atuação se pauta na vontade autônoma do ente coletivo. Sobre esse assunto, Rothenburg observa, com base na psicanálise freudiana, a mudança comportamental do indivíduo quando atua de forma associada, em função do que cognomina funções inconscientes homogêneas, para ao final concluir: ―Admitindo-se que o princípio da personalidade não diz respeito somente às penas, mas principalmente à imputação, pretender sujeitar o indivíduo ao invés de o grupo em função do qual aquele agiu (ou vice-versa) seria desrespeitar a própria personalidade. Vai daí que não apenas seria um equívoco desconhecer que a pessoa jurídica atua através de órgãos onde estão, nessa condição, antes ‗presentantes‘ da entidade do que indivíduos em si considerados, mas igualmente um contra-senso: enquanto indivíduos particulares, não se teriam comportado como se comportaram enquanto ‗presentantes‘ da pessoa jurídica‖ (ROTHENBURG, 2005, p. 54-55). Nota-se, contudo, que a ação praticada pela pessoa jurídica, denominada pela doutrina de ação institucional, possui natureza diversa daquela realizada pela pessoa natural, decorrendo da inter-relação entre a instituição e os seus integrantes, resultando na confluência de fatores independente da vontade de seus membros ou dirigentes. Sobre esse ponto, David Baigún (1997, p. 37), defende que a ação institucional se forma a partir da reunião de três aspectos: normativo, organizacional e interesse econômico. O primeiro fala da consideração ao estatuto social, na qual são demarcadas as funções de administração (âmbito interno) e representação (âmbito externo) da pessoa jurídica, prevendo assim um conjunto de disposições estabelecendo os requisitos necessários à tomada de decisões na coletividade. Isso significa que a decisão institucional deve se pautar nas normas de organização interna do ente coletivo para que expresse a vontade própria da pessoa jurídica. Já o aspecto organizacional focaliza as relações humanas que se ampliam no interior da corporação, com destaque na análise do sistema de comunicação institucionalizado, da hierarquia dentro da empresa e dos instrumentos de decisão de conflitos internos. 22 E por fim, o interesse econômico concebe ao mesmo tempo a origem e a finalidade da pessoa jurídica, presente na conduta de todos os integrantes da corporação, estabelecendo a adequada força motriz da ação da coletividade. A interação destes três elementos (normatização, organização e interesse econômico) configurara uma vontade apartada daquela emanada dos indivíduos que a compõe. Outro argumento que diminui a tese da incapacidade de ação da pessoa jurídica está relacionado ao fato de que se distingue o ente moral em outros ramos do direito (a exemplo do civil e do administrativo) vontade própria, sendo sujeito das relações a que venha participar e, assim sendo, responsável pela sua atuação tanto lícita quanto ilícita em sociedade. A incoerência em se aplicar concepções diversas a um mesmo instituto jurídico impede que se despenda tratamento diferenciado em cada uma das esferas do conhecimento jurídico. Assegura Luiz Régis Prado (2001, p. 105), o ilustre penalista que a conclusão de contratos não é feita propriamente pela pessoa jurídica por si mesma, mas pelas pessoas naturais que atuam em seu nome, vinculando dessa forma o ente coletivo. Afirma ainda que o acontecimento da representação não seja aplicável à determinação da sujeição ativa do delito, sendo imperativa a realização pessoal da ação típica para que se considere autor do fato. Tal afirmativa, com a devida vênia, não se mostra totalmente correta quando se leva em conta a aceitação hoje, tanto na esfera doutrinária quanto jurisprudencial, da cognominada teoria do domínio do fato. Para este, autor do crime é tanto a pessoa que executa materialmente as elementares do tipo penal como aquele que detém o domínio final da ação praticada, tendo o controle sobre a realização ou não da conduta delitiva e o modo de sua execução. A aplicação dessa teoria é importantíssima na configuração da autoria nos chamados crimes de mando, estabelecendo uma co-autoria entre o mandante e o mandatário da infração penal. Assim sendo, o desempenho do indivíduo na qualidade de integrante da pessoa jurídica que desempenhe a vontade desta dirigida a um fim penalmente ilícito implica a responsabilização conjunta do ente coletivo e da pessoa física. 