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Referência: SUXBERGER, A. H. G. A superação da visão abstrata do sistema de justiça criminal a partir dos direitos humanos. In: MANENTE, Ruben Rockembach; DIAS, Jefferson Aparecido; SUXBERGER, A. H. G. (org.). Teoria crítica dos direitos humanos: das lutas aos direitos.1 ed. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2011, p. 97-126. A superação da visão abstrata do sistema de justiça criminal a partir dos direitos humanos Antonio Henrique Graciano Suxberger RESUMO A distância existente entre as prescrições normativas e a realidade do sistema de justiça criminal, no que toca à efetividade dos direitos humanos, reclama uma abordagem de cunho crítico, comprometida com a visibilização do contexto, com a desestabilização da situação vigente e com a modificação do campo penal. Este é marcado por um altíssimo grau de autonomia e de refração e retradução da realidade social, daí o seu isolamento do contexto em que se insere. A compreensão do campo penal é construída a partir da consideração de suas características, da situação dos agentes que o integram e das trajetórias desses mesmos agentes. É a tensão existente entre as posições e as disposições ocupadas pelos agentes realizadores do sistema de justiça criminal que define o dinamismo do campo penal. Os direitos humanos constituem a prática de disposições críticas em relação ao conjunto de posições desiguais que as pessoas e grupos ostentam tanto em nível local quanto em nível global. O campo jurídico-penal reforma as complexidades jurídica e empírica da temática dos direitos humanos. É a reconstrução da categoria política criminal que propiciará uma aproximação teórica hábil a permitir a visibilização do contexto subjacente ao sistema de justiça criminal. PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; sistema de justiça criminal; política criminal; campo social; teoria crítica. DIREITOS HUMANOS NO CAMPO PENAL: A CRUEL DISTÂNCIA ENTRE PRESCRIÇÕES NORMATIVAS E A REALIDADE SOCIAL A temática dos direitos humanos no campo penal é geralmente identificada por discursos que reclamam a efetividade de maiores garantias de cunho individual aos indivíduos O autor é Promotor de Justiça no Distrito Federal; Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (2005); Máster em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha, Espanha (2008); Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha, Espanha (2009). Sócio-fundador do Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento (IDHID). submetidos ao sistema de justiça criminal. Paradoxalmente, em que pese a ampla gama de diplomas normativos e de produções acadêmicas que registram, desenvolvem e sustentam cada vez mais um maior número de direitos e liberdades do indivíduo em face da atuação estatal de controle social, vê-se a proliferação de um sem número de diplomas legais criminalizadores e de práticas sociais que pouco se ocupam das razões pelas quais se legitima a resposta penal do Estado. Além dessa percepção, somem-se a cruel distância existente entre o conteúdo das prescrições normativas de caráter penal (materiais ou processuais) e a realidade experimentada por aqueles selecionados pelos filtros do sistema de justiça criminal, que evidencia, de um lado, um quadro de impunidade em favor daqueles mais beneficiados pelas desigualdades sociais, como ocorre no contexto brasileiro, e, de outro lado, as condições desumanas e frustradoras das razões que justificaram a imposição de reprimendas àqueles condenados pela prática de crimes. Vê-se a ausência de um aprofundamento das razões que justificam a intervenção do Estado no cumprimento de sua obrigação de garantir segurança, que hoje substancia um bem de acesso aprioristicamente hierarquizado e não igualitário pela maior parte da população brasileira na atualidade, ou mesmo de assegurar um acesso à prestação jurisdicional de natureza penal com esses mesmos reclamos igualitários. De plano, quando são apresentados os problemas e as misérias do funcionamento do sistema de justiça criminal, os operadores do Direito em geral são céleres em propor mudanças que se referem a alterações de preceitos normativos. Mas será essa solução hábil a ensejar os frutos dessa preocupação de dignidade no acesso aos bens manuseados pelo sistema de justiça criminal? A urgência na apresentação das respostas tem dado azo a propostas irrefletidas e descompromissadas com alguns marcos éticos que deveriam orientar a ação dos agentes sociais preocupados com a realização