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EA D Missiologia e Diálogo 6 1. OBJETIVOS • Compreender as bases teológicas da dimensão missioná- ria. • Reconhecer os itinerários da ação missionária em seus projetos históricos na América Latina. • Identificar os posicionamentos das várias instâncias da igreja, especialmente das comunidades eclesiais da Amé- rica-Latina e do Brasil. • Compreender o significado do diálogo com as culturas na perspectiva missionária. 2. CONTEÚDOS • A missão e o encontro com a alteridade. • Panorama missionário da América Latina. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso214 • Teologia da missão. Trindade e reino de Deus. • Evangelização, culturas e inculturação. • Documentos da igreja universal e latino americana. • A missionariedade da igreja latino americana. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, leia as orientações a seguir: 1) É importante que retome o roteiro que seguimos até aqui. Veja que partimos do diálogo, passamos pelo fun- damentalismo, entramos pelos caminhos do ecumenis- mo cristão e do encontro com outras tradições religio- sas, examinando as contribuições das religiões para o futuro da humanidade e da integridade da criação. 2) Observe também os documentos citados, as referências bibliográficas. Busque textos de revistas missionárias para ampliar o repertório de situações que desafiem suas pesquisas e estudos. 3) Também é interessante que você entre em contato com os principais documentos do Concílio Vaticano II, das Conferências do CELAM, da CNBB, das Encíclicas papais e das Conferências missionárias da América Latina. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Ao nos debruçarmos sobre a temática do diálogo, na Uni- dade 1 deste estudo, deparamos com o referencial da alteridade. Todo o verdadeiro diálogo é uma saída em direção ao outro, que institui laços, alianças, pactos e, ao mesmo tempo, preserva um campo de reconhecimento da diferença, da autonomia mútua. O outro não pode ser anulado, e há que se garantir o respeito pela reserva de valores que não puderam se manifestar no encontro. 215 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo Estudamos também os fundamentalismos que pretendem suprimir o diálogo, ancorados que estão em sua segurança inatin- gível. O poder do diálogo é substituído pelo pretenso poder sobre os outros grupos, sobre os povos, sobre as culturas, tomando Deus Todo-Poderoso como cúmplice de sua pretensa superioridade. Caminhamos, nos nossos estudos, pelas trajetórias das igre- jas cristãs, que passaram por desencontros graves na História, mas que conhecem uma primavera dialogal no século 20, com influxo especial do Conselho Mundial de Igrejas, em sua origem protes- tante, e do Concílio Vaticano II, no mundo católico, com suas de- correntes instituições ecumênicas. Muitos eventos, conferências e práxis solidárias estão marcando o reencontro de diversas comuni- dades, historicamente adversárias, num ecumenismo cristão. Examinamos ainda as recentes mobilizações para um en- contro sadio entre tradições religiosas tão diferentes que habitam nosso planeta. E, nesse ponto, estudamos os referenciais espiritu- ais e éticos com vistas a captar a riqueza de contribuição para uma humanidade que, contando com sete bilhões de pessoas, vive atu- almente situações alarmantes, e essas mesmas pessoas são, para as religiões, irmãs, filhos e filhas de Deus. Chegamos, assim, ao estudo da missão das religiões nos ho- rizontes amplos da preocupação salvífica, que concerne a toda a comunidade de vida no planeta e a todos os povos. Nossa opção aqui será a de uma abordagem da dimensão missionária a partir de uma perspectiva cristã. Mais especificamente, nos deteremos no olhar teológico cristão para a missão no âmbito do cristianismo de matriz católica, com acento nos caminhos da Igreja latino-americana. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso216 5. MISSÃO: CAMINHO EM DIREÇÃO À MORADA DO OUTRO Missionários são os que escolhem os caminhos e não os cas- telos defendidos. Quem olha as fortificações pode captar sinais evidentes de acumulação, de defesa contra o outro, pois as portas podem se fechar; os muros, se altear e gradear. Os caminhos são sempre sinais de abertura, de despojamento. Só assim se abrem os olhos aos cegos, abrem-se os ouvidos, a boca, o coração, e já não se fixa a mensagem nos sepulcros, pois esses também se abrem. Os caminhos levam além das fronteiras. Compartilhando sementes Missão começa com saída e, assim, trata-se de um envio. Primeiro, um envio divino, depois um envio comunitário. Não é um projeto pessoal, mas de uma comunidade de origem que vai junta nos desafios do caminho. No percurso está o inesperado, a surpresa dos encontros com o outro, as dinâmicas transformado- ras do diálogo. Uma missionária, visitando sua comunidade eclesial de ori- gem em São Paulo, contou, durante a celebração eucarística que, estando no Chade, na África, sua comunidade missionária escutou essa manifestação de uma liderança tribal: “Nós, aqui nesse veló- rio, se fosse há 10 anos, estaríamos decidindo quem seria o nosso agente da vingança e que tipo de desforra seria feita pela morte de nosso parente; descobrimos, porém, em nossa cultura uma sabe- doria esquecida que é muito semelhante à que vocês compartilha- ram conosco; não daremos motivo para a vitória da violência e da morte. O perdão será ressurreição”. Aqui está o fermento na massa. Aqui, o reino de Deus já pre- sente como uma semente quase invisível. São necessárias as len- tes do evangelho para não jogar fora as possibilidades do reino de Deus semeadas pelo Espírito antes ainda da chegada dos missio- nários. 217 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo Confrontando perspectivas Um grupo religioso reuniu seus fiéis na aldeia guarani de uma grande cidade, no final da primeira década do século 21. Com todo o fervor, inocência e boa intenção, o missionário dizia a uma centena de fiéis e alguns indígenas curiosos que acompanhavam a cerimônia: “Estamos aqui, e aonde chegamos o demônio não fica; então, nossa oração hoje é para tirar os demônios da incredulida- de, da ignorância bíblica, dos deuses falsos; como já conseguimos em outras aldeias, um dia salvaremos a esses que desejarão ser batizados na nossa Igreja”. As cestas básicas e a doação de alimentos em véspera de vencimento eram moedas de troca para poder construir um gal- pão e realizar suas celebrações na aldeia. Não foram buscar hospe- dagem, mas implantar sua casa dentro da morada do outro. Os guaranis têm outra perspectiva missionária. A comunida- de Guarani M'bya aguarda cada criança como uma missionária de Deus, pois é enviada como palavra-alma, recado divino à humani- dade. Nhanderu (nosso Pai Último-Primeiro) tomou de dentro de si o coração, a canção e a palavra e fez o ser humano, enviando- -o criança para renovar o mundo com seu recado. É uma palavra nova, com melodia e amor, que não foi ouvida até o momento. Um recado novo a ser contemplado sem pressa. Toda a existência humana é uma resposta a esse envio divino; e toda a comunidade, uma casa que acolhe e responde às convocações desse recado. A comunidade guarani não concebe o demônio em compe- tição com Deus. Se os missionários devessem falar de demônios, deveria ser daqueles que impedem a memória dos povos, dos de- mônios que exigem sacrifícios dos fracos e anulam seus projetos. Então, a caminho, os missionários poderiam, com sua prática, ex- pulsar os demônios que invertem a compreensão do mundo. Ao expulsá-los, desmascara-se a perversidade de pessoas e estruturas que escondem, sob mantos decorados, os pecados mortais que destroema vida e impedem o advento do reino de Deus entre to- dos os povos. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso218 Travessia e fecundidade da missão A comunidade é lançada para os horizontes amplos de um mundo ainda não existente. É para tecer uma nova realidade que se põe a caminho um grupo de missionários. No ano de 1952 chegaram ao Mato Grosso, vindas da Fran- ça, três mulheres da Congregação de Charles de Foucauld. Foram viver na aldeia Urubu Branco, na qual havia 50 tapirapés sobrevi- ventes de ameaças e de massacres. As irmãzinhas de Jesus, Geno- veva, Clara e Denise, hospedaram-se numa casa como a dos outros habitantes da aldeia (Cf.ANDRADE, 2010, p.121ss) Os tapirapés estavam em alto risco de sobrevivência. Era preciso, junto com esse grupo indígena, tecer caminhos de vida. Também vencer graves ameaças externas e internas. No interior de sua cultura, em sua experiência espiritual, na trama da vida ta- pirapé morava a “semente de mostarda” (Mc 4, 31). Diante da fragilidade, poderia ter brotado a vontade de subs- tituir as sementes velhas e pequenas pela eficiência imediata de novas e fortes sementes das culturas greco-romanas ocidentais. Todo o aparato dos referenciais já conhecidos pelas irmãs pode- ria apagar o mistério do mundo tapirapé e repetir ali as verdades, os rituais e as normativas acalentadas há milênios no continente europeu. Assim fazendo, estariam mais seguras, não correriam o risco de perder suas vidas. Implantariam sua riqueza cultural e re- ligiosa comum a centenas de milhões de pessoas, incluindo um povo em extinção nos quadros da instituição católica a que per- tenciam as irmãs. A saída geográfica da Europa para o interior do Brasil poderia ser pensada como suficiente para a compreensão da ação missio- nária. Mas houve outras convocações para a travessia dos limites. Era necessário sair do universo cultural hegemônico. Foi preciso também tornar-se “judeu com os judeus, gentio com os gentios, (Cf. 1Cor 9,19-23), tapirapé com os tapirapé". 