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João Andrade Neto - Positivismo Juridico nos Labirintos da Legalidade

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1 
O POSITIVISMO JURÍDICO NOS LABIRINTOS DA LEGALIDADE 
THE LEGAL POSITIVISM IN THE LABYRINTHS OF LEGALITY 
 
João Andrade Neto
1
 
 
“[...] sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, 
que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor 
 – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo [...].”2 
 
 
Resumo: O objeto deste trabalho é o filme O labirinto do fauno, dirigido por Guillermo del 
Toro. A análise é conduzida em duas etapas. Primeiro, nas seções iniciais, identificam-se os 
aspectos totalitários do contexto histórico representado no longa-metragem, a Guerra Civil 
Espanhola (1936-1939). Depois, indaga-se se eles não estão presentes também nos regimes 
democráticos modernos. A hipótese é que tais elementos do totalitarismo decorrem da 
radicalização de uma difundida concepção do Direito, o Positivismo. A partir de conceitos 
extraídos da obra As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, pretende-se demonstrar 
que o formalismo positivista, que reduz os padrões jurídicos a regras convencionais que 
resultam de procedimentos formais, indiferentes ao conteúdo que produzem, favoreceu o 
surgimento dessa nova forma degenerada de organização política. 
Palavras-Chave: Direito. Cinema. Totalitarismo. Positivismo. Formalismo jurídico. 
 
Abstract: The object of this study is the film Pan’s Labyrinth, directed by Guillermo del 
Toro. The analysis is conducted in two stages. At first, in the initial sections, we identify the 
totalitarian aspects in the historical backdrop shown in the movie, The Spanish Civil War 
(1936-1939). In the next stage, we investigate whether these characteristics are also found in 
the modern democratic regimes. The hypothesis is that those totalitarian elements derive from 
a extreme view of a widespread conception of Law, the Legal Positivism. By applying 
concepts from Hannah Arendt’s work The Origins of Totalitarianism, we intend to 
demonstrate that the legal formalism, which reduces the legal standards to the conventional 
 
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Endereço eletrônico: 
andradeneto.joao@gmail.com. 
2 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução: Mauro W. Barbosa. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 
2007, p. 31. 
 
 
 
 
 
2 
rules created after formal procedures, unconcerned with the content they produce, has favored 
the emergence of this new degenerate form of political organization. 
Keywords: Law. Cinema. Totalitarianism. Legal positivism. Legal formalism. 
 
 
1 Introdução: o semitotalitarismo de Franco 
 
 
“Espanha, 1944. A Guerra Civil terminou. Escondidos nas montanhas, grupos 
armados ainda combatem o novo regime fascista, que luta para suprimi-los.”3 Com tais 
palavras, tem início O Labirinto do Fauno, filme dirigido por Guillermo del Toro, que usa o 
regime ditatorial do general Francisco Franco como pano de fundo para narrar a história de 
Ofelia. Na obra, a menina se muda com a mãe, Carmen, para um moinho no interior da 
Espanha, onde as esperava o padrasto, Vidal, capitão do exército franquista no comando do 
acampamento militar ali instalado, e pai do nascituro que virá a ser o irmão da protagonista. A 
partir da perspectiva da garota, o cineasta mexicano desenvolve um conto que oscila entre o 
terror e a literatura infantil, entre a brutalidade da realidade espanhola e o fantástico mundo 
imaginado por uma criança. 
Este trabalho, antes de ser uma crítica cinematográfica, propõe-se a trazer para o 
campo da reflexão jurídica elementos da visão política expressa pelo longa-metragem. 
Pretende-se demonstrar que o diretor enxerga no governo de Franco aspectos tipicamente 
totalitários, e que esses aspectos, embora se tornem visíveis sob o terror do semitotalitarismo, 
não são estranhos à forma de Estado reconhecida como democrática. Ao contrário, estão 
perigosamente presentes no dia a dia das comunidades políticas organizadas sob regimes 
legítimos de poder. E, se assim são percebidos, há de indagar se não seriam inerentes a certa 
concepção do Direito associada às democracias modernas. 
Antes de iniciar a argumentação, contudo, faz-se necessário esclarecer as premissas 
de que se parte. A década de 1930 na Espanha foi marcada por um sangrento conflito bélico 
deflagrado pela tentativa de golpe de Estado organizada pelo exército contra o governo 
 
3 O LABIRINTO do fauno. Direção: Guillermo del Toro. Produção: Bertha Navarro, Alfonso Cuarón, Frida 
Torresblanco, Guillermo del Toro. Escrito por Guillermo del Toro. Studios Picasso, Tequila Gang e Esperanto 
Filmoj, em associação com Cafefx Inc. Warner Bros. Entertainment Inc. 2006. DVD. 
 
 
 
 
 
3 
democrático da Segunda República. Em 1939, depois da guerra civil, instaurava-se naquele 
país um regime ditatorial fascista, liderado pelo general Francisco Franco.
4
 
Não se pretende que este governo seja caracterizado como totalitário. Semelhantes ao 
fascismo espanhol, ditaduras surgiram em outras nações depois da Primeira Guerra Mundial, 
quando “[...] uma onda antidemocrática e pró-ditatorial de movimentos totalitários e 
semitotalitários varreu a Europa [...].”5 Foi assim na Itália, na Romênia, na Polônia, na 
Lituânia, na Letônia, na Hungria e em Portugal.
6
 Não obstante isso, “Até hoje conhecemos 
apenas duas formas autênticas de domínio totalitário: a ditadura do nacional-socialismo, a 
partir de 1938 [na Alemanha], e a ditadura bolchevista, a partir de 1930 [na URSS].”7 
Na verdade, “[...] o totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão 
política [...], como o despotismo, a tirania e a ditadura.”8 Trata-se de um regime inédito antes 
do século XX, de forma alguma subsumível às tradicionais categorias de governo concebidas 
pelo pensamento grego – sob as quais os homens haviam exclusivamente vivido até então, por 
mais diversos fossem os nomes historicamente recebidos. “Sua forma de domínio – a 
dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida – é algo que 
nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir, mas que é realizável por 
um movimento totalitário constantemente acionado.”9 
Ao contrário do que ocorre nas outras formas organizadas de opressão, as quais 
ameaçam essencialmente “[...] adversários autênticos, mas não cidadãos inofensivos e 
carentes de opiniões políticas [...]”10, somente nos primeiros estágios do totalitarismo ainda 
existem opositores a serem eliminados. O movimento se refere a eles como inimigos, sujeitos 
à persecução criminal. Com a posterior liquidação da resistência sob qualquer forma 
organizada, aberta ou secreta, o terror se torna o verdadeiro conteúdo do regime, que põe em 
prática sua segunda pretensão: o domínio total dos indivíduos e da sociedade.
11
 Na última fase 
inteiramente totalitária, os conceitos de inimigo e crime são abandonados: “[...] agora as 
vítimas são escolhidas inteiramente ao caso e, sem mesmo terem sido acusadas, são 
declaradas indignas de viver.”12 
 
4 O LABIRINTO..., 2006. 
5 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 
1989, p. 358. 
6 ARENDT, 1989. 
7 ARENDT, 1989, p. 469. 
8 ARENDT, 1989, p. 512. 
9 ARENDT, 1989, p. 375. 
10 ARENDT, 1989, p. 371. 
11 ARENDT, 1989. 
12 ARENDT, 1989, p. 483. 
 
