Buscar

A crise da educação

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

"""I ...
.'!":
i
.i
I
I
~
.~
'o\""
I
I
o~.t
0;j
~. -«-~-. A CRISENA EDUGAÇÃOI .. - .. ..- ."
HannahArendt
I
A crisegeralqueseabatesobreomundomodernoeque
atingequasetodasasáreasdavidahumanamanifesta-se
diferentementenosváriospaíses,alargando-seadiversos
domínioserevestindo-sedediferentesformas.NaAméri-
ca,umdosaspectosmaiscaracterísticose reveladoresé a
criseperiódicadaeducaçãoaqual,pelomenosnaúltima
década,seconverteunumproblemapolíticodeprimeira
grandezadequeosjornaisfalamquasediariamente.Na
verdade,nãoénecessáriagrandeimaginação_para.seava-
liaremosperigosdecorrentesdeumabaixaconstantedos
padrõeselementaresaolongodetodoosistemaescolar.Os
vãoseinumeráveisesforçosdasautoridadesresp0nsáveis
pelocontrolodasituaçãomostrambemtodaa gravidade
doproblema.Noentanto,quandosecomparaestacrisena
~
1«ThecrisisinEducation»foi pelaprimeiravezpublicadonaPartisallReview,
25,4 (1957),pp.493-513.PublicadoemversãoalemãemFragwurdigeTradi-
tiollsbestalldeimPolitisclzellDellkenderGegellwart.Frankfurt:EuropaischeVer-
lagsanstalt.1957,otextoveioaserdenovoreimpressoemBetweellPastalldFIl-
ture:SixExercisesill PoliticalTlzougTlt,NewYork:VikingPress,1961,pp.173-
-196,deondeo traduzimos.(N. T.)
22 HannahArendt
educaçãocomasexperiênciaspolíticasdeoutrospaísesno
séculoXX, a ondarevolucionáriaposteriorà Primeira
GuerraMundial,oscamposdeconcentraçãoeextermínio,
oumesmoo profundomal-estarque,soba aparênciade
prosperidade,seespalhouportodaaEuropadepoisdofim
daSegundaGuerra.Mundial,toma-se.-difíciLd~d~caràJ;ri-_
senaeducaçãotodaaatençãoqueelamerece.Comefeito,
é tentadorconsiderá-Iacomoummerofenómenolocal,
desligadadosproblemasmaisimportantesdoséculo,fe-
nómenocujaresponsabilidadeserianecessárioatribuira
detenninado~aspectosparticularesdavidadosEstados
Unidos,semequivalêncianoutrospontosdomundo.. -
Mas,seissofosseverdade,acrisenonossosistemaes-
colarnãoseteriatransformadonumaquestãopolíticaeas
autoridadesresponsáveispelaeducaçãonãoteriamsido,
comoforam,incapazesdetrataroproblemaatempo.Sem
dúvidaque,paraalémdaespinhosaquestãodesaberpor-
querazãooJoãozinhonãosabeler,acrisena~ducaçãoen-
volvemuitosoutrosaspectos.Somossempretentadosa
admitirqueestamosperanteproblemasespecíficos,perfei-
tamentedelimitadospelahistóriaepelasfronteirasnacio~_
nais,quesódizemrespeitoaquemporelesédirectamen-
teatingido.Ora,é precisamenteessacrençaquehojeem
diaserevelafalsa.Pelocontrário,podemostomarcomo
regrageraldanossaépocaquetudoo quepodeacontecer
numpaíspodetambém,numfuturoprevisível,acontecer
emqualqueroutropaís.
Paraalémdestasrazõesdeordemgeralquelevamoho-
memcomumainteressar-seporproblemasquesecolocam
emdomíniosacercadosquais,deumaperspectivaespe-
cializada,elenadasabe(eesteé semdúvidao meucaso
quandofalodacrisenaeducação,umavezquenãosou
educadoraprofissional),háaindaumaoutrarazão,porven-
..~;.
.;.i~
':f
.~
;;
'J.
,:I
. I
. I
A CrisenaEducação 23
J
turamaisconvincente,que levao homemcomuina
preocupar-secomumasituaçãocríticaemquenãoseen-
contraimediatamenteenvolvido.Referimo-nosàoportuni-
dade,fomecidapelaprópriacrise- aqualtemsempreco-
moefeitofazercairmáscarasedestruirpressupostos- de
ç~pLor.(lfeinvestigartu_doaquiloqueficouadesc@bertona
essênciadoproblema,essênciaque,naeducação,éanata-
lidade,ofactodeossereshumanosnasceremnomundo.O
desaparecimentodospressupostossignificasimplesmente
queseperderamasrespostasquevulgarmenteseaceitam
semsequernosapercebermosdeque,nasuaorigem,essas
respostaseramrespostasaquestões.Ora,acriseforça-nos
a regressaràsprópriasquestõese exigedenósrespostas,
novasouantigas,mas,emqualquercaso,respostassoba
formadejuízosdirectos.Umacrisesósetornadesastrosa
quandolhepretendemosrespondercomideiasfeitas,quer
dizer,compreconceitos.Atitudequenãoapenasagudizaa
crisecomofazperderaexperiênciadarealidadeeaopor-
tunidadedereflexãoqueacriseproporciona.
Numacrise,pormaisclaroqueumproblemadeordem
geralsepossaapresentar,ésempreimpossívelisolarcom-
pletamenteoelementouniversaldascircunstânciasconcre-
tasemqueess~problemaaparece.Aindaquea crisena
educaçãopossaafectaromundointeiro,ésignificativoque
sejanaAméricaqueelaassumeaformamaisextrema.Ara-
zãoparataldecorretalvezdofactode,apenasnaAmérica,
umacrisenaeducaçãosepodertomarverdadeiramenteum
factorpolítico.Na verdade,a educaçãodesempenhana
Américaumpapeldiferente,denaturezapolítica,incompa-
ravelmentemaisimportantedoquenosoutrospaíses.A ex-
plicaçãotécnicaconsisteobviamentenofactodeaAméri-
catersidosempreumaterradeimigrantes..Nestascircuns-
tâncias,éóbvioquesóaescolarização,aeducaçãoeaame-
-1e'
24 HannahArenOt
...,j.,
ricanizaçãodosfilhosdosimigrantespoderealizaressata-
refaimensamentedifícildefundirosmaisvariadosgrupos
étnicos- fusãonuncacompletamentebemsucedidamas
que,paraládetodasasexpectativas,estácontinuamentea
serrealizada.Na medidaemque,paraa maioriadessas
'-'..eriançasrQinglêsnãoéa..sualíngua-mãemasa..línguaque
têmqueaprendernaescola,asescolassãonecessariamen-
te levadasa assumirfunçõesque,emqualquerestado-
-nação,seriamnaturalmentedesempenhadasemcasa.
Maisdecisivo,noquerespeitaànossaanálise,enoen-
tantoo papelquea contínuairrigraçãodesempenhana
consciênciae estruturapolíticadopaís.A Américanãoé
simplesmenteumpaíscolonialquenecessitadeimigrantes
parapovoaro seuterritóriomascujaestruturapolíticase
manteriaindependentedeles.NaAmérica,o factordeter-
minantefoi sempreadivisaimpressaemcadanotadedó-
lar:NovusOrdoSeculoru11l,UmaNovaOrdemdoMundo.
Osimigrantes,osrecém-chegados,constituemparao país
agalantiadequeelerepresentadefactoanovaordem.O
sentidodestanovaordem,destacriaçãodeumnovomun-
doemoposiçãoaoantigo,era,econtinuaaser,abolirapo-
brezaeaopressão.Mas,simultaneamente,amagnificência
destanovaordemconsistenofactode,desdeo princípio,
elasenãoterdesligadodomundoexteriorparaoconfron-
tarcomummodeloperfeito- comosempreacontecena
criaçãode utopias- emsenãoterarrogadopretensões
imperialistas,nemtersidopregadacomosedeumevan-
gelhosetratasse.Ao contrário,arelaçãoqueestarepúbli-
ca,quetinhacomoprojectoabolirapobrezaeaopressão,
estabeleceucomo mundoexteriorcaracterizou-se,desdeo
início,pelobomacolhimentodadoatodosospobreseopri-
midosdaTerra.NaspalavrasdeJohnAdamsem1765,an-
tesportantodaDeclaraçãodeIndependência:«Vejosempre
~~
j
:~
;J;
~
.~
.~
'1
.-
1
~l
~.
:-:
:;.I~...'
;~
:~
.:- !
",...
,
~'.."
