Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 1 ÁREA DE CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO PROFISSIONAL Go Tani Universidade de São Paulo 1. Da profissão academicamente orientada As profissões podem ser classificadas segundo diferentes critérios. De acordo com a formação profissional que é esperada, requerida ou exigida para o seu exercício, elas podem ser classificadas em tecnicamente orientadas e academicamente orientadas. Nas profissões tecnicamente orientadas, essa formação acontece, na maioria das vezes, no ensino médio, nas chamadas escolas técnicas profissionalizantes. Enquadram-se nessa categoria profissões como de torneiro mecânico, eletricista, funileiro, pintor, garçom, somente para citar algumas das mais conhecidas. As profissões academicamente orientadas, por sua vez, são aquelas em que o exercício profissional pressupõe uma formação de nível superior. Em muitas delas, entidades de classe regulamentam e fiscalizam esse exercício de acordo com normas aprovadas por órgãos competentes. A medicina, a odontologia, a administração de empresas, a engenharia e a educação física são algumas das profissões com essas características. Em geral, as profissões nascem para disponibilizar à sociedade especialistas capazes de oferecer serviços em áreas nas quais as pessoas não possuem competência para solucionar os problemas por si mesmos, e para atender a necessidades sociais relevantes. Se todos nós fossemos capazes de projetar e construir as nossas próprias casas, o que seria dos arquitetos, engenheiros civis, carpinteiros e pedreiros? Se a educação escolarizada não fosse uma necessidade social premente, o que seria dos professores da rede de ensino? Claro está que tanto as pessoas, individualmente, como a sociedade, demandam soluções eficientes e eficazes para os seus problemas. Evidentemente, nenhuma profissão surge pronta e acabada e “desce de pára-quedas” no seio da sociedade. Existe um processo de amadurecimento em que a interação com a sociedade vai lhe conferindo gradativamente competência, status e reconhecimento. Na maioria das vezes, uma profissão começa com característica de uma ocupação e passa por um processo de estruturação e aperfeiçoamento denominado de profissionalização. A principal diferença entre uma ocupação e uma profissão, segundo Lawson (1984), é que na primeira as pessoas aceitam e deixam vários trabalhos ou tarefas e o seu método de trabalho é dependente da tradição ou da tentativa e erro. Enquanto isso, numa profissão, as pessoas estão comprometidas com uma carreira, em que a maneira de executar o seu trabalho está baseada no conhecimento sobre a essência do serviço que oferecem e sobre a pessoa a quem prestam esse serviço. Além do mais, pelo fato de o próprio conhecimento mudar com as transformações sociais, essas pessoas são capazes de adaptar ou alterar a sua maneira de trabalhar. Na realidade, todas as profissões são, de certa forma, ocupações, mas nem todas as ocupações são profissões. Há requisitos a serem preenchidos. E, sendo profissões, como dito anteriormente, elas podem ser acadêmica ou tecnicamente orientadas. Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 2 Existem necessidades e problemas para os quais a competência requerida dos profissionais é muito específica e exigente - baseada em procedimentos e conhecimentos sólidos e pautada em elevados princípios de ética e moral - pois implica preservar, por exemplo, a integridade das pessoas. Infelizmente, exemplos de falhas nesse quesito, que resultaram em verdadeiras tragédias sociais, abundam na nossa memória: prédios que se desabaram, pontes que caíram, crassos erros médicos cometidos, decisões judiciais comprovadamente equivocadas, obras faraônicas que violentaram a natureza e assim por diante. As profissões que lidam com necessidades e problemas com essas características requerem, obviamente, uma formação profissional compatível com esse nível de exigência. Quanto maior a exigência, mais profunda em relação a conhecimento deve ser a formação. Assim como ocorre o surgimento, o amadurecimento e a consolidação de profissões, o contrário é também verdadeiro, ou seja, o desaparecimento de profissões é uma possibilidade real. Ele não acontece apenas quando