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O Xamanismo e as Tecnicas Arcaicas do Extase Eliade Revisitado

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1
O Xamanismo e as Técnicas 
Arcaicas do Êxtase: Eliade revisitado 
Pedro Peixoto Ferreira 
2003 
 
XAMANISMO COMO 
TÉCNICA DO ÊXTASE 
 
tualmente existe à disposição uma 
pletora de obras sobre o xamanismo, 
algumas com enfoque antropológico, 
outras com enfoque 
histórico, outras com 
enfoque ficcional e ou-
tras ainda (certamente a 
maior parte) com um 
enfoque místico que 
poderíamos chamar de 
new age1. É preciso dei-
xar claro que é o 
primeiro enfoque, o 
antropológico, que pro-
duz a maior parte do 
material sobre o qual os 
outros enfoques se sus-
tentam, sendo a 
literatura new age aque-
la que mais tende a 
distorcer este material 
em benefício de ideolo-
gias do momento2. Mas 
sendo o material antropológico muito vasto, 
heterogêneo e especializado, creio ser prefe-
rível iniciarmos nossa investigação com uma 
obra clássica de enfoque histórico mas cujo 
alcance conceitual foi sentido mesmo dentro 
da antropologia. Trata-se de O Xamanismo e 
as técnicas arcaicas do êxtase (1998 [1951]), 
talvez a mais influente obra até hoje sobre 
 
1
 Existem outros enfoques ainda pouco explorados 
mas bastante promissores para pesquisas sobre o xa-
manismo, como o médico (cf.Achterberg, 1996) e o 
neurológico (cf.Sell, 1996). 
2
 Para uma visão crítica desta literatura, cf.Atkinson 
(1992:315), Vitebsky (2001a, 2001b) e Ott (2001). 
xamanismo, escrita pelo historiador das reli-
giões romeno Mircea Eliade. "Apesar das 
numerosas reservas que atualmente se fazem 
a esta imponente obra", aponta lucidamente 
Bernard S. D'Anglure, "ela permanece a me-
lhor introdução ao xamanismo, no tocante 
tanto aos temas aborda-
dos quanto à 
diversidade de tradições 
culturais descritas" 
(1996:506). Partamos, 
assim, de Eliade, e ve-
jamos como, logo no 
início de sua obra, ele 
define o xamanismo: 
 
"Uma primeira de-
finição desse fenômeno 
complexo, e possivelmente a 
menos arriscada, será: xama-
nismo = técnica do êxtase" 
(p.16)
3
 
 
 Apesar de a 
influência desta defini-
ção de xamanismo ter 
sido mais explícita nas 
pesquisas de cunho histórico (cf.Sullivan, 
1988) e fenomenológico (cf.Ripinsky-Naxon, 
1993), ela também pode ser percebida em 
pesquisas antropológicas e etnográficas de 
outras orientações, que mesmo quando não 
fazem referência direta à obra de Eliade ado-
tam o conceito de técnicas do êxtase para 
tratar das experiências xamânicas 
(cf.Langdon, 1992 e 1996). O motivo da au-
sência de referências explícitas a Eliade por 
parte dos antropólogos e etnólogos é de fácil 
compreensão: Eliade é famoso por nunca ter 
 
3
 Exceto quando indicado, todas as referências perten-
cem a Eliade, 1998. 
A
 
 2
pesquisado o xamanismo fora das bibliotecas 
e, principalmente, por ter distorcido informa-
ções para que se encaixassem em seu projeto 
purista e essencialista de descobrir "o verda-
deiro xamanismo Siberiano"4. No entanto 
como explicar a ampla influência (mesmo 
que anônima) de sua definição de xamanismo 
como técnica do êxtase? 
 Falar de xamanismo é uma atividade 
controversa, pois a idéia de que exista um 
"xamanismo" em geral independente dos 
"xamãs" particulares é apenas uma ficção 
metodológica. Cada sociedade tem seus pró-
prios rituais de iniciação ao xamanismo, e 
mesmo dentro de uma mesma sociedade es-
tes rituais podem variar de acordo com o 
caso. Além disso, atualmente já se sabe que a 
palavra "xamã", apesar de designar a pessoa, 
não indica exatamente uma propriedade da 
pessoa mas sim uma qualidade dela, um po-
der que ela adquire e que ela pode também 
perder; não é algo que se é e sim algo que se 
tem ou que se pode. Por último, é preciso não 
se esquecer da máxima epistemológica a 
produção de conhecimento influencia no 
próprio conhecimento produzido, sintetizada 
no slogan "saber é poder": o olhar que cada 
antropólogo em cada época e contexto lançou 
a cada xamã certamente influenciou aquilo 
que ele viu. Jeremy Narby e Francis Huxley 
mostram isso muito bem na coletânea 
Shamans Through Time: 500 Years on the 
Path to Knowledge: se há alguma coisa que 
 
4
 Segundo Eliade, o "xamanismo strictu sensu" era 
"um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático" 
(p.16), e portanto todos os outros xamanismos do 
mundo seriam variações mais ou menos desvirtuadas 
deste ideal. Porém, como nota o antropólogo Piers 
Vitebsky, "[h]avia vários tipos de 'xamãs' [na Sibéria e 
na Mongólia], inclusive no seio de uma mesma socie-
dade, e até no mesmo acampamento. [...] A idéia do 
xamã puro ou ideal, tal como apresentada por Eliade, 
torna-se cada vez mais difícil de sustentar em qualquer 
pesquisa nesta região social e ecologicamente diversi-
ficada." (2001a:34-5) Críticas calorosas ao trabalho de 
Eliade podem ser encontradas em Lewis (1993), apesar 
deste autor já ter anteriormente considerado o seu 
trabalho "convincente" (cf.1971:26). 
mudou nos últimos cinco séculos5 de pesqui-
sas sobre o xamanismo, foi "o olhar dos 
pesquisadores" (Narby e Huxley, 2001:8). 
Assim não podemos, a princípio, falar de 
"xamanismo" a não ser como um "tipo-ideal" 
construído a partir de muitos estudos particu-
lares de casos particulares e ainda em 
processo de formação. 
 Mas se a análise comparativa de prá-
ticas xamânicas de uma grande quantidade de 
tribos diferentes não nos oferece mais do que 
um "tipo-ideal", isso não nos impede de usar 
esta tipologia como recurso interpretativo. É 
preciso apenas atentar para que a forma "xa-
manismo" nunca deixe de se informar sobre 
as singularidades da matéria dos xamãs, nun-
ca se torne um molde acabado que então só 
reduziria esta matéria a uma forma pré-
estabelecida6. E não é isso que deveria ocor-
rer com qualquer (bom) conceito? É verdade 
que não existe um xamanismo em geral, ape-
nas xamãs particulares. Mas a descoberta de 
um traço comum a todos os xamãs conheci-
dos e capaz de dar conta de suas 
singularidades certamente pode dar origem a 
um conceito de xamanismo. O conceito elia-
deano de "xamanismo como técnica do 
êxtase" tem tido uma boa aceitação na antro-
pologia, apesar dos problemas de seu 
criador7, pelo simples fato de que ele dá con-
ta do fenômeno e é capaz de se deixar 
informar por cada nova descoberta feita so-
bre o fenômeno. Ele se disseminou pois 
 
5
 A coletânea traz 64 trechos de textos-chave sobre 
xamanismo, sendo o primeiro de 1535 – quando o cris-
tianismo estigmatizava o xamanismo como demoníaco 
e os pesquisadores que o levassem a sério como peca-
dores – e o último de 2000 – quando o xamanismo já é 
tratado como uma forma específica de produção de 
conhecimento ao lado da ciência. 
6
 Sobre a problemática do hilemorfismo na Antropo-
logia, cf.Viveiros de Castro, 2002:114-5. 
7
 Minha atribuição a Eliade da "paternidade" do con-
ceito de xamanismo como técnica do êxtase se deve à 
influência de seu livro (1998) , mas não deve ofuscar 
esforços anteriores não vinculados especificamente ao 
xamanismo de compreensão das técnicas do êxtase 
(e.g., James, 1902; Weber, 1963). 
 3
 conseguiu captar, mesmo que 
por vias equivocadas, uma 
característica fundamental do 
fenômeno, a saber: a capaci-
dade do xamã de controlar 
tecnicamente o êxtase seu e 
alheio. Quanto mais se conhe-
ce os xamãs mais se percebe 
que é justamente isso que os 
caracteriza8. Suas viagens 
para os mundos espirituais, 
seus transes, suas canções, 
seus mitos, seus rituais de 
cura, adivinhação, propiciação 
etc., apesar de todas as singu-
laridades contextuais, podem 
ser definidos como diferentes 
formas de operar um transpor-
te para a dimensão 
préindividual dasrelações 
com o objetivo de transformá-
las de acordo com as necessi-
dades (como quem consegue 
dirigir seu próprio sonho, só 
que tornando-o realidade). 
 
XAMANISMO "STRICTU SENSU" 
 
 compreensão adequada da influente 
definição eliadeana de xamanismo 
como técnica do êxtase depende do 
conhecimento do contexto em que foi apre-
sentada. Eliade escreveu em uma época em 
que a compreensão do xamanismo "se apro-
fundava" (cf. Narby e Huxley, 2001), e temos 
motivos para crer que a sua mistura peculiar 
(e muitas vezes prejudicial) de dispersão do-
cumental e concentração conceitual 
contribuiu enormemente para este aprofun-
damento. Tratava-se, num primeiro 
momento, de um esforço explícito pela defi-
 
8
 Em uma abrangente pesquisa, Larry G. Peters e 
Douglas Price-Williams afirmam que "[q]uase todos 
que escreveram sobre o tema apontam o êxtase como 
o ingrediente inescapável do xamanismo", sendo "o 
elemento comum em todos estes relatos o fato de o 
xamã […] manter o controle de seu êxtase" (1980:398-
9). Um exemplo de confirmação etnográfica explícita 
das teses eliadeanas no xamanismo sul-americano 
pode ser encontrado em Lins (1985). 
nição daquilo que ele chamou 
de "xamanismo stricto sensu": 
"um fenômeno religioso sibe-
riano e centro-asiático" (p.16). 
Além das implicações etimo-
lógicas (a palavra "xamã" 
deriva do tungue, idioma dos 
Evencos, da Sibéria), o autor 
argumentava que a "vida má-
gico-religiosa" dos povos 
siberianos e centro-asiáticos 
gira em torno do xamanismo, 
pois "em toda essa região, 
onde a experiência extática é 
considerada a experiência 
religiosa por excelência, é o 
xamã, e apenas ele, o grande 
mestre do êxtase" (p.16). 
 Mas se a definição 
eliadeana do xamanismo par-
tia de um xamanismo 
geográfica e historicamente 
específico, em seguida ela se 
transforma numa espécie de 
"tipo-ideal" encontrado em 
diferentes graus de "pureza" 
por todo o mundo9 e caracterizado por aquilo 
que ele denominou de "as técnicas do êxta-
se"10. E é partindo deste recorte que, logo no 
início do livro, ele clama por uma distinção 
entre o "xamanismo stricto sensu" e a enor-
me variedade de termos "análogos" que 
 
9
 "Visto que esse fenômeno mágico-religioso se mani-
festou em sua forma mais completa na Ásia central e 
setentrional, tomaremos como exemplo típico o xamã 
dessas regiões. [...] [E]sse xamanismo da Sibéria e da 
Ásia central tem o mérito de se apresentar como uma 
estrutura na qual certos elementos que existem difusos 
no resto do mundo [...] já se revelam, na zona em 
questão, integrados numa ideologia particular que 
valida técnicas específicas." (p.18). 
10
 Para reiterações desta definição, cf. p.10, 20, 84, 115, 
127, 166, 208, 214-5, 226, 240, 244, 264, 287, 293, 329-30, 
527, 534, 542, 547, 550. Como evidência da persistência 
desta mesma definição no pensamento de Eliade, 
temos o livro Zalmoxis, The Vanishing God, publicado 
em 1970 (quase vinte anos após O Xamanismo...), 
onde, tratando do xamanismo na Grécia, ele afirma: 
"The shaman is above all an ecstatic." (Eliade, 
1972:41). 
 