 
 
 
 
4 
O regime espanhol, embora precedido de um movimento totalitário e impregnado de 
várias de suas características, nunca evoluiu para um autêntico totalitarismo. Enveredou pelo 
caminho mais familiar da ditadura unipartidária.13
 De qualquer modo, justamente por se 
encontrar em algum nível entre um governo total e uma ditadura, o período fascista na 
Espanha, retratado no filme de Toro, é útil ponto de partida para a reflexão acerca de quais 
elementos da Modernidade desencadearam o surgimento daquela nova forma degenerada de 
ordem política. Entende-se que, dentre as ciências sociais aplicadas, o Direito pode oferecer 
uma resposta satisfatória à pergunta. 
A partir do marco teórico – os elementos do governo totalitário identificados por 
Hannah Arendt na obra As Origens do Totalitarismo
14
 –, desenvolve-se a hipótese de que a 
radicalização da concepção jurídico-positivista contribuiu para o surgimento daquela forma 
extrema de abuso do poder. Advirta-se que o Positivismo é aqui entendido como a perspectiva 
que reduz o Direito a regras convencionais explícitas, absolutamente distintas da moralidade 
pública e exclusivamente elaboradas pelos órgãos estatais autorizados a conduzir os processos 
jurígenos. Tal conceito, que não será problematizado neste trabalho, é amplo o suficiente para 
abrigar as concepções acerca do que é o pensamento positivista desenvolvidas por autores tão 
diferentes como Dworkin
15
, Bobbio
16
 e Höffe
17
, sem optar por nenhuma delas. 
Pretende-se demonstrar que, ao retirar da prática jurídica os critérios materiais de 
justificação e crítica da organização política, o Positivismo rigoroso permite que se realize 
histórica e radicalmente a afirmação kelseniana de que: “[...] todo e qualquer conteúdo pode 
ser Direito.”18 Tomado como um valor e não um fato dos sistemas jurídicos modernos, o 
formalismo decorrente da realização extrema desse pensamento (que pressupõe a 
aleatoriedade do conteúdo jurídico), antes de eliminar o apelo a padrões de justiça, 
considerados extrajurídicos, faz com que a indiferença passe a ocupar o lugar deixado por 
eles. 
 
 
 
13 ARENDT, 1989. 
14 ARENDT, 1989. 
15 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1986; DWORKIN, Ronald. 
Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 
16 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução e notas: Márcio Pugliesi, 
Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. 
17 HÖFFE, Otfried. Justiça Política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito. Tradução: Ernildo Stein. 
São Paulo: Martins Fontes, 2001. 
18 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins 
Fontes, 2009, p. 221. 
 
 
 
 
 
5 
2 A ideia do labirinto 
 
 
A mais conhecida imagem de um labirinto é a do mito de Teseu e do Minotauro. A 
construção mítica grega, “[...] um palácio dotado de corredores complicados onde as pessoas 
se perdiam [...]”19, teria sido edificada na ilha de Creta por Dédalo, a pedido do rei Minos, que 
nele enclausurou um “Monstro com corpo de homem e cabeça de touro [...]”20, ao qual eram 
enviados, como sacrifício anual, sete virgens e sete rapazes atenienses. Na época do terceiro 
envio, o jovem Teseu ofereceu-se para compor o grupo. O herói conseguiu matar o Minotauro 
com um soco e escapou da rede de salas e galerias com a ajuda de Ariadne, que lhe havia 
dado “[...] um novelo de linha que lhe permitiu entrar no Labirinto, morada do monstro, sem 
se perder, desenrolando o novelo à proporção que avançava, para saber por onde iria sair.”21 
Devido à notoriedade da história clássica, o labirinto é frequentemente mencionado 
em outras manifestações culturais, que incluem o cinema e a literatura. Do sentido original, de 
“[...] edifício com numerosos compartimentos que se comunicam por passagens tortuosas 
[...]”22, o signo passou a abranger, por derivação extensiva e figurativa, as ideias de um 
“emaranhado de caminhos”23 e de “coisa muito enredada”24. O termo “labiríntico” passou a 
designar, então, algo “de complexidade inextricável”.25 
Na Modernidade, em pelo menos duas famosas obras literárias encontra-se a imagem 
de indivíduos enredados em circunstâncias labirínticas. Os dois casos estão relacionados ao 
Direito. A primeira das ocorrências aparece no livro Alice no País das Maravilhas, publicado 
por Lewis Carroll em 1865
26
. Na fantástica história, Alice presencia o julgamento do Valete 
de Copas, acusado de furtar tortas da Rainha. Surpresa ao ser arrolada como testemunha 
embora nada soubesse sobre os fatos, a menina se depara com um rito processual repleto de 
absurdos. O júri é composto por 12 animais, e a sessão é conduzida pelo próprio Rei de 
Copas, que faz as vezes de juiz e obedece a regras escritas em um livro. Ao contestar a 
validade da sentença a ser proferida antes de os jurados haverem manifestado seu veredicto, a 
protagonista enfurece a Rainha, que ordena seja-lhe arrancada a cabeça. A menina, no 
 
19 KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 102. 
20 KURY, 1990, p. 268. 
21 KURY, 1990, p. 44. 
22 INSTITUTO ANTÔNIO HUAISS. Huaiss Eletrônico: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. v. 3.0. 
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. CD-ROM. 
23 INSTITUTO..., 2009. 
24 INSTITUTO..., 2009. 
25 INSTITUTO..., 2009. 
26 CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. Nova Iorque: Sam’l Gabriel Sons, 1916. 
 