~,~
I
I
. ,
I
I
A Crise naEducação 25
a ConstituiçãodaAméricacomoo começodeumgrande
planoouprojectodaProvidênciacomvistaàiluminaçãoe
emancipaçãodetodosospovosoprimidosdaTerra.»Foi
emconcordânciacomestaintençãoouleifundamentalque
aAméricainiciouasuaexistênciahistóricaepolítica.
- - O.extraordinárioentusiasmo.portudo.aquiloqueé.nove,:
visívelemquasetodososaspectosdavidaquotidianaame-
ricana,bemassimcomoacorresponde~teconfiançanuma
«perfectibilidadeindefinida»- aquiloqueTocqueville
considerouserocredodo«fiornemvulgarnãoinstruído»e
que,enquantotal,precedeemquaseumacentenadeanos
umdesenvolvimentosemelhantenosoutrospaísesociden-
tais- poderiamexplicaramaioratençãoquesemprefoi
prestadaeomaiorsignificadoque,naAmérica,semprefoi
atribuídoaosrecém-chegadospelonascimento,istoé,às
crianças.Criançasàsquais,desdeo momentoemque
abandonavamainfânciae estavamprestesaentrarnaco-
munidadedosadultosenquantojovens,osGregoschama-
vammuitosimplesmenteoilleoi- osnovos.Háaindaum
factoadicionalquesereveloudecisivoparao significado
daeducação:o factodeestepalhosdanovidade,sebem
queconsideravelmenteanterioraoséculoXVIII, sóseter
desenvolvidoconceptualepoliticamentenonossoséculo.
Foi apartirdestafontequeseconstituiuumidealdeedu-
cação,mescladoderousseauismo- e,defacto,influen-
ciadodirectamenteporRousseau--,-deacordocomoqual
aeducaçãosetransformounuminstrumentodapolíticaea
própriaactividadepolíticafoiconcebidacomoumaforma
deeducação.
O papeldesempenhadopelaeducaçãoemtodasasuto-
piaspolíticas,desdea Antiguidadeatéaosnossosdias,
mostrabemcomopodeparecernaturalquerercomeçarum
mundonovocomaquelesquesãonovospornascimentoe
li
26 HannahArendt
....-....
pornatureza.Noquedizrespeitoàpolíticaháaqui,obvia-
mente,umagraveincompreensão:emvezdeumindivíduo
sejuntaraosseussemelhantesassumindoo esforçodeos
persuadirecorrendoo riscodefalhar,optaporumainter-
vençãoditatorial,baseadanasuperioridadedoadulto,pro-
curandoproduzironovo.comoumfaitaccoJUpli2,Q~(9i-
zer,comoseo novojá existisse.É porestarazãoque,na
Europa,acrençadequeénecessáriocomeçarpelascrian-
çassesepretendemproduzirnovascondiçõestemsido
monopólioprincipalmentedosmovimentosrevolucioná-
rios com tendênciastirânicas,movimentosessesqu~,
quandochegamaopoder,retiramosfilhosaospaise,mui-
tosimplesmente,tratamdeosendoutrinar.Ora,aeducação
nãopodedesempenharnenhumpapelnapolíticaporquena
políticaselidasemprecompessoasjá educadas.Aqueles
quesepropõemeducaradultos,o querealmentepreten-
deméagircomoseusguardiõeseafastá-Iosdaactividade
política.Comonãoé possíveleducaradultos,a palavra
«educação»temumaressonânciaperversaempolítica-
háumapretensãodeeducaçãoquando,afinal,o propósito
realé acoerçãosemusodaforça.Quemquiserseriamen-
tecriarumanovaordempolíticaatravésdaeducação,quer
dizer,semusarnemaforçaeoconstrangimentonemaper-
suasão,temqueaderiràterrívelconclusãoplatónica:banir
todososvelhosdonovoestadoa fundar.Mesmonocaso
emquesepretendemeducarascriançasparavirema ser
cidadãosdeumamanhãutópico,o queefectivamentese
passaéqueselhesestáanegaro seupapelfuturonocor-
popolíticopoisque,dopontodevistadosnovos,pormais
novidadesqueo mundoadultolhespossapropor,elasse-
rãosempremaisvelhasqueelespróprios.Fazpartedana-
j
1
~
i.
I
!
2 Emfrancêsnooriginal.(N.7:)
i~~
~.
'.~"
'"
~
it
~
'.~
.;f;,
\ti
.,t
A Crise naBducação 27
.\
;o.'I
'~I
turezadacondiçãohumanaquecadanovageraçãocresça
nointeriordeummundovelho,detalformaque,preparar
umanovageraçãoparaummundonovo,sópodesignifi-
carquesedesejarecusaràquelesquechegamdenovoa
suaprópriapossibilidadedeinovar.
. NadadistoacontecenaAméricaeéjustamenteporTsSt)".
que,aqui,étãodifíciljulgarcorrectamenteestasquestões.
O papelpolíticoqueaeducaçãoefectivamenterepresenta
numaterradeimigrantes,o factodequeaescolanãoser-
veapenasparaamericanizarascriançasmastemtambém
efeitossobreosseuspais,o factoaiJ1i1~deque,aqui,se
ajudamefectivamenteaspessoasa'abandonarummundo
velhoea entrarnumnovo,tudoistodáforçaàilusãode
queo novomundoestáa serefectivamenteconstruído
atravésdaeducaçãodascrianças.É claroquenãoéestaa
verdadeirasituação.O mundoemqueascriançasestãoa
serintroduzidas,mesmonaAmérica,é ummundovelho,
querdizer,ummunjopré-existente,construídopelosvi-
vosepelosmortos,ummundoquesóénovoparaaqueles
queneleentraramrecentementepelaimigração.Masailu-
sãoéaquimaisfortedoquearealidadeporqueemergedi-
rectamentedeumaexperiênciaamericanabásica:adeque
épossívelfundarumanovaordeme,maisainda,adeque
épossívelfundá-Iacomaconsciênciaprofundadeumcon-
linuumhistórico.Naverdade,aexpressão«NovoMundo»
sóganhasentidofaceaumMundoAntigo,mundoque,se
bemqueadmirávelporoutrasrazões,foirejeitadopornão
terpodidoencontrarsoluçãoparaosproblemasdapobre-
zaedaopressão.
Ora,noquedizrespeitoà educaçãoelamesma,sóno
nossoséculoéqueailusãoemergentedopalhosdonovo
produziuassuasmaissériasconsequências.Emprimeiro
lugar,permitiuqueessamisturademodernasteoriasedu-
..
28 HannahArendt
~
cativasprovenientesdaEuropaCentral,equeconsistenu-
maespantosasalganhadadecoisascomsentidoesemsen-
tido,revolucionassetodoosistemadeeducaçãosobaban-
deiradoprogresso.AquiloquenaEuropanãopassoude
umaexperiência,testadaaquiealém,emalgumasescolas
e iastituições-ooucativasisoladas,.estendendodepois~">gra-
dualmente,asuainfluênciaaalgunssectores,produziuna
América,dehácercadevintee cincoanosaestapartee,
porassimdizer,deum~iaparao outro,umatransforma-
çãocompletanoquedizrespeitoàstradiçõeseaosméto-
.dosestabelecidosdeensinoedeaprendizagem.
Nãoentrareiemdetalhese deixareideladoasescolas
privadas,muitoespecialmemeo sistemadeescolasparo-
quiaiscatólicasromanas.O factomaissignificativoéque,
emvirtudedecertasteorias,boasoumás,todasasregrasda
saudávelrazãohumanaforampostasdeparte.Umprocedi-
mentocomoestetemsempreumasignificaçãograndee
perniciosa,emespecialnumpaíscujavidapolíticarepousa
tãofortementenosensocomum3.Quando,nasquestõespo-
líticas,a sãrazãohumanafalhaoudesistedatentativade
encontrarrespostas,estamosfrenteaumacrise.Estetipode
razãoéafinalo sensocomumemvirtudedoqualnós,eos
110S50Scincosentidosindividuais,nosadaptamosa um
mundoúnicoecomumatodoseaínosmovemos.O desa-
parecimentodos~nsocomumquehojeseverificaépoiso
sinalmaissegurodaactualcrise.Emtodasascrisesédes-
truídaumaparceladomundo,algoportantoquenosé co-
mumatodos.Qualvarinhamágica,o fracassodosensoco-
mumapontaparao lugarondeseproduzessadestruição.
Dequalquerforma,arespostaàquestãodesaberporque
razãoo Joãozinhonãosabelerouàquestãomaisgeralde
.