as necessidades sociais se extinguem, mas também quando o próprio avanço da ciência e tecnologia, por exemplo, fornece instrumentos alternativos mais eficazes para a solução do problema. Veja o que aconteceu com a profissão de desenhista técnico com o advento do computador. Nesse particular, cabe indagar: o que o futuro reserva às profissões, com a evolução da robótica? De fato, esse processo de mudança é bastante dinâmico. Muitas das profissões academicamente orientadas de hoje podem tornar-se tecnicamente orientadas. Da mesma forma, várias profissões tecnicamente orientadas podem transformar-se em academicamente orientadas em virtude da competência exigida se tornar cada vez mais específica e sofisticada. As áreas de turismo, moda e gastronomia, só para citar alguns exemplos concretos, passaram recentemente por esse processo de transformação. Um requisito fundamental de numa profissão academicamente orientada é a existência de um corpo de conhecimentos acadêmico-científicos em que se baseiam suas propostas, projetos e procedimentos de intervenção profissional. É importante ressaltar que apesar de existirem diferentes tipos de conhecimento úteis à prática profissional, como aqueles de natureza pessoal adquirido pela experiência, a legitimidade social e profissional de uma profissão academicamente orientada passa necessariamente pela legitimidade acadêmico-científica desse corpo de conhecimentos. Por exemplo, o reconhecimento e reputação profissionais alcançados pela Medicina decorrem do seu avanço como uma área de conhecimento, ou seja, da aplicação de conhecimentos científicos por ela produzidos no tratamento dos pacientes. Daí concluir-se que os conhecimentos científicos são aqueles que devem constituir a estrutura base do corpo de conhecimentos que sustenta uma profissão academicamente orientada (Tani, 2006). O curso de preparação profissional, nesse contexto, tem como meta dar acesso a esse corpo de conhecimentos para que os futuros profissionais façam dele um instrumental para oferecer serviços de qualidade à sociedade, serviços esses capazes de atender adequadamente às suas necessidades (Tani, 2007). Portanto, a eventual inexistência do suporte de um corpo de conhecimentos acadêmico-científicos em constante elaboração coloca em cheque não apenas a legitimidade, mas também a própria sobrevivência de uma profissão academicamente orientada (Lawson, 1984; Morford, 1972; Tani, 1988, 1989, 1996, 1998). Uma profissão academicamente orientada é geralmente caracterizada pela aderência a certas concepções fundamentais sobre a natureza e extensão de conhecimentos que os seus membros devem possuir (Park, 1991). A legitimidade acadêmico-científica do corpo de conhecimentos, por sua vez, pressupõe uma estrutura à retaguarda que organize a produção, a sistematização, a disseminação e a aplicação Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissionalem perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 3 de conhecimentos, dando-lhe uma identidade e evidenciando a existência de uma área específica de conhecimento. A essa estrutura dá-se o nome de base epistemológica da área e, ao conjunto de conceitos compartilhados que viabiliza a comunicação interna, a denominação de estatuto epistemológico. A Educação Física tem uma tradição relativamente longa como uma prática profissional e como um curso de preparação profissional. Mas a ênfase à preparação profissional e conseqüentemente ao ensino em detrimento da pesquisa, no âmbito universitário, inibiu por longo tempo uma preocupação mais sistemática com a estruturação de um corpo de conhecimentos próprio, que fornecesse sustentação teórica e científica à prática e à preparação profissional. De acordo com os argumentos até aqui apresentados, sem esse corpo de conhecimentos a Educação Física melhor se caracterizaria como uma profissão técnica, para a qual a formação pertinente seria um curso profissionalizante de ensino médio (Tani, 1996, 1998). Se a formação de um profissional em Educação Física implica um curso de preparação profissional em nível superior, devidamente fundamentado num corpo de conhecimentos acadêmico-científicos, torna-se relevante questionar quais são esses conhecimentos e como eles têm sido produzidos e