 
 
 
 
6 
entanto, escapa do decreto e do País das Maravilhas ao dar-se conta de que estava cercada de 
cartas de baralho e assim despertar do sonho
27
. 
A segunda referência é o romance O Processo, escrito por Franz Kafka e publicado 
pela primeira vez em 1925
28
. A obra conta a história de Josef K., que, certa manhã, é 
surpreendido em seu quarto por guardas que estão ali para detê-lo “[...] sem ter [ele] feito mal 
algum [...]”29. Os homens lhe comunicam que naquela ocasião se havia iniciado um 
procedimento, e, desde então, o protagonista passa a responder a um processo indecifrável, 
que escapava a qualquer lógica ou racionalidade. Durante a narrativa, K. se vê cada vez mais 
enredado na trama jurídica de que se tenta desvencilhar sem sucesso. Incapaz de encontrar um 
sentido subjacente à sucessão aparentemente aleatória de ocorrências burocráticas, o 
protagonista é conduzido a diversas repartições e tem contato com oficiais, juízes e tribunais. 
Ao final, é condenado e morto, ainda que não soubesse do que era acusado ou quem o 
acusava.
30
 
Ambas as histórias são importantes para a análise do longa-metragem de Guillermo 
Del Toro
31
 e para as implicações que dele se pretende extrair, na medida em que denunciam a 
perplexidade diante de elementos intrínsecos à estrutura dos sistemas jurídicos da 
Modernidade. A maneira como os dois livros se associam à obra cinematográfica será mais 
bem compreendida nas seções seguintes. 
 
 
3 Entre os homens, o medo da morte e da dor 
 
 
O filme O Labirinto do Fauno estabelece uma relação de contraste entre dois 
mundos. O primeiro é apresentado pelo narrador após as informações históricas iniciais. 
Trata-se de um cenário mágico, um reino subterrâneo habitado pela princesa “[...] que 
sonhava com o mundo dos humanos [...].”32 Essa dimensão imaginária é descrita como um 
lugar “[...] onde não existe mentira ou dor [...]”33. Em situação oposta, concebe-se o mundo 
exterior, dos homens. Nele, a herdeira da realeza, após a fuga do reino, tem contato “[...] com 
 
27 CARROLL, 1916. 
28 CARONE, Modesto. Posfácio: um dos maiores romances do século. In.: O Processo. São Paulo: Companhia 
das Letras, 1997. 
29 KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia dasLetras, 1997, p. 9. 
30 KAFKA, 1997. 
31 O LABIRINTO..., 2006. 
32 O LABIRINTO..., 2006. 
 
 
 
 
 
7 
o frio, a doença e a dor [...]”34. Por exporem ou não a protagonista ao sofrimento, as duas 
realidades se opõem. Isso permite inferir serem a dor e a mentira, inexistentes na dimensão 
fantástica, características do mundo real: 
 
Conta-se que, há muito tempo, no reino subterrâneo, onde não existe mentira 
ou dor, vivia uma princesa que sonhava com o mundo dos humanos. Ela 
sonhava com o céu azul, a brisa suave e o sol brilhante. Um dia, burlando 
toda a vigilância, a princesa escapou. Uma vez do lado de fora, a luz do sol a 
cegou e apagou da sua memória qualquer indício do passado. Ela se 
esqueceu de quem era e de onde vinha. Seu corpo sofreu com o frio, a 
doença e a dor. E, passados alguns anos, ela morreu.
35
 
 
Tal contraposição não é construída ao acaso. Em uma primeira leitura, ela pode ser 
compreendida como uma alegoria da existência humana. Pois, antes protegido no útero 
materno, como a princesa no reino subterrâneo, o homem é dado à luz, cegado por ela e 
exposto à dor do próprio parto e ao frio do ambiente extrauterino. Tal e qual a protagonista da 
fábula, passados os anos, o ser humano necessariamente envelhece e morre. 
Nesse sentido, a relação antinômica que se estabelece entre as dimensões destaca a 
trajetória de Ofelia, que, depois da fuga inicial, se move na trama em sentido oposto ao 
descrito no conto infantil que narra essa escapada: não para fora do reino imaginário, mas em 
direção a ele; não para conhecer a dor, mas para escapar da opressão; não sob o perigo do 
esquecimento de si, mas sob a promessa de lembrar-se. 
Mas a antítese pode ser apreendida também como o contraste entre duas formas de 
organização política, avaliadas de maneira positiva ou negativa, conforme sejam legítimas ou 
ilegítimas. A primeira delas, a dimensão mágica, é retratada como um reino governado com 
justiça; a segunda, como o domínio de um ditador com tendências semitotalitárias, 
representado, naquele moinho, pelo capitão Vidal. 
Ofelia transita entre esses dois mundos. É o ponto de confluência deles. Há nela algo 
de Alice, a personagem de Lewis Carroll que, movida pela curiosidade, persegue um coelho 
branco pela toca do animal e assim cai numa terra de maravilhas, povoada por criaturas 
peculiares e antropomórficas.
36
 De modo semelhante, a protagonista da obra de Guillermo del 
Toro se põe a perseguir um inseto – que ela acredita ser uma fada – e é por ele conduzida até 
o labirinto onde vive o fauno. No caso do filme, contudo, o destino da menina, anunciado 
 
33 O LABIRINTO..., 2006. 
34 O LABIRINTO..., 2006. 
35 O LABIRINTO..., 2006. 
36 CARROLL, 1916. 
 
 
 
 
 
8 
desde as primeiras cenas, não é acordar do sonho. E a curiosidade é apenas a motivação 
inicial da aventura, logo substituída pela premente necessidade de escapar do terror. 
Aqui, é pertinente observar que a simplicidade estrutural do longa-metragem, 
semelhante a uma fábula infantil, reforça a crítica do ambiente político que serve de cenário à 
trama. Pois a caracterização do mundo exterior, da realidade espanhola sob o domínio de 
Franco, dá-se a partir de um juízo de valor negativo. 
O pessimismo que pesava sobre a Espanha e a perplexidade diante do ambiente de 
medo e impotência política estão bem representados pela história que, em dada cena, Ofelia 
conta ao irmão não nascido, para tentar acalmá-lo na barriga da mãe: 
 
Há muitos e muitos anos, em um país longínquo e triste, havia uma 
montanha enorme de pedras negras e ásperas. Ao cair da tarde, em cima 
dessa montanha, floria, todas as noites, uma rosa que conferia imortalidade. 
Mas ninguém ousava se aproximar dela, pois seus muitos espinhos eram 
venenosos. Entre os homens, falava-se mais sobre o medo da morte e da dor, 
e nunca sobre a promessa de imortalidade. E, todas as tardes, a rosa 
murchava, incapaz de conceder sua dádiva a ninguém, esquecida e perdida 
no topo da montanha fria e escura, sozinha até o fim dos tempos.
37
 
 
A curta narrativa de autoria da menina denuncia a covardia daqueles que, 
deliberadamente ou por amedrontada inércia, sustentavam o governo fascista (o país triste). A 
protagonista-narradora percebe que, por “[...] medo da morte e da dor [...]”38, os homens 
renunciavam a algo que, embora não fosse imprescindível à subsistência deles – eis que 
continuavam vivos –, prometia-lhes mais que a mera vida biológica: a imortalidade. 
A metáfora de homens que não falam sobre a promessa de imortalidade ilustra uma 
sociedade em que os indivíduos não deixam “[...] atrás de si vestígios imorredouros [...]”39. 
Afinal, como esclarece Hannah Arendt
40, a imortalidade é a “[...] capacidade de produzir 
coisas – obras e feitos e palavras – que mereceriam pertencer e, pelo menos até certo ponto, 
pertencem à eternidade, de sorte que, através delas, os mortais [os homens] possam encontrar 
o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles próprios [...].” 
Uma vez que “[...] a luta pela imortalidade é o modo de vida do cidadão, o bios 
politikos [...]”41, a resignação quanto à mortalidade representa o abandono da vida política, o 
fim do projeto de construir uma comunidade, um mundo público, que seja comum a todos e 
 
37 O LABIRINTO..., 2006. 
38 O LABIRINTO..., 2006. 
39 ARENDT, 2008, p. 28. 
40 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio 
de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 28. 
 