A
 4
abundam na literatura especializada e que, a 
seu ver, só prejudica a compreensão do "fe-
nômeno xamânico em si" (p.15): 
 
"Se por 'xamã' se entender qualquer mago, 
feiticeiro, medicine-man ou extático [a tradução para o 
português acrescenta ainda "curandeiro" e "pajé"] 
encontrado ao longo da história das religiões e da 
etnologia religiosa, chegar-se-á a uma noção ao mes-
mo tempo extremamente complexa e imprecisa, cuja 
utilidade é difícil perceber, visto já dispormos dos 
termos 'mago' e 'feiticeiro' para exprimir noções tão 
díspares quanto aproximativas como as de 'magia' ou 
'mística primitiva'." (p.15) 
"Magia e magos há praticamente em todo o 
mundo, ao passo que o xamanismo aponta para uma 
'especialidade' mágica específica [...] : o 'domínio do 
fogo', o vôo mágico etc. Por isso, embora o xamã 
tenha, entre outras qualidades, a de mago, não é qual-
quer mago que pode ser qualificado de xamã. A 
mesma precisão se impõe a propósito das curas xamâ-
nicas: todo medicine-man cura, mas o xamã emprega 
um método que lhe é exclusivo. As técnicas xamâni-
cas do êxtase, por sua vez, não esgotam todas as 
variedades da experiência extática registradas na his-
tória das religiões e na etnologia religiosa; não se 
pode, portanto, considerar qualquer extático como um 
xamã: este é o especialista em um transe, durante o 
qual se acredita que sua alma deixa o corpo para reali-
zar ascensões celestes ou descensões infernais." (p.17) 
 
 Sendo, portanto, as "técnicas do êxta-
se" o elemento distintivo deste "fenômeno 
xamânico em si"/"xamanismo stricto sensu", 
nada mais indicado do que iniciar nossa pes-
quisa a partir do uso que o historiador das 
religiões faz daquele termo. No entanto, de-
bruçando sobre o seu uso do termo "êxtase", 
nos deparamos de imediato com um excesso 
de definições conflitantes e nada sistemáticas 
que acaba por comprometer o poder analítico 
do tipo-ideal proposto. Não mais do que três 
páginas após afirmar que "não se pode [...] 
considerar qualquer extático como um xa-
mã", por exemplo, Eliade transforma em 
sinônimos "xamã" e "extático", "experiência 
xamânica" e "experiência extática"11. E basta 
 
11
 "Os xamãs [...] têm acesso a uma zona do sagrado 
inacessível aos outros membros da comu nidade. Suas 
experiências extáticas [...] exercem [...] poderosa in-
fluência sobre a estratificação da ideologia religiosa 
[...]. Porém, [...] a ideologia, a mitologia e os ritos das 
populações árticas, siberianas e asiáticas [...] são [...] 
um estudo sistemático da obra para perceber 
que esta confusão terminológica jamais se 
esclarece – pelo contrário, se complica, sua 
terminologia variando indefinidamente12. 
Ainda mais lamentável é o fato de que esta 
"indefinição" provoca contradições notáveis 
na própria argumentação de Eliade em favor 
do "xamanismo stricto sensu" e contra suas 
variações "desvirtuadas", "degradadas" e 
"decadentes", como quando ele afirma que, 
dada a "trans-historicidade" e a "completa 
reversibilidade" do "sagrado", "nenhuma 
 
anteriores ao xamanismo [...] , [...] são produto da 
experiência religiosa geral, e não de determinada clas-
se de seres privilegiados, os extáticos. Ao contrário, 
[...] observa-se freqüentemente o esforço da experiên-
cia xamânica (isto é, extática) para expressar-se por 
intermédio de uma ideologia que nem sempre lhe é 
favorável." (p.19-20). 
12
 Para exemplos das mais variadas ocasiões em que 
Eliade emprega como sinônimos de xamã termos que 
ele explicitamente distinguiu dele, cf.: curandeiro 
(pp.34, 36, 41, 46, 71, 103, 122, 145, 202-3, 208, 211, 310, 
313, 330, 332, 339, 348, 354-5, 357, 361, 371, 378, 380-2, 386, 
396-9, 406, 422, 491, 512-3, 532); extático (pp.20, 409, 
422, 424, 431, 433, 442, 446, 485, 492); feiticeiro (pp.34, 
36, 46, 73-4, 104, 111, 120, 163, 177, 182, 202-4, 208, 278, 
329-30, 333, 350, 356, 359, 360, 363, 381, 384-5, 389, 395-7, 
399, 400, 402, 404-7, 419, 421, 425, 427, 431, 465, 476, 
480-1, 485-7, 490-2, 494, 502-3, 512, 514-5, 518-20, 527, 
532, 534, 545); mago (pp.16-7, 34, 41, 62, 65, 67, 86, 105, 
107, 111, 122, 134, 148, 156, 163, 188, 205, 210-1, 256, 329, 
333, 356, 380, 382, 395-6, 405, 409, 415-6, 419-20, 437, 
443-7, 450-1, 461, 465, 485, 488, 495, 515, 517, 522, 541, 
544, 545, 548); medicine-man (pp.16-7, 36, 46, 62-8, 
74, 84, 101, 106, 128, 134, 148-9, 153-4, 156-60, 162, 164, 
204, 260, 332, 348, 350, 353, 364, 369, 374-5, 381, 393, 395-
6, 406, 518, 527, 531, 548, 551); pajé (pp.101-2, 111, 356-7, 
360).E a lista de termos usados por Eliade como pos-
síveis análogos para "xamanismo" ainda inclui: 
adivinho; alquimista; brâmane; carpideira; doutor; 
exorcista; fada; faquir; ferreiro; guru; herói; ilusio-
nista; imperador; inspirado; iogue; médico; médium; 
místico; necromante; poeta; possuído; profeta; psico-
pompo; purificador; rei; sábio; sacerdote; santo; 
soberano; taoísta; vidente; além de dezenas de termos 
nativos (como angakok, pawang, machi, etc.). Ao 
longo do livro, Eliade não se preocupa em distinguir 
as vezes em que tais termos são usados como sinôni-
mos de xamanismo daquelas em que eles têm a função 
de destacá-lo como fenômeno sui generis, o que acaba 
comprometendo a própria definição inicial do "xama-
nismo stricto sensu". 
 5
'forma' é exemplo de degrada-
ção e decomposição, nenhuma 
'história' é definitiva", ou que 
 "não há a menor probabilida-
de de se encontrar, em parte 
alguma do mundo ou da histó-
ria, um fenômeno religioso 
'puro' e perfeitamente 'origi-
nal', [...] pois a 'história' 
ocorreu em todos os lugares, 
modificando, refundindo, en-
riquecendo ou empobrecendo 
as concepções religiosas, as 
criações mitológicas, os ritos, 
as técnicas do êxtase" (p.24). 
Mas é inútil insistir na 
demonstração das inconsis-
tências terminológicas da 
definição eliadeana de "xa-
manismo stricto sensu"13, 
visto que a perspectiva da 
história das religiões parece mesmo não a-
presentar como problema esta maleabilidade 
conceitual. Pelo contrário, ela parece apoiar-
se nela, transformando-a mesmo na essência 
do próprio "fenômeno religioso"14, o que 
explica o seu muitas vezes alegado "misti-
 
13
 Esta empresa poderia mesmo constituir-se em uma 
outra pesquisa, dada a freqüência e a impunidade com 
que os termos propostos por Eliade deslizam sobre 
suas próprias definições. Ver, por exemplo (e são 
inúmeros os exemplos), a afirmação de que "Tal xa-
manismo stricto sensu não está restrito à Ásia central 
e setentrional"(p.18; itálico no original) apenas duas 
páginas após a máxima "O xamanismo stricto sensu é, 
por excelência, um fenômeno religioso siberiano e 
centro-asiático" (p.16; itálico no original). Ao final da 
leitura, acaba sendo impossível encontrar este "xama-
nismo stricto sensu" senão na forma de um ideal que 
está, para parafrasear Merleau-Ponty, "em toda parte e 
em parte alguma". 
14
 Um exemplo disto pode ser encontrado em outro 
historiador das religiões, Lawrence E. Sullivan, quan-
do ele apoia a maleabilidade do conceito de "sagrado" 
numa certa "multivocalidade da vida simbólica": "In 
using the term "sacred" we do not wish to 
overdetermine its meaning too rashly, because it 
epitomizes the multivocality of symbolic life." 
(1988:699 nota 65). O problema não reside, é bom 
dizer, na "mu ltivocalidade" em si, mas sim no recurso 
a ela como licensa para a falta de rigor conceitual. 
cismo". Além disso, Eliade 
nunca dissimulou a sua busca 
por um xamanismo "ideal", e 
para isso empregou uma im-
pressionante quantidade de 
livros e artigos, principalmen-
te sobre o xamanismo 
asiático. Por isso, quando di-
zia "xamanismo em si", ele se 
referia menos às práticas ritu-
ais do xamã em seu contexto 
social particular e mais a uma 
"simbologia do êxtase", 
cristalizada naquilo que ele 
chamou de "ideologia xamâ-
nica". Talvez pudéssemos 
dizer que os principais méri-
tos de sua pesquisa foram 
dois: (1) organizar e sinteti-
zar a enorme quantidade de 
pesquisas disponíveis até en-
tão sobre xamanismo, dando 
início a uma nova fase no estudo do fenôme-
no; e (2) propor uma terminologia unificada, 
mesmo sem tê-la desenvolvido plenamente, 
composta pelas noções de "xamanismo 
stricto sensu" e, principalmente, "técnicas do 
êxtase". 
Não se trata aqui, portanto, de criticar 
a ambição de Eliade por uma definição do 
"fenômeno xamânico em si" a partir de con-
ceitos obscuros e pouco atentos à realidade 
etnográfica (isto já foi feito a contento pela 
antropologia15). Pelo contrário, partimos da 
constatação de que esta definição de xama-
 
15
 Em um curto comentário publicado no periódico 
Man, Ioan M. Lewis apresenta críticas contundentes 
ao "purismo" eliadeano, cujo emprego do termo "xa-
mã" lhe parece, na verdade, "impuro". Segundo 
Lewis, "qualquer um que cuide de consultar as fontes 
primárias de Eliade" perceberá que "todas as caracte-
rísticas equivocadamente segregadas por Eliade em 
termos pseudo-evolucionistas" (principalmente a "pos-
sessão") estão presentes no xamanismo Tungue. Lewis 
se diz surpreendido com "a fortíssima e enganadora 
influência de Eliade na maneira como antropólogos 
sociais conceitualizam e pensam sobre o xamanismo", 
e com "a persistência extraordinária das deturpações 
de Eliade entre antropólogos modernos" (1993:361). 
 