e efetividade dos direitos humanos. A abordagem dos temas que envolvem o sistema de justiça criminal carece de maior reflexão, de maior maturação entre soluções a serem apresentadas e as devidas reflexões sobre elas, para evitar a tomada de posturas supostamente comprometidas com uma ação de caráter emancipatório, mas que acabe por desvelar uma prática de natureza hegemônica e regulatória. Embora se refira ao fenômeno poliédrico da violência, Slavoj Žižek traz advertência perfeitamente aplicável também aos temas que se referem à política criminal e ao funcionamento do sistema de justiça criminal (2009, p. 16): Un análisis crítico de la actual constelación global – que no ofrece soluciones claras, ningún consejo “práctico” sobre qué hacer, y no señala luz alguna al final del túnel, pues uno es consciente de que esa luz podría pertenecer a un tren a punto de arrollarnos – que a menudo va seguido de un reproche: “¿Queieres decir que no deberíamos hacer nada? ¿Simplemente sentarnos y esperar?”. Deberíamos tener el coraje de responder: “¡Sí, exactamente eso!”. Hay situaciones en que lo único verdaderamente “práctico” que cabe hacer es resistir la tentación de implicarse y “esperar y ver” para hacer un análisis paciente y crítico.1 A valer, a superação do “abismo” entre as prescrições normativas e a dura realidade do sistema de justiça criminal passa, necessariamente, pelo fortalecimento de uma abordagem teórica comprometida com mudanças sociais e a justificação de práticas sociais emancipatórias já existentes ou a serem criadas, qual seja, a teoria crítica dos direitos humanos tal como desenvolvida por Joaquín Herrera Flores. Afirmando a necessidade de visibilização dos contextos subjacentes à realidade normativa e à natureza dos direitos como produtos culturais, Herrera apresenta uma proposta metodológica comprometida com a realização da dignidade humana num sentido concreto, material, efetivo. Por meio da repulsa a soluções que reduzam os problemas sociais ao âmbito jurídico – não se nega o jurídico; mas cumpre reconhecer a necessidade de construir soluções que não sejam só jurídicas para assegurar a efetividade das prescrições normativas –, Herrera reivindica a formulação de propostas hábeis a fomentar o exercício das potencialidades humanas, bem assim diminuir a distância existente entre as prescrições normativas postas como garantias dos direitos humanos e a realidade que insiste em negá-los. Em verdade, um diálogo entre o âmbito estritamente jurídico de abordagem dos problemas penais e a rica gama de conhecimentos produzidos e empiricamente verificáveis fora da visão jurídica contribuiria decisivamente a evitar falsas expectativas e reduziria a exploração da resposta penal como panaceia, máxime em países que enfrentam contextos de crua desigualdade social como o Brasil. O compromisso de uma teoria crítica é o de tomada de consciência, de modificação da realidade. Nesse sentido, inserir-se num marco teórico crítico exige do investigador a assunção desse compromisso de mudança. Exige, igualmente, daquele que trava contato com os frutos desse esforço intelectual a ciência desse compromisso e dessa orientação finalisticamente dirigida à construção de propostas, meios, instrumentos destinados 1 Tradução: “Uma análise crítica do atual contexto global – que não oferece soluções claras nem conselho ‘prático’ sobre o que fazer, tampouco sinaliza luz alguma no final do túnel, vez que é consciente de que essa luz poderia pertencer a um trem na iminência de nos atropelar – amiúde é acompanhada de uma censura: ‘Quer dizer que não deveríamos fazer nada? Simplesmente sentar-nos e esperar?’. Deveríamos ter a coragem de responder: ‘Sim, exatamente isso!’. Há situações em que o único verdadeiramente ‘prático’ que cabe fazer é resistir à tentação de envolver-se e ‘esperar e ver’ para fazer uma análise paciente e crítica”. a uma maior participação em práticas insurgentes voltadas às necessidades humanas essenciais e às interações sociais das pessoas envolvidas. No campo penal, construir criticamente implica desenvolver um instrumental pedagógico operante, isto é, que atue tanto no plano teórico como no plano prático. Vale destacar que esses planos – teórico e prático – não são cindíveis; ao revés, confluem entre si, porque o primeiro só deve justificar-se na medida em que disser respeito ao segundo. Em outras palavras, na esteira do que destaca o próprio Herrera Flores, se a teoria tradicionalmente construída sobre os direitos humanos parece sobrepor-se aos próprios