 
 
 
 
9 
transcenda “[...] a duração da vida de homens mortais.”42 Ofelia parece intuir que, 
politicamente, a indiferença equivale à silenciosa tolerância e à aprovação ao governo
43
, e que 
“[...] o medo e a impotência que vem do medo são princípios antipolíticos [...]”44 por levarem 
“[...] os homens a uma situação contrária à ação política [...]”45. 
 
 
4 A usurpação do lugar do soberano 
 
 
O sofrimento de Ofelia remete a uma tragédia de Shakespeare
46
. Primeiro, porque a 
fantasiosa menina tem o mesmo nome de uma personagem shakespeariana, a filha de Polônio, 
que, proibida de se casar com o príncipe, Hamlet, é levada à loucura pelo amado e termina por 
suicidar-se depois que o pai é assassinado pelo protagonista
47
. Segundo, porque a própria 
história da garota espanhola parece saída desse clássico da literatura inglesa. Hamlet percorre 
a narrativa homônima guiado pela dolorosa certeza, revelada por uma aparição, de que o tio, 
Cláudio, matara-lhe o pai para desposar a rainha, sua mãe.
48
 Semelhantemente, Ofelia se 
move pela trama de Toro impelida pela revelação de que o pai era na verdade um rei, o que 
torna o padrasto um usurpador não apenas do amor materno, mas também do trono. 
Nesse sentido, é ilustrativa a recusa da menina em chamar o capitão Vidal de pai: 
“Ele não é meu pai. O capitão não é meu pai. Meu pai era alfaiate. Morreu na guerra. O 
capitão não é meu pai.”49 E é significativa também a consequente repreensão da mãe: 
“Quando chegarmos, saia e cumprimente o capitão. E quero que o chame de pai. Você ouviu? 
‘Pai.’ É só uma palavra, Ofelia.”50 Se se tratasse, como quer acreditar Carmen, de uma 
palavra apenas, não faria sentido o comportamento de Vidal, tão obcecado com a futura 
condição paterna que coloca em perigo a gravidez da mulher. Ele a faz viajar em precário41 ARENDT, 2008, p. 29. 
42 ARENDT, 2008, p. 64. 
43 ARENDT, 1989. 
44 ARENDT, 1989, p. 531. 
45 ARENDT, 1989, p. 531. 
46 SHAKESPEARE, William. Hamlet, príncipe da Dinamarca. In: Tragédias. Tradução de F. Carlos de Almeida 
Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Sinopses, dados históricos e notas de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros. 
São Paulo: Abril Cultural, 1981. 
47 SHAKESPEARE, 1981. 
48 SHAKESPEARE, 1981. 
49 O LABIRINTO..., 2006. 
50 O LABIRINTO..., 2006. 
 
 
 
 
 
10 
estado de saúde, na contramão das recomendações médicas, por entender que: “Um filho deve 
nascer onde seu pai está.”51 
O personagem do capitão vê tanto sentido no signo da paternidade que, não é 
absurdo dizer, pratica os atos de arbítrio e crueldade que comete devido a um mal direcionado 
(e não reconhecido) esforço de se igualar em grandeza e coragem ao pai, um general. Só 
assim se pode entender por que Vidal nega publicamente a herança paterna: 
 
(Oficial) Seus homens contavam que, quando o General Vidal morreu no 
campo de batalha, ele quebrou o relógio para que seu filho soubesse a hora 
exata da sua morte. Para seu filho saber como morrem os valentes. 
(Capitão Vidal) Bobagem. Ele nunca teve relógio.
52
 
 
Mas, reservadamente, pretende dar continuidade ao legado dela, seja homenageando 
o pai ao dar nome ao próprio filho: “Ele receberá meu nome, o nome do meu pai [...]”53, seja 
cuidando para morrer como o ascendente, com um relógio a mão: “Diga ao meu filho a que 
horas o pai dele morreu.”54 
Outras referências à simbologia da paternidade estão presentes no longa-metragem. 
O amor paternal é ilustrado no conto de fadas narrado logo no início do filme: “No entanto, 
seu pai, o rei, sabia que a alma da princesa retornaria, talvez em outro corpo, em outro tempo 
e em outro lugar. Ele a esperaria até seu último alento, até que o mundo parasse de girar.”55 E, 
também, no ato final de misericórdia do capitão, que entrega o bebê recém-nascido aos 
cuidados de Mercedes, a guerrilheira infiltrada entre seus empregados de confiança. 
O valor simbólico da herança é então confirmado por esta corajosa mulher, que se 
recusa a cumprir o pedido do militar: “Ele nem saberá seu nome.”56 Bastante curioso é, ainda, 
o fato de que nem o nome do pai humano de Ofelia nem o do regente do reino subterrâneo 
sejam mencionados na película
57
. 
Ademais, tanto em Hamlet
58
 quanto em O Labirinto do Fauno
59
 ocorre o que, aos 
olhos de cada protagonista, aparece como uma dupla violação. Um tirano, com um só golpe, 
usurpa-lhes simultaneamente o papel do pai e o do soberano. Mesmo sem aprofundar na 
interpretação psicanalítica do arquétipo paterno, não é difícil ver encarnado nele o signo da 
 
51 O LABIRINTO..., 2006. 
52 O LABIRINTO..., 2006. 
53 O LABIRINTO..., 2006. 
54 O LABIRINTO..., 2006. 
55 O LABIRINTO..., 2006. 
56 O LABIRINTO..., 2006. 
57 O LABIRINTO..., 2006. 
58 SHAKESPEARE, 1981. 
 
 
 
 
 
11 
autoridade, do poder político do Estado, da soberania. Por oposição, o papel simbólico do 
padrasto serve de metáfora para o golpe, a usurpação, a ocupação ilegítima do trono. Aquele 
que se casa com a mãe viola duplamente o lugar do pai no mundo: primeiro, como objeto do 
amor materno e filial; depois, como fonte da obediência e destino da admiração inerentes à 
condição de autoridade reconhecida. Isso ajuda a compreender não só a antipatia de Ofelia 
pelo capitão, mas também sua simpatia pela causa dos rebeldes. 
 