,1
~
3 Cotnmol/SeI/senooriginal.(N.T.)
A CrisenaEducação 29
'-
saberporqueéqueosníveisescolaresdaescolaamerica-.
namédiapermanecemtantoaquémdosníveismédiosac-
tuaisdetodosospaísesdaEuropanãoconsiste,infeliz-
mente,emdizerqueestepaíséjoveme,porisso,nãoal-
cançouaindaospadrõesdoVelhoMundo.Pelocontrário,
nestedomínio,estepaíséomais«avançado»eo-maismo-
dernodomundo.Oqueéverdadeemdoissentidos:emI:e-
nhumoutropaíssepuseramcomtantaacuidadeosproble-
masdeeducaçãodeumasociedadedemassas,e emne-
nhumoutroforamaceitesdeformatãoservileacríticaas
maismodernasteoriasptJagógicas.Assim,acrisenaedu-
caçãoamericanaanuncia,porumlado,o fracassodaedu-
caçãoprogressistae,poroutro,constituiumproblemaex-
tremamentedifícilporquesurgenoseiodeumasociedade
demassaseemrespostaàssuasexigências.
Nestesentido,devemosterpresenteumoutrofactormais
geralque,senãoconstituiuacausadacrise,aagravouem
elevadograu:refiro-meaopapelqueo conceitodeigualda-
dedesempenhae sempredesempenhounavidaamericana.
Trata-sedeumanoçãonaqualestáenvolvidamuitomaisdo
queaigualdadeperantealei;maistambémdoqueonivela-
mentodasdistinçõesdeclasse;maismesmo-do..que".aquilo
queaexpressão«igualdadedeoportunidades»designa,em-
boraestatenhaaquigrandesignificadoumavezque,na
perspectivaamericana,odireitoàeducaçãoéumdireitoci-
vilinalienáveI.Esteúltimopontofoialiásdecisivo-paraaes-
truturaçãodosistemaescolarpúbliconoqual,sóexcepcio-
nalmente,existemescolassecundáriasdetipoeuropeu.Por-
queaescolaridadeobrigatóriaseestendeatéaosdezasseis
anos,todasascriançasdevemfrequentaraescolasecUI:3á-
riaaqual,portanto,surgecomoumaespéciedecontinuação
daescolaprimária.Ora,a faltadeumensinoverdadeira-
mentesecundáriotemumasériedeefeitosemcadeia:apre-
{...,-
30 HannahArendt
.~. ".- .-. .
paraçãoparaauniversidadetemqueserdadapelaspróprias
universidades,o quefazcomqueoscurriculadestasso-
fram,poressarazão,deumasobrecargacrónica,oque,por
suavez,afectaaqualidadedotrabalhoqueaísefaz.
I
À primeiravista,podeparecerqueestaanomaliareside I
nanaturezamesmadeumasociedadedemassasnaquala ~,
educaçãodeixoudeserprivilégiodasclassesfavorecidas.
Mas,seolharmosparaInglaterra,onde,comosesa~e,a
educaçãosecundáriafoi tambémrecentementeestendidaa
todasasclassessociais,percebemosque-riãopodeseressa
a explicação.EmInglaterra,foi instituídoumexamedifí-
cil nofimdãescolaprimária,ouseja,paraalunosdeonze :<
anos,exameessequepermiteseleccionarcercadedezpor;~
centodealunosconsideradoscapazesdeprosseguirestu-
dossecundários.Aindaque,mesmoemInglaterra,o rigor ,.'
destase1ecçãotenhasidoaceitecomprotestos,naAméri- t
ca,issoseriacompletamenteimpossível.EmInglaterra,ol.
quesepretendeéinstauraruma«meritocracia»,maisuma ',~
vezclaramentecorrespondenteaumaoligarquia,nãoago-
raderiquezaounascimento,masdetalento.Aindaqueem "
Inglaterrasenãoestejadissoplenamenteconsciente,isso <~
significaqueopaís,mesmosobumregimesocialista,con-
tinuaráa sergovernadocomodesdesempretemsido,ou
seja,nãocomoumamonarquiaoucomoumademocracia,"
mascomoumaoligarquiaouaristocracia- estaúltima
entendidacomosendomelhoresosmais.dotados,oquees-
tálongedeconstituirumacerteza.NaAmérica,umadivi-
sãoquasefísicadestetipo,entrecriançasdotadasenãodo-
tadas,seriaintolerável.A meritocracianãocontradizme-
noso princípiodaigualdade,deumademocraciaigualitá-
ria,doquequalqueroutraoligarquia.,
Destemodo,oquefazcomqueacrisedaeducaçãoseja
tãoespecialmenteagudaentrenóséo temperamentopolí-
I';
';."p"
"
A CrisenaEducação 31
ticodopaís,oqualluta,porsipróprio,porigualarouapa-
gartantoquantopossíveladiferençaentrenovosevelhos,
entredotadosenãodotados,enfim,entrecriançaseadul-
tos,emparticular,entrealunoseprofessores.É óbvioque
estenivelamentosó podeserefectivamentealcançadoà
custadaautoridadedoprofessoreemdetrimentodosestu-
dantesmaisdotados.Noentanto,é igualmenteóbviopara
quemalgumavezesteveemcontactocomo sistemaedu-
cativoamericanoqueestadificuldade,enraizadanaatitu-
depolíticadopaís,temtambémgrandesvantagens,não
apenasdopontodevistahu~ano,masnoplanodaeduca-
ção.Dequalquerforma,estesfactoresgeraisnãopodem
explicaracriseemquenosencontramosnopresentenem
justificarasmedidasqueaprecipitaram.
11
Estasmedidascatastróficaspodemseresquematicamen-
teexplicadasporintermédiodetrêsideias-base,porventu-
rademasiadofamiliares.A primeiraé a dequeexisteum
mundodacriançaeumasociedadeformada.pelascr.ianças;
queestassãoseresautónomoseque,namedidadopossí-
vel,sedevemdeixargovernarporsi próprias.O papeldos
adultosdeveentãoconsistiremlimitar-sea assistiraesse
processo.É o grupodascriançaselemesmoquedetéma
autoridadequevaipermitirdizeracadacriançao queela
deveenãodevefazer.Entreoutrasconsequências,istocria
umasituaçãonaqualo adulto,nãosóseencontradesam-
paradofaceà criançatomadaindividualmente,comofica
privadodetodoo contactocomela.Quantomuito,pode
dizer-lhequefaçaoquelheapetecere,depois,impedirque
aconteçao pior.As relaçõesreaisenormaisentrecrianças
~' --
.~
ir.!;
li
II
~
i
i.'~;:i'
i.
~.i
S
i~
.~
!ri'
t
'I'I'
!~
,(t.
!
"
..
;
1
~t
i
t
,
I
!
t
32 HannahArendt
eadultos- relaçõesquedecorremdofactode,nomundo,
viverememconjuntoe simultaneamentepessoasdetodas
asidades- estãoportantohojequebradas.
Faztambémpartedaessênciadestaprimeiraideia-base
tomaremconsideraçãounicamenteo grupoenãoacrian-
çaenquanto,indivíduo.No interiordogrupo,acriançaes-_
tá,bementendido,numasituaçãopiordoqueaanterior.Na
verdade,aautoridadedeumgrupo,aindaquesejaadeum
grupodecrianças,ésempreconsideravelmentemaisfortee
muitomaistirânicaqueadeumúnicoindivíduo,pormais.
severoqueestepossaser.Senoscolocarmosnopontode
vistadacriançatomadaindividualmente,apercebemo-nos
decomosãopraticamentenulasashipótesesqueelatemde
serevoltar,oudefazerqualquercoisaporsuaprópriaini-
ciativa.A criançajá nãoseencontranasituaçãodeumalu-
tadesigualcomalguémque,semdúvida,tinhasobreela
umasuperioridadeabsoluta- situaçãonaqual,noentan-
to,elapodiacontarcomasolidariedadedasoutrascrianças,
querdizer,dosseuspares- masantesnasituação,porde-
finiçãosemesperança,dealguémquepertenceàminoriade
umsófaceàabsolutamaioriadetodososoutros.Sãobem
poucososadultosqueconseguemsuportarumatalsitua-
ção,mesmoquandoelanãoé reforçadaporconstrangi-
mentosexteriores.Quantoàscrianças,elassãosimplese
definitivamenteincapazes.
Emancipadal"aceàautoridadedosadultos,acriançanão
foiportantolibertadamasantessubmetidaaumaautorida-
demuitomaisferoze verdadeiramentetirânica:a tirania
damaioria.Emqualquercaso,o quedaíresultaé queas
criançassão,porassimdizer,banidasdomundodosadul-
tos.Elasficam,ouentreguesasimesmas,ouàtiraniado
seugrupo,grupocontrao qual,tendoemvistaasuasupe-
rioridadenumérica,senãopodemrevoltar;grupocomo
:.'~
ir.