fatos, a preocupação maior desse esforço acadêmico centra-se na elaboração de ferramentas teóricas destinadas a justificar práticas sociais de caráter emancipatório. E, se tais ferramentas não se revelarem úteis à modificação da realidade, pior para a teoria! (HERRERA, 2008, p. 86). Já passa da hora de assumir a necessidade de um maior diálogo entre, de um lado, a dogmática jurídico-penal e as construções atinentes à política criminal, em particular, e, de outro lado, a teoria crítica dos direitos humanos. Isso porque o campo penal é a feição mais dura das abstrações e essencialismos, ao entender como suficientes construções de uma legitimação penal tão-somente derivada dos fins da pena, que são cotidianamente ignorados tanto na elaboração das respostas penais quanto na concretização das respostas penais já existentes. Por que razão se discutem temas como participação popular, práticas de empoderamento e ações políticas emancipatórias em quase todos os campos do direito público e, quando se cuida do campo penal, parece que tais temas devem restar alijados, como se o funcionamento do sistema de justiça criminal fosse reservado a doutos juristas, hábeis a construir soluções que conformem a integral realidade humana? Uma teoria crítica dos direitos humanos para o campo penal implica assumir a necessidade de melhor visibilizá-lo a fim de colocá-lo em crise justamente por meio da contextualização de suas práticas. Mas não basta desconstruir as bases do sistema de justiça criminal; aliás, pensar que tal desconstrução por si só é suficiente materializa o cada vez mais usual equívoco em que incorrem as teorias deslegitimadoras do sistema penal. É preciso avançar e desestabilizar o campo penal, para pôr em evidência a necessidade de uma nova visão, que parta de critérios de valor diversos dos tradicionalmente apontados como orientadores do sistema e, na prática, apenas funcionais para um direito penal de cunho seletivo e repressor. A essa desestabilização, por conta do compromisso de mudança social que movimenta a teoria crítica, deve-se seguir uma transformação, a ser alcançada por meio da proposição e assunção de critérios emancipadores que sejam idôneos a permitir a articulação entre os agentes sociais implicados nos processos de funcionamento do sistema de justiça criminal. Trabalhar a política criminal no marco da teoria crítica dos direitos humanos, portanto, significa assumir as funções das construções teóricas de política criminal. A primeira função é de caráter epistêmico e consiste justamente nessa tarefa de visibilizar as relações havidas do agente social consigo, entre os demais agentes e deles em face da natureza. Parece ser essa a única possibilidade de fugir da armadilha comum no campo penal: as soluções alvitradas para os problemas usais recaem sempre na fórmula “mais do mesmo”. Se o sistema de justiça criminal é seletivo e refoge das razões que o justificam, incrementar simplesmente as agências envolvidas em seu funcionamento não parece ser a solução única para questões de maior complexidade. A segunda função é de natureza ética e, por conseguinte, orienta-se a desestabilizar o próprio campo de incidência dessa política criminal. Isso se faz por meio da criação ou mesmo recriação dos valores envolvidos. Não há dúvida de que o sistema de justiça criminal, por seu arcabouço jurídico, tem por finalidade o resguardo da dignidade humana. Mas a que dignidade se refere? Será que tal conceito não restou tão esvaziado a ponto de admitir quase tudo em sua fórmula abstrata? É preciso apresentar um critério que torne possível concretizar essa dignidade humana, para efetivamente sopesar as práticas e propostas que tenham por destinação potencializar capacidades humanas. A terceira função do pensamento político-criminal num marco crítico é política e se refere justamente à tarefa de transformação, a ser alcançada por meio da abertura de espaços para novos atores sociais e políticos ou, no caso dos já existentes, de modificação das disposições por eles ocupadas. É preciso criar singularidades no campo penal, e tal papel deve ser instrumentalizado por propostas e instrumentos de política criminal de caráter emancipatório. O PORQUÊ DE UMA ABORDAGEM CRÍTICA NO CAMPO PENAL Apesar da sofisticação dogmática das ciências criminais no Brasil e das prescrições veiculadas nos avançadíssimos diplomas normativos brasileiros, a política social brasileira, o diálogo democrático para a solução de conflitos e a preocupação com os verdadeiros problemas sociais seguem sendo