 6
nismo ("xamanismo=técnica do êxtase") se 
aplica com enorme propriedade às mais di-
versas manifestações do fenômeno16, sendo 
nosso objetivo, na verdade, retomá-la a partir 
de uma revisão crítica da própria noção de 
"técnica do êxtase", tarefa esta que não foi 
realizada nem por Eliade e nem por mais 
ninguém – o que me parece surpreendente, 
visto que, tudo leva a crer, uma das princi-
pais causas da confusão terminológica que 
assola os estudos de fenômenos classificados 
como "religiosos" e que finda por compro-
meter a sua aplicação para além de um 
misticismo nebuloso é justamente a ausência 
de uma maior preocupação com o rigor con-
ceitual. 
 
AS TÉCNICAS "ARCAICAS" 
 
pesar da abundância de definições 
que Eliade oferece para o êxtase ao 
longo de O Xamanismo..., em ne-
nhum lugar encontramos uma síntese com-
pleta que englobe todas elas. Mas algumas 
destas definições "parciais" são particular-
mente eloqüentes, como quando, 
considerando a "doença-iniciação" dos xa-
mãs, Eliade afirma: 
 
"As doenças, os sonhos e os êxtases mais ou 
menos patogênicos são [...] meios de acesso à condi-
ção de xamã. Às vezes, essas experiências singulares 
significam apenas uma 'escolha' [...]. Mas quase sem-
pre as doenças, os sonhos e os êxtases constituem em 
si uma iniciação, ou seja, conseguem transformar o 
 
16
 Antropólogos e etnólogos utilizam (timidamente, é 
verdade) a noção de "êxtase" para interpretar as suas 
experiências de campo (cf. Lins, 1985; Müller, 
1990:178; Wright, 1998:85, 89-90; Reichel-Dolmatoff, 
1997:123, 129, 134). Textos didáticos e reflexivos, como 
os capítulos introdutórios de E. Jean Matteson 
Langdon às coletâneas de artigos Portals of Power: 
Shamanism in South America (1992) e Xamanismo no 
Brasil: Novas Perspectivas (1996), incorporam o êxt a-
se como traço importante do fenômeno e como 
possibilidade investigativa. Outros exemplos de auto-
res que, em diferentes áreas, empregaram a noção de 
"êxtase" em seus estudos sobre xamanismo, são: Pike 
(1958), Lewis (1971), Bongard-Levin e Grantovsky 
(1977), Flaherty (1992), Ripinsky-Naxon (1993), 
 Sullivan (1988), König (1998) e Vitebsky (2001a). 
homem profano de antes da 'escolha' em um técnico 
do sagrado. É claro que essa experiência de ordem 
extática é sempre [...] seguida por uma instrução teóri-
ca e prática a cargo dos velhos mestres, mas não deixa 
por isso de ser decisiva, pois é ela que modifica radi-
calmente o status religioso da pessoa 'escolhida'. [...] 
[T]odas as experiências extáticas que decidem a voca-
ção do futuro xamã comportam o esquema tradicional 
das cerimônias de iniciação: sofrimento, morte e res-
surreição. [...] Certos sofrimentos físicos serão 
traduzidos com precisão numa forma de morte (sim-
bólica) iniciática, como por exemplo no 
despedaçamento do corpo do candidato (=doente), 
experiência extática [...].[...] Quanto ao conteúdo 
dessas experiências extáticas iniciais, embora seja 
bastante rico, quase sempre comporta um ou vários 
dos seguintes temas: despedaçamento do corpo segui-
do pela renovação dos órgãos internos e das vísceras, 
ascensão ao Céu e diálogo com os deuses ou os espíri-
tos; descida aos Infernos e contato com os espíritos e 
as almas dos xamãs mortos; revelações diversas de 
ordem religiosa e xamânica (segredos do ofí-
cio)."(p.49-50) 
 
 Temos aqui uma série de elementos 
constitutivos do êxtase enquanto experiência 
iniciática. Em primeiro lugar, a forte relação 
entre "doença", "sonho" e "êxtase". Esta rela-
ção, retomada diversas vezes ao longo da 
obra, se baseia no fato de que, no xamanis-
mo, a doença está diretamente ligada à 
"perda da alma"17 e o sonho é, em si, uma 
"viagem da alma"18. Assim, sendo o êxtase 
 
17
 Sobre o xamanismo asiático, por exemplo, Eliade 
afirma: "Se o tratamento xamânico exige êxtase, é 
justamente porque a doença é concebida como uma 
alteração ou uma alienação da alma." (p.244). Ver 
também p.20, 49, 76, 233, 243, 332, 335, 337, 359-60, 382, 
478, 320, 406, 484-5. Violação de "tabus", introdução 
de "objetos patogênicos" no corpo e "possessão por 
espírito" também são muito citadas como causas para 
as doenças, em diferentes culturas. Mas permanece o 
postulado de que a "concepção de doença [...] do xa-
manismo propriamente dito" é a "fuga da alma" 
(p.406). 
18
 "É em sonhos que se atinge a vida sagrada por 
excelência e que se restabelecem relações diretas com 
os deuses, os espíritos e as almas dos antepassados. É 
sempre nos sonhos que o tempo histórico é abolido, 
recuperando-se o tempo mítico, o que possibilita ao 
futuro xamã assistir ao começo do mundo e, assim, 
tornar-se contemporâneo tanto da cosmogonia quanto 
das revelações míticas primordiais. [...] É sempre em 
sonhos que se recebem as regras iniciáticas (regimes, 
A
 7
diversas vezes descrito como um "abandono 
do corpo pela alma"19, temos que "doença" e 
"sonho" podem ser vistos como "experiên-
cias extáticas"20. Mas mais importante é a 
relação estabelecida entre "êxtase" e "mor-
te"21, que introduz a temática do "esquema 
tradicional das cerimônias de iniciação"22. 
 
tabus etc.) e que se fica sabendo quais os objetos ne-
cessários à cura xamânica." (p.123). Tratando das 
"tribos das Montanhas Rochosas da América do Nor-
te", Eliade afirma que "o poder xamânico também 
pode ser herdado, mas é sempre através de uma expe-
riência extática (sonho) que se faz a transmissão" 
(p.35). Ver também p.4, 26, 32, 49, 76, 132, 137, 256, 298. 
19
 "Quando é chamado para um tratamento, o xamã 
tremyugan começa a tocar tambor e guitarra até cair 
em êxtase. Abandonando o corpo, sua alma entra nos 
Infernos e começa a procurar a alma do doente." 
(p.248). Ver também p.17, 208, 226, 264, 270, 275, 283, 
287, 362, 434-5, 451, 509, 520. Para exemplos deste 
mesmo fenômeno, só que descrito como "sair de si 
mesmo", cf. p.251, 497-8, 506. 
20
 Tratando do xamanismo norte-americano, Eliade 
afirma: "A alma deixa o corpo durante o sono; quando 
alguém é acordado bruscamente, pode morrer. Nunca 
se deve acordar um xamã em sobressalto." (p.332). 
21
 A relação entre "êxtase" e "morte" é tão estreita que 
Eliade chega muitas vezes a tratá-los como sinônimos, 
como no seguinte trecho: "O êxtase é apenas a experi-
ência concreta da morte ritual ou, em outras palavras, 
da superação da condição humana, profana. E [...] o 
xamã é capaz de obter essa "morte" por todos os tipos 
de meios, desde os narcóticos e o tambor até a "pos-
sessão" por espíritos." (p.115). Ver também p.77, 103, 
115, 433, 506, 509, 517, 520, 523, 534, 552-3. 
22
 "Quanto ao conteúdo dessas experiências extáticas 
iniciais, embora seja bastante rico, quase sempre com-
porta um ou vários dos seguintes temas: 
despedaçamento do corpo seguido pela renovação dos 
órgãos internos e das vísceras, ascensão ao Céu e 
diálogo com os deuses ou os espíritos; descida aos 
Infernos e contato com os espíritos e as almas dos 
xamãs mortos; revelações diversas de ordem religiosa 
e xamânica (segredos do ofício)."(p.50). "Percebe-se 
que o êxtase iniciático segue à risca certos temas e-
xemplares: o noviço encontra diversas figuras divinas 
[...] antes de ser conduzido por seus guias-animais ao 
Centro do Mundo, no topo da Montanha Cósmica, 
onde se encontram a Árvore do Mundo e o Senhor 
Universal; recebe da Árvore e do próprio Senhor a 
madeira para fabricar o seu tambor; seres semidemo-
níacos revelam-lhe a natureza e o tratamento de todas 
Eliade constata que, para além das diversas 
variações nas formas de recrutamento, inicia-
ção e outorga de poderes xamânicos 
encontradas nas diferentes manifestações 
culturais do xamanismo (às quais ele dedica a 
maior parte dos quatro primeiros capítulos de 
seu livro), é na experiência extática da morte 
ritual que reside a essência do processo inici-
ático. O "despedaçamento do corpo" do 
candidato, sua "descida ao Inferno" e as "re-
velações" aí obtidas são as etapas de uma 
"morte ritual" que, no xamanismo, constitui a 
essência mesmo da iniciação nas "técnicas do 
êxtase". Isso porque é a experiência da morte 
ritual que irá revelar ao xamã: (1) a forma 
como seu corpo é mutilado, devorado e reno-
vado pelos espíritos ("desmembramento"); 
(2) o itinerário perigoso e cheio de "pontes"23 
e "passagens perigosas"24 que a alma humana 
deve percorrer em seu caminho para o "mun-
do dos mortos" ("descida ao Inferno"); e (3) a 
instrução do xamã, por parte dos espíritos e 
deuses ("revelações"), nas técnicas que per-
mitirão não apenas a sua própria ressurreição 
mas, principalmente, a repetição da viagem 
sempre que necessário: as "técnicas do êxta-
se". A experiência "extático-mórbida 
iniciática" do xamã (caracterizadas pela do-
ença e pelos sonhos extáticos, entre outros) é, 
portanto, essencialmente didática. Mas o 
"conhecimento" alcançado nesta experiência 
não fica restrito ao ambiente do próprio xa-
manismo, sendo posteriormente incorporado 
 
as doenças; finalmente, outros seres demoníacos cor-
tam-lhe o corpo em pedaços, que são cozidos e 
trocados por órgãos melhores."(p.59). 
23
 "A Ponte, na verdade, não é apenas passagem dos 
mortos; é também [...] caminho dos extáticos" (p.433). 
"Os xamãs, assim como os mortos, precisam atraves-
sar uma ponte durante sua viagem aos Infernos." 
(p.523). Ver também p. 434-5. 
24
 "Assim como a morte, o êxtase implica uma "muta-
ção", que o mito traduz plasticamente por uma 
passagem perigosa." (p.523). Eliade dedica uma parte 
do décimo terceiro capítulo de seu livro ao tema "A 
ponte e a 'passagem difícil'" (p.523-7). 
 8
na mitologia, nos rituais e naquilo que Eliade 
chamou de "geografia funerária"25: 
 