 
5 O isolamento: a perda do vínculo com a comunidade política 
 
 
A tirania a que se presta o personagem de Vidal não é apenas simbólica, nem decorre 
exclusivamente de uma tensão familiar. O capitão comete atos de violência gratuita e 
desmedida, não raramente, contra pessoas inocentes ou incapazes de defenderem-se. Pelo 
medo, ele subjuga aqueles que o cercam. Nessa situação de submissão, encontra-se Carmen.
60
 
A relação entre a mulher e o militar oferece mais uma metáfora da opressão política. 
Compreendem-se as razões disso se se recorre ao papel pré-totalitário da solidão e do 
isolamento, como reconhecido pela teoria de Arendt
61
. Em certa passagem, conversando com 
Ofelia, e indagada sobre por que se casara novamente, a mãe confessa sentir-se só. Noutra 
sequência, durante um jantar, o próprio marido diz sobre ela: “[...] não tem visto muita 
gente.”62 Hannah Arendt observa que “[...] o terror só pode reinar absolutamente sobre 
homens que se isolam uns contra os outros e que, portanto, uma das preocupações 
fundamentais de todo governo tirânico é provocar esse isolamento.”63 
Dessa condição básica de isolamento, do “[...] impasse no qual os homens se vêem 
quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse 
comum, é destruída [...]”64, decorre a impotência política: “[...] na medida em que a força 
sempre surge quando os homens trabalham em conjunto, [...] os homens isolados são 
impotentes por definição.”65 Como visto na película, tamanha é a incapacidade de agir de 
Carmen que, logo na chegada ao moinho, é-lhe imposta uma cadeira de rodas. Apesar da 
 
59 O LABIRINTO..., 2006. 
60 O LABIRINTO..., 2006. 
61 ARENDT, 1989. 
62 O LABIRINTO..., 2006. 
63 ARENDT, 1989, p. 526. 
64 ARENDT, 1989, p. 527. 
65 ARENDT, 1989, p. 526. 
 
 
 
 
 
12 
negativa inicial, o “não” que profere não produz efeitos, e a personagem se resigna diante da 
ordem para que se sente.
66
 
Mas também Ofelia é vítima do terror, que se torna mais forte na medida em que 
aumenta o isolamento da protagonista. Com a morte da mãe, a menina é colocada sob a 
vigilância do tirano. Órfã, ela se vê privada do lugar que ocupava no mundo. Sem poder 
suportar os aspectos acidentais e incompreensíveis da própria situação, entrega-se à 
desesperada tentativa de fugir da realidade. Afastada de seus livros e constantemente 
reprimida, abraça o fauno e o mundo de provações habitado por monstruosos seres 
antropomorfizados – um assustador reflexo do mundo humano. 
A partir desse contexto, o filme revela um dos aspectos mais impressionantes do 
totalitarismo: o fato de que “[...] jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, 
através do Estado e de uma máquina de violência [...]”67, mas intenta “[...] subjugar e 
aterrorizar os seres humanos internamente.”68 Não se satisfaz com a destruição da esfera 
política; “[...] destrói também a vida privada.”69 Interfere com igual brutalidade na vida 
pública do indivíduo e na sua vida interior
70
. 
O governo totalitário elimina a liberdade individual e o espaço para os contatos 
sociais. A solidão decorrente, nas palavras de Arendt, “[...] o fundamento para o terror [...]”71, 
tem íntima relação com o desarraigamento e a superfluidade que atormentam o homem 
moderno. “Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos 
outros [...]”72. Não por acaso, pela trama de Toro se move uma sucessão de sujeitos 
desarraigados. Nada se sabe da história de vida da maioria dos personagens, além das 
informações sobre a situação presente deles. 
Aqui, cabe apelar ao papel simbólico da precedência, dos valores e da tradição 
familiar. Apenas duas personagens, Carmen e Mercedes, falam sobre a própria infância, mas 
somente uma se refere a ela com carinho. A primeira lastima o fato de não ter tido quando 
criança vestido e sapatos tão bonitos quanto os de Ofelia. Só a segunda vê na ascendência e 
no passado próprios alguma dignidade, como exemplificam as passagens: “Quando era66 O LABIRINTO..., 2006. 
67 ARENDT, 1989, p. 375. 
68 ARENDT, 1989, p. 375. 
69 ARENDT, 1989, p. 527. 
70 ARENDT, 1989. 
71 ARENDT, 1989, p. 528. 
72 ARENDT, 1989, p. 528. 
 
 
 
 
 
13 
criança, sim [acreditava em fadas]. Acreditava em muitas coisas [...]”73 e “Minha avó me dizia 
para ter cuidado com faunos.”74 
Todos os demais parecem ter laços tão tênues com o mundo que não têm memória 
ou, ao menos, não a julgam importante a ponto de compartilhá-la. O capitão Vidal chega a 
reprimir a mulher por contar durante um jantar como ambos se haviam conhecido. Para ele, 
era repreensível que ela achasse “[...] que essas bobagens [as histórias privadas] interessam às 
pessoas.”75 
Esse desarraigamento é indissociável do fato de que, “Sempre que galgou o poder, o 
totalitarismo criou instituições novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do 
país.”76 A negação dos valores comuns historicamente compartilhados é a condição 
preliminar da superfluidade, do sentimento “[...] de não pertencer ao mundo de forma alguma 
[...]”77, da “[...] experiência de sermos abandonados por tudo e por todos [...]”78. Afinal, um 
grupo de indivíduos se torna uma comunidade, um povo, por partilhar um consentimento 
básico acerca da organização política comum.
79
 É esse um consensus iuris que a dominação 
total tentar romper: 
 
[...] sempre que estes [governos] se tornaram realmente totalitários, 
passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente 
de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias 
– legais, morais, lógicas ou de bom senso – podia mais nos ajudar a aceitar, 
julgar ou prever o seu curso de ação.
80
 
 
 
6 A irrelevância da vontade: a obediência irrestrita à lei 
 
 
O Labirinto do Fauno revela uma forma de governo cuja essência é o terror. Um dos 
principais mecanismos de manutenção desse sentimento de assombro na sociedade é a 
violência, empregada aleatoriamente contra os indivíduos. No filme, ela está presente nas 
cenas de tortura física e psicológica capitaneadas por Vidal. Mas, como em qualquer 
 
73 O LABIRINTO... 2006. 
74 O LABIRINTO... 2006. 
75 O LABIRINTO... 2006. 
76 ARENDT, 1989, p. 512. 
77 ARENDT, 1989, p. 528. 
78 ARENDT, 1989, p. 528. 
79 ARENDT, 1989. 
80 ARENDT, 1989, p. 512. 
 