~~
~"'.
$
'>5.
,.
.: i
j
I
I
j
I
., i
:. I
I
-..t:.~.
.~
A CrisenaEducação 33
.i
qual,porquesãocrianças,nãopodemdiscutir;enfim,gru~
podoqualnãopodemescapar-separaqualqueroutromun-
doporqueo mundodosadultoslhesestávedado.A reac-
çãodascriançasaestapressãotendeaserouo conformis-
moouadelinquênciajuvenile,namaiorpartedasvezes,
umamistura-dasduascoisas.
A segundaideia-basea tomaremconsideraçãonapre-
sentecrisetemavercomo ensino.Sobinfluênciadapsi-
cologiawodernaedasdoutrinaspragmáticas,apedagogia
tornou'::sê'umaciênciàdoensinoemgeralaopontodese
desligarcompletamentedamatériaaensinar.O professlJi
- assimnoséexplicado- éaquelequeécapazdeensi-
narqualquercoisa.A formaçãoquerecebeé emensinoe
nãonodomíniodeumassuntoparticular.Comoveremos
adiante,estaatitudeestá,naturalmente,ligadaaumacon-
cepçãoelementardoqueéaprender.Paraalémdisso,esta
atitudetemcomoconsequênciao factode,nodecursodos
últimosdecénios,a formaçãodosprofessoresnasuapró-
priadisciplinatersidograndementenegligenciada,sobre-
tudonasescolassecundárias.Porqueo professornãotem
necessidadedeconhecerasuaprópriadisciplina,acontece
frequentementequeelesabepoucomais_do.queos seus
alunos.O quedaquidecorreéque,nãosomenteosalunos
sãoabandonadosaosseusprópriosmeios,comoaopro-
fessoré retiradaa fontemaislegítimadasuaautoridade
enquantoprofessor.Pense-seo quesepensar,o professor
éaindaaquelequesabemaisequeémaiscompetente.Em
consequência,oprofessornãoautoritário,aqueleque,con-
tandocomaautoridadequeasuacompetêncialhepoderia
conferir,quereriaabster-sedetodoo autoritarismo,deixa
depoderexistir.
Foiumamodernateoriadaaprendizagemquepermitiuà
pedagogiae àsescolasnormaisdesempenharesteperni-
-'
34 HannahArendt
.
.j
'I
ciosopapelnaactnalcrisedaeducação.Essateoriaé,mui-
tosimplesmente,aaplicaçãológicadanossaterceiraideia-
-base,ideiaquefoi duranteséculossustentadanomundo
modernoe queencontroua suaexpressãoconceptualsis-
temáticanopragmatismo.Essaideia-baseéadequesenão
.podesabere compreéndersenãoaquilo--quesefazporsi ..'
próprio.A aplicàç~oàeducaçãodestaideiaétãoprimitiva
quantoevidente:substituir,tantoquantopossível,o.apren-
derpelofazer.Considera-sepoucoimportantequeo pro-
fessordomineasuadisciplinaporquesepretendecompe-
lir o professoraoexer~ki~C~umaacti':idad~deconstan-
teaprendizagemparaque,comosediz,nãotransmitaum
«sabermorto»mas,ao contrário,demonstreconstante-
mentecomoseadquireessesaber.A intençãoconfessada
nãoé a deensinarumsabermasa deinculcarumsaber-
-fazer.O resultadoé umaespéciedetransformaçãodas
instituiçõesde ensinogeraleminstitutosprofissionais.
Taisinstirutostiveramgrandesucessoquandosetratavade
aprendera conduzirumaviatura,coserà máquinaou-
maisimportanteaindapara«aartedeviver»- comportar-
-sebememsociedadeouserpopular,masrevelaram-sein-
capazesdelevar.as-cr1:mt;::ISa ::Ic1quinr.osconhecimentos
requeridosporumnormalprogramadeestudos.
Estadescriçãopeca,nãotantopeloseuexageroeviden-
teemfavordaargumentaçãoemcausa,comopelasuain-
suficiênciaemdarcontadomodocomo,nesteprocesso,se
temtentadoiludir,tantoquantopossível,adistinçãoentre
trabalhoejogoembenefíciodesteúltimo.Considera-seo
jogocomoo maisvivomododeexpressãoe a maneira
maisapropriadap-uaacriançadeseconduzirnomundo,a
únicaformadeactividadequebrotaespontaneamenteda
suaexistênciadecriança.Sóaquiloquesepodeaprender
atravésdojogocorrespondeà suavivacidade.Afirma-se
A Crise naEducação 35
..
quea actividadecaracterísticadacriançaconsisteemjo- _
gar.Aprender,no velhosentidodapalavra,forçandoa
criançaaadoptarumaatitudedepassividade,obrigá-Ia-ia
aabandonarasuaprópriainiciativaquesenãomanifesta
senãonojogo.
- -.. O ensinodaslínguasilustradirectamenteaestreitaliga-
çãoentreestesdoispontos:asubstituiçãodoaprenderpe-
lo fazeredotrabalhopelojogo.A criançadeveaprender.
falando,querdizer,fazendo,enãopeloestud9~agramáti-
cae dasintaxe.Noutrostermos,a criançadeveaprender
umalínguaestraQgeiratalcomoaprendeuasualínguama-
terna,comoquejogandoenacontinuidadesemrupturada
suaexistênciahabitual.Deixandodeladoaquestãodesa-
berseissoéounãopossível- e,emcertamedida,épos-
síveldesdequesemantenhaacriançatodoo dianumam-
bienteondesenãofalesenãoalínguaestrangeira- éper-
feitamenteclaroqueestemétodoprocuradeliberadamente
mantera criançamaisvelha,tantoquantopossível,num
nívelinfantil.Aquiloque,precisamente,deveriapreparara
criançaparaomundodosadultos,ohábitoadquiridopou-
coapoucodetrabalharemvezdejogar,é suprimidoem
favoLda.autonomia.domundo.dajnfância.
Qualquerquesejaaligaçãoexistenteentreo fazere o
saber,ouqualquerquesejaavalidadedafórmulapragmá-
tica,a suaaplicaçãoà educação,istoé,aomodocomoa
criançaaprende,tendea fazerdainfânciaumabsoluto,
exactamentedemodosimilaràquelequeobservámosa
propósitodaprimeiraideia-base.Tambémaqui,sobpre-
textoderespeitaraindependênciadacriança,elaéexcluí-
dadomundodosadultosparaserartificialmentemantida
noseu,tantoquantoestepodeserdesignadoummundo.
Ora,estaformademantera criançaafastadaé artificial
porque,por umlado,quebraasrelaçõesnaturaisentre
~
J
-?;l."
'$':>1.~.~.
~;"'.""
;~
;; I
"; I
-..1
.~~.j
,
1
I1
!
'!:~ - .
,
I
I
36 HannahArendt
criançaseadultos,asquais,entreoutrascoisas,consistem
emaprendere ensinar,e porque,aomesmotempo,vai
contrao factodea criançaserumserhumanoemplena
evoluçãoc ainfânciaserumafasetransitória,umaprepa-
raçãoparaaidadeadulta. _.
NaAmérica,acrise.a:ctualresultadoreconhecimentodo
carácterdestrutivodestestrêspressupostose doesforço
desesperadoqueestáaserfeitoparareformartodoo siste-
madeeducação,istoé,paraotransformarcompletamente.
Mas,aofazeristo,o queseestáefectivamenteafazer-
comexcepçãodo:;planosrelativosaumaumento!!!!.'X!b.-
todasfacilidadesdeensinodasciênciasfísicasedatecno-
logia- nadamaisédoqueumarestauração:o ensinose-
ráoutravezconduzidocomautoridade;nashorasdeaula
deixar-se-ádejogarefar-se-ádenovotrabalhosério;dar-
-se-ámaiorimportânciaaosconhecimentosprescritospelo
curriculumdoqueàsactividadesextracurriculares.Fala-se
mesmoemtransformaro actualcurriculumdeformação
deprofessores,deformaaqueosprópriosprofessoreste-
nhamqueaprenderalgumacoisaantesdeseremcolocados
juntodascrianças.
Nãosejustificaestarmosaquiaequacionaras.Iefonnas
propostas,aliásaindaemdiscussão,equeapenastêmin-
teresseparaaAmérica.Acrescequenãotenhocapacidade
paradiscutirasquestõesmaistécnicas- aindaque,alon-
goprazo,essaspossamserasasmaisimportantes- acer-
cadecomoreformaroscurriculadaescolaprimáriaese-
cundáriaemtodosospaíses,demodoa adaptá-Iosàsne-
cessidadesinteiramentenovasdomundoactual.Há,po-
rém,umaduplaquestãoqueé paramimimportante:que
aspectosdomundoactualedasuacriseserevelaramefec-
tivamentenacrisedaeducação,istoé,quaissãoasverda-
deirasrazõespelasquais,durantedécadas,foipossívelfa-
'!"Io
...