"É graças à sua capacidade de viajar para os 
mundos sobrenaturais e de ver os seres sobre-humanos 
(deuses, demônios, espíritos dos mortos etc.) que o 
xamã pôde contribuir de maneira decisiva para o co-
nhecimento da morte. É provável que grande número 
de características da 'geografia funerária' e que certo 
número de temas da mitologia da morte sejam resulta-
do das experiências extáticas dos xamãs. As paisagens 
que o xamã avista e as personagens que encontra em 
suas viagens extáticas para o além são minuciosamen-
te descritas por ele mesmo, durante ou após o transe. 
O mundo desconhecido e terrificante da morte toma 
forma, organiza-se segundo tipos específicos; acaba 
ganhando estrutura e, com o tempo, torna-se familiar e 
aceitável. [...] Aos poucos, o mundo dos mortos vai-se 
tornando cognoscível, e a própria morte acaba assu-mindo o valor de rito de passagem para um modo de 
ser espiritual." (p.552-3) 
 
 O conhecimento adquirido pelo xamã 
em suas experiências extático-mórbidas seria, 
assim, numa espécie de autopoese escatoló-
gica, a própria matéria prima da qual seriam 
compostos os mitos e as crenças relativas à 
morte. Mas dentre as habilidades xamânicas 
tornadas possíveis por estas experiências de 
"morte ritual", uma é de especial interesse 
para nós. Trata-se da "psicopompia", e sua 
relevância reside no fato de que ela apresen-
ta, em forma condensada, os principais 
elementos daquilo que Eliade denominou "as 
técnicas do êxtase": 
 
"O xamã é curandeiro e psicopompo porque 
conhece as técnicas do êxtase, isto é, porque sua alma 
pode abandonar impunemente o corpo e vagar por 
enormes distâncias, entrar nos Infernos e subir ao Céu. 
Ele conhece, por experiência extática pessoal, os 
itinerários das regiões extraterrenas. Pode descer aos 
Infernos e subir ao Céu porque já esteve lá. O risco de 
perder-se nessas regiões proibidas é sempre grande, 
mas, santificado pela iniciação e munido de seus espí-
ritos guardiões, o xamã é o único ser humano que 
pode correr esse risco e aventurar-se numa geografia 
mística. [...] É [...] graças a essa capacidade extática 
que o xamã [...] conhece o itinerário e, além disso, é 
capaz de controlar e conduzir 'almas', sejam elas de 
pessoas ou de animais." (p.208-9) 
 
25
 Além de "funerária", esta "geografia" também é 
chamada por Eliade de "mística" e "mítica". Para 
exemplos, cf. p.208, 231, 427, 482. 
 
 Aqui nós encontramos, relacionados, 
termos freqüentemente usados por Eliade 
para definir o êxtase, como: o "abandono do 
corpo pela alma"26; a "descida aos Infer-
nos"27; a "ascensão ao Céu"28; o 
conhecimento dos "itinerários das regiões 
extraterrenas" (da "geografia mítica"); e a 
"condução de almas"29 ("psicopompia" pro-
priamente dita). Segundo Eliade, para ser 
capaz de conduzir uma alma ao seu destino 
final, o "xamã-psicopompo" precisa: (1) ser 
capaz de abandonar "impunemente" (ou seja, 
sem morte definitiva) o próprio corpo e assim 
assumir a forma espiritual da alma que deve 
conduzir; (2) ser capaz de orientar seu vôo 
 
26
 Cf. p.17, 208, 226, 264, 270, 275, 283, 287, 362, 434-5, 
451, 509, 520. 
27
 "Quando o manang-chefe [xamã dos dayaks da 
costa] cai, os presentes jogam uma coberta sobre ele e 
esperam pelo resultado de sua viagem extática, pois 
assim que entra em êxtase o manang desce aos Infer-
nos para procurar a alma do doente." (p.383). Para 
outros exemplos do "êxtase" como "descida aos Infer-
nos", cf.p.17, 283, 417, 549. Em diversas tradições esta 
descida é descrita como um "mergulho ao fundo do 
mar", mas Eliade trata ambas como análogas, como 
quando diz que "o xamã iacuto é acompanhado em 
suas viagens extáticas por uma ave aquática [...] que 
simboliza justamente a imersão no mar, ou seja, uma 
descida aos Infernos" (p.263). Para outros exemplos de 
"êxtase" como "mergulho", cf. p. 275, 283, 325, 341. 
28
 Descrevendo uma sessão de cura dos iacutos, 
Eliade afirma, a respeito dos saltos do xamã, cuja 
altura "às vezes chega a ser de quatro pés": "Trata-se, 
evidentemente, de uma "ascensão" extática ao Céu." 
(p.259). Para outros exemplos de "êxtase" como "as-
censão ao Céu", "ascensão celeste", "ascensão 
mística" ou "subida às nuvens", cf. p.17, 68, 157, 251, 
259 nota 24, 270, 283, 360, 411, 455, 486, 489-90, 498, 
527, 534. 
29
 "Ao contrário do que ocorre no cristianismo [...], os 
povos que se declaram "xamanistas" atribuem 
importância considerável às experiências extáticas de 
seus xamãs; tais experiências lhes dizem respeito de 
modo pessoal e imediato, pois são os xamãs, por meio 
de seus transes, que os curam, que acompanham seus 
mortos ao "Reino das Trevas" e servem de mediadores 
entre eles e os seus deuses, celestes ou infernais, gran-
des ou pequenos." (p.20) 
 9
para cima ("Céu") ou para baixo ("Inferno"), 
de acordo com as necessidades; (3) ter acesso 
ao "além"30, ou aos "mundos sobrenaturais", 
e assim transpor a "passagem difícil" que 
tradicionalmente prende a alma do morto 
recente ao mundo dos vivos, causando os 
mais variados problemas; e (4) conhecer a 
"geografia mítica" de forma a conduzir a 
alma, sem transtornos, para o seu destino 
adequado. Sendo estes os elementos básicos 
da psicopompia, e sendo a psicopompia uma 
possível aplicação das técnicas do êxtase, é 
apenas lógico que possamos tomá-los como 
uma lista de técnicas do êxtase. Note-se que 
o êxtase não é apanágio dos xamãs, sendo as 
"técnicas" do êxtase aquilo que os distingue 
dos "demais extáticos"31. A centralidade das 
"técnicas xamânicas" para esta visão do xa-
manismo pode ser confirmada pela sua 
permanência nos estudos de Lawrence E. 
Sullivan (1988) sobre o "xamanismo sul-
americano como técnica do êxtase". Sullivan 
consegue ir muito além de Eliade naquilo que 
ele chamou de "total hermeneutics of the 
religious condition of mankind" (Sullivan, 
1988:16)32, certamente por ter se beneficiado 
pelos "criticismos recentes e inovações das 
ciências culturais, especialmente a antropo-
logia" (Sullivan, 1988:15), mas 
principalmente por empregar, na dimensão 
 
30
 Tratando das "viagens extáticas ao além" realizadas 
pelo xamã indonésio "para acompanhar as almas dos 
mortos aos Infernos ou para procurar as almas dos 
doentes raptadas por demônios ou espíritos", Eliade 
define o "além" como: "terra dos mortos e terra dos 
espíritos" (p.390). Para outros exemplos de "êxtase" 
como "viagem ao além", cf. p.32, 91, 114, 165, 251, 275, 
283, 327, 417, 453-4, 506, 552. 
31
 Tratando das " ideologias e técnicas mágicas ou 
extáticas [...] da religião indo-européia", Eliade cita 
que "havia magias e técnicas de êxtase alheias à estru-
tura "xamânica", como por exemplo, a magia dos 
guerreiros e as técnicas de êxtase ligadas às Grande 
Deusas Mães e à mística agrícola, que nada tinham de 
xamânicas." (p.413). 
32
 Segundo Sullivan, "[h]ermeneutics is the 
willingness to treat the attempt at interpretation as a 
peculiarly instructive cultural process affected by both 
the subject and object of understanding." (1988:16) 
temporal, um esquema tripartido (primórdios, 
cosmos e apocalipse), em lugar do "dualismo 
trágico" eliadeano entre o "tempo histórico" e 
o "tempo mítico". 
 No sétimo capítulo de Icanchu's 
Drum33, dedicado aos "especialistas", 
Sullivan (1988) apresenta o xamanismo como 
sendo aquela especialidade religiosa cuja 
legitimação se baseia na "experiência extáti-
ca", classificando o xamã, portanto, como 
"ecstatic specialist"34. Afirmando, como 
Eliade o havia feito em relação aos povos 
Siberianos (cf. p.16), uma certa "ubiqüidade e 
importância central na América do Sul" da 
"experiência extática" (Sullivan, 1988:387), 
Sullivan dedica pouquíssimo espaço às duas 
outras "bases de autoridade religiosa" ("pos-
sessão" e "cânone"), evidenciando ainda mais 
a importância da noção de "êxtase" para a 
sua visão do xamanismo35. Para explicitar 
esta importância, cabe citar aqui o parágrafo 
introdutório à seção dedicada ao xamanismo 
("ecstatic specialists"): 
 