 
 
 
 
14 
sociedade, as ocasiões para demonstração abusiva da força são relativamente limitadas – por 
contingências fáticas como a inferioridade numérica do corpo policial em função da 
população. Além disso, “[...] o terror no governo totalitário não é suficiente para inspirar e 
guiar o comportamento humano.”81 Para fazê-lo, o totalitarismo se vale então da ideologia. 
No longa-metragem, tais recursos aparecem nas referências ao aparato ideológico 
fascista, que substitui a realidade pela farsa, quer por meio da propaganda, destinada ao 
público externo – “[...] as camadas não-totalitárias da população do próprio país [...]”82 –, quer 
pela doutrinação, voltada para os iniciados. 
O caráter farsesco da propaganda institucional espanhola é revelado na cena em que 
um oficial distribuía vales-ração ao povo. Ele gritava: “Este é o pão de cada dia na Espanha 
de Franco que guardamos neste moinho!”83 O militar afirmava serem comunistas os 
oposicionistas do governo. Alardeava que: “Os Vermelhos mentem porque na Espanha 
nacionalista não há um único lar sem lenha ou pão.”84 Não mencionava, porém, que as 
porções individuais distribuídas eram sabidamente insuficientes e só eram necessárias porque 
se havia retirado daquela gente os meios de subsistência. 
Já a natureza ideológica e deformadora da doutrinação se explicita quando o capitão 
Vidal, durante um jantar oferecido aos simpatizantes do regime, reage ao comentário de que 
não ocupava aquela posição por vontade própria. Ele não apenas nega a afirmação, mas a trata 
como absurda. Para reforçar a ideia, propõe aos convivas um brinde: “À vontade própria.”85 
“Estamos todos aqui por vontade própria [...]”86, conclui. 
A vontade é um aspecto essencial da noção jurídica de autonomia individual – e da 
concepção moderna de liberdade. Por meio da conformação da vontade pela doutrinação 
ideológica, cria-se um grupo, o movimento, em oposição aos demais, os inimigos. O que une 
os membros da facção e os opõe aos outros é a certeza recém-adquirida de que são executores 
de uma lei evidente – embora pareça escapar à percepção dos não simpatizantes do 
movimento. 
A política totalitária tem por fim impor a legalidade apesar da vontade dos homens. 
Mais especificamente, ela “[...] promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo 
humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da 
 
81 ARENDT, 1989, p. 519. 
82 ARENDT, 1989, p. 391. 
83 O LABIRINTO... 2006. 
84 O LABIRINTO... 2006. 
85 O LABIRINTO... 2006. 
86 O LABIRINTO... 2006. 
 
 
 
 
 
15 
lei.”87 “O terror, como execução da lei de um movimento cujo fim ulterior não é o bem-estar 
dos homens nem o interesse de um homem, mas a fabricação da humanidade, elimina os 
indivíduos pelo bem da espécie, sacrifica as ‘partes’ em benefício do ‘todo’.”88 O capitão, 
afinal, estava sendo sincero quando disse querer que o “[...] filho nasça em uma Espanha 
limpa.”89 
Outro aspecto relevante da doutrinação da vontade, da deformação ideológica do 
saber e do querer direcionados ao agir, é ilustrado na passagem em que, flagrado após auxiliar 
o prisioneiro torturado que lhe pede para morrer, o médico é indagado por Vidal, que parece 
realmente surpreso com a não submissão do doutor. Nesse caso, ao combinar a noção de 
autonomia com a questão da legitimidade da autoridade, o filme permite refletir sobre o 
problema da obediência ao Direito e à legalidade: 
 
(Capitão Vidal) Por que fez isso? 
(Médico) Era a única coisa que eu podia fazer. 
(Capitão Vidal) Não. Poderia ter me obedecido. 
(Médico) Eu poderia, mas não o fiz. 
(Capitão Vidal) Teria sido melhor para você. Não entendo. Por que não me 
obedeceu? 
(Médico) Obedecer por obedecer... Assim, sem pensar... Só pessoas como 
você podem fazê-lo, capitão.
90
 
 
A partir desse diálogo, podem-se identificar duas formas distintas de se posicionar 
diante do poder instituído, da lei. Uma, representada por Vidal, é a obediência irrestrita ao 
Direito – pelo menos, às ordens expressas provenientes das autoridades que fazem as vezes do 
soberano. Outra, evocada pelo médico, traz à luz uma postura ética perante a ordem jurídica 
instituída: o apelo à legitimidade e à justiça, a crítica às decisões institucionais. 
Sem muito esforço, pode-se perceber com qual das duas atitudes se identifica Toro. 
Afinal, a protagonista do longa-metragem, Ofelia, só adentra o reino místico subterrâneo e é 
coroada princesa quando se recusa a cumprir a ordem do fauno, a determinação de que 
matasse o próprio irmão, mesmo que, previamente, houvesse prometido obediência irrestrita à 
criatura: 
 
(Fauno) O portal só se abre se derramarmos sangue inocente. Só um pouco, 
só um pouquinho. É a última prova. Depressa. Você me prometeu 
obediência! Dê-me o menino! 
 
87 ARENDT, 1989, p. 515. 
88 ARENDT, 1989, p. 517. 
89 O LABIRINTO... 2006. 
90 O LABIRINTO... 2006. 
 
 
 
 
 
16 
(Ofelia) Não! Meu irmão ficará comigo.
91
 
 
 
7 A destruição da separação entre legalidade e legitimidade 
 
 
É possível identificar um fio hermenêutico que liga os diversos elementos percebidos 
em O Labirinto do Fauno, aparentemente dispersos. As questões do reconhecimentoda 
autoridade, da usurpação do poder, do terror fascista, da perda dos valores tradicionais, da 
desconsideração da autonomia individual e da obediência irrestrita à lei podem ser reunidas 
numa crítica a uma concepção específica do que é a legalidade e às desastrosas consequências 
da radicalização dessa concepção: uma crítica ao Positivismo jurídico. 
A ideia positivista de legalidade predominante por dois séculos – e talvez ainda hoje 
– é um fenômeno recente. Não existia antes do início da Modernidade. A noção de Direito 
positivo – ou do Direito posto pelo Estado, como lei, e oposto, portanto, ao Direito natural –, 
era conhecida desde a Antiguidade, embora recebesse denominações diversas até o 
aparecimento do termo atual, na Idade Média. Todavia, com a transformação no modo de 
produção jurídica ocorrida no início do século XIX, alterou-se o modo de conceber o próprio 
Direito. As grandes codificações desencadearam a monopolização dos processos jurígenos 
pelo Estado. Diante dela, Direito positivo e Direito natural não foram mais considerados 
Direito no mesmo sentido. Por obra do Positivismo, o Direito positivo passou a ser 
considerado o único Direito.
92
 
Com a mudança intelectual promovida pelo Positivismo, “[...] o próprio termo ‘lei’ 
mudou de sentido [...]”93. Desde a Idade Antiga, as leis positivas eram vistas como “[...] 
forças estabilizadoras dos negócios públicos dos homens [...]”94. Valorizavam-se os limites 
estabelecidos por elas por garantirem “[...] a preexistência de um mundo comum, a realidade 
de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração [...]”95. Mesmo os 
primeiros códigos modernos eram recebidos como se convertessem e realizassem “[...] o 
imutável ius naturale ou a eterna lei de Deus, em critérios de certo e errado.”96 A positivação 
 
91 O LABIRINTO... 2006. 
92 BOBBIO, 2006. 
93 ARENDT, 1989, p. 517. 
94 ARENDT, 1989, p. 519, grifo nosso. 
95 ARENDT, 1989, p. 517. 
96 ARENDT, 1989, p. 516. 
 