219 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo A gentileza das irmãzinhas as fez mais católicas e mais mis- sionárias quanto mais tapirapés se tornaram. Entenderam que, se não perdessem sua segurança, não construiriam o espaço vital e espiritual junto com esse povo. Hospedar-se na morada dos outros é diferente de construir castelos próprios em territórios espirituais dos outros para depois convencê-los a deixarem seus projetos e adaptarem-se à arquitetura edificada com uma torre de vigia. O caminho das irmãs foi o mesmo dos primeiros missioná- rios do cristianismo nascente. Os doze (Mt 10) e os setenta (Lc 10) foram hospedar-se nas casas dos povos. Despojados de poder, na fragilidade insegura da itinerância, simples como as pombas mas prudentes como as serpentes, sem os bastões da condenação, fo- ram anunciar o reino de Deus, arrancar das cruzes os crucificados, tirar o peso das acusações, iluminar e temperar a terra e o mundo (Mt 5,13ss). Evangelizados na cultura do outro Desde 1960, Dom Samuel Ruiz foi bispo de Chiapas, no Méxi- co. A grande maioria dos cristãos tem origem maia e, por isso, ele aprendeu duas línguas dessa cultura. Andou pelas comunidades marginalizadas e viu o sofrimento do seu povo indígena, que tinha as costas marcadas pelos chicotes dos senhores de engenho, que tinha suas jovens defloradas pelos donos das terras como direito adquirido pelo poder financeiro, machista e político. Dom Samuel viu o sofrimento do seu povo e foi se perguntando sobre sua mis- são como bispo numa cultura milenar e agredida. Dom Samuel foi para o Concílio Vaticano II e compartilhou as mesmas preocupações com bispos do Brasil, da África e da Ásia. Acompanhou a elaboração de documentos nos quais escreveu so- bre a necessidade de criar "Igrejas particulares autóctones, devi- damente organizadas, enriquecidas também de forças próprias e de maturidade e dotadas de suficiente hierarquia própria unida ao povo fiel" (AG, 6). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso220 Dom Samuel voltou do Vaticano II com disposição para re- conhecer o direito dos indígenas de receberem a mensagem do evangelho na sua própria língua e na sua própria mentalidade. Depois de 40 anos de atuação, a diocese tinha 18 mil catequistas indígenas e mais de 500 diáconos indígenas. Quando deixou a diocese de Chiapas, disse que ainda não ti- nha conseguido realizar uma igreja que fosse encarnação do evan- gelho na cultura, como o Concílio Vaticano II tinha definido (CIMI 2012). Como muitos outros bispos latino-americanos, entre eles Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Camara, Dom Leônidas Pro- año, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Oscar Romero, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Antônio Fragoso, Dom José Maria Pires, Dom Angelelli, Dom Erwin Kräutler, também Dom Samuel Ruiz, que morreu em janeiro de 2011, deixou o testemunho de que veio para evangelizar os indígenas e foi por eles evangelizado. 6. PANORAMA DA MISSÃO NA AMÉRICA LATINA Olhando para a imensa trama de comunidades eclesiais, de organismos religiosos, de agentes, de pastorais, de igrejas parti- culares, de santuários, de figuras missionárias, podemos compor uma percepção do cenário religioso que resultou de séculos de evangelização na América Latina. O continente latino-americano foi um dos lugares no mundo em que o cristianismo se expandiu de forma ampla e, “entre luzes e sombras”, deixou sua marca em “formas vitais de religiosidade vigente” (CELAM, 1979, n.6). Voltando os olhos para as transformações missionárias entre os séculos 20 e 21, podemos acenar, no nosso caso, ao influxo da Ação Católica Brasileira (ACB) que, com as mais variadas expres- sões na universidade, no campo e na cidade, no mundo operário e juvenil, como a Juventude Agrária Católica (JAC), a Juventude Ope- rária Católica (JOC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juven- 221 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo tude Universitária Católica (JUC), criou o ambiente propício para a consciência missionária na complexidade da sociedade. A Ação Católica tinha surgido na Bélgica em 1935 e, em poucos anos, já estava no Brasil, trazendo um método que se con- sagrou na forma de refletir por toda a América Latina. Os passos ver-julgar-agir e a revisão de vida desencadearam uma espiritu- alidade missionária que produzia especial mística de atuação na sociedade. Já em 1939, no I Concílio Brasileiro, foi lançada uma carta pastoral sobre a atuação dos leigos na sociedade brasileira. Ali estavam nomes famosos como os de Jackson de Figueiredo e Alceu de Amoroso Lima. Uma perspectiva missionária, há um tem- po laica e clerical, que acolhe movimentos de renovação bíblica, litúrgica e de ação pastoral, vai se consolidando no Brasil. Nesse ambiente, nasce também, no Rio de Janeiro, em 1946, a primeira Universidade Católica do Brasil (PUC-Rio), que reúne in- telectuais cristãos, cuja participação social e eclesial será de muita importância. No ano de 1952, com especial influxo de Dom Helder Câma- ra, constitui-se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Após 60 anos de atividades, é uma das instituições mais respeita- das na sociedade brasileira e teve uma agenda ampla de ações em muitos níveis, enfrentando demandas internas e a presença pú- blica no enfrentamento da ditadura militar, na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e na luta pelos direitos dos mais empobrecidos. A Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) se constituiu em 1954, assumindo também a missão com mais intensidade, articu- lação e capacidade formativa. No ano de 1955, no Rio de Janeiro, constitui-se o Conselho Episcopal da América Latina (CELAM) e se realiza a primeira Confe-rência dos Bispos. Embora houvesse uma reserva contra as deno- minações cristãs não católicas, o ambiente do evento teve avanços significativos no empenho na formação de leigos missionários, na © Missiologia e Diálogo Inter-religioso222 aproximação com povos indígenas e na superação de discrimina- ções raciais. Valoriza-se os institutos missionários e a constituição de outras instituições capazes de responder às exigências do tem- po. No ano seguinte, em assembleia geral do CELAM, em Bogotá, decide-se organizar as Pontifícias Obras Missionárias (POM) por toda a América Latina. A grande seca no Rio Grande do Norte, em 1962, desenca- deou uma mobilização chamada Coleta Missão da Fraternidade, que foi inspiradora das Campanhas da Fraternidade realizadas anualmente sobre coordenação da CNBB desde 1964. Surge nes- se período o Plano Pastoral de Emergência (1962-1965) como pri- meira experiência de planejamento amplo da ação missionária da igreja no Brasil. Com a intensidade desses momentos, o avanço da reflexão teológica, o Movimento por um Mundo Melhor no final da década de 1950 e o Movimento de Educação de Base (MEB) a partir de 1960, a igreja do Brasil reuniu uma riqueza de experiências que levou para o Concílio Vaticano II. No retorno do Vaticano II, a CNBB faz o Plano de Pastoral de Conjunto para os anos entre 1966 e 1970, estabelecendo ali seis dimensões de toda a ação da Igreja no Brasil. Nas décadas seguintes, esses planos foram realizados em nível nacional e local, incorporando sempre a linha missionária. Logo após o Vaticano II, também o CELAM, em 1966, criou o Departamento da Missões (DEMIS) que, em seu primeiro encontro no ano seguinte, definiu alguns caminhos: Necessidade de uma pastoral especificamente missionária, segun- do a teologia conciliar. O direito dos grupos humanos, especialmente os indígenas, de re- ceber a mensagem em suas línguas. Liturgia na língua de cada povo. Os sinais dos tempos exigem capacitação dos agentes e adequado planejamento. 