"During ecstasy, the human soul leaves the 
body. Sickness or accident may provoke ecstatic 
experiences. The soul may stray from the body during 
dream or because of a fright, a fit of anger, a sneeze, 
or a cough. Evildoers may seduce the soul out of the 
body or drive it away. Ecstatic specialists learn to 
control the passage of the soul out of the body. Using 
 
33
 Talvez o melhor do potencial hermenêutico do 
aparato conceitual eliadeano, quando enriquecidocom 
dados etnográficos recentes e liberto de boa parte de 
seu confuso misticismo. 
34
 "The peculiar nature of the shaman's ecstasy causes 
these elements to cohere as a whole. Techniques of 
ecstasy transform the shaman's entire existence into 
that of a free spirit; that is, the shaman gains concrete 
experience of the primordial world. [...] The shaman 
practices ecstatic transformation in order to recognize 
the changing spiritual world in all its apparent shapes: 
song, sound, smoke, consumptions; penetrating 
arrows, stones, and darts; the hot light of the crystals, 
fire, and feathered wings; the dark inner spaces of 
animal bodies."(Sullivan, 1988:461) 
35
 Aproximadamente 8 páginas são reservadas à "pos-
sessão", ao "cânone", ao "contrato"/"consenso" e aos 
"procedimentos parlamentares", contra as mais de 70 
páginas dedicadas aos "especialistas do êxt ase". 
 10
special techniques, their souls exit the body at will for 
various purposes. The shaman is the most important 
and well-known ecstatic specialist in South America. 
A general practitioner of the arts of the soul, the 
shaman not only controls the ecstasy of his or her own 
soul but specializes in the knowledge and care of the 
souls of others. Shamanic ecstasies serve the souls of 
the community. This service requires wide knowledge 
of spiritual life: the nature of the soul, the times of 
transition or crisis at which the soul moves, and the 
contained spaces (body, cosmic realms, ritual spaces) 
in and through which the soul effects its passages." 
(Sullivan, 1988:390) 
 
 É importante perceber que, para 
Sullivan (assim como para Eliade no caso do 
xamanismo siberiano), o xamã não é o único 
"ecstatic specialist", mas apenas "o mais im-
portante e bem conhecido [...] na América do 
Sul", e que portanto o que o caracteriza não é 
o êxtase em si, mas sim a sua especialização 
"no conhecimento e cuidado das almas dos 
outros", i.e., seu meta-êxtase36. 
 
INICIAÇÃO E 
TRANSFERÊNCIA TECNOLÓGICA 
 
a lista de técnicas do êxtase que deri-
vamos das considerações de Eliade 
sobre a psicopompia, um tema mere-
ce atenção especial: a "passagem perigosa"37. 
Como já vimos, o êxtase, o "abandono do 
corpo pela alma", além de ser comparável ao 
"sonho" e à "doença", é essencialmente uma 
experiência de "quase-morte" – a morte sen-
do alcançada quando o doente não resiste à 
doença, ou quando o sonhador não mais a-
corda do sonho. E vimos também que esta 
 
36
 "It is true that authority based upon ecstatic 
knowledge is not the exclusive prerogative of the 
shaman and that other specialists base their skills on 
the exp erience of ecstasy. However, these other types 
of ecstatic specialists do not become meta-ecstatics, 
do not use their ecstasy to specialize in the knowledge 
and practice of ecstasy itself as it applies to the 
general theory of spirits." (Sullivan, 1988:460) 
37
 "Os xamãs, assim como os mortos, precisam atra-
vessar uma ponte durante sua viagem aos Infernos. 
Assim como a morte, o êxtase implica uma 'mutação', 
que o mito traduz plasticamente por uma passagem 
perigosa." (p.523). 
"experiência extática iniciática" da "morte 
ritual" é reversível, sendo justamente o "con-
trole modulativo" sobre esta reversibilidade 
que denominamos "técnicas do êxtase". Mas 
o que diferencia qualquer doença, qualquer 
sonho, enfim, qualquer êxtase, daquele que 
chamamos de "êxtase xamânico"38? Já sabe-
mos que esta diferença é essencialmente 
técnica, mas resta compreender porque tais 
conhecimentos técnicos são acessíveis ape-
nas aos xamãs, e não aos demais extáticos. 
Dizer que a técnica é acessível apenas 
ao xamã pois é o acesso à técnica que o defi-
ne não basta, pois trata a técnica do êxtase 
como uma técnica entre outras, o que não faz 
sentido se queremos dar crédito aos próprios 
xamãs quando afirmam que foram os xamãs 
míticos que deram origem a todas as técnicas 
(inclusive àquelas da civilização Ociden-
tal)39. É preciso ir em busca daquilo que faz 
da técnica xamânica esta espécie de "técnica 
das técnicas". Assim, faz-se necessário notar 
que: para que haja xamanismo é necessária 
uma "ruptura" muito específica, denominada 
normalmente de "passagem difícil", "perigo-
sa" ou "estreita", que constitui um verdadeiro 
"límen"40, para além do qual apenas espíritos 
podem ir, e de onde apenas xamãs podem 
retornar. 
 
"A passagem por um espaço que está sempre 
a fechar-se e por uma ponte estreita como um fio de 
cabelo, o cão infernal, o apaziguamento da divindade 
irritada, tudo isso reaparece como leitmotiv tanto nos 
relatos iniciáticos quanto nos de viagens místicas ao 
'além'. Em ambos os casos ocorre a mesma ruptura no 
nível ontológico: trata-se de provas destinadas a con-
firmar que aquele que emp reende tal feito superou a 
condição humana, ou seja, que é comparável aos 'espí-
ritos' (imagem que revela uma mutação de ordem 
ontológica: ter acesso ao mundo dos 'espíritos'); pois 
 
38
 O termo "êxtase xamânico" é diversas vezes em-
pregado por Eliade como contraste às outras possíveis 
manifestações extáticas. Para exemplos, cf. p.250, 254, 
423, 434, 443, 517, 550-1. O termo "transe xamânico", 
como vimos, representa recurso semelhante. 
39
 Sobre isso, cf.Ferreira (2003). 
40
 Este termo, que tomo emprestado de Turner (1974, 
1977), não faz parte do vocabulário de Eliade. 
D
 11 
se não fosse um 'espírito' o xamã nunca poderia trans-
por passagem tão estreita."(p.327-8) 
 
 A noção de "ruptura" indica, portanto, 
uma passagem "difícil", "estreita" e "perigo-
sa" que acarreta uma "mutação", uma 
"transformação" que corresponde a uma "ini-
ciação". Em outras pa-
lavras, a "morte ritual" 
constitui o "rito de ini-
ciação ao xamanismo" 
justamente por repre-
sentar uma "ruptura" 
muito especial do neófi-
to com o mundo 
humano/profano: uma 
"ruptura didática", em 
ocasião da qual uma 
"tecnologia espiritu-
al/sagrada" é revelada. 
Assim como o 
conceito de xamanismo, 
a idéia de uma "inicia-
ção ao xamanismo" é 
fruto de uma análise 
comparativa de rituais 
de iniciação às vezes 
muito diversos. Existem 
sociedades onde esta 
iniciação é bastante complexa e instituciona-
lizada, ao passo que em muitas outras ela 
praticamente inexiste enquanto ritual organi-
zado. O que se pode dizer é que existem 
experiências comuns a todos aqueles que se 
tornaram xamãs (i.e., adquiriram o poder do 
xamanismo) mesmo quando elas não se for-
malizam em rituais socialmente prescritos. 
Tais experiências, que assumem formas dis-
tintas em cada contexto, consistem, de modo 
geral, nos primeiros contatos controlados do 
iniciando com o mundo sobrenatural, no qual 
ele assimila as suas técnicas do êxtase. A-
prender as técnicas do êxtase é aprender a 
controlar o perigoso processo de ruptura ru-
mo à dimensão pré-individual da realidade. 
Esta dimensão é normalmente experienciada 
em situações-limite (nascimento, traumas, 
rupturas existenciais, experiências próximas 
da morte e a própria morte), mas também 
pode estar presente em qualquer outro mo-
mento da vida (sonho, devaneio, meditação, 
contemplação, dança, sexo etc.). Não se trata 
de algo que ficou para trás, como uma espé-
cie de "queda do paraíso", mas sim de uma 
forma específica de vivenciar qualquer situa-
ção: uma atenção ao horizonte último da 
percepção, para além do qual se perdem os 
limites do corpo individuado. 
 A forma como 
cada xamã aprende a 
controlar este processo 
varia bastante entre di-
ferentes contextos, mas 
pode ser tipificada a 
partir de alguns traços 
comuns. Dentre eles, 
tem especial interesse 
para nós a experiência 
de despedaçamento do 
corpo e de renovação 
dos órgãos, sofrida pelocandidato e operada 
normalmente por espíri-
tos e deuses. Entre os 
siberianos esta experi-
ência se dá de uma 
maneira especialmente 
eloqüente. Xamãs 
iacutos contam, por 
exemplo, que o candida-
to a xamã fica "de três a sete dias [...] quase 
sem respirar, como um morto, num local iso-
lado"41 (p.52). Durante este tempo, "os 
membros do candidato são destacados e se-
parados com um gancho de ferro, os ossos 
são limpos, a carne raspada, os líquidos do 
corpo são jogados fora e os olhos são arran- 
 
41
 É preciso saber interpretar uma afirmação como 
esta. "Morrer" tem muitos sentidos além do fisiológico 
(mesmo na fisiologia, existem várias mortes), e ge-
ralmente o que caracteriza uma morte ritual é a 
experiência extática. Afinal, a morte definitiva é ape-
nas um êxtase sem volta (o sono eterno). Quanto aos 
"três a sete dias", apesar de possíveis, podem não se 
referir de forma alguma ao nosso calendário ou à 
nossa forma usual de contar o tempo (veremos adiante 
exemplos de êxtases iniciáticos que duram "anos"). 
No êxtase estamos naquilo que chamamos de tempo 
mítico, onde horas podem durar meses, dias ou segun-
dos (e vice-versa). 
 
 12
cados das órbitas. Depois 
dessa operação, todos os os-
sos são reunidos e ligados 
com ferro." (p.52) Trata-se de 
uma intensa renovação corpo-
ral! Observa-se especial 
atenção aos ossos (que são 
separados da carne, limpados 
e reconectados com ferro), 
traço comum encontrado em 
quase todas as tradições xa-
mânicas do mundo e 
provavelmente ligado à per-
cepção de que, depois da 
decomposição do corpo, são 
apenas os ossos que restam42. 
A importância do ferro para 
os xamãs siberianos também 
pode ser associada a uma ten-
dência geral dos xamãs de 
assimilarem em seus êxtases 
aqueles objetos e materiais que gozam de 
mais prestígio social e garantem poder a seus 
possuidores (as vestimentas xamânicas sibe-
rianas são, via de regra, ornadas com objetos 
de metal). Mas não devemos concluir daí que 
se trata apenas de um valor cultural superes-
trutural. A metalurgia tem, de fato, a 
especificidade de trazer à tona o processo de 
individuação da matéria, de torná-lo esteti-
camente acessível (cf.Deleuze:1979). 
 