:~ i
i
.~~t\
A Crise naEducação 37
lare agiremtãoflagrantecontradiçãocomo sensoco-
mum?E, emsegundolugar,quepodemosaprendercom
estacriseacercadaessênciadaeducação,nãonosentido
emquepodemossempreaprendercomosnossoserroso
quenãosedevefazer,masnosentidodareflexãosobreo
. papelquea educação-desempenhaemtodasasciviliza-
ções,ouseja,daobrigaçãoqueaexistênciadecriançasco-
locaa todasassociedadeshumanas.Começaremoscom
estasegundaquestão.
III
Umacrisenaeducaçãosuscitariasempregravesproble-
masmesmosenãofosse;comonocasopresente,oreflexo
deumacrisemuitomaisgeraledainstabilidadedasocie-
dademoderna.E istoporqueaeducaçãoéumadasactivi-
dadesmaiselementarese maisnecessáriasdasociedade
humanaaqualnãopermanecenuncatalcomoémasantes
serenovasemcessarpelonascimento,pelachegadadeno-
vossereshumanos.Acresceque,essesrecém-chegados
nãoatingiramasuamaturidade,estãoaindaemdevir.As-
sim,acriança,objectodaeducação,apresenta-seaoedu-
cadorsobumduploaspecto:elaé novanummundoque
lheéestranho,eelaestáemdevir.Elaé umnovoserhu-
manoeestáacaminhodedevirumserhumano.Estedu-
ploaspectoneméevidentenemseaplicaàsformasdavi-
daanimal.Correspondeaumduplomododerelação- a
relaçãoaomundo,porumlado,e,poroutro,arelaçãoàvi-
da.A criançapartilhao estadodedevircomtodososseres
vivos.Seseconsideraa vidaeasuaevolução,acriançaé
umserhumanoemdevir,talcomoogatinhoéumgatoem
devir.Masacriançasóénovaemrelaçãoaummundoque
.'
38 HannaJ-.Arendt
f
j
1
t
já existiaantesdela,quecontinuarádepoisdasuamortee
noqualeladevepassarasuavida.Seacriançanãofosse
umrecém-chegadoaomundodoshomensmassomente
umacriaturavivaaindanãodesenvolvida,aeducaçãose-
riaunicamenteumadasfunçõesdavida.Então,elacon-
sistiriaapenasn"amanutençãodavidaenaquelastarefasde
ensinoepráticadevidaquetodososanimaisassumemem
relaçãoaosseusfilhos.
No entanto,pelaconcepçãoe pelonascimento,ospais
humanos,nãó:apenasdãovidaaosseusfilhoscomo,ao
mesmotempo,osintroduzemnomundo.Pelaeducação,os
paisassumemporissoumaduplaresponsabilidade- pe-
la vidae pelodesenvolvimentodacriança,mastambém
pelocontinuidadedomundo.Estasduasresponsabilidades
nãocoincidemdemodoalgumepodemmesmoentrarem
conflito.Numcertosentido,a responsabilidadededesen- .~-
volvimentodacriançavaicontraa responsabilidadepelo
mundo:a criançatemnecessidadedeserespecialmente
protegidaecuidadaparaevitarqueo mundoapossades-
truir.Mas,poroutrolado,essemundotemnecessidadede
umaprotecçãoqueo impeçadeserdevastadoe destruído
pelavagaderecém-chegadosque,sobresi,seespalhaaca-
danovageração.
Porqueacriançatemnecessidadedeserprotegidacon-
trao mundo,o seulugartradicionalénoseiodafarmlia.É
láque,aoabrigodequat:"omuros,osadultosregressamca-
dadiadomundoexteriore seunemnasegurançadavida
privada.Essesquatromuros,aoabrigodosquaissedesen-
rolaa vidafamiliar,constituemumaprotecçãocontrao
mundoe,emparticular,contrao aspectopúblicodomun-
do.Delimitamumlugarsegurosemoqualnenhumacoisa
vivapodeprosperar.Istoéválido,nãosomenteparaa vi-
dadacriança,mastambémparaavidaemgeral- porto-
,
1
A C:-:.:~n~'S~:Jcação 39
doo ladoemqueestaéconstantementeexpostaaomundo
semaprotecçãodaintimidadeedasegurançaprivadas,a
suaqualidadevitalédestruída.Nomundopúblico,comum
atodos,aspessoascontam,e tambémcontaa obra,quer
dizer,aobraproduzidapelasnossasmãos,aobrapelaqual
. c~d~um de nóscontribuiparao.nossomundocomum.
Mas,aí,avidaenquant04vidanãoconta.O mundonãose
podeinler~ssarporelaeelatemqueseescondereprote-
gerdomundo.
Tudooquevive,enãoapenasavidavegetativa,emerge
daobscuridade.Pormaisfortequesejaasuatendênciapa-
raseorientarparaaluz,aquiloqueévivonecessitadase-
guranç:ldaobscuridadeparaalcançaramaturidade.Talvez
estasejaarazãopelaqualosfilhosdepaisfamososgeral-
mentesesaemmal..Ace1ebridadepenetranasquatropare-
des,invadeo espaçoprivado,trazendoconsigo,emespe-
cialnascondiçõesactuais,a luz implacáveldodomínio
públicoqueinvadetodaavidaprivadadetalfonnaqueas
criançasdeixamdeterumlugarseguroemquepossam
crescer.5exactamenteestamesmadestruiçãodoespaço
devidarealqueocorrequandoseprocuramtransfonnaras
própriascriançasnumaespéciedemundo.Entreessesgru-
poshomogêneosdecriançasemergeentãoumaespéciede
vidapúblicae, independentementedo factodeessavida
nãoserreale detodaessatentativaserumaespéciede
fraude,pennaneceo factodesastrosodeascrianças- is-
toé, ossereshumanosemprocessodedevir,aindanão
completados- seremforçadas,poressarazão,aexpor-se
àluzdeumaexistênciapública. .
Que2educaçãomoderna,namedidaemquetentaesta-
belecerummundoprópriodascrianças,destróiascondi-
';1
4 Emlatimnooriginal("Iifc qllalife").(N.T.)
40 HannahArendt
'.
çõesnecessáriasparao seudesenvolvimentoecrescimen-
to,éalgoquepareceóbvio.Porém,édefactoestranhoque
esseperniciosoprocedimentopossaseroresultadodaedu-
caçãomoderna,tantomaisqueessaeducaçãodeclaravater
porúnicoobjectivoserviracriançaeserebelavacontraos
métodosJ:lopas~J~49.justatp.enteporelesnãotwn;;u:emna
devidacontaa naturezaprofundae asnecessidadesda
criança.O «séculodacriança»,como.lhepodemoschamar,
pretendiaemanciparacriançae libertá-Iadospadrõesde
vidaretiradosdomundodosadultos.Comofoientão-pós-
sívelqueasmaiselementarescondiçõesdavida,necessá-
riasparao crescimentoe desenvolvimentodacriança,ti-
vessemsidoignoradasou,simplesmente,nãotivessemsi-
do reconhecidascomotal?Comopôdeacontecerquea
criançafosseexpostaàquiloque,maisdoquequalquerou-
tracoisa,caracterizao mundodosadultos,querdizer,o
seuaspectopúblico,eistonoprecisomomentoemquese
tinhatomadoconsciênciadequeoerrodetodaaeducação
passadatinhaconsistidoemconsideraracriançacomona-
damaisqueumpequenoadulto?
A razãoparaesteestranhoestadodecoisasnãotemdi-
rectamenteavercomaeducação.Deveantesserprocura-
danosjuízOS-e'10s-,:>rejuízos-sobre-a-nalurezadavidapri-
vadaedomundopúblico,nasuamútuarelaçãocaracterís-
ticadasociedademodernadesdeo iníciodostemposmo-
dernosequeoseducadoresaceitaramquando- relativa-
mentetarde- decidirammodernizaraeducaçãocomba-
senessasevidências,semsedaremcontadasconsequên-
ciasqueelasteriamsobreavidadascrianças.É particula-
ridadedasociedademoderna,denenhummodoevidente,
consideraravida,querdizer,avidanaterradosindivíduos
e dasfamílias,comoo maiordosbens.É poressarazão
que,aocontráriodetodososséculosprecedentes,asocie-
"1
/~?-
A ü;~ na:2ducação 41
'..
dademodernaemancipoua vida,e todasasactividades
quetêmavercomasuapreservaçãoeenriquecimento,do
segredodaintimidadeparaaexporàluzdomundopúbli-
co.É esteo verdadeirosignificadodaemancipaçãodas
mulherese dostrabalhadores,nãocertamenteenquanto
pessoas,masnamedidaemquepreenchemumafunçãono
processovitaldasociedade.