sistematizados historicamente. As discussões acerca desse tema no nosso país são recentes, tendo sido iniciadas, basicamente, no começo da década de 1980, com a implantação dos primeiros programas de pós-graduação stricto sensu. Lamentavelmente, são ainda poucas as pessoas que têm se interessado em discutir seriamente um assunto tão relevante. Excetuando-se os temas relativos ao meu campo específico de investigação, que é a Aprendizagem Motora, as discussões acerca desse assunto têm sido uma das minhas maiores preocupações acadêmicas nos últimos anos, tendo resultado em algumas publicações (Tani, 1988, 1989, 1996, 1998, 1999, 2006). O objetivo central desses trabalhos tem sido o de contribuir para aprofundar as reflexões, discussões e proposições acerca do tema. Como a minha visão da identidade acadêmica da Educação Física já foi apresentada em textos anteriores, aos interessados tomo a liberdade de sugerir a leitura dos originais. Para os objetivos desse texto, apenas alguns dos pontos fundamentais, mais genéricos, que balizaram essas proposições serão retomados, discutidos e aprofundados. 1. Da pesquisa básica, aplicada e tecnológica Com certa freqüência, presenciamos pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento manifestarem que a discussão das diferenças entre esses tipos de pesquisa tornou-se irrelevante em virtude da intensa interação que existe ou deve existir entre eles. De fato, pode ser que diante dos inúmeros e complexos problemas do mundo moderno que esperam por soluções imediatas, a discussão das características de cada um desses tipos de pesquisa pareça um exercício intelectual de pouco resultado prático. Por exemplo, perante o enorme desafio que é a busca de cura para a AIDS, discutir quais pesquisas são mais importantes e prioritárias e em que áreas do conhecimento devem ser realizadas parece ser uma discussão estéril, pois a busca do conhecimento deve se dar em todas as direções e domínios em que existam possibilidades de se avançar na solução do problema. Se o mapeamento genômico do vírus HIV é eventualmente uma chave importante nesse esforço, por permitir um melhor entendimento da forma como ele interage com as células do hospedeiro, poderemos ter pesquisadores na Biologia, na Medicina, na Bioquímica, na Química, na Bioengenharia, todos Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 4 lançando mão dos mesmos recursos e instrumentos da Biologia Molecular para realizar suas pesquisas. Está claro que, na busca de uma solução prática para problemas imediatos, caso a realização de pesquisas aplicadas e tecnológicas esteja na dependência de conhecimentos básicos acerca de objetos, fenômenos e eventos, e esses conhecimentos ainda não estão disponíveis, obviamente, os pesquisadores de áreas aplicadas devem se envolver com a produção desses conhecimentos básicos. Portanto, não existe nenhum problema quando um pesquisador da Engenharia investiga os novos materiais, em interação com pesquisadores da Química, por exemplo, antes de realizar pesquisas aplicadas e tecnológicas próprias da sua área, ou quando um agrônomo ou engenheiro florestal resolve investigar o genoma de uma planta, em interação com pesquisadores da Biologia, antes de realizar pesquisas aplicadas e tecnológicas próprias da Agronomia. Todavia, ao menos duas condições devem estar asseguradas nesses casos: a primeira é de que, apesar de a formação não ser na área, esses pesquisadores tenham competência para realizar esses estudos básicos; a segunda, de que os conhecimentos de fato ainda não estão disponíveis, caso contrário seria uma perda de tempo, pois resultaria numa repetição de pesquisas já realizadas nas áreas básicas. No entanto, quando o foco da discussão é a definição da identidade acadêmica de uma área de conhecimento e não a realização de estudos por parte de um pesquisador ou um grupo de pesquisadores em relação a problemas específicos, a distinção entre esses três tipos de pesquisa torna-se absolutamente fundamental. Por mais que haja pesquisadores envolvidos com pesquisas em cenários como os acima descritos, a Engenharia e a Medicina são e continuarão a ser áreas de conhecimento aplicadas e a Biologia e a Química serão áreas de conhecimento básicas. E, cada uma dessas áreas