223 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo Criação de um Instituto de pesquisa e capacitação missionária. Preparação dos missionários, coordenação e preparação de equi- pes a serviço dos territórios de missão. Criação de uma equipe de pastoral missionária junto ao DEMIS e a realização de um Congresso Missionário Latino-Americano. (PANA- ZZOLO, 2010, p. 179) Nesse ambiente latino-americano pós-conciliar, a Conferên- cia de Medellín assume a evangelização dos povos com a decisão de cuidar do surgimento de igrejas locais com o rosto das dife- rentes culturas. A reflexão teológica introduziu temas importan- tes, como: a conscientização, a pastoral de conjunto, as culturas, a libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), a religiosidade popular, a educação, a formação do clero, dos religiosos, dos lei- gos, da juventude etc. Embora a Conferência de Medellín não tenha tematizado diretamente a questão missionária, nos anos seguintes muita coi- sa aconteceu. Houve quatro grandes encontros indigenistas que abordaram a questão das culturas nativas; Venezuela (1969), Mé- xico (1970), Peru (1971) e Brasil (1977), mais especificamente Ma- naus. Nas décadas seguintes, uma série de encontros com povos indígenas ampliaram essa reflexão, escutando as vozes dos povos originários. Desde 1972, no Brasil, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) se constituiu e direcionou seu trabalho para a formação de missionários, a defesa do direito territorial dos povos e a au- tonomia organizativa das comunidades indígenas. Aqui há muitas histórias de compromisso, de superação colonial e de martírio na defesa dos povos. Em 1977, foi desencadeado um processo de mapeamento da realidade missionária, construindo um Panorama missionário da América Latina. A CNBB acolheu esse momento, de “uma Igreja mais missionária, nossa esperança, com prioridades missionárias quanto aos destinatários, à qualidade da evangelização e à missão universal” (CNBB, 1978, p. 793). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso224 Esse processo de construção do Panorama Missionário teve influxo importante em Puebla, na terceira Conferência do CELAM em 1979. Em Puebla, 1979, assume-se o Vaticano II e o evento de Me- dellín, postulando uma aguçada consciência missionária que per- tence a todo o povo de Deus e que enfrenta a gravidade das situa- ções das comunidades e dos povos (PUEBLA, 12, in CELAM, 2005, p. 348 e 367). No Brasil, as iniciativas vão se ampliando até chegar à ela- boração de um documento marcante. Na Assembleia Geral da CNBB de 1988 afirma-se que chegou a “hora missionária” acolhida no documento “Igreja: comunhão e missão”. Muitos organismos, encontros, articulações e projetos são criados nesse contexto. As congregações religiosas valorizam as comunidades inseridas em si- tuações missionárias de fronteira e organizam grupos de reflexão e animação missionárias. Os projetos igrejas irmãs e igrejas solidá- rias coloca dioceses do Brasil em ações em outras regiões do País e em outras nações latino-americanas e africanas. Um amplo processo de solidariedade e de presença promo- tora de sentido para a vida, Favoreceu a ajuda e a comunhão entre diversas Igrejas particulares e proporcionou a muitos sacerdotes e seminaristas, comunidades religiosas e agentes de pastoral leigos, experiências apostólicas, que os enriqueceram grandemente (CNBB, 1988, n.125). Na última década do século 20 e na primeira década no novo milênio foram marcantes os Congressos Missionários Latino- Americanos (COMLAs). Eles surgem ainda na década de 1970, na esteira dos Congressos nacionais missionários do México que datam de 1942. Em 1977, o VII Congresso Nacional Missionário do México, pela grande presença de pessoas de outros países, foi transformado no I COMLA. O segundo foi também no México (Tlaxcala) em 1983; o terceiro, já próximo à celebração de 500 anos de presença do cristianismo no continente, foi realizado na Colômbia (Bogotá) em 1987 e, com o lema “América, chegou tua 225 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo hora de ser evangelizadora”, propôs o desafio da generosidade missionária a partir da pobreza. Havia ali 2.600 participantes que vieram de 25 nações. O IV COMLA foi realizado no Peru (Lima), em 1991, com uma preparação maior, com o influxo da Encíclica de João Paulo II, Redemptoris Missio (1990), com estudos locais e encontros prévios de missionários, com a participação 5.000 pessoas. Em 1995, o V COMLA se realizou no Brasil (Belo Horizonte) com o tema “O Evangelho nas culturas – caminho de vida e esperança”. Com uma mobilização intensa de quatro anos, e sob o influxo da IV Conferência do CELAM em Santo Domingo, 1992, a igreja do Brasil amadureceu muito na reflexão missionária. Os subtemas do Congresso sinalizam a amplitude do evento: Evangelização e diálogo na missão além fronteiras; Evangelização e diálogo junto às culturas indígenas; Evangelização e diálogo junto às culturas afro-americanas; Evangelização e diálogo junto às culturas urbanas; A Igreja particular, sujeito da missão; Ecumenismo, diálogo inter-religioso e missão; A missão, caminho de libertação; A dimensão missionária na formação; Espiritualidade missionária (PANAZZOLO, 2010, p. 197). Aqui, o tema da inculturação, que abordaremos mais à frente, esteve intensamente presente. Os valores cultivados pelas comunidades indígenas foram muito valorizados: solidariedade, reverência à Mãe Terra, hospitalidade, gratuidade, autonomia, resistência. O reconhecimento das tradições religiosas ancestrais abre novo olhar em direçãoà responsabilidade missionário com o diálogo inter-religioso. A leitura do evangelho feita por comunidades indígenas, a expressão da fé com linguagem, símbolos e ritos próprios, como também uma teologia índia, foram exigências assumidas em decorrência da inculturação. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso226 Em 1999, realizou-se o VI COMLA na Argentina, que enfren- tou a questão da globalização e seus desafios para a missão. Esse Congresso transformou-se também no primeiro Congresso Ameri- cano Missionário (CAM I), unindo América do Norte, América Cen- tral, Caribe e América do Sul. O COMLA VII e o CAM II foram realizados em conjunto na Guatemala em 2003, retomando e aprofundando os grandes te- mas dessa tradição de eventos missionários: missão inculturada e libertadora, missão de pobre para pobre, missão solidária com toda a criação, missão e comunicação, espiritualidade da missão. (Cf. PANAZOLLO, 2010, p. 208-214). Em 2008, foi realizado o COMLA VIII e o CAM III no Equador (Quito) e já se anunciou o próximo, na Venezuela (Maracaibo) em 2013. O terceiro Congresso Nacional Missionário do Brasil, em ju- lho de 2012, realizou-se preparando o COMLA IX e CAM IV e colo- cando como preocupações importantes o mundo secularizado e as implicações do pluralismo cultural. Esse breve panorama histórico nos prepara para compre- ender os fundamentos da ação missionária, para pensar sobre a teologia da missão, para esboçar os caminhos da missiologia en- quanto reflexão teórica que acompanha a dimensão missionária. 7. MISSIOLOGIA – TEOLOGIA DA MISSÃO A ação missionária tem longa e complexa trajetória desde que os evangelhos acolheram e documentaram tal compreensão nas primeiras comunidades diante do mandato de Jesus: Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensi- nando-as a observar tudo quanto vos ordenei (Mt 28,19-20). Recebereis uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra (At 1,8). 227 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura (Mc 16,15). Se ao longo dos séculos a formação teológica não teve um enfoque missionário do ponto de vista dos estudos, a prática mis- sionária conta com um vasto campo de vivências documentadas nos relatos das missões, especialmente nas ordens religiosas e congregações que expandiram a presença cristã pelas regiões mais diversas do mundo. Mas é no século 20 que avançam as pesquisas, os estudos, a divulgação, os congressos, os organismos, os docu- mentos eclesiais. O estudo da missão como campo do saber teológico é muito recente. Trata-se de tomar a realidade missionária em seu conjun- to com toda a diversidade, interconexões, complexidade, com seus fundamentos teológico-bíblicos, com toda a História do cristianis- mo, com os referenciais dos conhecimentos antropológicos e com muito conhecimento da linguagem tanto quanto da vida social. A missiologia é a ciência teológica que estuda a realidade missio- nária no seu conjunto e nos seus diversos elementos. Em outras palavras, é a disciplina teológica que se ocupa das missões sob a luz dos princípios da revelação divina, da doutrina teológica, conjugan- do-se com os tratados mais importantes: a Trindade, a Cristologia, a Eclesiologia [...]