23 4.4 A CULPABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA Outro fator polêmico é a culpabilidade quando se fala na responsabilidade penal do ente coletivo. A significação do que seja culpabilidade passou por várias alterações no decorrer da história do direito penal, passando por diversas teorias explicativas de seu conteúdo, entre as quais se enfatizam a teoria psicológica, a psicológico-normativa e a normativa pura. A teoria psicológica da culpabilidade procura defini-la como a relação psíquica do agente com o fato praticado. Alude-se ao estado psíquico do autor frente ao resultado típico, sendo desenvolvida assim pelos julgamentos de dolo e culpa. No entender do Jurista Juarez Cirino dos Santos, a culpabilidade na teoria psicológica é desenvolvida por dois elementos:a capacidade de culpabilidade (imputabilidade), definida como ―capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de querer conforme a compreensão do valor do fato, excluída ou reduzida em situações de imperfeição (imaturidade) ou de defecção (doença mental) do aparelho psíquico‖ (SANTOS, 2007, p. 277-278). A crítica apontada a esta teoria convive na deficiência de explicação da culpa em sentido estrito, já que nesse caso não há relação psíquica entre autor e resultado, bem como na impossibilidade de valoração de situações anômalas de motivação da vontade. Diante de tais atendimentos, passou-se a procurar um liame normativo entre as noções de dolo, culpa e a culpabilidade. Observou-se, então, a existência de fatos de ações dolosas em que não era exigida uma conduta diversa da praticada, levando deste modo à vinculação da culpabilidade à noção de reprovabilidade social. Desse modo a culpabilidade deixa de ser mera dependência psíquica entre autor e fato, englobando igualmente um juízo de valor sobre o fato doloso ou culposo. A essa inclusão de um elemento normativo (reprovabilidade) à culpabilidade deu-se o nome de teoria psicológico-normativa. Acontece que, apesar do avanço proporcionado pela teoria psicológico normativa da culpabilidade, esta trouxe uma nova fonte de discussões no tocante à permanência dolo como elemento da culpabilidade. Demonstrada em um juízo de censura, defendeu-se que o dolo deveria essencialmente estar fora da valoração para que esta incidisse naquele. 24 Para os que defendem a inclinação de culpabilidade da pessoa jurídica, tal evolução comprova o descabimento do indeferimento de culpabilidade ao ente coletivo por ausência de substrato psicológico a ligar sua conduta ao resultado. Porém, as críticas à culpabilidade da pessoa jurídica ainda continuam no tocante à impossibilidade de compreensão do caráter ilícito de sua ação, o que impediria também o arrependimento e a reeducação através da penalização. Contra esse entendimento, rebate Schecaira: ―Já se verificou que um dos principais objetivos atribuídos modernamente à pena é exatamente o de reprovar a conduta em conflito, a fim de validar o conceito de bem jurídico para a maioria do grupo social. Disso decorre que a imposição da pena deve ter como objetivo precípuo sua relevância pública e não objetivos morais. Dessa forma, pensar em impor objetivos morais a uma empresa, mais do que um contra-senso, é tentar reavivar algo que mesmo relativamente às pessoas físicas já não deve ser aplicado‖ (SCHECAIRA, 2002, p. 107). A informação segundo a qual a definição de culpabilidade é edificada historicamente, tratando-se, deste modo, de um conceito normativo, não ontológico, fundamenta a flexibilização de determinadas categorias do direito penal clássico, adaptando-o à realidade que se pretende regular. Segundo Muñoz Conde: ―A culpabilidade não é um fenômeno individual, mas social. Não é uma qualidade da ação, mas uma característica que se lhe atribui para poder imputá-la a alguém como seu autor e fazê-lo responder por ela. É, pois, a sociedade, ou melhor, seu Estado representante, produto da correlação de forças sociais existentes em um determinado momento histórico, quem define os limites do culpável e do inculpável, da liberdade e da não liberdade‖ (MUÑOZ CONDE, 1988, p. 128). Ney de Barros Bello Filho do mesmo modo aponta para a necessidade de adaptação do conceito de culpabilidade à realidade dos entes coletivos: ―A base do pensamento segundo o qual a culpabilidade pode ser conceito presente na atitude da pessoa jurídica surge da certeza de que culpa não é algo que possa fluir de uma realidade natural e que possa ser provada com base em uma atitude científica. Culpa é, na verdade, um conceito de natureza filosófica que pode ser flexibilizado ou revisto a partir de uma tomada de postura diferenciada frente ao fenômeno que se quer estudar. Quando um comportamento está agredindo bens jurídicos tidos por relevantes, há um rompimento de regras de natureza social; é o próprio direito que conceitua o que vem a ser culpa, tratando-se, pois, de um conceito normativo e não de um conceito natural‖ (FILHO, 2004, p. 157). Neste panorama, pode-se falar hoje na reestruturação do conceito de culpabilidade nos crimes praticados pelas pessoas jurídicas, entendida como culpabilidade social, refletida no descumprimento do papel social que se espera de todo e qualquer ente coletivo que atuam nas mesmas condições. 