Ora,osúltimosseresaseremtocadosporesteprocesso
deemancipaçãoforamascriançaseaquiloqueparaasmu-
lhereseparaostrabalhadoressignificouumaverdadeirali-
bertação- porque,nestecaso,nãoera:1penasdetraba-
lhadoresedemulheresquesetratavamastambémdepes-
soasque,dessemodo,podiamlegitimamentepretender
acederaomundopúblico,istoé,passavamatero direito
deo veredeaíseremvistas,defalaredeseremouvidas
- constituiuumabandonoe umatraiçãono casodas
criançasqueestãoaindanumestádioemqueo simples
factodeviverecrescertemmais~mportânciaqueofactor
dapersonalidade.Quantomaiscompletamenteasociedade
modernasuprimeadiferençaencreoqueépúblicoeo que
éprivado,entreoquesósepodedesenvolveràsombraeo
quereclamasermostradoatodosnaplenaluzdomundo
público,ditodeoutromodo,quantomaisasociedademo-
dernaintroduz,entreoprivadoeopúblico,umaesferaso-
cialnaqua1oprivadoétornadopúblicoevice-versa,mais
difíceissetornamascoisasparaascrianças,asquais,por
natureza,necessitamdasegurançadeumabrigoparapo-
deramadurecersemperturbações.
Pormaisgravequesejao desrespeitoquea educação
modernamanifestapelascondiçõesdocrescimentovital,a
verdadeéquetalnãoédemodoalgumintencional.O ob-
jectivocentraldetodososesforçosdaeducaçãomoderna
temsidoobem-estardacriança.Factoquenãopassaaser
.~~.
':'
.":-
1.
I
I
42 HannahArendt
menosverdadeirose,aocontráriodoqueseesperava,os
esforçosfeitosnemsempreconseguirampromoverobem-
-estardacriança.A situaçãoéinteiramentediferentequan-
doaeducaçãonãosedirigeàscriançasmasaosjovens,aos
r~cém-chegadoseestrangeiros,àquelesquenasceramnum
mundojá e~~~tentemasquenãoconh~cem.Essastarefas
sãoentão,primáriaaindaquenãoexclusivamente,dares-
ponsabilidadedasescolas.Sãoasescolasquetêmquever
como ensinoe coma aprendizagem.O fracassoneste
campoéhojeomaisgraveproblemanaAmérica.Procure-
mosvero queéquelheestásubjacente.
Normalmenteénaescolaqueacriançafazasuaprimei-
raentradanomundo.Ora,aesc.olanãoé,demodoalgum,.,
o mundo,nemdevepretendersê-lo.A escolaéantesains-
tituiçãoqueseinterpõeentreodomínioprivadodolareo ;<
mundo,deformaatomarpossívelatransiçãodafamília,~;
paraomundo.Nãoéafaffil1iamasoEstado,querdizer,o ,',
mundopúblico,queimpõeaescolaridade.Dessemodo,re-
lativamenteàcriança,aescolarepresentadecertaformao
mundo,aindaqueo nãosejaverdadeiramente.Nessaeta-
padaeducação,umavezmais,osadultossãoresponsáveis
pelacriança.A suaresponsabilidade,porém,nãoconsiste
tantoenrzelar-para'quea ...TIançacresçaem-boascondi"'
ções,masemasseguraraquiloquenormalmentesedesig-
naporlivredesenvolvimentodassuasqualidadesecarac-
terísticas.Deumpontodevistageraleessencial,éessaa
qualidadeúnicaquedistinguecadaserhumanodetodosos
outros,qualidadeessaquefazcomqueelenãosejaapenas
maisumestrangeirono mundo,masalgumacoisaque
nuncaantestinhaexistido.
Namedidaemqueacriançanãoconheceaindao mun-,;
do,devemosintroduzi-Ianelegradualmente;namedida..
emqueacriançaénova,devemoszelarparaqueesseser
A CrisenaEducação 43
novoamadureça,inserindo-senomundotalcomoeleé.
Noentanto,faceaosjovens,oseducadoresfazemsempre
figuraderepresentantesdeummundodoqual,emboranão
tenhasidoconstruídoporeles,devemassumiraresponsa-
bilidade,mesmoquando,secretaouabertamente,o dese-
jamd~f~rentedoqueé.EstaIesponsabilidade.,nãoé arbi-
trariamenteimpostaaoseducadores.Estáimplícitanofac-
todeosjovensseremintroduzidospelosadultosnummun-
doemperpétuamudança.Qúemserecusaaassumirares-
ponsabilidadedomundonãodeveriaterfilhosnemlhede-
veriaserpermitidoparticiparnasuaeducação.
Nocasodaeducação,aresponsabilidadepelomundoto-
maaformadaautoridade.A autoridadedoeducadore as
competênciasdoprofessornãosãoamesmacoisa.Ainda
quenãohajaautoridadesemumacertacompetência,esta,
pormaiselevadaqueseja,nãopoderájamais,porsisó,en-
gendraraautoridade.A competênciadoprofessorconsiste
emconheceromundoeemsercapazdetransmitiresseco-
nhecimentoaosoutros.Masasuaautoridadefunda-seno
seupapelderesponsávelpelomundo.Faceàcriança,éum
poucocomoseelefosseumrepresentantedoshabitantes
adultosdo mundoquelheapontariaascoisasdizendo:
«Eisaquio nossomundo!»
Todossabemoscomoascoisashojeestãonoquedizres-
peitoà autoridade.Sejaqualfora atitudedecadaumde
nó~relativamenteaesteproblema,éóbvioqueaautorida-
dejánãodesempenhanenhumpapelnavidapúblicaepri-
vada- aviolênciaeo terrorexercidospelospaísestotali-
táriosnadatêma vercomaautoridade- ou,nomelhor
doscasos,desempenhaumpapelaltamenteconstestado.
Noessencial,significaistoquesenãopedejá aninguém,
ousenãoconfiajá a alguém,a responsabilidadedoque
querqueseja.É que,emtodooladoondeaverdadeiraau-
-~
44 HannahArendt
toridadeexistia,elaestavaunidaà responsabilidadepelo
cursodascoisasnomundo.Nessesentido,seseretiraaau-
toridadedavidapolíticaepública,issopodequerersigni-
ficarque,daíemdiante,passaaserexigidaacadaumuma
igualresponsabilidadepelocursodomundo.Mas,issopo-
detamb~mquef.~r.~izerqu~,GonscienteouinçQusciente-
mente,asexigênciasdomundoeasuanecessidadedeor-
demestãoa serrepudiadas;quea responsabilidadepelo
mundoestá,todaela,aserrejeitada,istoé,tantoarespon-
sabilidadededarordenscomoadelhesobedecer.Nãohá
dúvidadeque,namodernaperdadeautoridade,estasin-
tençõesdesempenhamambaso seupapeletêmmuitasve-
zestrabalhadojuntas,deformasimultâneaeinextricável.
Ora,naeducaçãoestaambiguidaderelativamenteà ac-
tua!perdadeautoridadenãopodeexistir.As criançasnão
podemrecusaraautoridadedoseducadores,comoseesti-
vessemoprimidasporumamaioriaadulta- aindaque,
efectivamente,apráticaeducacionalmodernatenhatenta-
do,deformaabsurda,lidarcomascriançascomosesetra-
tassedeumaminoriaoprimidaquenecessitadeserliber-
tada.Dizerqueos adultosabandonarama autoridadesó
podeportantosignificarumacoisa:queosadultosserecu-
samaassumiraresponsabilidadepelomundoemqueco-
locaramascrianças.
Háevidentementeumaestreitaconexãoentreaperdade
autoridadenavidapúblicae privadae.o seudesapareci-
mentonosdomíniospré-políticosdafamíliae daescola.