42
 Entre os esquimós, por exemplo, umas das etapas 
da iniciação ao xamanismo consiste na visão, pelo 
neófito, de seu próprio esqueleto: "Essa experiência 
exige um longo esforço de ascese física e de contem-
plação mental cujo objetivo é a obtenção da 
capacidade de ver-se como esqueleto. [...] 'Embora 
nenhum xamã consiga explicar como nem por quê, é 
capaz de, graças ao poder que seu corpo recebe do 
sobrenatural, despojar seu corpo da carne e do sangue, 
de tal maneira que só fiquem os ossos. Deve então 
denominar todas as partes de seu corpo, mencionar 
cada osso pelo nome [...]. Ao contemplar-se assim, nu 
e completamente despojado da carne e do sangue 
perecíveis e efêmeros, ele se consagra [...] à sua gran-
de missão, através dessa parte de seu corpo que está 
destinada a resistir mais à ação do sol, do vento e do 
tempo'." (p.81) Para um exemplo amazônico do papel 
dos ossos no xamanismo (Baniwa), cf.Wright 
(1998:213). Para uma consideração conceitual relevante 
da relação entre a carne e o osso, cf.Deleuze (2000). 
Outro relato siberiano 
de iniciação ao xamanismo 
que mistura desmembramento 
e metalurgia fala de 
Dyukhade, cuja experiência 
extática foi provocada por 
uma doença (varicela) que o 
deixou inconsciente por três 
dias ("quase morto, a ponto 
de quase o enterrarem no ter-
ceiro dia"; p.55). Dyukhade 
disse que o "Grande Senhor 
do Mundo Subterrâneo" o 
mandou "seguir a via de todas 
as doenças" com dois compa-
nheiros e guias espíritos-
animais (um arminho e um 
rato). Neste caminho, ficando 
"louco", Dyukhade encontra 
espíritos "canibais" como, 
entre outros, o "Povo da Va-
ríola" (que "Cortaram-me o coração e atira-
ram-no para um caldeirão de água fervente"), 
o "Senhor da Minha Loucura", o "Senhor da 
Confusão" e o "Senhor da Estupidez", de 
forma que passa a conhecer "o caminho para 
as várias doenças do homem". Logo em se-
guida ele passa sete dias enfeitiçado pelas 
pedras que se abrem, uma-a-uma, contando-
lhe "como podiam ser usadas pela humanida-
de". Por fim, ele passa por uma abertura em 
uma pedra e se depara com um "homem nu" 
que "avivava o fogo com um fole". 
 
"Quando [o homem nu] me viu, trouxe um 
par de tenazes do tamanho de uma tenda e agarrou-
me. Pegou na minha cabeça e cortou-a, e a seguir 
cortou o meu corpo em pequenos bocados e pô-los 
num caldeirão, onde os ferveu durante três anos. Em 
seguida, colocou-me numa bigorna e bateu na minha 
cabeça com um martelo e mergulhou-a em água gela-
da, para a temperar. Tirou do fogo o caldeirão onde 
tinha fervido o meu corpo e despejou o conteúdo nou-
tro recipiente. Neste momento, já todos os meus 
músculos estavam separados dos ossos. Eis -me aqui, a 
falar convosco num estado de espírito normal, e nem 
consigo dizer em quantos bocados foi dividido o meu 
corpo. Mas nós, xamãs, temos vários ossos e músculos 
extra. Eu vi que eram três as partes que eu tinha, duas 
para músculos e uma para ossos. Quando todos os 
meus ossos foram separados da carne, o ferreiro disse-
me: 'A tua medula transformou-se num rio', e no inte-
rior da cabana eu vi realmente um rio com os meus 
 
 13 
ossos a flutuarem. E disse o ferreiro: 'Olha, lá vão os 
teus ossos rio abaixo!', e começou a tirá-los da água 
com as tenazes. Depois de todos os meus ossos terem 
sido puxados para as margens, o ferreiro reuniu-os, e 
recobriram-se de carne, e o meu corpo voltou a ter a 
aparência que tivera. Todavia, a minha cabeça conti-
nuava separada. Parecia um crânio esfolado. O ferreiro 
revestiu-o de carne e juntou-o ao tronco. Vo ltei a ter a 
minha anterior forma humana. Furou-me as orelhas 
com o seu dedo de ferro e disse-me: 'Conseguirás 
ouvir e compreender a fala das plantas'. Depois disto, 
encontrei-me numa montanha e, logo a seguir, acordei 
na minha própria tenda. Ao pé de mim, muito preocu-
pados, estavam sentados o meu pai e a minha mãe." 
(Vitebsky, 2001a:60-1) 
 
 O "homem nu", espécie de ferreiro 
mítico, despedaça o corpo de Dyukhade, tra-
balha laboriosamente as suas partes e então 
as encaixa novamente em seus devidos luga-
res com pequenas e importantes 
modificações. O que ocorre aqui é literal-
mente um processo de transferência 
tecnológica entre o ferreiro mítico e o corpo 
do iniciando, onde este se encontra em uma 
espécie de êxtase contemplativo. Nota-se 
nitidamente uma distinção entre o tratamento 
reservado à cabeça de Dyukhade, que é ar-
rancada, cortada e trabalhada na bigorna, e ao 
resto de seu corpo, que é despedaçado e dis-
solvido em água fervente. Além disso, nota-
se também uma atenção à distinção quantita-
tiva e qualitativa entre seus ossos e seus 
músculos. A explicação para tudo isso não 
pode ser simples e superficial e deve levar 
em conta elementos tão heterogêneos da ex-
periência quanto os seus aspectos físicos, 
biológicos e psicosociais. O que ocorre com 
o seu corpo enquanto ele o vê sendo despe-
daçado e trabalhado pelo ferreiro mítico? 
Como se dá o investimento de desejo nas 
diferentes partes do corpo e nas transforma-
ções operadas pelo ferreiro mítico (e como 
este investimento se reflete na experiência de 
Dyukhade)? Quais são as relações de poder 
envolvidas em cada um dos objetos e proces-
sos envolvidos nesta viagem? Seria 
necessário muito mais material do que dis-
pomos para responder a estas questões. O 
que podemos dizer com certeza é que o pro-
cesso de desmembramento, transformação e 
remontagem do corpo do iniciando é uma 
experiência extática, e que nesta experiência 
houve umatransferência de técnicas corpo-
rais do ferreiro mítico para Dyukhade. 
 Eliade, que apresenta o mesmo relato 
em seu livro, revela que quando o ferreiro 
mítico joga a cabeça de Dyukhade em uma 
panela com água gelada "para temperar", ele 
o faz para ensinar-lhe que "quando o xamã 
for chamado para tratar de alguém, se a água 
estiver quente demais, será inútil recorrer às 
capacidades de xamã, pois o homem já estará 
perdido; se a água estiver morna, ele estará 
doente, mas ficará curado; a água fria é ca-
racterística de um homem são" (p.58). Com 
isso vemos duas coisas: (1) Dyukhade iria se 
curar, pois a água estava gelada; (2) a sensa-
ção da temperatura da água em sua cabeça se 
torna uma técnica de diagnóstico transferida 
diretamente para o corpo do iniciando43. Ou-
tra contribuição de Eliade a este relato se 
refere à parte em que a cabeça, última parte 
do corpo ainda deslocada, é colocada no lu-
gar. Além de revesti-la de carne e juntá-la ao 
tronco, o ferreiro mítico "[f]orjou sua cabeça 
e mostrou-lhe como ler as letras que estão 
dentro" (p.58). Trata-se provavelmente de um 
conhecimento secreto gravado pelo ferreiro 
 
43
 Outro exemplo de transferência corporal de técnicas 
diagnósticas automáticas pode ser encontrado no se-
guinte relato de Orlando Villas Bôas sobre a iniciação 
xamânica de Sapaim (Xingu): "Para terminar a ceri-
mônia, o mamaé [espírito] [...] aspirou fortemente a 
cigarrilha e lançou a fumaça num dos próprios braços 
e em seguida no outro. Dentro de um deles, alguma 
coisa estava se mexendo. Sapaim olhou e percebeu 
esse movimento. O mamaé explicou: [...] _'Isto que 
você está vendo, quando é no braço direito, é sinal de 
que o doente não vai morrer. Quando é no braço es-
querdo, o doente morre. [...] Onde você quer que eu 
ponha essa força?' [...] Sapaim respondeu: [...] _'Em 
meu ombro.' [...] Daí ficou acertado que um doente 
tratado por Sapaim, se nele provocasse um movimento 
no ombro direito, era sinal de que não morreria; se o 
movimento fosse no esquerdo, fatalmente o doente 
morreria." (2000:64-5) Evidentemente, em uma socie-
dade que leva a sério o trabalho do xamã, técnicas 
como estas representam considerável poder político. 
Rituais xamânicos são dispendiosos e envolvem toda a 
comunidade. Decidir quando não vale mais a pena 
tentar salvar a vida de uma pessoa é uma decisão e-
mocional e técnica, mas também política e econômica. 
Sobre a dimensão política do xamanismo xingüense, 
cf.Müller (1990:138-45) e Bastos (1985). 
 14
mítico dentro do crânio de Dyukhade e que, 
como a técnica térmica já citada, o auxiliará 
em seu novo ofício. Por fim, além de "furar" 
as orelhas de Dyukhade a fim de que este 
possa compreender a fala das plantas, Eliade 
nos conta que o ferreiro mítico também 
"[t]rocou seus olhos e por isso, quando atua 
como xamã, ele não enxerga com os olhos 
físicos, mas com esses olhos místicos" (p.58). 
O ferreiro mítico, em poucas palavras, pegou 
um corpo humano doente e o transformou em 
um corpo sobrehumano capaz de curar. Tra-
ta-se literalmente de uma transferência 
tecnológica, "a técnica e a teoria subjacente a 
essa técnica, transmitidas através da inicia-
ção" (p.26-7). Toda a violência deste 
processo enfatiza a ruptura da experiência, 
como se para enfatizar que o nascimento do 
corpo do xamã exige a morte daquele do ini-
ciando. Como bem notou Sullivan, "[o] corpo 
do xamã é parte de sua tecnologia" (1988:418) 
Uma variação deste processo de 
transferência tecnológica corporal dos espíri-
tos ao iniciando é a introdução, de novos 
órgãos ou objetos dentro do corpo do inici-
ando/xamã. Já vimos isso no caso do ferro 
usado para religar os ossos do corpo des-
membrado do iniciando iacuto e no caso da 
troca dos olhos de Dyukhade. Vejamos agora 
um relato de iniciação australiano em que o 
xamã conta que foi atacado por um velho 
curandeiro que lhe atirou algumas pedras 
atnongara (cristais que os xamãs possuem 
dentro do corpo e que lhes dão poder): 
 