25 5. RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO Sobre a responsabilidade da Pessoa Jurídica de Direito Público e o padrão teórico que melhor se adéqua à realidade normativa brasileira é a discussão quanto à possibilidade de sua responsabilização penal por crimes contra o meio ambiente. O desenvolvimento das intervenções do Poder Público na sociedade com a superação dos pontos de vista liberais e sua substituição pelo modelo de Bem-Estar Social, alterou o papel do Estado de mero controlador dos atores sociais para o de principal responsável pelas mudanças e progressos no seio social. Entretanto, tal alteração veio acompanhada de uma série de questões que estabelecem a reformulação da abordagem tida em diversos campos do conhecimento, dentre os quais se abarca o direito penal: ―Nesse quadro criminológico, as pessoas jurídicas d direito público ocupam espaço importante. O Estado de nossos dias, fruto da concepção de estado do bem estar social, intervém direta ou indiretamente em uma infinidade de atividades de natureza econômica e social, produzindo quantidades expressivas de condutas potencialmente lesivas ao ambiente. As pessoas jurídicas de direito público movimentam orçamentos gigantescos e empregam milhões de pessoas para satisfazer necessidades coletivas das mais variadas espécies em áreas como as de transporte, comunicações, habitação, saneamento básico, biotecnologia, mineração, recursos hídricos, energia, defesa, além de inúmeras outras. Tais atividades, assim como as que são exercidas pelas pessoas jurídicas privadas, oferecem riscos ambientais, que devem ser controlados pelo ordenamento jurídico por meio de tutela penal‖ (ARAÚJO, 2007, p.1). Se da questão e do ponto de vista da responsabilidade penal do ente privado a concordância doutrinária e jurisprudencial aumenta crescentemente, o mesmo não se pode dizer quanto à responsabilização penal do Estado. Diversos autores que aceitam sem maiores dificuldades a responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito privado não o fazem em relação aos entes públicos. A autopunição do Estado geraria igualmente um problema de legitimidade na perspectiva de Figueiredo. De acordo com o autor, um juiz que eventualmente chegasse a condenar criminalmente a União passaria a ser um órgão de um ―Estado Criminoso‖, criando-se deste modo uma dificuldade sob o ponto de vista ético (FIGUEIREDO, 1998, p. 13). 26 5.1 PONTOS CONTRÁRIOS À RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO O primeiro argumento alçado contra a probabilidade de responsabilização penal de ente público se alude à imprescindível distinção de natureza entre as pessoas jurídicas de direito público e privado. Sem embargo da Constituição Federal de 1988 e tampouco da Lei nº 9.605/98 fazerem restrição expressa à responsabilização penal do Estado, defende-se que as particularidades inerentes ao ente público não comportam que haja tratamento equânime entre estes e as pessoas de direito privado. Pedro Krebs é um dos primeiros a distinguir a existência de diversas diferenças de natureza e finalidade entre as pessoas de direito público e privado, defendendo de forma enérgica a impossibilidade de seresponsabilizar o ente público: ―Assim, sendo, ousamos discordar daqueles que afirmam ser possível a punição das pessoas jurídicas de direito público interno pelo simples fato de serem também pessoas jurídicas, atestando carecer de importância a natureza jurídica que lhes é imposta. É uma conclusão apressada cujo raciocínio já se encontra viciado em sua própria origem. (...) Neste sentido, não podemos acatar o entendimento de que a irresponsabilidade penal do ente público acarretaria uma violação do princípio da igualdade. Isto porque as pessoas jurídicas de direito público interno são distintas – senão em tudo – em vários aspectos das de direito privado. Ora, em não se confundindo, é possível (ou, no mínimo, necessário) efetivar um tratamento desigual entre elas." (KREBS, 2000; p. 487). Uma das características fundamentais do Estado que serve de óbice a sua responsabilização penal consiste em, no entendimento de Figueiredo, a sua sujeição ao princípio da legalidade: ―Na administração, afirma-se: o Estado não tem o dever de seguir e de realizar a norma jurídica, mas sim algo profundamente diverso, o Estado tem o dever de satisfazer o desejo e o interesse coletivo. O Direito Administrativo, por isso, difere da Jurisdição — a norma a aplicar ao caso concreto. No confronto de qualquer sujeito (pessoa física ou jurídica), que não seja o Estado, a lei representa sempre uma vontade superior, externa a eles: uma vontade transcendente; ao contrário, para o Estado que age na consecução de seus fins, a lei é sua vontade interna, uma vontade imanente: a sua própria vontade. A administração pública não é um sujeito distinto do Estado, mas é o próprio Estado em ação para alcançar seus fins. Nem por isto se contrasta a opinião comum, segundo a qual a atividade administrativa é função fundamental de vontade. No Estado atual, onde os fins da Administração vêm estabelecidos pelo Direito, as atividades para a sua consecução são aquelas que o Direito descreve ou consente‖ (FIGUEIREDO, 1998, p. 11). 