Quantomais,naesferapública,adesconfiançanaautori-
dadesetomaradical,maiorénaturalmenteaprobabilida-
dedequeaesferaprivadapennaneçaimune.A istosejun-
taumfactoadicional- eprovavelmentedecisivo.O fac-
todeque,desdetemposimemoriais,fornoshabituados,pe-
lanossatradiçãodepensamentopolítico,averaautorida-
A Crise naEducação 45
,~
dedospaissobreosfilhosedosprofessoressobreosalu-
noscomoomodeloparacompreenderaautoridadepolíti-
ca.Ora,éprecisamentenessemodelo,cujasraízessees-
tendematéPlatãoeAristóteles,queresideaorigemdaex-
traordináriaambiguidadedoconceitodeautoridadeempo-
,.'lítica.Emprimeirolúgat;umtalconceitõ"'tempor-báse
umasuperioridadeabsoluta,superioridadeessaquenunca
podeexistirentreadultoseque,dopontodevistadadig-
nidadehumana,nuncadeveriaexistir.Emsegun€lolugar,
essemodeloinfantildeautoridadeestáfundadonumasu-
perioridadepuramentetemporCiio que,portanto,o toma
autocontraditórioseaplicadoarelaçõesque,pornatureza,
nãosãotemporais,comoé o casodasrelaçõesentrego-
vernantese governados.Assim,a naturezadestaquestão
- querdizer,tantodaprésentecrisedeautoridadecomo
donossopensamentopolíticotradicional- implicaquea
perdadeautoridadequesedesencadeounaesferapolítica
nãoalastreparaa esferaprivada.Nãoé certamentepor
acasoqueolugarnoqualaautoridadepolíticafoipelapri-
meiravezpostaemcausa,istoé,aAmérica,sejao lugar
ondeamodernacrisedaeducaçãosefaçasentirmaisfor-
temente.
Naverdade,estaperdageraldaautoridadedificilmente
poderiaencontrarumaexpressãomaisradicaldoqueno
seualastramentoparaa esferapré-política,instânciana
qualaautoridadepareceserditadapelapróprianatureza,
independentedetodasasmudançashistóricasecondicio-
nalismospolíticos.Poroutrolado,aformamaisclaraque
ohomemmodernotemaoseudisporparamanifestaroseu
descontentamentoemrelaçãoaomundoeo seudesagrado
relativamenteàscoisastalcomoelassãoconsistenarecu-
sade,relativamenteaosseusfilhos,assumiraresponsabi-
lidadepelomundo.Nofundo,écomoseospaisdissessem
"iI~.
'--.
~~a.~'.;z;~~~""...~z.
46 HannahArendt
diariamenteaosseusfilhos:«Nestemundo,nemmesmo
nósestamossegurosemnossacasa.Comodevemosmo-
ver-nosnomundo,quedevemossaber,quecompetências
devemosadquirir,sãomistériostambémparanós.Vocês
devempoisprocurardesenvencilhar-seo melhorpossível
-porvóspróprios:''Emcircunstânciaalgumàifospodempe-
dircontas.Somosinocenteselavamosasmãosquantoao
vossodestino.»
Comoéóbvio,estaatitudenadatemavercomo desejo
revolucionáriodeumanovaordemnomundo- Novus
OrdoSpcloru11l- que,emtempos,animouaAmérica.É
antesumsintomadessaindiferençamodernarelativamen-
teaomundoquesepodeobservardiariamenteemtodaa
partemasque,deformaespecialmenteradicaledesespe-
rada,semanifestanasactuaiscondiçõesdanossasocieda-, .~
dedemassas.E verdadequenãofoi apenasnaAmérica
queasmodernasexperiênciaseducativasatingiramdimen-
sõesverdadeiramenterevolucionárias,o que,atécerto
ponto,veioaumentaradificuldadedereconhecerasitua-
çãocomclarezaeestánaorigemdeumcertograudecon-
fusãonadiscussãodoproblema.É que,contrariamentea
todosos comportamentosdetiporevolucionário,-.hLum~~,-
factoquepermaneceindiscutível:nuncaa América,en-
quantorealmenteanimadaporesseespírito,sonhouiniciar
a novaordemporintermédiodaeducaçãomantendo-se,
pelocontrário,conservadoranessamatéria. -
Evitemososmal-entendidos:pensoqueoconservadoris-
mo,tomadoenquantoconservação,fazpartedaessência
mesmadaactividadeeducativacujatarefaé sempreacari-
nhareprotegeralgumacoisa- acriançacontrao mundo,
omundocontraacriança,o novocontraoantigo,o antigo
contrao novo.A própriaresponsabilidadealargadapelo
mundoqueaeducaçãoassumeimplica,comoéóbvio,uma
A Crise naEducação 47
atitudeconservadora.Mas,istosóévalidoparao dOllÚnio
daeducação,oumelhor,paraasrelaçõesentrecrescidose
criançase,demodoalgumparao dOITÚniopolítico,onde
agimossempreentreecomadultosouiguais.Empolítica,
aatitudeconservadora- queaceitao mundotalCOlIlOele-
é-eúiiicaniênte'lutaporprese~~-~--;tatusquo5- .sópode
levaràdestruição.E istoporque,nassuasgrandeslinhas
comonosseusdetalhes,o mundoestáirrevogavelmente
condenadoàacçãodestrutivadotempo,amenosqueoshu-
manosestejamdeterminadosaintervir,a alterar,acriaro
novo.As palavrasdeHamlet,«otempoestáforadosgon-
zos.Oh!sortemaldita,quenosfeznascerpararestabelero
seucurso»,sãoverdadeirasparacadanovageração,ainda
que,desdeoiníciodonoss~século,porventuratenhamad-
quiridoumaaindavalidademaiordoqueanteriormente.
Nofundo,estamossempreaeducarparaummundoque
já está,ouestáa ficar,foradosseusgonzos.Estaé a si-
tuaçãobásicadohomem.O mundoécriadopormãoshu-
manasparaservirdecasaaoshumanosduranteumtempo
muitolimitado.Porqueo mundoéfeitopormortais,eleé
perecível.Porqueosseushabitantesestãocontinuamentea
mudar,omundocvueoriscodesetomartãomortalcomo
eles.Parapreservaromundocontraamortalidadedosseus
criadorese habitantes,é necessárioconstantemente
restabelecê-Iodenovo.O problemaé sabercomoeducar
deformaa queessarecolocaçãocontinuea serpossível,
aindaque,deformaabsoluta,nuncapossaserassegurada.
A nossaesperançaresidesemprenanovidadequecadano-
vageraçãotrazconsigo.Mas,precisamenteporquesónis-
sopodemosbasearanossaesperança,destruímostudose
tentarmoscontrolaro novoquenós,osvelhos,pretende-
'..-
5 Emlatimnooriginal.(N.T.)
.~'
~....
48 HannahArendt
-...
mosdessemododecidircomodeveráser.Éjustamentepa-
rapreservaro queénovoerevolucionárioemcadacrian-
çaquea educaçãodeveserconservadora.Eladeveprote-
gera novidadee introduzi-Iacomoumacoisanovanum
mundovelho,mundoque,pormaisrevolucionáriasquese-
jamassuas-acções,-doponto-devistadageraçãoseguinte,
ésempredemasiadovelhoeestásempredemasiadopróxi-
modadestruição.
-~
IV
A verdadeiradificuldadedaeducaçãomodernareside
poisnofactode,paraládetodasasconsideraçõesdamo-
dasobreumnovoconservadorismo,serhojeextremamen-
tedifícilgarantiressemínimodeconservaçãoedeatitude
deconservaçãosemaqualaeducaçãonãoé simplesmen-
tepossível.E há~oasrazõesparaisso.A crisedeautori-
dadenaeducaçãoestáintimamenteligadacomacriseda
tradição,istoé,comacrisedanossaatitudefaceatudoo
queé passado.Parao educador,esteaspectoé especial-
mentedifícilumavezqueéaelequecompeteestabelecer
amediaçãoentreo antigoeo novo,razãopelaqualasua
profissãoexigedesi umextraordináriorespeitopelopas-
sado.Ao longodosséculos,istoé,duranteoperíododaci-
vilizaçãoromano-cristã,o educadornuncatevenecessida-
dedetomarconsciênciadestasuaqualidadeespecial.A re-
verênciarelativamenteaopassadoeraparteessencialda
estruturaromanadepensamento,estruturaessaqueo cris-
tianismonãoaiterounemsuprimiuantesestabeleceusobre
diferentesfundamentos.