. Conta com conhecimentos humanos e antropo- lógicos e de outros aspectos relacionados, pesquisados, cientifica- mente elaborados. É decisivo, para a missiologia, manter a parceira com outras disciplinas (PANAZZOLO, 2010, p. 17-18). No final do século 19, na Alemanha, Gustav Warneck, pro- fessor de tradição protestante, inicia uma reflexão sistemática e acadêmica sobre a missão, criando uma cátedra de missiologia na Universidade de Halle-Wittenberg, na qual trabalhou entre 1896 e 1910. Esses estudos fortaleceram um movimento que foi unin- do as confissões evangélicas ao redor de congressos locais e mun- diais, como foi o caso da Conferência de Edimburgo em 1910, mar- co inaugural do ecumenismo no mundo protestante. Esta conferência, com 160 organismos cristãos e 1.200 par- ticipantes, marcou com isso, o modo de abordar a missão por © Missiologia e Diálogo Inter-religioso228 parte da tradição cristã, especialmente em face às outras crenças. Muitos teólogos e missionários foram influenciados por esse acon- tecimento. Deixaram de compreender a missão nos passos dos impérios e foram abandonando um eurocentrismo que fora hege- mônico durante séculos. A seção IV da conferência tratou das relações do cristianismo com religiões não-cristãs. David Cairns, presidente da seção, apre- sentou a importância de entender o Islã como algo grandioso, com uma missão religiosa apreciável, de trazer ao mundo um ethos mais humano e uma piedade pura. Cairns perguntou aos partici- pantes da conferência: "será que nós, em nossa teologia e religião modernas, reconhecemos suficientemente o que o islã representa [...]” (CONCILIUM, 2011/1, p. 52). No campo católico, com a influência de Warneck e do am- biente de mobilização missionária protestante, Josef Schmidlin cria a primeira cadeira de estudos de missiologia na Universidade Católica de Münster. Outra referência inaugural no âmbito católico é a publicação do primeiro volume da Bibliotheca missionum em 1916, feita por Robert Streit. Assim, a primeira metade do século 20 foi um tempo de repensar e reconfigurar as práticas missioná- rias e seus fundamentos. Os 50 anos que precederam o Vaticano II foram de intensa reflexão missiológica, movimento que influenciou os participantes do concílio. O acompanhamento das atividades missionárias e as questões trazidas pelas comunidades que estavam nas fronteiras eclesiais e sociais propiciaram o levantamento de questões impor- tantes e estudos aprimorados. Houve muitos eventos e publica- ções na primeira metade do século 20. As questões missiológicas e missionárias encontraram um grande desenvolvimento nas Revistas Missionárias e nos manuais de mis- siologia. Organizaram-se encontros e Semanas dedicados à missão (em Lovaina, na Espanha, na Itália, na Alemanha e surgiram Escolas Missiológicas, acentuando um ou outro aspecto da missão (PANA- ZZOLO, 2010, p. 19). 229 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo Nos últimos 100 anos, há uma gama de documentos que acolhem e incentivam a reflexão missiológica, entre os quais al- gumas encíclicas. O Papa Leão XIII, no final do século 19, publica a encíclica Sancta dei civitas. O Papa Bento XV traça diretrizes e convoca todos os cristãos a assumirem a vocação missionária na encíclica Maximum illud, de 1919. Essa é considerada a encícli- ca inaugural de um grande movimento missionário no século 20. Nesse momento, aparecem a valorização das culturas e o respeito despido de interesses próprios, assumindo toda a realidade a sal- var: "A Igreja de Deus é católica, portanto, em nenhum povo ela se sente estrangeira" (PANAZZOLO, 2010, p. 20). A esse documento se seguiram a Rerum ecclesiae, de Pio XI, a Saeculo exeunte, a Evangelli praecones e a Fidei donum de Pio XII, a Princeps pastorum de João XXIII, a Evangelii nuntiandi de Paulo VI, a Slavorum apostoli e a Redemptoris missio de João Paulo II. Esse foi um tempo de constituição de organismos missioná- rios, de incentivo à pesquisa, de maturação de uma teologia da missão. A problemática contemporânea da inculturação do evange- lho está presente, implícita ou explicitamente, nos documentos eclesiais desde a encíclica de Bento XV no início do século 20. As repercussões, em termos de estudoe formação de mis- sionários, no Brasil e na América Latina são tardias. A CNBB, em documento de 1988, propõe com vigor que a Missiologia faça par- te do currículo de estudos teológicos e que se amplie a consciência de uma igreja missionária (CNBB, 1988, n. 124). Em documento preparatório para a Conferência Latino-Americana de Santo Do- mingo (1992), a CNBB sugeriu a necessidade de que os seminários incluíssem cursos específicos de Missiologia e Antropologia Cultu- ral (CNBB, 1992, n. 42a). A IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Santo Domingo, 1992, chama a igreja do continente para que “integre nos programas de formação sacerdotal e religiosas cursos especí- © Missiologia e Diálogo Inter-religioso230 ficos de missiologia e instrua os candidatos ao sacerdócio sobre a importância da inculturação do Evangelho" (CELAM, 2005, n. 128). Esse documento de Santo Domingo, apontando que a in- culturação visa à libertação integral e que a teologia da missão é exigência para toda a ação evangelizadora, vai além do que ficou definido no Concílio Vaticano II, em que a missiologia foi conce- bida basicamente como disciplina teológica para Missionários Ad Gentes (AG 26). Na encíclica Redemptor missio (1990), o Papa João Paulo II explicita que o ensino teológico não pode nem deve prescindir da missão universal da Igreja, do ecumenismo, do estudo das grandes religiões e da missiologia (Cf. REDEMPTOR MISSIO, 2012, p. 83). A efetivação dessa perspectiva ainda está em curso. Há ain- da dificuldades nesse campo, tanto nos espaços universitários de formação teológica como nos documentos eclesiais, em que trans- parecem tentativas de arrefecer as exigências da inculturação. Há setores da igreja que procuram evitar ao máximo a palavra incul- turação. Há outros setores que buscam domesticar o paradigma da inculturação com conceitos pré-conciliares, como integração, adaptação, conversão, correção dos erros dos outros. E há um setor que assume as consequências do paradigma da inculturação, postula essa perspectiva, e: [...] fala da inculturação como disponibilidade para a renúncia ao etnocentrismo e colonialismo; fala da disponibilidade ao diálogo e do reconhecimento dos Outros como princípio de identidade da Igreja (SUESS, 1995, p. 113). A alguns temas aqui acenados, em especial a esse da incultu- ração, voltaremos na continuidade deste estudo. 8. TRINDADE: EM DIREÇÃO AOS FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA MISSÃO Há que iniciar esse ponto reconhecendo o avanço para a consciência da “natureza missionária” da igreja (AG 2, 6, 35; CE- 231 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo LAM, 2007, n. 347), que se fundamenta no batismo comum de todos e se torna a razão de ser dos cristãos. Essa dimensão mis- sionária põe todas as instâncias em “estado de missão” (CELAM, 2007, n. 213). Uma teologia trinitária amadureceu no contexto do Concílio Vaticano II e está explícita no documento Ad gentes que trata jus- tamente da missão da igreja entre os povos. A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na “missão” do Filho e do Espírito Santo. Este desígnio brota do “amor fontal”, isto é, da caridade de Deus Pai, que, sendo o Princípio sem Princípio de quem é gerado o Filho e de quem procede o Espírito Santo pelo Filho, quis derramar e não cessa de derramar ainda a bondade divina [...]. Aprouve, porém, a Deus chamar as pessoas a esta participação na sua vida, não só de modo individual e sem qualquer solidariedade mútua, mas constituindo-os num Povo em que os seus filhos, que estavam dispersos, se congregassem em unidade (AG 2). O Filho de Deus, pelo caminho de uma verdadeira Encarnação, veio fazer as pessoas participantes de sua natureza divina e, sendo rico, fez-se por nós necessitado para que nos tornássemos ricos da sua pobreza [...]. De si mesmo disse Cristo, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo (Jo 10,36): “O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso me ungiu e me enviou a anunciar a boa nova aos pobres, a sarar os contritos de coração, a proclamar a libertação dos cativos e a restituir a vista aos cegos” (Lc 4,18). (AG 3). Para isso, precisamente, enviou Cristo o Espírito Santo da parte do Pai [...]. Não há dúvida de que o Espírito Santo já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado [...]. O Espírito Santo é quem unifica na comunhão e no ministério, e enriquece com diversos dons [...], instilando nos corações dos fiéis aquele mesmo espírito de missão que animava o próprio Cristo (AG 4) O cristianismo contemporâneo, na sua reflexão teológica, vai em busca das consequências desse enfoque trinitário da missão. O mistério divino, que a tudo suplanta e que permanece inatingível pelos esforços humanos, manifesta-se amorosamente como comunhão trinitária. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são sua expressão comunicativa na História humana. A reserva de mistério não fecha possibilidades, mas abre sempre novos horizontes na experiência humana e cristã. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso232 Na busca dos fundamentos da missão, há que se direcio- nar para esta fonte da amorosidade trinitária que permeia todo o universo, a comunidade de vida no planeta e a humanidade. A perspectiva missionária põe o cristianismo diante da responsabili- dade de compartilhar essa busca intensa de resposta terna à eter- na amorosidade infinita. Inatingível e presente, o mistério divino convoca, chama, envia. No momento em que Deus se revela, manifesta sua palavra, e essa comunicação do Pai se chama Filho: é o verbo eterno de Deus. O Espírito Santo, eterna amorosidade, emerge na comunhão do Pai e do Filho. Tudo no Universo conspira para o dinamismo criativo e amo- roso, imagem da trindade que, no mútuo envio do Pai, do Filho e do Espírito Santo, desborda para toda a criação e para a humanida- de. O ser humano abre-se para acolher a dimensão paterno-filial, a dimensão da amorosidade fraterno-sororal, a dimensão de pro- fundidade espiritual, como resposta ao chamado fundamental que ecoa eternamente da fonte inesgotável do mistério divino. Na revelação, Deus se esvazia para compartilhar sua graça e vida com o ser humano. Na acolhida do mistério, o ser humano se esvazia para responder na integralidade ao totalmente outro. O espírito de Deus penetra toda a criação, e nele toda a di- ferenciação e toda a complexidade do universo ganham um princí- pio vivificador, um sopro gerador de vida, um espírito cuidador de todo o existente. A presença do espírito penetra o Universo desde os primór- dios da criação e acompanha a História da humanidade. Por todos os cantos do mundo, o espírito de Deus foi produzindo vida na natureza e nas culturas. Na fecundidade do espírito, por sua ação, o Filho de Deus se encarna. Deixando sua distância eterna, não “se apegando à sua igualdade com Deus” (Fil 2,6), o Filho faz-se frágil (Hb 5,2), apren- 233 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo dente (Hb 5,8), e assume nossa humanidade na precariedade da periferia do mundo, no terno aconchego uterino de uma jovem mulher. Nesse mergulho na condição humana, o Filho clama Abba, que em aramaico significa Pai, num tom carinhoso, e que pode ser expresso como Paizinho. Assim, “Abba-Paizinho”, expressa sua experiência filial diante da misericórdia materna de Deus com to- dos os filhos e filhas. Em Jesus, o Filho assume toda a humanida- de, que também clama pelo “Abba-Paizinho” (Cf. JEREMIAS, 2005, p.13-37) . Essa teologia missionária da trindade está presente em mui- tos documentos recentes em várias instâncias eclesiais. A exortação apostólica sobre a missão dos leigos (Christifide- les laici)de 1998 e a carta apostólica sobre a formação sacerdotal (Pastores dabo vobis) de 1992 apresentam a Igreja que: [...] estruturada como “povo de Deus em marcha”, tem a sua ori- gem e seu modelo na dinâmica e no mistério da Communio trini- tária e na Missio do Filho e do Espírito Santo a qual se dirige à sal- vação e santificação de toda a humanidade (SUESS, 1995, p. 107). O mistério, a comunhão e a missão, presentes nesses dois documentos do magistério de João Paulo II, configuram três di- mensões da teologia da missão: Mysterium, Communio e Missio. O Concílio Vaticano II expressa, em muitos textos, a pers- pectiva trinitária. O decreto Ad gentes inicia reconhecendo a igre- ja como "enviada por Deus às nações [...]” (AG 1) e apresenta a trindade como fundamento de sua natureza missionária: "A Igreja peregrina é por sua natureza missionária. Pois ela se origina da missão do Filho e da missão do Espírito Santo, segundo o desíg- nio de Deus Pai" (AG 2). O amor comunional da trindade está em toda a obra da criação: "[...] chamou-nos gratuitamente à comu- nhão de sua vida e de sua glória. Generosamente difundiu a divina bondade e não cessa de difundi-la" (AG 2). A comunhão de amor que desde toda a eternidade transita na trindade extravasa para a © Missiologia e Diálogo Inter-religioso234 humanidade de tal modo que Deus entra "na história humana de modo novo e definitivo e para isso enviou seu Filho e nossa carne" (AG 3) e permanece na história humana pois "Cristo enviou o Es- pírito Santo da parte do Pai, a fim de que interiormente operasse sua obra salvadora" (AG 4). Assim é que a Igreja, vivendo essa dimensão comunional como sacramento de salvação, é enviada em missão a todos os po- vos. A comunhão, comunicação da vida, participação na vida divi- na e em toda a criação, é origem da missão. A missão está a serviço da comunhão: ponto de partida, caminho e ponto de chegada. A trindade é a fonte, causa, realização e fim último de toda a criatura que é chamada à plenitude da comunhão. "Deus chamou- -nos gratuitamente à comunhão de sua vida e de sua glória" (AG 2). Essa dimensão de comunhão trinitária transforma a Eclesio- logia a partir do Concílio Vaticano II e está presente na Evangelii nuntiandi de Paulo VI: igreja é povo de Deus a caminho, é comu- nidade servidora do reino de Deus, é sacramento de salvação. As instituições eclesiais não são as definidoras da missão, mas é a missão, obra comunitária de todos os cristãos, que vai definindo o rosto da igreja, que se torna sinal do reino de Deus em perspectiva histórica e escatológica. A reflexão feita pelos Bispos da América Latina na cidade de Aparecida em 2007 também assume a teologia trinitária para fun- damentar a missão. Isso aparece em muitas partes do documento final da conferência. A comunhão de amor, missão da igreja, refle- te o amor de Deus Trindade (CELAM, 2007, n. 159): “Os discípulos de Jesus são chamados a viver em comunhão com o Pai (Jo 1,3) e com seu Filho morto e ressuscitado, na comunhão do Espírito San- to (1Cor 13,13)” (CELAM, 2007, n. 155). O discipulado e a missio- nariedade são reconhecidos pela presença do Espírito Santo (CE- LAM, 2007, n. 149-153), em cuja força inspiradora o missionário é enviado para testemunhar e anunciar o reino do Deus da vida. 235 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo 9. REINO DE DEUS Jesus, na comunhão do Espírito e do Pai-Abbá, revestiu sua vida da missão de revelar o reinado de Deus. A urgência de um mundo transformado pela comunhão divina tomou conta da pré- dica e da prática de Jesus de Nazaré: "O tempo da espera expirou. O reino de Deus está chegando. Mudem de vida. Crede nessa boa nova" (Mc 1,15). Para realizar seu projeto, Deus escolhe os últimos, começa com os que estão à margem e lhes reconhece a bem-aventurança (Mc 6,20). Os portadores das bênçãos divinas são os que sofrem, os que choram, os pobres, os mansos, os famintos e sedentos de justiça, os puros de coração, os compassivos, os fazedores da paz, os perseguidos na luta pela justiça, os insultados e atingidos pela mentira (Mt 5,3-12). Do grão de mostarda, dos mais esquecidos, da vida mais ameaçada, surge o sonho de um mundo de fraternu- ra solidária em que as sementes brotarão e os frutos serão com- partilhados na mesa do reconhecimento mútuo. Deus reinando, inverte-se o mundo, pois os pobres, os pecadores, as prostitutas antecedem aos puros e aos religiosos. Os convidados não são fa- mosos, mas foram procurados entre os servos, os estropiados, os marginalizados (Mt 18,21-23). Foi assim que a tradição recente das igrejas na América La- tina compreendeu como urgência teológica a ação em direção ao reinado de Deus na história humana. Desde a Conferência do CELAM em Medellín, em 1968, os bispos da América Latina afir- maram que há um clamor divino que brota da realidade: existem povos oprimidos, filhos e filhas de Deus crucificados, que vivem esperança de vida digna. O bispos, reunidos apenas três anos após o Concílio Vaticano II, assumem a denúncia profética da violência institucionalizada, da pobreza e da miséria das grandes maiorias do continente como o anti-reino, como “pecado estrutural”, como clamor divino irrecusável. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso236 A América Latina se encontra numa situação de injustiça que pode chamar-se de violência institucionalizada, uma situação que afeta contra a dignidade do ser humano e, portanto, contra a paz [...]