 
 
 
 
17 
se justificava porque, “Somente nesses critérios, no corpo das leis positivas de cada país, o ius 
naturale ou os Mandamentos de Deus atingem realidade política.”97 
No entanto, em meados do século XIX, o conceito de lei positiva “[...] deixa de 
expressar a estrutura de estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos 
humanos, para ser a expressão do próprio movimento.”98 Como a seleção natural, de Darwin, 
introduz o conceito de evolução na natureza, e a luta de classes, de Marx, introduz na história 
a noção de desenvolvimento das forças produtivas, o Positivismo introduz no Direito a ideia 
de processo
99
. As leis passam a ser concebidas como o resultado de atos sequenciais 
praticados por autoridades e funcionários anônimos no interior da estrutura burocrática do 
Estado. Assim objetivados, os padrões jurídicos coincidem com o repertório de documentos 
produzidos em conformidade com os processos legislativo e jurisdicional, independentemente 
do conteúdo das prescrições que tragam. 
A ideia de movimento, combinada à de Direito, transforma cada norma jurídica no 
resultado aleatório de procedimentos previamente definidos. O próprio processo e as 
instituições encarregadas de conduzi-lo passam a ocupar no imaginário coletivo o papel 
estabilizador antes desempenhado pela lei. A aleatoriedade do conteúdo legislativo é 
representada pela máxima formalista de que toda manifestação estatal emanada do Poder 
Legislativo é lei. Na medida em que cada ato legislativo promulgado não esgota o processo, 
que pode sempre voltar a ser acionado para reformular o ato anterior, o que hoje se considera 
certo por ser exigido pela lei pode vir a ser errado por ser por ela proibido. 
Isso porque, para o Positivismo, o único critério reconhecido para identificar o 
fenômeno jurídico, diferenciá-lo das normas morais, é o formal, que leva em consideração 
somente o modo como as leis são produzidas, não o que elas estabelecem. Não é difícil 
perceber como essa doutrina, levada ao extremo, pode conduzir à afirmação do dever absoluto 
ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal, à máxima de que “lei é lei”. Não que o 
Positivismo negue a possibilidade de formular um juízo de valor sobre o Direito e as 
instituições jurídicas. O que sustenta é que tal juízo se afasta do campo da ciência jurídica. 
Tratar-se-ia de um juízo moral, subjetivo e arbitrário, portanto, não científico nem jurídico.
100
 
De certo, a separação entre Direito e moral, promovida na Modernidade pelo 
Positivismo jurídico, respondeu aos anseios políticos de uma época em que a moralidade 
religiosa era perigosamente identificada com os padrões morais públicos da comunidade 
 
97 ARENDT, 1989, p. 516. 
98 ARENDT, 1989, p. 516. 
99 ARENDT, 1989. 
 
 
 
 
 
18 
política (do Direito e do Estado). Mas, gerou, entre outros preocupantes efeitos, um que não 
pode ser desconsiderado: não desvinculou, como prometia, a noção de justo e injusto da de 
legal e ilegal; ao contrário, tornou possível que a legalidade estrita fosse encarada como 
sinônimo de legitimidade. Assim, os desdobramentos mais extremos da ideologia formalista 
destruíram a própria distinção entre um governo legal e um governo legítimo. 
Devido à visão positivista extrema, a ilegitimidade passou a significar não mais que a 
contrariedade à lei. O único juízo público que se admite é o jurídico, e, na medida em que 
qualquer conteúdo pode ser Direito, o único critério seguro para identificar o Direito, separá-
lo do não Direito, é o formal. Noutras palavras, reformulando mais precisamente a assertiva 
anterior, o único juízo público que se admite é o legal. O julgamento moral (ético) das 
condutas humanas – inclusive das instituições e autoridades político-jurídicas – é rebaixado a 
atividade privada – como o são as manifestações religiosas –, o que abre caminho para a 
instauração do grande problema político contemporâneo, a questão sempre em aberto da 
legitimidade e do seu reverso, o abuso de poder. 
Afinal, sob a perspectiva do formalismo, a “[...] ‘lei’ nada mais é que toda decisão 
tomada por toda maioria parlamentar [...]”101, de modo que surgem para todo grupo que detém 
maioria no parlamento recompensas pela aquisição legal do poder. Torna-se, pois, muito 
difícil impedir que, de posse das atribuições de governo, aqueles que conseguiram o poder por 
meio da legalidade fechem atrás de si a porta pela qual entraram.
102
 Certa fala do capitão 
Vidal ilustra com precisão essa ideia de que a legalidade esvaziada da legitimidade reserva 
prêmios aos vencedores da disputa política: “Essa gente parte da falsa premissa de que somos 
todos iguais. Mas há uma grande diferença. A guerra acabou e nós ganhamos.”103 
 
 
8 Conclusão: o Direito esvaziado de princípios 
 
 
O Positivismo jurídico pretende fornecer uma explicação total do fenômeno sobre o 
qual se debruça. Para tanto, liberta-se de toda experiência empírica que não possa apreender. 
 