substituídos cada vez mais por um discurso alarmista sobre as ameaças advindas da criminalidade. Preocupações democráticas e os avanços duramente conquistados que permitem afirmar o modelo de Estado social cedem lugar ao discurso fácil e tentador de um Estado penal.2 O resultado disso, além do alijamento do componente político nas discussões a respeito do campo penal, é uma dualidade das manifestações que ocupam hoje um espaço que seria de incumbência da política criminal. De um lado, os partidários da ampliação da repressão penal tentam justificar esse crescimento por meio de uma afirmada necessidade de combater a criminalidade e de estabelecer uma reação oficial a manifestações de desvios “causados”3 por fatores biológicos, psicológicos ou mesmo sociais. De outro lado, há quem reconheça a preponderância dos fatores sociais da criminalidade e, a partir disso, propõe estratégias que se dirigem à melhoria da situação social das classes mais pobres, e não centradas no combate aos próprios criminosos.4 A par disso, a temática dos direitos humanos frequentemente é associada a posições utópicas, sonhadoras ou descompromissadas com um ideal de segurança coletiva. O discurso identificado com os direitos humanos, em geral, é encarado como um discurso de abolição ou laxismo penal, porque centrado na defesa intransigente de liberdades e garantias 2 A expressão “Estado penal” é aqui tomada de Wacquant, quando descreve o que chama de “febre neoliberal” nos Estados Unidos e em diversos países europeus, bem como a difusão de uma política pública característica do “Estado mínimo”: o programa “Tolerância Zero” da cidade de Nova Iorque. A propósito da redução do Estado Social e consequente aumento do Estado Penal, diz: “Pois à atrofia deliberada do Estado Social corresponde a hipertrofia distópica do Estado Penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro” (2001, p. 80). Ainda que se refira a países centrais – Estados Unidos e países europeus – a assertiva de Wacquant é perfeitamente aplicável ao Brasil; aliás, no Brasil, as consequências de tal constatação são ainda mais duras, porque a situação do sistema prisional – superlotação, falta de vagas, instalações antigas, ausência de programas de reintegração social etc. – dá tratamento a seres humanos que os assemelha a animais. Em outras palavras, mesmo o Brasil, que nunca passou por uma experiência de Estado de bem-estar social, vê agigantar-se essa figura fixada por Wacquant como “Estado penal”. 3 É nítido o viés etiológico da assertiva, reproduzida aqui justamente para salientar o que se verá mais adiante, isto é, a insistente reprodução de um modelo teórico de criminologia há muito superado. 4 Ainda que por um discurso de sofisticado cariz social, aqui também há a reprodução desavisada de um modelo etiológico de abordagem criminológica, na medida em que veicula a ideia de que a criminalidade se centra nos pobres. Logo, se superada a pobreza, superado estaria o fenômeno criminoso. individuais. Quando se cuida das discussões que tocam a intervenção penal do Estado, tal percepção é ainda mais agravada, como se a luta pela concretização dos direitos humanos fosse conflitante com as razões que justificam a intervenção do Estado por meio da repressão penal. É em razão dessa abissal distância entre duas temáticas – direitos humanos e política criminal – que se faz necessária uma abordagem diferenciada das questões que tocam a intervenção penal do Estado. Mais que propostas que se reduzam a modificações legislativas, o tema reclama contribuição que respeite a complexidade das questões envolvidas e, principalmente, assuma um compromisso de realização material da dignidade humana. Para a consecução dessa tarefa, parece evidente que, em lugar das vazias construções estritamente jurídicas e dogmáticas – as quais, diga-se desde logo, possuem sua importância e valor, mas não têm aptidão de modificar por si sós a realidade, se consideradas isoladamente –, faz-se necessária uma abordagem com vocação mundana, impura, contaminada pelo contexto e pela dura realidade do sistema de justiça criminal. A utilização dessa abordagem guarda referência ao pensamento de Joaquín Herrera Flores (2000, p. 21 et seq.; 2008, p. 42 et seq.), para quem, ao se pôr em crise um objeto de estudo, especialmente um produto cultural, é preciso afastar todo tipo de metafísica e ontologia transcendentais, isto é, é preciso mundanizar o objeto de estudo. Todo fenômeno jurídico – e assim o é também para o fenômeno criminoso – está perpetrado de interesses