. Um clamor surdo brota de milhões de pessoas, pedindo a seus pas- tores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte [...] (MEDELIN n.2, In CELAM, 2005). A sensibilidade teológica direciona a missão para o encontro com os pobres na ação profética de arrancar da cruz os crucifi- cados e impedir que permaneçam as estruturas que condenam e matam os filhos e filhas de Deus. Na encíclica sobre a esperança cristã, o papa Bento XVI afirma que a exigência da justiça requer um mundo em que se anule o sofrimento presente e ao mesmo tempo as situações de morte vindas do passado (Cf.Bento XVI, n. 42). A ressurreição dos mortos é núcleo central da mensagem e da práxis missionária, por isso há que se empenhar em arrancar da cruz os filhos e filhas de Deus crucificados. Essa sensibilidade teológica se torna um traço central da tradição latino-americana que se reafirma na Conferência de Puebla, em 1979: Do coração dos vários países que formam a América Latina está subindo ao céu um clamor cada vez mais impressionante. É o gri- to de um povo que sofre e clama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais das pessoas e dos povos [...] (PUEBLA, n. 87, In CELAM, 2005). E assim são apontados os rostos indígenas e afrodescenden- tes que são marginalizados, os rostos dos camponeses sem-terra e explorados, os rostos dos operários sem direitos e com dificul- dades de organização, os rostos dos moradores de favelas sem di- reito à moradia segura, os rostos dos sem trabalho e submetidos a condições desumanas, os rostos dos jovens sem lugar na socie- dade, os rostos dos idosos marginalizados, os rostos das crianças abandonadas e exploradas (Cf. PUEBLA, n. 34, in CELAM, 2005). A missão é revisitada a partir dessa perspectiva, como exigência do reino de Deus na história humana: O compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constante- mente, chamando-a à conversão [...]. Nossa missão de levar Deus 237 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo até aos homens e os homens até Deus, implica também em cons- truirmos no meio deles uma sociedade mais fraterna (PUEBLA, n. 1147 e 90,in CELAM, 2005) Essa tradição não é abandonada na Conferência de Santo Domingo, mas, sim, “descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor é algo que desafia todos os cristãos a uma pro- funda conversão pessoal e eclesial” (SANTO DOMINGO, n. 178, in CELAM, 2005). Na Conferência de Aparecida, em 2007, o texto aponta tam- bém uma série de rostos sofredores que ferem o coração dos mis- sionários (CELAM, 2007, n. 402-430). Se essa opção está implícita na fé cristológica, os cristãos, como discípulos e missionários, são chamados a contemplar, nos rostos sofredores de nossos irmãos, o rosto de Cristo que nos chama a servi-lo neles [...]. Eles desafiam o núcleo do trabalho da Igreja, da pastoral e de nossas atitudes cristãs (CELAM, 2007. n. 393). Nasce daí uma exigência de renovação missionária que ultra- passa as estruturas fechadas e que cria novas perspectivas espiri- tuais, pastorais e institucionais (CELAM, 2007, p. 365-367). Uma nova abordagem missionária acolhe os recados dos empobrecidos presentes num mundo tremendamente injusto e desigual. Compreende-se a missão como o envio de toda a igreja em direção aos mais frágeis para com eles acompanhar a instaura- ção e crescimento do reinado de Deus. A meta da Igreja e de sua missão é estar a serviço do Reino de Deus (Lumen Gentium/LG9; DAp 33,190,223) como “Reino de ‘verdade e vida, Reino de santidade e graça, Reino de justiça, amor e paz" (LG 36). A proclamação do Reino, em atos e palavras, é historicamente relevante, muitas vezes, através dos "sinais dos tempos" (Gaudium et Spes/GS 4, 11; Presbyterorum Ordinis 9; Apostolicam Actuosi- tatem 14; DAp 33, 366) que, mediante novas realidades sócio-his- tóricas, representam uma mensagem imperativa às igrejas (SUESS, 2012, p. 26). Toda essa situação captada pela tradição eclesial latino-ame- ricana é muito semelhante àquela em que emergiu a profecia do primeiro testamento e o conceito de reinado de Deus na Palestina no tempo de Jesus. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso238 Como agora, também o Reino de Deus, na experiência de Jesus e das comunidades, é um transbordamento do amor divino paterno-maternal que se apresenta nos menores gestos e que tem o horizonte da eternidade. A palavra Abbá comparece 170 vezes na boca de Jesus. En- quanto as autoridades religiosas do seu tempo utilizavam palavras solenes e poderosas para Deus, Jesus utiliza uma expressão cari- nhosa como faz uma criança a seu pai, em plena confiança e inti- midade. A expressão reino de Deus aparece 122 vezes nos Evange- lhos. Em meio às desarmonias, às divisões, à violência, ao ódio, às injustiças, do coração da vida emerge um desejo divino de trans- formação. Deus, Pai-Abbá, não suporta o sofrimento absurdo de seus filhos e filhas, e Jesus traz uma boa notícia: o reinado de Deus se aproxima e já está presente. A lei e o império não mais pautarão a existência, mas o Abbá de Jesus comandará os caminhos da vida e seu sentido mais profundo. O reinado de Deus começa a se realizar nesse mundo, mas não se deixa aprisionar pelos arranjos do momento. O reino de Deus é um projeto que tem a eternidade como horizonte. Esse mundo não consegue segurar o impulso humanizante e divinizan- te: "Meu Reino não é deste mundo" (Jo 18,36). O seguimento conduz o discípulo missionário à configuração com a prática e a prédica de Jesus. Com uma resposta livre, na graça o Espírito Santo, o missionário assume o amor e coloca em prática as bem-aventuranças do reino. Essa resposta é adesão ao mandato do Pai-Abbá (CELAM, 2007, n. 139). O amor gratuito toma conta da comunidade humana porque se diviniza no amor de infinita confiança e intimidade do Pai-Abba. Quem se aproxima do irmão se aproxima de Deus, porque Deus é amor (1Jo 4,8). Rompendo com todo o legalismo, preconceito e injustiça, o reinado de Deus se mostra com desmesura, na miseri- córdia que se derrama sobre ingratos (Lc 6,36), sobre os perdidos 239 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo (Lc 15,11-32) e sobre os inimigos: “Amai os inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, falai bem dos que vos maldizem e orai por quem vos calunia” (Lc 6,27-28). Esse reinado de Deus, com suas exigências, é o centro da missão de Jesus em todas as suas presenças. As primeiras comu- nidades deixaram suas memórias nos Evangelhos, e o testemunho é o de acompanhar o caminho de Jesus, suas companhias, seus enfrentamentos, sua palavra de sabedoria, sua ação solidária. Na oração de Jesus, o desejo da vinda do reinado de Deus é central (Lc 11,2-4 e Mt 6,9-13). Que o mundo reconheça Deus como Abbá, pai e mãe de bondade, reinando sobre as existências humanas e reclamar o pão de cada dia para a mesa de todos e todas: eis uma síntese da missão de Jesus. O sonho missionário de Jesus é que sejam saciadas as fomes da humanidade: fome de sentido pleno da vida, fome de encontro com Deus na plenitude da relação amorosa e fome de pão abundante para todos e todas, partilhado na alegria da vida. Na missão de Jesus está a decisão de não deixar que a morte tenha a última palavra. Unindo terra e céu, sonhos de infinito e solicitações finitas da natureza e da humanidade, Jesus assume a missão de realizar a vontade do reinado de Deus em que a palavra definitiva seja da vida, e vida em plenitude (Jo 10,10), assim na terra como no céu (Mt 6,10), em todo lugar e a todo tempo. A pergunta missionária de Jesus e de seus discípulos nas ve- redas da história é: qual a vontade do Abbá-Pai para a fecundidade do seu reinado a favor de seus filhos e filhas e de toda a criação? A resposta a essa pergunta está no caminho. Não se trata de buscar uma lei nova, mas de reconhecer nas bem-aventuranças um crité- rio fundante e presente para discernir sempre os sinais e chama- dos da aproximação do reino de Deus. Essa perspectiva missionária do Reino de Deus a partir do seguimento de Jesus está fortemente apresentada nos documen- tos do Concílio Vaticano II, perpassa os documentos sobre evan- © Missiologia e Diálogo Inter-religioso240 gelização, ecumenismo, diálogo inter-religioso seja em âmbito das instâncias centrais da Igreja Católica, como nas manifestações de muitas igrejas locais, como da CNBB e da CELAM. No mais recente documento da CELAM, encontramos a perspectiva missionária já na sua proposta temática: discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nossos povos nele tenham vida. Anunciar e testemunhar o reino do Deus da vida e missão essencial de todo o cristão: Ao chamar os seus para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão mui- to precisa: anunciar o Evangelho do Reino a todas as nações (Mt 28,1-19; Lc 24,46-48) Por isso, todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão, ao mesmo tempo que o vincula a Ele como amigo e irmão (CELAM, 2007, n. 144). Estão presentes do documento temas cristológicos que acompanham o itinerário local latino-americano e os referenciais inspiradores desde o Concílio Vaticano II: o seguimento de Jesus, o discipulado e o reino de Deus. O mesmo aparece nas Diretrizes Gerais da Ação Evangeliza- dora da Igreja no Brasil para os anos de 2011-2015: Evangelizar, a partir de Jesus Cristo, na força do Espírito Santo como Igreja discípula, missionária e profética, alimentada pela Palavra de Deus e pela Eucaristia, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, para que todos tenham vida (Jo 10, 10) rumo ao Reino de- finitivo (CNBB, 2011, p.9). O compromisso missionário da igreja em vista do reino de Deus vai se confirmando nas práticas e nas manifestações reflexi- vas do conjunto das comunidades eclesiais. No marco do Concílio Vaticano II, a perspectiva missionária vai ganhando lucidez sempre maior e vai enfrentandosempre novos desafios. O encontro com a diversidade das culturas é um processo sempre inacabado que foi assumido em muitas partes do mundo. 