100 BOBBIO, 2006. 
101 SCHMITT, 2007, p. 26. 
102 SCHMITT, 2007, p. 32-33. 
103 O LABIRINTO... 2006. 
 
 
 
 
 
19 
Retira do mundo jurídico as dimensões axiológica e sociológica que o compõem.
104
 Por fim, 
impõe ao seu objeto uma coerência lógica que não existe em parte alguma da realidade. 
Todavia, ao fazê-lo, permite que o Direito seja devorado pela lógica que pretende explicá-lo. 
A concepção positivista da legalidade se tornou realmente uma ameaça, a ponto de 
favorecer, durantetodo o século XX, o surgimento de regimes ditatoriais que eventualmente 
evoluíram para o totalitarismo, porque ela mesma é uma visão total – e, embora não 
reconheça, ética – do Direito. O dogma de que não há lacunas jurídicas, associado à noção de 
que o único Direito válido é o expressamente elaborado pelo Estado, na prática, produziu algo 
inconcebível antes da Modernidade: não existe esfera da vida humana que não seja regulada 
pelo poder estatal. (É interessante pensar que, por isso, os direitos humanos, compreendidos 
como esferas a salvo da intervenção do governo só tenham sido declarados modernamente.) 
Pois é característico da lei o fato de ser geral e criada para durar indefinidamente.
105
 
Carl Schmitt
106
 já havia alertado para as consequências desse fenômeno. A 
Modernidade eliminou o dualismo entre Estado e sociedade, de forma que os indivíduos 
nascem no Estado e, dentro do ordenamento estatal, vivem. Como não existe Direito fora da 
legalidade, não existe possibilidade de exercício da resistência contra o Estado. A resistência 
ao poder estatal é necessariamente contrária ao Direito, antijurídica. Se tal ideia não parece 
ameaçadora quando se vive numa democracia, a história se ocupou de mostrar quão tirânico 
pode tornar-se um sistema degenerado de legalidade total. 
Se se tentou, com a positivação, retirar do soberano o poder de ditar arbitrariamente 
as normas jurídicas e fazê-lo submisso ao Direito, o Positivismo extremo “[...] terminou por 
criar um outro absolutismo, tão nocivo quanto o real, que se queria abolir definitivamente: o 
absolutismo legal.”107 Pois, encarado exclusivamente em sua normatividade abstrata, 
desprovida de elementos axiológicos (princípios) e sociológicos (fatos) – desprovido, 
portanto, de realidade histórica –, o Direito se presta a tornar-se instrumento para a realização 
de qualquer proposta de organização política, mesmo daquelas que atentam contra a própria 
ordem jurídica estabelecida. 
A prometida desvinculação de Direito e moral – que pretendeu o apartar não apenas 
da moralidade privada, o que é desejável, mas também da pública – conduziu não à pureza 
ética do Direito, mas ao fim da própria discrepância entre legalidade e legitimidade. Se a 
 
104 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. 15 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 
2008. 
105 ARENDT, 1989. 
106 SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Tradução de Tito Lívio Cruz Romão. Coord. e supervisor Luiz 
Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 
 
 
 
 
 
20 
justificação ética se reduz a um juízo de legalidade, e se o status de lei é obtido 
indiferentemente ao conteúdo da manifestação do soberano, torna-se sem sentido o apelo à 
justiça. Diante da constatação de que a concepção positivista iguala o justo à lei, o poder legal 
não pode cometer nenhuma injustiça. Na prática, portanto, “[...] a pretensão de legalidade 
torna toda resistência e toda defesa injustiça e contravenção, torna-as ilegalidade.”108 
Dessa maneira, a legalidade, encarada sob a ótica de um Positivismo extremo e 
esvaziada de outros princípios políticos, favorece a ascensão de esquemas totalitários de 
governo, que, uma vez instalados, subvertem, substituem ou simplesmente violam a própria 
ordem legal que outrora lhes havia sido útil. O Direito, reduzido ao repertório de documentos 
produzidos por órgãos legislativos, em constante processo de transformação, primeiro se torna 
inapreensível para os cidadãos, para depois perder importância. Concebidas como não mais 
que empecilhos burocráticos, um obstáculo ao livre movimento da sociedade, as leis, e com 
elas os direitos e o espaço de liberdade entre os homens, podem ser então, desconsideradas, 
postas de lado como estorvos. 
Ocorre que a pura legalidade é insuficiente para garantir a continuidade de uma 
organização política, pois ela “[...] impõe limites aos atos, mas não os inspira; a grandeza, mas 
também a perplexidade das leis nas sociedades livres está em que apenas dizem o que não se 
deve fazer, mas nunca o que se deve fazer.”109 Ainda que os teóricos positivistas não 
reconheçam, qualquer forma de governo necessita do que Hannah Arendt denomina “[...] um 
guia para a conduta dos seus cidadãos na esfera pública.”110 Para garantir a continuidade do 
corpo político, fazem-se necessários parâmetros orientadores – um princípio de ação, que, 
“[...] diferente para cada forma de governo, inspiraria governantes e cidadãos em sua 
atividade pública e serviria como critério, além da avaliação meramente negativa da 
legalidade, para julgar todos os atos no terreno das coisas públicas.”111 
Se, como quis indicar o título deste trabalho, a legalidade sob a perspectiva do 
Positivismo extremo é um labirinto jurídico de decisões aleatórias e indiferentes em que se 
perde o sujeito moderno, o monstruoso Vidal do filme de Guillermo del Toro é a 
manifestação do abuso do poder da autoridade, que, na sua aparição mais degenerada, assume 
a forma do totalitarismo. Em O Labirinto do Fauno, o militar cumpre o papel que, na clássica 
história mitológica, reserva-se ao temido Minotauro. Mas Ofelia não conseguiria vencer o 
 
107 MELLO, 2008, p. 170. 
108 SCHMITT, 2007, p. 31. 
109 ARENDT, 1989, p. 519. 
110 ARENDT, 1989, p. 519. 
111 ARENDT, 1989, p. 519. 
 
 
 
 
 
21 
capitão como fez Teseu, que assassinou com um soco a criatura mítica
112
. Por ser uma heroína 
moderna, reduzida à impotência política, as virtudes públicas da coragem e do heroísmo 
clássico lhe são desconhecidas. 
Ademais, ainda que fosse possível manter o monstro (o abuso) afastado por algum 
tempo – e apenas provisoriamente –, permanece sem resposta o problema do próprio labirinto 
(da legalidade). Dele não se pode sair sem o fio de Ariadne, o qual permitiu ao herói grego 
percorrer sem perder-se a rede de galerias, morada do monstro, “[...] desenrolando o novelo à 
proporção que avançava, para saber por onde iria sair.”113 Noutras palavras, sem uma linha de 
princípios que dê significado às instituições, desde a origem da comunidade política até seu 
destino, sem o apelo a uma moralidade pública (a um princípio de ação) com a qual se 
identifique, o indivíduo é feito prisioneiro do próprio sistema de legalidade que o deveria 
garantir contra o arbítrio. 
Condenado a errar eternamente entre incontáveis normas de todas as espécies, 
incompreensíveis procedimentos e inidentificáveis funcionários e repartições, aos quais 
parece faltar sentido, o homem moderno, como Josef K., a vítima d’O processo114, só escapa 
do labirinto em que está aprisionado mediante o sacrifício de si mesmo. Apenas por meio da 
morte (desaparecimento físico) ou da loucura (desaparecimento simbólico, delírio, 
esquizofrenia, incapacidade) pode pôr fim ao próprio desespero. Somente deixando o mundo 
e o convívio dos homens conquista a liberdade. Não é esse, afinal, o destino de Ofelia, e o que 
lhe promete o fauno? 
 
 
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