"Algumas das pedras o atingiram no peito, 
outras lhe atravessaram a cabeça de uma orelha à outra 
e o mataram. Depois, o velho tirou todos os seus ór-
gãos internos – intestino, fígado, coração e pulmões – 
e deixou-o estirado no chão a noite toda. Voltou no 
dia seguinte, olhou para ele e, depois de colocar outras 
pedras atnongara dentro de seu corpo, de seus braços 
e de suas pernas, cobriu-o de folhas; em seguida can-
tou sobre seu corpo até que este ficasse inchado. 
Encheu-o então de órgãos novos, depositou nele mu i-
tas outras pedras atnongara , deu-lhe tapinhas na 
cabeça, que o reanimaram e o fizeram ficar em pé de 
um salto. Então o velho medicine-man deu-lhe água 
para beber e carne para comer, com pedras atnongara . 
Quando ele acordou, não sabia onde estava." (p.64-5) 
 
 Outro exemplo relevante é o ritual de 
iniciação ao xamanismo dos dayaks 
(Bornéu), que comporta três cerimônias dife-
rentes das quais a segunda nos interessa mais 
diretamente: 
 
"Depois de uma noite de encantamentos, os 
velhos manangs conduzem o neófito até um aposento 
isolado por cortinas. 'Ali, segundo afirmam, cortam-
lhe a cabeça e retiram-lhe o cérebro, que, depois de 
 
 15
lavado, é reposto no lugar, a fim de dar ao candidato 
uma inteligência límpida para poder penetrar os misté-
rios dos maus espíritos e das doenças; em seguida, 
introduzem ouro em seus olhos, a fim de dar-lhe uma 
visão suficientemente penetrante para ver a alma onde 
quer que ela possa encontrar-se perdida, a errar. Im-
plantam-lhe ganchos dentados nas pontas dos dedos 
para torna-lo capaz de capturar a alma e prende-la com 
força; finalmente, varam-lhe o coração com uma fle-
cha para torna-lo compassivo e cheio de simpatia 
pelos que estão doentes e sofrem'." (p.75) 
 
 Muitos exemplos desta introdução de 
objetos e de novos órgãos no corpo do inici-
ando/xamã poderiam ser apresentados aqui44. 
Trata-se de um traço comum e generalizado 
das iniciações ao xamanismo. O importante é 
notar que todas estas modificações corporais 
operadas pelos espíritos e mestres rituais têm 
o principal objetivo de transferir, para o cor-
po do iniciando, tecnologias terapêuticas 
eficazes. A ênfase nesta transferência corpo-
ral deve nos alertar para o fato de que não se 
trata de um aprendizado abstrato, ou mesmo 
fruto de esforço consciente. O neófito não 
deve apenas decorar fórmulas ou imitar téc-
nicas. Neste caso estamos lidando com 
transformações muito profundas da vida, 
tanto conscientes como inconscientes. Na 
maior parte das vezes o iniciando não escolhe 
as técnicas que quer assimilar. Elas simples-
mente lhe são introduzidas no corpo e 
passam a funcionar para ele, como um idio-
ma nos é introduzido sem que possamos 
escolher e passa a funcionar em nós. Mas 
além da troca/limpeza/transformação de ór-
gãos e da introdução de novos órgãos e 
objetos no corpo, muitos outros meios são 
ainda empregados pelos mestres espirituais 
para transferir ao neófito as suas técnicas 
terapêuticas do êxtase. Dentre elas, podería-
 
44
 No xamanismo sul-americano, a introdução de 
farpas, lascas (de pedra ou madeira) e espinhos no 
corpo do neófito com a função de lhe servir como 
armas e recursos terapêuticos também é uma constan-
te. Entre os Desana, por exemplo o xamã-mestre 
introduz lascas e espinhos mágicos no antebraço dos 
futuros xamãs, com o objetivo de armá-los para suas 
futuras batalhas com inimigos. "Estas farpas podem 
ser atiradas em uma pessoa, independentemente da 
distância, com um movimento violento do braço" 
(Reichel-Dolmatoff, 1997:130). 
mos citar aqui o devoramento de seu corpo 
por espíritos responsáveis por determinadas 
doenças, com o objetivo de torná-lo imune a 
elas e capaz de curá-las tantoem si mesmo 
quanto nos outros. Alguns relatos de rituais 
iniciáticos de xamãs iacutos, por exemplo, 
contam que, após a retirada da alma do can-
didato de seu corpo por uma espécie de 
mestre-animal mítico ("Ave-de-Rapina-
Mãe"): 
 
"[A ave mítica] [t]oma-lhe a alma, leva-a pa-
ra o Inferno
45
 e deixa -a amadurecer sobre o galho de 
um abeto negro. Quando a alma atinge a maturidade, a 
ave volta à terra, corta o corpo do candidato em peda-
cinhos e os distribui entre os maus espíritos das 
doenças e da morte. Cada um dos espíritos devora a 
parte do corpo que lhe cabe, cujo efeito é conferir ao 
futuro xamã a faculdade de curar as doenças corres-
pondentes. Depois de terem devorado o corpo todo, os 
maus espíritos se afastam. A Ave-Mãe recoloca os 
ossos no lugar, e o candidato acorda como se de um 
sono profundo." (p.52-3) 
 
 O êxtase iniciático já é evidente na 
idéia de separação entre a alma do candidato 
a xamã, que passa por um processo de matu-
ração como se fosse uma cria da ave mítica 
(ou mesmo um ovo?), e o seu corpo, que é 
despedaçado e distribuído para os "maus es-
píritos das doenças e da morte". O importante 
aqui é perceber que neste caso a transferência 
de tecnologia terapêutica dos espíritos ao 
candidato se dá através do devoramento de 
diferentes partes de seu corpo por espíritos 
correspondentes a cada doença específica. 
Como uma vacina que torna o organismo 
imune à doença através da contaminação 
controlada dele, os espíritos tornam o futuro 
 
45
 Vale lembrar que o que Eliade chama de "Inferno" 
dificilmente corresponde, para o xamã, àquilo que 
normalmente entendemos pelo mesmo termo. A faci-
lidade com que Eliade coloria seu material com sua 
própria religiosidade já é bem conhecida. Narby e 
Huxley, por exemplo, não hesitam em afirmar que 
Eliade "queria que o xamã fosse para o céu", "priori-
zava os 'vôos celestiais' em detrimento dos 'infernais'" 
e que suas distinções entre êxtase e possessão "tinham 
mais a ver com suas crenças religiosas do que com os 
fatos" (2001:75, 76). Tudo isso é verdade, mas não 
deve nos impedir de aproveitar o lado positivo das 
descobertas de Eliade. 
 16
xamã imune às doenças que provocam (e 
capaz de curá-las) através do consumo con-
trolado de seu corpo46. Não se trata de um 
banquete caótico. Os pedaços são distribuí-
dos sob a supervisão da ave mítica e "[c]ada 
um dos espíritos devora a parte do corpo que 
lhe cabe". O fim do êxtase iniciático se dá 
com a recomposição do corpo do novo xamã 
pela ave mítica, dando especial ênfase aos 
ossos. Acordar do sono profundo é retornar 
do êxtase. Ser capaz de retornar do êxtase é 
já ser portador de determinadas técnicas do 
êxtase. 
 Em outro exemplo de ritual iniciático 
iacuto, os iniciandos são literalmente "cho-
cados" em um ovo cósmico pela ave mítica: 
 
"Quando a alma sai do ovo, a Ave-Mãe a en-
trega para ser instruída a uma diaba-xamã que só tem 
um olho, um braço e um osso. Esta nina a alma do 
futuro xamã num berço de ferro e o alimenta com 
sangue coagulado. Surgem em seguida três 'diabos' 
negros que lhe cortam o corpo em pedaços, enfiam-lhe 
uma lança na cabeça e jogam nacos de carne em dife-
rentes direções, à guisa de oferendas. Três outros 
'diabos' cortam-lhe a mandíbula, um pedaço para cada 
doença que ele deverá curar. Se porventura faltar um 
osso no cômputo final, um membro de sua família 
deverá morrer para substituí-lo. Pode acontecer de 
morrerem até nove parentes." (p.53-4) 
 
 A morte corporal do candidato em 
êxtase é um devir-xamã, e o horizonte de 
acontecimentos deste devir é justamente o 
ovo da ave mítica. Mas como cada individu-
ação completada reinicia o processo, assim 
que sai do ovo o candidato (na forma de al-
ma) já se encontra em outro processo de 
individuação, agora envolvendo a sua relação 
com o seu corpo mediada por espíritos, xa-
 
46
 Outro exemplo, uma variação do relato apresentado 
acima: "Segundo outra informação de iacutos, os maus 
espíritos levam a alma do futuro xamã para o Inferno e 
lá a encerram numa casa durante três anos [...]. É ali 
que o xamã passa pela iniciação: cortam-lhe a cabeça 
e a deixam de lado (pois o candidato deve ver com os 
próprios olhos o seu desmembramento); em seguida, 
cortam-no em pedacinhos, que são distribuídos aos 
espíritos das diversas doenças. Só com essa condição 
o xamã adquire o poder de curar. Seus ossos são então 
recobertos de nova carne, e em certos casos dão-lhe 
também sangue novo." (p.53) 
mãs míticos47 e até mesmo seus familiares. 
Nesta nova individuação, percebemos que o 
horizonte de acontecimentos já não se encon-
tra mais tão nitidamente delimitado, 
misturando suas relações com os espíritos, 
com o seu corpo e com os membros de sua 
família. O limite não está ausente, é claro; ele 
apenas se tornou menos nítido, na medida em 
que já não o vemos tão facilmente de uma 
perspectiva transcendente. Já vimos que o 
sacrifício do corpo do iniciando é condição 
para a produção do corpo sobrehumano do 
xamã. No entanto, vemos agora que este sa-
crifício não é nem apenas imaginário e nem 
restrito ao seu corpo biológico. As transfor-
mações corporais que ocorrem na iniciação 
ao xamanismo podem muito bem exigir 
transformações corporais em outras pessoas, 
ou mesmo a morte delas. 
 O importante aqui é perceber que é 
parte central da transferência tecnológica 
operada no corpo do xamã em seu êxtase 
iniciático uma certa "ruptura" ou "passagem 
perigosa", onde um limite será traçado e algo 
do antigo estado ficará de fora do novo esta-
do. Já vimos que algumas técnicas de 
diagnóstico transmitidas aos xamãs pelos 
mestres espirituais lhe conferem grande po-
der, na medida em que lhe permitem afirmar, 
com uma autoridade análoga à que conferi-
mos a nossos médicos, se ainda vale a pena 
investir na cura de uma pessoa. Vemos agora 
que este poder também se estende à necessi-
dade ritual de sacrificar a vida de 
determinadas pessoas, uma autoridade que, 
na nossa sociedade, é exclusiva do Estado. O 
fato de que sociedades indígenas são, nas 
palavras de Pierre Clastres (2003 [1973]), con-
tra o Estado, não quer dizer que não tenham 
leis, códigos, costumes, moral e ética. Muito 
pelo contrário, a diferença é que tudo isso 
não está situado em um patamar superior, 
transcendente, acima das relações sociais 
como um molde, mas sim no meio delas, no 
corpo de seus membros, continuamente em 
contato modulativo com suas pulsões. 
 