tem e mantém características distintas, missões específicas, objetos e metodologias de estudo próprios, o que lhes confere identidades acadêmicas claramente definidas. Se assim não fosse, quem faria pesquisas de Engenharia se os pesquisadores da área fossem indiscriminadamente realizar pesquisas de Física e Química? Quem faria pesquisas de Agronomia se a maioria dos pesquisadores da área fosse investigar Botânica? Na realidade, é a presença dessa identidade que torna possível a interação entre as áreas, sejam de natureza básica, aplicada ou tecnológica. Caso contrário, a ciência seria provavelmente uma só. Ainda no plano epistemológico, outro elemento que certamente contribui para a elevação da voz daqueles que acham essa distinção de tipos de pesquisa irrelevante é a apologia da interdisciplinaridade. É amplamente conhecido que a solução de problemas complexos do mundo moderno requer abordagens crescentemente interdisciplinares, com contribuições de pesquisadores e conhecimentos de áreas básicas, aplicadas e tecnológicas, sem distinção. O problema da violência nos campos de futebol, por exemplo, não se resolve apenas conhecendo as peculiaridades da modalidade esportiva nos seus aspectos históricos, sociológicos, psicológicos, fisiológicos ou técnicos. São necessários conhecimentos abrangentes de outras áreas para a compreensão das dimensões, condições e características sociais, culturais, econômicas e políticas do meio (sociedade, comunidade, clube) em que essa prática se desenrola. É preciso conhecimentos sobre o comportamento individual, de grupos e de massa que permitam a compreensão das torcidas organizadas que freqüentam os estádios de futebol - suas motivações, paixões, angústias, rivalidades etc. É necessário conhecimento das características, condições e recursos físicose tecnológicos do espaço físico onde a ação se desenvolve e assim por diante. Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 5 Da mesma forma, sabe-se que a preparação profissional necessita de conhecimentos de várias áreas em virtude da complexidade das necessidades sociais e da velocidade das transformações culturais, tecnológicas e do mercado de trabalho (Tani, 2007). Na formação de um profissional de Educação Física são sabidamente importantes conhecimentos básicos de áreas como a Sociologia, a Antropologia, a Fisiologia, a Bioquímica, entre outras, de forma que o curso de preparação profissional deve contemplá-los na sua grade curricular. Não obstante, é absolutamente fundamental a presença preponderante de disciplinas que tratam de conteúdos específicos da área de Educação Física. Não se pode confundir, portanto, o conceito de interdisciplinaridade quando se analisa a sua relevância na solução de problemas práticos do mundo real ou nos cursos de preparação profissional, com a interdisciplinaridade na discussão da natureza e identidade de uma área específica de conhecimento. O conceito de interdisciplinaridade pode ter diferentes sentidos e a utilização indiferenciada do mesmo levar à confusão epistemológica. A interdisciplinaridade pode significar, entre outras possibilidades: a) utilização, por uma disciplina, de modelos teóricos gerados por outras disciplinas; b) diálogo de diferentes disciplinas; c) construção integrativa e holística envolvendo diferentes disciplinas. No primeiro sentido, ela já é prática comum na ciência moderna, especialmente em áreas de conhecimento novas. No segundo sentido, ela é uma prática que todas as áreas assumem ser importante para evitar-se a crescente especialização das áreas e a decorrente fragmentação do conhecimento, mas ainda de difícil operacionalização. No terceiro sentido, a interdisciplinaridade representa um desafio ao paradigma vigente e implica profundas transformações na estrutura e funcionamento da própria ciência, situando-se por enquanto no plano de meta desejada para não dizer pretensão utópica. Muitos defensores fervorosos da interdisciplinaridade apontam como um dos problemas centrais da ciência atual a limitação ou a ausência de (a) e (b), o que é pertinente, mas apressadamente apresentam como solução o terceiro sentido (c), dando a entender muitas vezes que isso é simples, dependendo apenas da vontade dos pesquisadores. A prática