27 5.2 PONTOS FAVORÁVEIS À RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO Na argumentação de que as diferenças de natureza e finalidade entre as pessoas jurídicas de direito público e de direito privado afastariam a responsabilização das primeiras com base no princípio da isonomia, faz-se necessário esclarecer se as peculiaridades pertinentes aos entes públicos de fato inviabilizam sua responsabilização do ponto de vista penal. Não é suficiente a simples alegação de que os entes públicos se revestem de características especiais para afastar sua criminalização, mas se impõe a demonstração de que tais características representem de fato um óbice a esse fim. Isso porque, diferentemente do modelo francês que afasta de modo expresso a responsabilidade da pessoa de direito público, a legislação pátria é silente em relação a esse ponto, impondo a responsabilização das pessoas jurídicas de modo geral. Não se pode afirmar que a legislação francesa apenas demonstra algo que é inerente ao instituto da responsabilização penal dos entes coletivos, tendo em vista que ela própria traz uma exceção a essa regra: ―No obstante, los entes territoriales y sus entidades de derecho público son responsables penalmente de las infracciones cometidas en el ejercicio de actividades públicas susceptibles de gestión por parte de los particulares‖ (PRADEL, 2003, p. 663). Existem autores ainda que afirmam ter o legislador brasileiro adotado o modelo francês de responsabilização penal das pessoas jurídicas, o que automaticamente excluiria a responsabilidade do Estado. Tal argumentação não nos parece correta na medida em que, apesar da grande influência desse modelo sobre a legislação pátria, esta não reproduz a vedação à responsabilização do ente coletivo expressamente, formando assim uma estrutura de responsabilização distinta e com maior amplitude comparada àquela. Assim sendo, robustecendo a preocupação em se verificar ponto a ponto a existência de reais óbices à responsabilização penal do Estado, comecemos pela questão da submissão do Poder Público ao princípio da legalidade. É certo que a atuação estatal deva sempre estar pautada na realização de um interesse público para que seja concebida como legítima, buscando-se esse interesse na lei. Ocorre que nem sempre a conduta de um ente estatal retratará na prática um interesse público. 28 Celso Antônio Bandeira de Mello conceituado o interesse público como sendo ―o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem‖ (MELLO, 2007, p. 63). Nesse sentido, afirma-se que nem todo interesse do ente coletivo que representa o todo refletirá um interesse público. Ensina Bandeira de Mello: ―É que, além de subjetivar estes interesses o Estado, tal como os demais particulares, é também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto porque a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais, ao passo que o Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação pois inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles‖ (MELLO, 2007, p. 58). Essa conceituação é a base para a distinção entre interesses públicos primários e secundários e com caráter meramente instrumental e legítimos desde que estejam em consonância com um interesse primário. A distinção é relevante para que se visualize a maneira como o Estado possa de fato realizar um ilícito penal. Observando mais uma vez à lição de Bandeira de Mello, são citados pelo renomado mestre os exemplos trazidos por Renato Alessi para ilustrar situações de descompasso entre o interesse público primário e secundário: ―O autor exemplifica anotando que, enquanto mera subjetivação de interesses, à moda de qualquer sujeito, o Estado poderia ter interesse em tributar desmensuradamente os administrados, que assim enriqueceria o Erário, conquanto empobrecesse a Sociedade; que sob igual ótica, poderia ter interesse em pagar valores ínfimos aos seus servidores, reduzindo-os ao nível de mera subsistência, com o quê refrearia ao extremo seus dispêndios na matéria; sem embargos, tais interesses não são interesses públicos, pois estes, que lhe assiste prover, são os de favorecer o bem estar da Sociedade e de retribuir condignamente os que lhe prestam serviços‖ (MELLO, 2007, p. 58). 