241 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo 10. INCULTURAÇÃO Hoje, a convocação ao diálogo, às exigências de justiça e paz, ao compromisso com a ecologia e ao reconhecimento da alteridade provocam novos olhares e novos compromissos. Diante dos sinais dos tempos e no marco do Concílio Vaticano II e especialmente na encíclica Ad gentes, a perspectiva missionária foi ganhando lucidez sempre maior. Aqui se coloca a realidade antropológica e teológica da diversidade das culturas. Ao inculturar-se, a Igreja torna-se "um sinal mais transparente daquilo que realmente é, e um instrumento mais apto para a missão" (EN 52). Como a ação do espírito, também a inculturação é um processo a longo prazo, abrangente e profundo, com exigência de discernimento para não desqualificar a cultura e não reduzir a integralidade da fé (EN 52). Lutar pela construção de um mundo para todos em que caibam a igualdade fraterna e a diferença de valores culturais, diferentes línguas e cosmovisões, significa assumir no mistério da encarnação de Jesus de Nazaré e de libertação pascal na cruz a causa dos cruci- ficados na história (mártires), lutando pela redistribuição dos bens e pelo reconhecimento da alteridade (GS 29). Toda evangelização há de ser, portanto, inculturação do Evangelho [...] a inculturação do Evangelho é um imperativo do seguimento de Jesus e é neces- sária para restaurar o rosto desfigurado do mundo (SD 113; Cf. LG, 8; DAp 4, 97, 99b, 258, 325,491, 479). O rico magistério social da Igreja nos indica que não podemos conceber uma oferta de vida em Cristo sem um dinamismo de libertação integral, de humaniza- ção, de reconciliação e de inserção social (DAp 359; 25; 146, 399) (SUESS, 2012, p. 27). A acolhida do Vaticano II na América Latina se deu dois anos após o encerramento do Concílio. Em Medellín (1968), os bispos decidiram mergulhar na complexa realidade dos povos do conti- nente. Uma década depois, em Puebla, a III Conferência do Epis- copado afirma a igreja como "missionária a serviço da evangeli- zação", com uma "clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres" (PUEBLA, n. 1134, in CELAM, 2005). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso242 Caminhando em direção aos povos, a presença do espírito passou a ser reconhecida na ação missionária. A Conferência de Aparecida acolhe essa dimensão e postula a abertura de toda a igreja à ação do Espírito Santo para inserir-se no projeto da missão continental (CELAM, 2007, n. 213 e 551). Há uma espiritualidade missionária, solicitada no encontro com o outro, que produz busca, discernimento, enriquecimento mútuo e que não tem medo de atravessar fronteiras. Essa espiritu- alidade assume a abertura "ao impulso do Espírito, à sua potência de vida que mobiliza e transfigura todas as dimensões da existên- cia" (CELAM, 2007, n. 284). O tema da inculturação esteve presente na reflexão teoló- gico-missionária, com especial acento nas últimas décadas do sé- culo 20. A encíclica de João Paulo II, Redemptoris missio de 1990, sobre o mandato missionário permanente, afirma, na esteira do documento Ad gentes do Vaticano II, que a atividade missionária encontra-se no início de uma nova era missionária. O cristianismo não se sente preso a nenhuma estrutura étnica, linguística ou cul- tural, mas está aberto à pluralidade do mundo. Há um reconheci- mento de que as culturas podem ser permeadas pelo evangelho sob a forma de intercâmbio, de tradução e de encontro. Numa teologia do espírito presente na Redemptor missio, as culturas já receberam a visita imemorial do Espírito Santo que está na cultura do outro, na religião do outro. Assim, o diálogo inter- cultural e inter-religioso não pode ser colocado em contraposição ao anúncio do evangelho. O Espírito, que chegou antes do mis- sionário, já instaurou a boa nova em cada povo. Essa teologia do espírito acolhe com tranquilidade a inculturação, pois se trata de mergulhar num mundo diferente que já tem as sementes do reino pela presença do Espírito Santo. Outro referencial teológico é o da encarnação. A incultura- ção está vinculada, e esse mistério central do cristianismo (GS 22) acompanha as exigências do seguimento de Jesus e da difusão de 243 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo seu projeto, que é o reino de Deus (GS 45). Com essas bases teo- lógicas, o documento de Santo Domingos cita a Lumem gentium do Vaticano II (LG 8) para afirmar que toda a evangelização há de ser inculturação na linha da encarnação do Verbo e como impera- tivo do seguimento de Jesus para restaurar o rosto desfigurado do mundo (Cf. SANTO DOMINGO, 1992, n. 13 e 30, in CELAM, 2005). Nesse marco teológico do espírito e da encarnação coloca-se a questão da diversidade das culturas. A teologia das culturas e a teologia das religiões direcionam a reflexão para a articulação en- tre a singularidade e pluralidade, entre a identidade e a alteridade, entre o amor aos irmãos e o amor aos distantes. Assim, há que se devotar à própria habitação cultural, sem que esse projeto iden- titário seja absolutizado, buscando manter a abertura à morada cultural e espiritual do outro, sob pena de não amar o outro, mas apenas amar a si mesmo nos outros. Na nova perspectiva missionária, emerge o respeito amoroso à sacralidade e ao mistério da graça de Deus presente nas culturas e nas tradições religiosas dos outros. Junta-se aqui algo que parece improvável: o adensamento da identidade cristã com a reverência empática ao mistério de outras vivências religoso-culturais. Desde o Concílio Vaticano II, assume-se uma radical transfor- mação na perspectiva missionária diante das culturas. O diálogo que se faz com a diversidade cultural da humanidade é diferente do intuito secularmente vivido de encontrar-se com o outro para trazê-lo a uma cristandade a que todos os povos deveriam ser con- duzidos e reduzidos. Sob essas luzes vão sendo lidas as intuições do Concílio Va- ticano II que, conforme já citamos no início desse texto, afirma a importância de constituir igrejas locais com rosto próprio, autóc- tones, com sua mentalidade e forma de organizar que brota da cultura de onde emerge (AG, 6). Olhando para a História do continente, há que reconhecer que, na invasão promovida pela Europa a partir do século 16, o © Missiologia e Diálogo Inter-religioso244 cristianismo não teve participação decisiva na garantia da vida e na preservação das culturas de centenas de povos indígenas. A voz de Bartolomé de Las Casas, entre outras, não foi suficiente para constituir uma teologia e uma prática pastoral na direção da defe- sa das comunidades locais. Ao lado de importantes vivências mis- sionárias, houve nebulosos triunfalismos e etnocentrismos aliados à destruição de povos e culturas. E aqui será preciso olhar para o confronto das concepções missiológicas diferentes que oscilam entre compreensões críticas da História e a defesa incondicional dos rumos da evangelização. Nos anos recentes, a atividade mis- sionária teve que revisitar as conquistas coloniais do Ocidente cris- tão para colher frutos e rever destruições. Em 1992, justamente no ano da celebração de 500 anos de chegada dos espanhóis ao continente latino-americano, durante a Conferência Episcopal de Santo Domingo, houve solicitação de 33 bispos para que a assembleia fizesse uma celebração de penitên- cia direcionada aos indígenas e afrodescendentes. Um bispo da Argentina se opôs com a argumentação de que não houve geno- cídio, o passado indígena não era nenhum paraíso e que os povos foram muito melhor amparados pelo cristianismodo que por suas religiões originais. (Cf. SUESS, 1995, p. 117). A controvérsia foi diri- mida com a manifestação, poucos dias depois, do papa João Paulo II referindo-se à oração do “Pai nosso” que: [...] se dirige ao Pai e ao mesmo tempo aos homens, aos quais foram feitas muitas injustiças. A estes homens pedimos incessan- temente perdão. Esse pedido de perdão se dirige sobretudo aos primeiros habitantes da Terra Nova, aos índios, e também àqueles que, como escravos, foram deportados da África para os trabalhos forçados. Perdoai as nossas ofensas [...] também esta oração faz parte da evangelização (SUESS, 1995, p. 118). A imposição da monocultura greco-ocidental-cristã trouxe situações graves de incompatibilidade entre a fé e as culturas en- contradas. Houve momentos da história em que o