científica tem mostrado cada vez mais, que o importante é o pesquisador ser um profundo conhecedor da sua área específica (disciplinaridade) e ter também capacidade para interagir com pesquisadores de outras áreas, por exemplo, em projetos temáticos (interdisciplinaridade). Na essência, a interdisciplinaridade pressupõe disciplinaridade. Em suma, a definição da identidade de uma área de conhecimento, expressando de forma clara se é de natureza básica, aplicada ou tecnológica, é absolutamente indispensável para que as atividades de pesquisa realizadas no seu interior tenham coerência com essa definição e os conhecimentos produzidos tenham pertinência assegurada para poderem contribuir com o seu crescimento. Nas áreas básicas fazem-se predominantemente pesquisas básicas e nas aplicadas, pesquisas aplicadas. Predominantemente porque, conforme já discutido, pesquisas básicas podem ser realizadas nas áreas aplicadas em situações específicas. A ausência dessa definição pode estimular os pesquisadores a “atirarem para todos os lados” e os seus esforços ficarem diluídos sem resultar em conhecimentos articulados em torno de objetos, temas e problemas específicos da área em que atuam. Isso não pode, obviamente, ser confundido com tornar a área isolada e fechada em si mesma, mesmo porque a troca de idéias, conhecimentos e tecnologias entre as áreas será cada vez maior e mais intensa na ciência moderna. Essa definição é também fundamental quando se analisa as suas implicações na preparação profissional. As áreas de conhecimento aplicadas são também conhecidas como áreas Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 6 profissionalizantes ou de intervenção. Isso porque elas estão associadas a uma profissão específica em que a atuação profissional está muitas vezes regulamentada e protegida por associações de classe. A Medicina só pode ser exercida por médicos. Todos sabem que os conhecimentos de Fisiologia são fundamentais na formação do médico, mas fisiologistas não podem exercer a Medicina. Os conhecimentos de Física são imprescindíveis na formação de engenheiros, mas físicos não podem exercer a Engenharia. A preparação profissional numa área profissionalizante não seria possível na ausência de conhecimentos específicos próprios de natureza aplicada. 2. Da aplicação do conhecimento e da produção do conhecimento aplicado Como largamente conhecido, as pesquisas básicas e aplicadas têm características bem distintas. A pesquisa básica busca a compreensão ou a explicação do objeto de estudo; sua motivação é o conhecimento pelo conhecimento, saciar a curiosidade, desvendar o mundo desconhecido; sua pretensão é contribuir para o enriquecimento cultural da humanidade. A pesquisa aplicada, por sua vez, busca o aperfeiçoamento da práxis, ou seja, produzir conhecimento de aplicação prática para solucionar problemas reais e imediatos da sociedade. Esse sentido prático da pesquisa aplicada leva muitas pessoas a lhe atribuírem valor mais elevado. Isto é, pelo fato de as pesquisas aplicadas orientarem-se para a solução de problemas práticos da vida real, muitos as consideram socialmente mais relevantes que as pesquisas básicas, porquanto trazem benefícios imediatos. As pesquisas aplicadas por possuírem esse perfil teriam assegurado um maior comprometimento social e, portanto, dever-se-ia dar a elas maior prioridade. Todavia, no calor da defesa de pesquisas aplicadas, esquece-se muitas vezes que ter vínculo com problemas práticos do mundo real não significa necessariamente que esses problemas sejam todos eles nobres. Há pesquisas aplicadas direcionadas tanto para promover a vida como para destruí-la. Veja, por exemplo, a utilização do laser na Medicina e na Engenharia Militar (Tani, 2006). Mais ainda, algumas pessoas, movidas por paixões ideológicas, chegam a assumir que pesquisas básicas são desinteressadas e alienadas em relação a esse mundo em que vivemos, repleto de problemas sociais imediatos e, portanto, são um luxo a que países especialmente pobres não se podem permitir. Nessa linha de raciocínio, num país onde pessoas morrem de fome, pesquisa espacial, por exemplo, seria uma heresia. Claro está que enviar um pesquisador para o espaço em missão duvidosa seria terminantemente inaceitável em