29 Trazendo o modelo para o domínio penal-ambiental, poderíamos ter a realização de uma obra pública, diretamente pelo ente estatal, para a construção de uma rodovia que transpassasse determinada área de relevante interesse ambiental. Pensamos que não houvesse a concretização de estudo de impacto ambiental e tampouco expedição de licença pelo órgão responsável para a realização da obra por tratar de procedimentos que envolvem certo tempo e consideráveis custos. Sob o ponto de vista puramenteinstrumental, observa-se que a economia de tempo e dinheiro com a não realização dos procedimentos devidos atende a um interesse secundário do Estado, porém, encontra-se em desacordo com a necessidade de preservação do meio ambiente que é um interesse primário. Lembra-se que no exemplo dado é possível até se apontar na base da atuação do ente público um interesse público primário, retratado na promoção pelo poder público de obras de infra-estrutura que ampliem a liberdade de locomoção, todavia, os meios utilizados nesse intuito ferem, na prática, o interesse público em outro ponto, sendo assim passíveis de repressão. Desse modo, percebemos restar clara a possibilidade de uma pessoa jurídica de direito público vir a cometer um ilícito penal na realização de um interesse secundário. Não há incompatibilidade entre a responsabilidade penal do ente público e o requisito do art. 3º da Lei nº 9.605/98, o qual exige que a infração seja cometida em benefício ou no interesse da pessoa jurídica, tendo em vista a possibilidade de visualização de um interesse privado do Estado. Suplantado esse ponto, passemos a discutir a questão da soberania estatal. Fala-se do absurdo em se pensar que o Estado, ente soberano e detentor exclusivo do poder de punir, pudessem ser submetidos à jurisdição penal. O argumento não ultrapassa o aspecto retórico, não agregando fundamentos consistentes, aptos a sua sustentação. Como o Estado pode ser submetido à jurisdição civil para recomposição civil dos danos causados a particulares, igualmente o pode em relação à Justiça criminal. Não há distinção de natureza entre o ilícito civil e penal, apenas uma diferença de grau. Ney de Barros Bello Filho corrobora esse entendimento ao afirmar que ―se não há diferenças em essência entre a responsabilidade penal e a responsabilidade civil, se o Estado pode infringir uma regra sua de direito não penal, obviamente pode infringir regra criminal e ser responsabilizado por tal fato contra o direito‖ (FILHO, 2004, p. 172). 30 Shecaira, afavor da irresponsabilidade penal do Estado, acaba por distinguir a fragilidade da tese da soberania estatal para afastar o ente público do pólo passivo da ação criminal ao afirmar: ―Outro argumento é aquele que pretende ver excluída a responsabilidade do Estado em face deste exercer uma função soberana. Mas se assim fosse, não dever-se-ia, também, excluir a responsabilidade civil do Estado? Se isso ocorresse poder-se-ia chegar – até mesmo – na irresponsabilidade civil/administrativa do Estado, tão cara aos ingleses, mas totalmente estranha ao nosso direito! Ademais, em um Estado hiperdimensionado que, por meio de inúmeras estatais, acaba por executar funções que não lhe são próprias, seria razoável invocar tal razão para sua não punição?‖ (SHECAIRA, 2002., p. 190) Tampouco a argumentação de que a exclusividade do jus puniendi afastaria a responsabilidade penal do ente público é verídica. A estrutura organizacional do Estado brasileiro, calcada na forma federativa e na separação de poderes, enseja a manutenção de uma série de controles aplicáveis pelos entes públicos reciprocamente, de modo a coordenar suas ações no sentido da realização dos fins sociais e prevenção de desvios de poder. Do mesmo modo os mecanismos administrativos de controle são aplicáveis aos entes públicos, a exemplo do que ocorre quando IBAMA embarga uma obra pública e aplica sanções administrativas à outra pessoa jurídica de direito público, é igualmente possível a utilização da sanção criminal como forma de corrigir e prevenir as ofensas que estes entes venham a causar ao meio ambiente. A tutela penal concebe apenas mais um instrumento de controle social com vistas à preservação dos bens jurídicos caros à sociedade. Nada impede que um órgão do Estado fiscalize e repreenda outro com o fim de resguardar o interesse público. Nesse sentido, ensina Ivan Firmino Santiago da Silva: ―Muito se assemelha o fundamento esboçado por Shecaira, àquele expendido pelos autores Guilherme Purvin e Solange Teles, quando se referiam à irresponsabilidade do Estado em virtude do caráter estigmatizante da sanção penal, sendo certo que o argumento de que o Estado não se pode auto sancionar será rebatido pela demonstração das formas de sanção existentes em outros ramos do direito, como o direito civil e o direito administrativo, passíveis de serem aplicadas ao Estado, pelo próprio Estado. Ademais, não configura nada de extraordinário no cotidiano do direito a sua criação pelo Estado-legislador, que também define as sanções inerentes à sua violação, as quais podem ser aplicadas pelo Estado-juiz, em face do Estado-administrador, quando este cometer alguma infração‖ (SILVA, 2003, p. 2434). 