47
 Já não é necessário dizer que o que Eliade chama 
de "diaba-xamã" ou "diabos" provavelmente não pode 
ser entendido à luz da mitologia cristã. 
 17
É em "êxtase" que o xamã atravessa a 
"ponte perigosa", axis mundi ("abertura cen-
tral" que corresponde ao "Centro do Mundo") 
que conecta os diferentes níveis verticais do 
cosmos. Estes diferentes níveis, como se viu, 
não eram separados no "tempo mítico" 
(quando humanos e animais, morte e vida, 
cosmos e caos ainda não eram distintos), 
sendo esta "ruptura" ("queda") causada por 
algum acontecimento catastrófico mítico que 
inaugura o tempo profano e que dá origem 
também à morte e ao fluxo das almas dos 
mortos pelo axis mundi. Vimos que a inicia-
ção xamânica consiste principalmente em 
uma experiência extático-mórbida (uma nova 
"ruptura", só que agora no sentido inverso), 
que coloca o xamã em contato direto com o 
"tempo mítico", aonde lhe é revelada a tecno-
logia do sagrado que lhe permitirá colocar 
em prática as "técnicas do êxtase". O xamã 
morreu, subiu pelo caminho dos mortos (axis 
mundi), acessou o "tempo mítico", aprendeu 
a "geografia mítica", a "fisiologia extática" 
(cf.Sullivan, 1988:418-20), a "genealogia mí-
tica" (deuses e espíritos),enfim, toda a 
"tecnologia xamânica" (as técnicas do êxtase, 
dentre as quais uma das mais importantes é a 
capacidade de reverter o próprio êxtase48), e 
assim se tornou um híbrido (homem/espírito, 
vivo/morto, humano/animal, etc.), hierofania 
antropomórfica capaz de simultaneamente 
sair de seu corpo e viajar pelos diferentes 
níveis do cosmos, e de colocar estes diferen-
tes níveis do cosmos em contato com o 
mundo humano através do retorno ao seu 
corpo. 
 
AXIS MUNDI 
(TRANSVERSALIDADE DIAGRAMÁTICA) 
 
 importante notar que a noção de "ruptu-
ra/passagem" deriva de uma cosmologia 
bastante específica, que se apoia princi-
palmente sobre dois aspectos: (1) a concep-
 
48
 "One of the most important techniques learned 
during apprenticeship is the ability to return from 
ecstasy and seclusion. Control over ecstasy demands 
proof that one can bring the episode to an 
end."(Sullivan, 1988:404). 
ção de um cosmos múltiplo, composto de 
níveis e perspectivas; e (2) a existência de um 
"centro" no cosmos onde a comunicação 
entre estes níveis e perspectivas é possível49. 
Vejamos, então, uma passagem aonde Eliade 
relaciona a "técnica xamânica por excelên-
cia" com aquilo que ele chamou de "estrutura 
do Universo": 
 
"A técnica xamânica por excelência consiste 
na passagem de uma região cósmica para outra, da 
Terra para o Céu ou da Terra para o Inferno. O xamã 
conhece o mistério da ruptura de níveis. Essa comuni-
cação entre as zonas cósmicas é possível graças à 
própria estrutura do Universo. Isso porque, como 
veremos a seguir, este é concebido em três níveis – 
Céu, Terra e Inferno – interligados por um eixo cen-
tral. O simbolismo pelo qual se expressam o vínculo e 
a comunicação entre as três zonas cósmicas é bastante 
complexo e nem sempre isento de contradições: [...] 
há três grandes regiões cósmicas, que podem ser atra-
vessadas sucessivamente porque se encontram ligadas 
por um eixo central. Esse eixo passa por uma 'abertu-
ra', um 'buraco'; é por ele que os deuses descem à terra 
e os mortos vão para as regiões subterrâneas; é tam-
bém por ele que a alma do xamã em êxtase pode subir 
voando ou descer quando de suas viagens celestes ou 
infernais."(p.287) 
 
 A "estrutura do Universo" consiste, 
portanto, em "níveis" ou "zonas cósmicas" 
(que Eliade enumera em três e rotula como 
"Céu", "Terra" e "Inferno"50) que são "inter-
ligadas" por um "eixo central". E é por este 
"eixo central"51, na forma de "abertura" ou 
 
49
 A importância desta cosmologia para o xamanismo 
em geral parece fora de questão, como atesta a sua 
reiteração (mesmo que em termos ligeiramente dife-
rentes) por Langdon em ocasião da apresentação das 
características necessárias a "uma nova perspectiva na 
definição do xamanismo". Ela fala de um "universo 
em múltiplos níveis, onde a realidade visível supõe 
sempre uma outra invisível" e de um "princípio geral 
de energia que unifica o universo" (Langdon, 1996:27). 
50
 Como já vimos, seria preciso aqui submeter estas 
classificações a uma "crítica etnológica rigorosa", 
visto que "céu" e "inferno" nos parecem rótulos limi-
tados para lidar com a riqueza cosmológica dos 
êxtases xamânicos. 
51
 Eliade usa ainda, entre outros, "Centro do Mundo", 
"eixo cósmico", "Eixo do Mundo" e "axis mundi" para 
É
 18
"buraco", que os 
deuses, os mortos e 
os xamãs "atraves-
sam" as três "zonas 
cósmicas", e que a 
"comunicação" entre 
elas se torna possí-
vel. As técnicas do 
êxtase seriam então, 
como que uma "tec-
nologia das rupturas 
de níveis ontológi-
cos", e o xamã, um 
"técnico midiático 
cósmico". Mas se o 
universo possui um 
centro, onde está ele? 
 Estamos aqui 
tratando daquilo que 
Eliade chama de 
"Simbolismo do 
Centro"52, que extrapola o domínio do xama-
nismo e é retomado em praticamente todas as 
suas obras, visto que representa a própria 
"essência" da religião53. O "centro" pode se 
manifestar das mais variadas formas54 e, em 
 
se referir à mesma noção de "eixo central". Darei 
preferência ao termo "axis mundi". 
52
 "O simbolismo do 'centro' não é necessariamente 
uma idéia cosmológica. Na origem, é 'centro' – possí-
vel sede de uma ruptura de níveis – qualquer espaço 
sagrado, isto é, qualquer espaço que seja marcado por 
uma hierofania e que manifeste realidades [...] não 
pertencentes ao nosso mundo, provenientes de outro 
lugar, especialmente do Céu. Chegou-se à idéia de 
'centro' através da vivência de locais sagrados, im-
pregnados de uma presença transumana: nesse ponto 
preciso alguma coisa de cima (ou de baixo) manifes-
tou-se. Mais tarde, imaginou-se que a própria 
manifestação do sagrado, em si, implicava uma ruptu-
ra de níveis."(p.287-8). 
53
 Refiro-me aqui à função do "centro" como "ligação" 
entre os diferentes "níveis cósmicos", separados em 
ocasião da "criação do mundo", e à provável origem 
latina do termo : re-ligare. 
54
 Alguns dos exemplos citados por Eliade são: "Ár-
vore Cósmica", "Árvore do Mundo" (ou simplesmente 
"árvore", ou "bétula"), "Montanha Cósmica", "Monta-
nha Central" (ou simplesmente "montanha"), "Ponte 
de Cinvat" (ou simplesmente "ponte"), "Pilar do Mun-
última instância, em 
qualquer forma55. 
Eliade dedica todo o 
oitavo capítulo de 
seu livro (Xamanis-
mo e Cosmologia) ao 
tema, e ainda o reto-
ma diversas vezes56, 
tamanha é a sua im-
portância e 
complexidade. Mas, 
perguntemos nova-
mente, se o universo 
possui um "centro", e 
ele pode estar em 
qualquer lugar, onde 
estará e por que esta-
ria em qualquer 
lugar? E visto ser o 
"centro" que liga os 
diferentes níveis cósmicos, e o xamã o único 
que pode acessá-lo à vontade através das 
técnicas do êxtase, poderíamos ainda acres-
centar: Qual é a relação do xamã com este 
processo? Para responder a estas questões, 
faz-se necessário conhecer a noção eliadeana 
de "hierofania", que sintetiza aquilo que o 
autor denominou "dialética do sagrado" e 
 
do" (ou simplesmente "pilar"), "topo do mundo", 
"ápice", "tambor", "altar", "mastro", "corda", "cipó", 
"escada", "corrente de flechas", "cavalo" "barco" e 
"arco-íris". "Todas essas imagens simbólicas da liga-
ção entre Céu e Terra não passam de variantes [...] do 
Axis Mundi." (p.533; itálico no original). 
55
 Eliade faz tipificações como "plano macrocósmi-
co" ("Árvore, Montanha, Pilar etc.") e "plano 
microcósmico" ("pilar central da habitação ou [...] 
abertura superior da tenda") (p.293) para falar das 
diversas manifestações do axis mundi, mas não deixa 
dúvidas de que "qualquer fragmento do Cosmos pode 
originar uma hierofania, em conformidade com a 
dialética do sagrado" (p.127). É interessante notar que 
Durkheim também defende de "qualquer coisa pode 
ser sagrada" (1964:37), sendo o seu maior inconvenien-
te a redução do sagrado à " idéia do sagrado" 
(1964:40), fazendo assim da relação sagrado/profano 
uma relação lógica e intelectual (mesmo que "obscu-
ra"), uma "representação" em vez de uma 
"experiência". 
56
 E.g. p.59, 142, 196, 199, 220, 252, 399, 433, 440-1. 
 
 19
ilumina o processo de "singularização" do 
xamã: 
 
"De fato, as hierofanias mais elementares na-
da mais são que uma separação radical, de valor 
ontológico, entre um objeto qualquer e a zona cósmica 
circundante: uma pedra, uma árvore, um lugar, justa-
mente porque se revelam sagrados, por terem sido de 
algum modo 'escolhidos' como receptáculo de uma 
manifestação do sagrado, separam-se ontologicamente 
das outras pedras, das outras árvores e dos outros 
lugares e situam-se num plano diferente, sobrenatural.

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