quaisquer condições. As posições que as pessoas assumem em relação à importância da pesquisa básica e aplicada são influenciadas também pela concepção de ciência que cada uma adota e o papel que lhe atribui. Conceber a ciência como um empreendimento que tem como objetivo estudar fenômenos e eventos - sejam eles de natureza física, social ou cultural, buscando a sua descrição, explicação e predição - ou adotar uma concepção de ciência como um empreendimento que deve servir a humanidade, isto é, fornecer soluções para problemasque são importantes para a sociedade, pode levar naturalmente a diferentes posições e valorizações. Pode também existir pessoas que entendam serem essas concepções complementares e não excludentes e, portanto, defenderem a interação e integração cada vez mais intensa dos dois tipos de pesquisa. Nesse terreno dos valores, não são poucas as visões e posições dogmáticas que mais do que esclarecer, obscurecem aquilo que já é difícil de discernir, mesmo com a mente escancaradamente aberta. Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 7 Não raro deparamos também com slogans do tipo “uma boa ciência é eminentemente aplicada independentemente de básica ou aplicada” ser utilizados para “esfriar” a discussão sobre as diferenças entre elas. São afirmações um tanto “iluministas” que aparentemente solucionam o problema, mas que requerem maior qualificação, pois podem se converter em uma boa fuga para evitar discussões e reflexões epistemológicas mais aprofundadas. Na realidade, o sentido da expressão “aplicada” é diferente quando se discute as duas ciências - básica e aplicada. A expressão aplicada, como uma propriedade distintiva da ciência aplicada, é empregada no sentido de utilidade para a solução concreta de problemas práticos e imediatos da sociedade. Por outro lado, no âmbito da discussão sobre a aplicabilidade dos conhecimentos da ciência básica, essa expressão refere-se ao papel do conhecimento para a ampliação e fortalecimento da consciência das pessoas acerca do mundo que as cerca, da sociedade em que vivem e de si mesmos - aplicação para a formação de um público, nas palavras de Janine (2006) - que indiretamente pode também contribuir na solução de problemas imediatos, pois tem o potencial de influenciar, por exemplo, na escolha dos conhecimentos aplicados para esse objetivo. Uma pessoa que tem conhecimento sobre como o corpo humano funciona (Anatomia e Fisiologia), poderá eventualmente escolher melhor o tipo mais adequado de procedimentos e medicamentos para a cura da sua gripe (Medicina, Farmácia). Em princípio, o conhecimento básico não indica uma solução adequada e pronta para o problema, mas pode contribuir para o seu esclarecimento. Como todos sabem, é muito difícil solucionar um problema mal formulado ou inadequadamente diagnosticado. No entanto, essa possibilidade de aplicação do conhecimento básico não pode ser confundida com a crença que muitos pesquisadores da ciência básica sustentam de que em se contribuindo para a compreensão do fenômeno, estarão automaticamente contribuindo para a solução de problemas práticos e imediatos da sociedade. Da mesma forma, se os conhecimentos produzidos pela pesquisa básica não são aplicáveis diretamente à prática, isso não quer dizer, automaticamente, que os aplicados o sejam. É preciso considerar as limitações da pesquisa aplicada. Muitas vezes, os conhecimentos por ela produzidos são demasiadamente específicos e, portanto, de difícil generalização. Em outras palavras, são aplicáveis a situações muito peculiares, provavelmente somente à solução de problemas que se assemelham àqueles onde os conhecimentos foram originalmente aplicados e testados (Tani, 1996, 2006). A aplicação do conhecimento não pode também ser confundida com a produção do conhecimento aplicado. Pode até parecer uma ingenuidade chamar a atenção para esse aspecto, mas lamentavelmente muita confusão ainda se faz especialmente em áreas em que a discussão epistemológica é incipiente. Aplicar diretamente conhecimentos da Física e da Matemática na construção de uma casa é difícil e de limitada possibilidade. Agora, os conhecimentos produzidos pela Engenharia Civil e Arquitetura a partir dos conhecimentos da Física e da Matemática são diretamente