31 6. CONCLUSÃO Decorremos no início do presente trabalho uma resumida análise da evolução da tutela ambiental nas vastas normatizações nacionais que conduziram o assunto meio ambiente até a promulgação da Constituição Federal de 1988. Podemos observar a crescente apreensão, ajuizada na legislação, com a preservação dos recursos naturais, bem como a manutenção de um ambiente de convivência benéfica no seio social, permitindo a implementação de mecanismos nos campos civil, administrativo e mais recentemente, no campo penal com o fim de resguardar esse bem jurídico de caráter difuso. A carência dos aparelhos de tutela civil e administrativa no abarcamento da degradação ambiental relevou a adoção de meios mais drásticos no intuito de contratar a proteção do ambiente, recorrendo-se assim ao direito penal, no seu papel de ultima ratio. Entretanto, verificou-se que a maior parte dos grandes abusos ao meio deriva da atividade empresarial, na qual a responsabilidade pelos danos gerados pela empresa é dissolvida pela forma como é estruturada, resultando na ineficácia penal de um ou alguns membros do ente coletivo, o que determinou a implementação dos meios adequados ao ajustamento da postura abrangida pela coletividade. Essa obrigação foi lembrada pelo constituinte de 1988 o qual, afeto à proeminência que o tema contraiu, abarcou nos artigos 173, § 5º, e 225, § 3º, da Carta Constitucional os embasamentos imprescindíveis à ptática da responsabilização penal da pessoa jurídica, abrindo caminho ao incremento de novas configurações de lidar com o problema da criminalidade empresarial. As censuras à responsabilização penal dos entes coletivos foram passo a passo sendo suplantadas com a reestruturação de conceitos clássicos do direito penal tradicional e a concepção de novas formas jurídicas, adequadas à realidade das pessoas morais. Os conhecimentos vividos por outros países no que diz respeito à criminalização das coletividades, reunida às discussões doutrinárias tanto em âmbito nacional quanto internacional, produziram motivo a construção de mais de um sistema de responsabilização, adaptáveis às particularidades adequadas de cada região do planeta. 32 Assim sendo, houve a possibilidade de separação do sistema de responsabilização penal da pessoa jurídica em dois: responsabilização direta ou indireta. No primeiro caso existiria a obrigação de adaptação dos conceitos clássicos da conjectura do delito de modo a consentir sua aplicação à pessoa jurídica. No segundo, é proposta a manutenção da teoria do delito somente às pessoas físicas, estendendo-se apenas a responsabilidade pelo fato às pessoas jurídicas, pugnando- se pela obrigatoriedade de se apontar o elemento humano realizador da conduta típica. Adiante, restou evidenciado que o modelo de responsabilização mais apropriado à realidade normativa brasileira seria o da responsabilidade indireta da pessoa jurídica,o que foi aprovado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. Por fim, abordamos ao ponto da possibilidade de responsabilização penal do Estado, trazendo os argumentos contrários e favoráveis a essa idéia. Vimos que os óbices abalizados em sede doutrinária não representam reais impedimentos à penalização do ente público que cometa um ilícito ambiental. O afastamento do princípio da isonomia em afinidade às pessoas de direito público e privado, no tocante à responsabilização penal, necessita anteceder a constatação de que as divergências entre uma e outra concebam a exigência sólida de um tratamento diferenciado. Assim sendo, em analogia à submissão do Estado ao princípio da legalidade, ficou claro que há de fato a probabilidade da pessoa de direito público cometer um ato ilícito sob a ótica penal por não haver distinção ontológica entre as ilegalidades. 33 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 7ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. ARAÚJO, Luís Eduardo Marrocos de. A Responsabilidade Penal do Estado por condutas lesivas ao Meio Ambiente. Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, abr. 2005. Disponível em: <www.fesmpdft.org.br>. ARAÚJO, Moacir Martini de. 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