Pertenciaàessênciadaatituderomana(aindaqueomes-
mosenãopossadizerdetodasascivilizaçõesousequerda
A CrisenaEducação 49
civilizaçãoocidentalnoseuconjunto)consideraro passa-
doenquant06passadocomoummodelo;emqualquerca-
so,tomarosantepassadoscomoexemplosorientadorespa-
raosseusdescendentes;acreditarquetodaagrandezare-
sidenoquefoie,portanto,queavelhiceéaidadedamaior
realizaçãohumana;que()~elho,namedidaemque~é,já.
quaseumantepassado,podeservircomomodeloparaos
vivos.Ora,tudoistoestáemcontradição,nãoapenascom
o nossomundoecomostemposmodernosapartirdoRe-
nascimento,mastambém,porexemplo,comaatitudegre-
garelativamenteàvida.QuandoGoethedizqueenvelhe-
ceré«afastar-segradualmentedomundodasaparências»,
o seucomentárioestáimbuídodoespíritodosGregos,pa-
raquemsereaparecercoincidem.A atituderomanaseria
a dequeé precisamenteaoenvelhecere aodesaparecer
lentamentedacomunidadedosmortaisqueo homemal-
cançaasuaformadesermaiscaracterística,mesmose,em
relaçãoaomundodasaparências,estiveremprocessode
desaparecimento.É que,paraoespíritoromano,sóentãoo
homemseaproximadessemododeexistênciaemquepo-
depassaraserumaautoridadeparaoutros.
Como imperturbadofundodeumataltradição,naqual
a educaçãotemumafunçãopolítica(o queconstituium
casoúnico),édefactorelativamentefácilfazero quede-
veserfeitoemmatériadeeducaçãosemsequerpararpara
reflectirsobreo queseestárealmentea.fazer.O ethoses-
pecíficodo princípioeducativoestáentãoemcompleto
acordocomasconvicçõeséticasemoraisdasociedadeno
seuconjunto.Educar,naspalavrasdePolíbio,é apenas
«pennitiraalguémserdignodosseusantepassados»,tare-
fanaqualoeducadorpodeserum«parnadiscussão»eum
o
;
I
I
I
\"~
6 Emlatimnooriginal("pastquapast").(N.T.) ,
,U
,li
I'
I~ '. 50 HannahArendt
.
J
1
t
«parnotrabalho»porque,tambémele,aindaquenumní-
veldiferente,passoua suavidacomosolhospostosno
passado.Camaradagemeautoridadesãoassim,nestecaso,
doisladosdeumamesmarealidade.eaautoridadedopro-
fessorestáfirmementefundadanaautoridademaisampla
,_.,....-"dopassadoenquantotal.Hoje,noentanto;jánãoestamos
nestasituação.Fazporissopoucosentidoagircomose
aindaaíestivéssemos,oucomosenostivéssemosafasta-"
do,porassimdizer,acidentalmente,dadirecçã~.correctae
fôssemoslivresdeaelaregressaremqualquer"momento.
Istosignificaque,nomundomoderno,ondequerquear.n-
setenhaeclodido~nãopodemoscontentar-noscomconti-
nuarousimplesmentevoltaratrás.Um talretrocessosó
nosfariaregressaràsituaçãoemqueacriseemergiu.Além
dissoesseretrocessoseriasimplesmenteumarepetição-
aindaquetalvezdiferentenaforma- umavezqueonú-
merodepossíveisnoçõesabsurdase caprichosasquepo-
demserapresentadascomoaúltimapalavraemciênciaé
ilimitado.Poroutrolado,asimpleseirreflectidaperserve-
rança,queractuenosentidodacnse,queradiraà rotina
queacreditaingenuamentequea crisenãovaifazersub-
mergirasuaesferaparticulardevida,apenaspode,porque
serendeaocursodotempo,levarà ruína.Maisprecisa-
mente,apenaspodefazercrescera estranhezafaceao
mundoquenosameçajá detodososlados.A reflexãoso-
breosprincípiosdaeducaçãodeveteremcontaestepro-
cessodeestranhezafaceaomundo.Pode-semesmoadmi-
tirqueseestáaquifaceaumprocessoautomático,desde
quesenãoesqueçaqueo pensamentoe aacçãohumanos
têmo poderdeinterromperefazerpararesteprocesso.
No mundomoderno,o problemadaeducaçãoresulta
poisdofactode,pelasuapróprianatureza,aeducaçãonão
poderfazereconomianemdaautoridadenemdatradição,
=""
A Crise naEducação 51
sendoque,noentanto,essamesmaeducaçãosedeveefec-
tuarnummundoquedeixoudeserestruturadopelaautori-
dadeeunidopelatradição.Daquiresultaque,nãoapenas
osprofessorese oseducadoresmastambémcadaumde
nós,namedidaemquevivemosemconjuntonumúnico
mundocom-as-criançaseos-jovens,-devemosadoptarrela-
tivamenteaelesumaatituderadicalmentediferentedaque-
la quetemosunscomosoutros.O domíniodaeducação
deveserradicalmenteseparadodosoutrosdOlIÚnios,em
especialdavidapolíticapública.Dessaforma,podemos
aplicarexclusivamenteaodOlIÚniodaeducaçãoo concei-
todeautoridadeeaatituderelativamenteaopassadoque
lhesãoapropriadasmasque,nomundodosadultos,dei-
xaramdetervalidadegeralejá nãopodempretendervol-
taratê-Ia.
Naprática,aprimeiraconsequênciaquedaquidecorreé
acompreensãoclaradequeafunçãodaescolaéensinaràs
criançaso queomundoéenãoiniciá-Iasnaartedeviver.
Umavezqueo mundoévelho,sempremaisvelhodoque
nós,aprenderimplica,inevitavelmente,voltar-separao
passado,semteremcontaquantodanossavidaserácon-
sagradaaopresente.Em segundolugar,háqueperceber
queo significadodalinhatraçadaentrecriançaseadultos
équenãoépossíveleducaradultosequenãosedevemtra-
tarascriançascomosefossemadultos.Porém,emcir-
cunstânciaalgumasedevepermitirqueestalinhasetrans-
formenummuroqueisoleascriançasdacomunidadedos
adultos,comoseelasnãovivessemnomesmomundoeco-
moseainfânciafosseumestadohumanoautónomo,capaz
deviversegundoassuasprópriasleis.Nãoháumaregra
geralque,emcadacaso,permitadeterminaro momento
emquedesaparecealinhadedemarcaçãoentreainfância
e a adultez.Essalinhavariamuitasvezesemfunçãoda
i
.:1
.\!
;!'lfir
"
52 HannahÁrendt
..
idade,depaísparapaís,deumacivilizaçãoparaoutrae
mesmodeumparaoutroindivíduo.Mas,diversamentedo
queacontececomaaprendizagem,aeducaçãodevepoder
terumtennoprevisível.Na nossacivilização,essemo-
mentofinalcoincide,namaiorpartedoscasos,comaaqui-
siçãodeumprimeiro.diplomadegrausupeoot(maisdo
quecomumdiplomadefimdosestudossecundários),uma
vezqueapreparaçãoparaayidaprofissionalnasuniversi-
dadese institutostécnicos,aindaquetendoa vercoma
educação,énoentantoumaespéciedeespecialização.En-
quantotal,elanãoaspirajá a intr:"0duzirojovemnomun-
docomoumtodo,masapenasnumsectorparticulare"li-
mitadodomundo.Nãoé possíveleducarsemaomesmo
tempoensinar:umaeducaçãosemensinoévaziaedege- .~:"
neracomgrandefacilidadenumaretóricaemocionalemo- .?!
raloMaspodemosfacilmenteensinarsemeducarepode-.-s~
moscontinuaraaprenderatéaofimdosnossosdiassem :~
que,poressarazão,nostomemosmaiseducados.Tudois-
tosãodetalhesquedevemserdeixadosàatençãodoses-
pecialistasedospedagogos.
O quenosdizrespeitoatodose,consequentemente,não
podeserconfiadoàpedagogiaenquantociênciaespeciali-
zada,éarelaçãoentreadultosecriançasemgeralou,em
termosaindamaisgeraiseexactos,anossarelaçãocomo
factodanatalidade:o factodequetodoschegamosao
mundopelonas~imentoequeépelonascimentoqueeste
mundoconstantementeserenova.A educaçãoé assimo
pontoemquesedecideseseamasuficientementeo mun-
doparaassumirresponsabilidadeporelee,maisainda,pa-
raosalvardaruínaqueseriainevitávelsemarenovação,'.,.....
semachegadadosnovosedosjovens.A educaçãoétam- .,'E;
bémo lugaremquesedecideseseamamsuficientemente
asnossascriançasparanãoasexpulsardonossomundo
';';-.
r
'.:~
.~.
i.
A CrisenaEducação 53
deixando-asentreguesasipróprias,paranãolhesretirara
possibilidadederealizarqualquercoisadenovo,qualquer
coisaquenãotínhamosprevisto,para,aoinvés,antecipa-
damenteas.prepararparaa tarefade renovaçãodeum
mundocomum.
~-.".-
. . ..
'"
II~
:"

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Outros materiais