aplicáveis, aliás, são produzidos com essa finalidade. Aplicar diretamente conhecimentos da Fisiologia do Exercício e da Biomecânica na formação de atletas é igualmente difícil. Por outro lado, os conhecimentos aplicados produzidos pelo Treinamento Esportivo a partir dos conhecimentos da Fisiologia do Exercício e da Biomecânica são diretamente utilizáveis nessa formação. Um aspecto importante no contexto dessa discussão diz respeito à aplicação do conhecimento básico para realização de pesquisas visando à produção de conhecimento aplicado. Para a pesquisa básica, o conhecimento é o produto final do processo, mas para a pesquisa aplicada, esse mesmo conhecimento pode ser o começo de um processo (Tani, 1996). Não há dúvida de que a pesquisa aplicada, de certa forma, é uma extensão da pesquisa básica. Mas é importante Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 8 enfatizar que o feedback da pesquisa aplicada é fundamental para a pesquisa básica, não só para propiciar novos insights, como também para se avaliar e controlar a sua qualidade. Não se trata, portanto, de dependência unilateral da pesquisa aplicada à pesquisa básica. Existe uma forte interação entre elas, imprescindível para o crescimento de ambas. Além disso, é relevante considerar que essa interação entre a pesquisa básica e a aplicada não ocorre de forma imediata. Na literatura científica encontram-se inúmeros exemplos de uma boa pesquisa aplicada ter origem nos conhecimentos produzidos pela pesquisa básica realizada há muito tempo. 3. Do domínio público do conhecimento e a profissão academicamente orientada Conforme foi discutido anteriormente, as profissões academicamente orientadas oferecem serviços à sociedade que são apoiados em conhecimentos acadêmico-científicos. Ao oferecer esses serviços - projetos, programas e procedimentos de intervenção profissional - os conhecimentos que dão sustentação ao trabalho do profissional são também disseminados à sociedade, tornando-os públicos. Em outras palavras, a intervenção profissional faz com que a disseminação do conhecimento transforme aquilo que era uma vez de domínio apenas dos profissionais, de domínio público. Portanto, como conseqüência de uma intervenção profissional eficaz, a sociedade torna-se mais bem informada e assim mais exigente em relação ao serviço que o próprio profissional oferece. Nesse contexto, cabe ao profissional responder positivamente a esse desafio mediante auto-aperfeiçoamento constante. Esse é o lado positivo dessa relação. Mas existe também o outro lado da relação que dá origem a uma espécie de dilema: o profissional competente é aquele que oferece serviço de qualidade, mas em se oferecendo serviço de qualidade, ele corre o risco de se “desprofissionalizar” gradativamente, ou seja, as pessoas tornam-se mais autônomas e independentes dos serviços por ele oferecido. Acrescente-se a isso o fato de os rápidos avanços tecnológicos tornarem possível a aquisição de conhecimentos e habilidades sem depender do ensino de um profissional. Na realidade, não há como impedir ou obstruir esse processo; ele é inevitável. A alternativa que resta é a busca constante de novos conhecimentos para fazer com que a intervenção do profissional, mesmo dentro dessas circunstâncias e condicionantes, seja percebida pela sociedade como indispensável pela qualidade que ela encerra. O pior quadro é quando a descrença ou insatisfação com os profissionais levam as pessoas à auto-ajuda, ou seja, resolver os problemas por si. Isso corresponderia a uma categoriaprofissional assinar coletivamente um atestado de óbito profissional. Em suma, uma profissão academicamente orientada deve estar apoiada numa área de conhecimento que lhe forneça constantemente novos conhecimentos que sejam capazes de conferir qualidade à intervenção profissional. Os conhecimentos que o profissional utiliza na sua intervenção são variados e provenientes de diferentes fontes, mas existem aqueles que constituem a base da sua formação e atuação, pois estão diretamente associados à solução de problemas específicos que a sociedade dele espera. Esses são os conhecimentos cuja produção e disseminação deve ser de responsabilidade da área de conhecimento correspondente, motivo pelo qual a definição