obscurecimento do Espírito se tornou problemático para os caminhos do reinado de Deus. 245 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo O tema da cultura cristã apareceu na reflexão prévia à Con- ferência de Santo Domingo e já no tema “nova evangelização, pro- moção humana e cultura cristã”. Na carta do prefeito da Congre- gação para os Bispos, está a afirmação de que a “cultura” cristã deveria “iluminar a promoção humana” e “projetar-se […] sobre as culturas” latino-americanas (CELAM, 1992b, p. 13-15). Outro fato importante foi um embate conceitual a partir de outro documento da igreja do Brasil, também em preparação a Santo Domingo, que enunciava no Tema III o título: "Povos indí- genas e afro-americanos: evangelização a partir de sua história e culturas" (CNBB, 1992, p. 17). De um lado, há uma missiologia que compreende a incultu- ração como um problema incômodo e tensiona a reflexão para a superioridade e necessidade de afirmação de uma cultura cristã, saneando as outras culturas. De outro lado, há uma missiologia que flexiona em direção à interculturalidade. A primeira tendência concebe o diálogo como uma tática neocolonial, enquanto a se- gunda abandona o etnocentrismo para viver o reconhecimento da presença de Deus nas outras tradições religiosas, que configuram as culturas. Mesmo com tensões interpretativas, o documento final da Conferência de Santo Domingo traz uma decisão: "Toda evange- lização há de ser, portanto, inculturação do Evangelho" (CELAM, 1992, n. 13). Uma igreja missionária e peregrina vai em direção a essa segunda opção e, no encontro com o outro, reconhece uma mu- tualidade espiritual e ética como obra do Espírito Santo nos diver- sos contextos da Encarnação do Verbo. O diálogo inter-religioso e intercultural traz consigo uma teologia das religiões com novos horizontes para a missão. Como podemos ver, essa dimensão da missiologia, que é a inculturação, está sendo vivida nesse momento e ao mesmo tem- po vai produzindo uma reflexão que aprofunda e lança luzes para © Missiologia e Diálogo Inter-religioso246 o futuro da expressão do reino de Deus na história humana em direção ao reino definitivo. A alteridade implica a hospitalidade com seus trânsitos e permanências. Ao arriscar-se na travessia em diálogo, possibilita- -se a emergência do reino de Deus a partir de dentro da vida, na história da cultura em que chega a comunidade missionária. Com o gesto de ser acolhido na casa do outro, de descobrir seus precio- sos valores e suas buscas, será possível desencadear transforma- ções profundas. Toda a igreja se coloca em movimento missionário em dire- ção ao encontro com o outro. Ao mesmo tempo, solicita que as outras tradições religiosas também se disponham a ir ao encontro dessa diversidade de culturas na humanidade. Podemos assim retomar uma primeira citação, de Giuseppe Barbaglio, que fizemos no início desse estudo: [...] toda religião deve voltar-se para sua própria tradição, para oferecer à cultura dos humanos as riquezas até agora conservadas em redomas fechadas. Nessa operação, alguns dados serão modi- ficados, outros enriquecidos com as contribuições de culturas dife- rentes, outros ainda serão oferecidos em sua integridade às outras religiões. Nenhuma religião pode renunciar a essa tarefa universal porque todas parecem hoje invadidas por uma nostalgia de pro- jetos vislumbrados no passado e nunca realizados. Muitos inter- pretam essa nostalgia como retomo a promessas antigas e como esperança de reivindicações reprimidas. Na verdade, testemunhar Deus hoje talvez seja mostrar que essa nostalgia é uma chamada para outros espaços de humanidade e que o outro é o lugar da possível resposta por parte de todas as re- ligiões. Elas poderão exercer a sua missão somente com a condição de que saibam viver uma fidelidade nova. Isto é, com a condição de que acolham os estímulos da própria tradição, mas ao mesmo tem- po exige que ela seja superada na modalidade com que foi acolhida e compreendia até este momento. Para essa superação é necessá- rio que cada um encontre na própria tradição os estímulos necessá- rios para sair fora dela. Toda tradição contém necessariamente tais estímulos, porque faz parte da experiência religiosa conduzir para além das próprias fronteiras, instigar a difícil fidelidade aos profetas (apud CANTONE, 1995, p. 544). 247 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo A perspectiva de inculturação ganha assim relevância e uni- versalidade. Com o influxo do melhor de cada tradição religiosa, posto a serviço da humanidade, todos e todas poderão sentar-se à mesa do pão e da cultura, do trabalho e da poesia, da ciência e da espiritualidade. E Deus será tudo em todos. 11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Faça uma lista dos organismos que lidaram com a questão missionária e es- creva algo sobre sua ação e abrangência. 2) Faça uma lista dos acontecimentos eclesiais importantes na questão missio- nária e escreva algo sobre seu significado. 3) Faça uma lista dos documentos eclesiais que tratam da dimensão missioná- ria e escreva algo sobre as questões tratadas em cada documento. 4) Escreva sobre os fundamentos teológicos da missão. 12. CONSIDERAÇÕES Foi um percurso amplo este estudo. Atravessamos mares, florestas, tempestades, campos e rios caudalosos. Indo em direção às fontes e às raízes, nos detivemos diante do diálogo, dos funda- mentalismos, do ecumenismo, dos encontros inter-religiosos, das contribuições ético espirituais das tradições religiosas e do dina- mismo missionário. Alteridade e inculturação são referenciais abertos para o avanço que a humanidade poderá fazer em direção a uma quali- ficação das pessoas, das instituições e da convivência no planeta Terra. Aqui nos detivemos na abordagem da teologia cristã, com acento especial nos caminhos da igreja latino-americana. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso248 Você, que acompanhou esse itinerário, tem muito a contri- buir diante das proposições que emergiram deste estudo. Agora é com você. Desejamos que sua caminhada e seu cur- so sejam plenos de realizações! 13. E-REFERÊNCIAS ANDRADE, Maria Júlia Gomes. A construção da Takãra em Majtyri, Etnografia de uma aldeia Tapirapé. Tese de Mestrado na Universidade Federal Fluminense, 2010. Disponível em http://www.proppi.uff.br/ppga/sites/default/files/dissertacao_-_versao_final_maju. pdf>. Acesso em: 14 set. 2012. BOLETIM FRATERNIDADE LEIGA CHARLES FOUCAULD. Homepage. Disponível em: <http://boletimfraternidadefoucauld.blogspot.com.br/2008/12/fraternidade-secular- charles-de_01.html>. Acesso em: 14 set. 2012. CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Organismo vinculado à conferência nacional dos bispos do Brasil — CNBB. Disponível em: <http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=5327>. Acesso em: 14 set. 2012. REDEMPTORIS MISSIO (RM). Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_ paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_07121990_redemptoris-missio_po.html>. Acesso em: 14 set. 2012. 14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTO XVI. Spe Salvi. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2007. CANTONE, C. (Org.). A reviravolta planetária de Deus. São Paulo: Paulinas, 1995. CELAM. Documentos do CELAM: Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2005. ______. Texto conclusivo da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 1979. ______. Texto conclusivo da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 1992. ______. Texto preparatório para a IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 1992b. ______. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. CNBB. Documento 94. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil. Brasília: Ed.CNBB, 2011. CNBB. Igreja: comunhão e missão na evangelização dos povos, no mundo de trabalho, da política, e da cultura. São Paulo: Paulinas, 1988 (documentos da CNBB, 40). ______. Das diretrizes a Santo Domingo. São Paulo: Paulinas, 1992 (documentos da CNBB, 48). 249 Claretiano - Centro Universitário © U6 - Missiologia e Diálogo ______. Comunicado Mensal, ano 27, n. 311, agosto de 1978. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Paulinas, 1986. CONCILIUM. Revista Internacional de Teologia. Petrópolis: Ed.Vozes, 2011/1. JEREMIAS, Joaquim. A mensagem central do Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2005. PANAZZOLO, J. Missão para todos. Introdução à missiologia. São Paulo: Paulus, 2010, 2. ed. SUESS, Paulo. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros. Ensaios de Missiologia. São Paulo: Paulus, 1995. ____, Paulo. Impulsos e intervenções, atualidade da missão. São Paulo: Paulus, 2012. VATICANO II, Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Rio de Janeiro: Vozes, 1968, 10. ed.
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