da identidade acadêmica constituir-se uma condição imprescindível. Tomando como exemplo, a atuação de um médico deve estar fundamentalmente baseada nos conhecimentos que a Medicina disponibiliza, assim como ocorre com a atuação do engenheiro em relação à Engenharia, do agrônomo com a Agronomia e assim por diante. Claro está que os conhecimentos disponíveis podem ainda não ser suficientes para uma intervenção precisa, Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 9 segura e definitiva em razão do estado de arte da área e da complexidade do problema que se apresenta, deixando um bom espaço ainda para a intuição, o bom senso e a capacidade de associação a problemas e soluções congêneres. Evidentemente, outros conhecimentos de cunho mais genérico são também importantes, muitas vezes não diretamente associados à solução de problemas concretos e específicos, mas para formação de uma visão sistêmica capaz de colocar os problemas em diferentes perspectivas sempre que necessário e pertinente. Não é por menos que os cursos de preparação profissional oferecem currículos com conteúdos mais abrangentes que não se restringem àqueles das disciplinas específicas da área de intervenção profissional, atribuindo-lhes uma característica mais interdisciplinar. Espera-se que um profissional formado nessas condições estará mais preparado para atuar também numa equipe interdisciplinar, exatamente porque possui conhecimentos específicos de uma área de conhecimento, algo improvável para um profissional de conhecimento apenas amplo e genérico. Para concluir e abusando da redundância: interdisciplinaridade pressupõe disciplinaridade. Muitos arautos da interdisciplinaridade, que entendem ser a discussão dos diferentes tipos de pesquisa extemporânea, irrelevante e desnecessária, estão na realidade confundindo o cenário das discussões, não fazendo a devida e necessária distinção quando o que está sendo discutido refere-se à preparação profissional, a solução de problemas do mundo real ou a identidade acadêmica. Essa falta de discernimento tem se constituído em mais um ingrediente para postergar e inibir uma discussão epistemológica profunda, particularmente nas áreas de conhecimento de intervenção profissional, como a Educação Física. Referências bibliográficas JANINE, R. (2006). O cientista e o intelectual. In A. NOVAES (Org.), O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, p.137-149. LAWSON, H.A. (1984). Invitation to physical education. Champaign, Illinois: Human Kinetics. MORFORD, W.R. (1972). Toward a profession, not a craft. Quest, 18, 88-93. PARK, R.J. (1991). On tilting at windmills while facing armageddon. Quest, 43, 247-259. TANI, G. (1988). Pesquisa e pós-graduação em educação física. In S.C.E. Passos (Coord.), Educação física e esportes na universidade. Brasília: SEED-MEC/UnB, p.381-394. TANI, G. (1989). Perspectivas da educação física como disciplina acadêmica. In Anais do Simpósio Paulista de Educação Física, 2. Rio Claro: Universidade Estadual Paulista, 2, 2- 12. TANI, G. (1996). Cinesiologia, educação física e esporte: ordem emanente do caos na estrutura acadêmica. Motus Corporis, 3, 9-49. TANI, G. (1998). 20 anos de ciências do esporte: um transatlântico sem rumo? Revista Brasileira de Ciências do Esporte - Número Especial Comemorativo dos 20 Anos de Fundação, 19-31. TANI, G. (1999). Atividade de pesquisa na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo: passado, presente e futuro. Revista Paulista de Educação Física. Número Especial Comemorativo aos 30 Anos de Incorporação pela Universidade de São Paulo, 13, 20-35. TANI, G. (2006). Comportamento motor e sua relação com a educação física. Brazilian Journal of Motor Behavior, 1, 1, 21-30. TANI, G. (2007). Avaliação das condições do ensino de graduação em educação física: garantia de uma formação de qualidade. Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte, 6, 2, 55-70. Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25. 10 Texto publicado como capítulo de livro: Tani, G. (2008). Área de conhecimento e intervenção profissional. In U.C. Corrêa (Org.), Pesquisa em comportamento motor: a intervenção profissional em perspectiva. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, p.14-25.
Compartilhar