ideológicos e não pode ser entendido à margem de seu fundo cultural. Essa realidade é muito mais presente quando se trata de temas próprios das ciências criminais. É essa tendência “descontextualizante” que permite ao direito ser objeto exclusivamente de análises lógico-formais e submetido a um fechamento epistemológico, autopoiético, como se suas normas estivessem separadas e isoladas dos contextos e interesses que necessariamente são subjacentes a toda produção normativa. Rejeitar abstrações ou essencialismos parece ser o único meio possível a evitar que o operador do sistema de justiça criminal exerça um papel descompromissado com a concretização da dignidade humana e dos direitos humanos. Em outras palavras, ou se constroem ferramentas para visibilizar o contexto subjacente ao funcionamento desse sistema, para comprometer a ordem que mantém essa realidade desigual (desestabilizar) e para modificar essa realidade social (transformar), ou os agentes envolvidos com esse mesmo sistema de justiça criminal permanecerão como meros reprodutores de uma ordem hegemônica e cultora de desigualdades. Uma abordagem crítica dos direitos humanos, que fixa por pressuposto a superação de uma visão abstrata, revela-se ainda mais necessária quando se refere ao campo penal. A abordagem tradicional dos direitos humanos, num discurso reproduzido pelas contribuições estritamente dogmáticas que cuidam do sistema de justiça criminal, peca justamente por considerá-los alijados de seu contexto (econômico, social, político) quando, na verdade, é justamente o contexto que informa uma visualização mais concreta das tramas sociais que são pano de fundo dos direitos humanos. Utiliza-se a expressão campo na presente investigação de acordo com a acepção desenvolvida por Pierre Bourdieu. A contribuição do pensador francês revela-se útil especialmente quando se toma o direito como produto cultural. Bourdieu afirma que, para compreender uma produção cultural (literatura, ciência, religião, direito, etc.), não basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se ao contexto social contentando-se em estabelecer uma relação direta entre o texto e o contexto. Satisfazer-se com isso implicaria o que ele chama de “erro de curto-circuito”. Entre o texto e o contexto existe um universo intermediário que Bourdieu chama de campo literário, artístico, jurídico, científico – a denominação varia conforme o segmento da realidade visualizado –, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura, a ciência, o direito, etc. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não são as mesmas, jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada. E uma das grandes questões que surgirão a propósito dos campos (ou dos subcampos) científicos, isso que se chamam as disciplinas, estará, de fato, em seu grau de autonomia. A mesma coisa entre as instituições. […] Um dos problemas conexos será, evidentemente, o de saber qual é a natureza das pressões externas, a forma sob a qual elas se exercem, créditos, ordens, instruções, contratos, e sob quais formas se manifestam as resistências que caracterizam a autonomia, isto é, quais são os mecanismos que o microcosmo aciona para se libertar dessas imposições externas e ter condições de reconhecer apenas suas próprias determinações internas. (2004, p. 20-21)5 5 Embora se refira ao campo científico, vale notar que a lição de Bourdieu é válida também para o campo jurídico: basta acrescentar o qualificativo jurídico às referências que o autor faz a campo. O campo jurídico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações, etc., que são, no entanto, relativamente independentes das pressões do mundo social global que o envolve. As pressões externas, independente de sua natureza, só se exercem por intermédio do campo, são mediatizadas pela lógica do campo. Uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou as demandas externas. O grau de autonomia de um campo tem por indicador principal seu poder de refração, de retradução. O aumento do grau de autonomia do campo é diretamente proporcional ao seu poder de refração. Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta- se, essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em especial os problemas políticos, aí se exprimem diretamente. Isso significa que a “politização” de um campo não é indício de uma grande autonomia. Nesse particular, vê-se um altíssimo grau de autonomia do campo penal, em que as imposições externas são comumente transfiguradas a ponto, frequentemente, de se tornarem irreconhecíveis. Com efeito, é essa demasiada autonomia que explica a insensibilidade de operadores jurídicos a eventuais reclamos sociais ou políticos que tocam o campo penal. Estritamente vinculado ao jurídico, o campo penal praticamente fecha-se ao surgimento de novos sujeitos ou vozes políticas que lhe sejam exteriores. Quando permite a elas que o alcancem, as recebe num processo de refração e releitura que acaba por desqualificá-las.6 A “retradução” da temática dos direitos humanos realizada pelo campo penal apenas se presta a reduzir a complexidade daquela. Em grande medida, é esse caráter refratário do campo penal às demandas que lhe são externas, notadamente as de caráter político, que explica a invisiblização dos contextos social, cultural e econômico subjacentes ao filtro seletivo que orienta a atuação do sistema de justiça criminal (seleção normativa, seleção pelos órgãos e sujeitos envolvidos na persecução penal, seleção do sistema prisional daqueles que passarão por suas agruras) e a mantença de uma ordem injusta e desigual. 6 Por essa razão é que pululam, no campo da política criminal, assertivas que identificam demandas criminalizadoras como “coisas de leigos” ou advindas de “pessoas descompromissadas com princípios constitucionais”. Igualmente, demandas de descriminalização são comumente lidas como “conversa de liberal” ou “defesa de interesses próprios”. Mesmo a produção de conhecimento é reflexo também desse caráter refratário do campo penal. O tema da política criminal é exemplo patente de que todo conhecimento exerce uma função social. Qual a abordagem teórica que se volta à construção de novos espaços políticos de empoderamento7 popular em temas, por exemplo, de segurança pública? A ausência dessa produção de conhecimento dá-se pela impossibilidade de criação de novos espaços políticos ou porque a criação desses novos espaços pouco interessa à modificação da realidade miserável das questões penais? Parece claro que a segunda alternativa evidencia justamente que o conhecimento “científico” no campo penal revela-se como de baixa intensidade no que diz respeito ao exercício de uma função social, pois se mostra apenas como paradigma de conhecimento científico, mas ignora seu necessário conteúdo social, próprio de um paradigma de uma vida decente (SANTOS, 2007b, p. 37). Boaventura de Sousa Santos (2007a, p. 78-81) situa, na modernidade, dois tipos de conhecimento: o conhecimento-emancipação, dirigido a um estado de solidariedade, e o conhecimento-regulação, que se dirige a um estado de ordem. Ao longo do tempo, a supremacia da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia possibilitou ao conhecimento-regulação sobrepor-se ao conhecimento-emancipação, de modo a permitir que aquele recodificasse este em seus próprios termos. A exigência de uma nova postura epistemológica, entre outras, exige a assunção de uma estratégia que permita revalorizar a solidariedade como forma de saber, uma vez que se cuida de conhecimento obtido por meio do processo, sempre inacabado, de tornar as pessoas capazes de reciprocidade por meio da construção e do reconhecimento da intersubjetividade. A supremacia do pensamento dogmático no campo penal é ao mesmo tempo razão e consequência dessa supremacia da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia. Também por isso é que o pensamento penal apresenta-se esvaziado de um componente político e de práticas sociais de caráter emancipatório. 7 A expressão empoderamento, que configura neologismo, deriva da expressão inglesa empowerment, tradicionalmente vinculada à ideia de dar poder às pessoas. A Real Academia Española já inclui o verbo empoderar em seu rol como sinônimo do verbete apoderar (cf. busca disponível na internet em <http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=empoderar>. Acesso em: 16 jul. 2009). Embora tenha surgido nos estudos de administração e vinculada à concepção de delegação de poder às pessoas, para melhor comprometimento nas respostas finais a serem construídas pela máquina administrativa; a expressão, que hoje é tão cara à abordagem crítica dos direitos humanos, deve ser compreendida como a atribuição de força, de poder, para se buscar expressões materiais e imateriais de dignidade. Em outras palavras, para os fins do presente trabalho, entenda-se empoderar como atribuir poder a alguém, para si e de per si, a fim de que esse alguém possa buscar, de per si, meios para lutar por uma vida digna. UMA APROXIMAÇÃO DO CAMPO PENAL Todo campo – e dessa afirmação não escapa o campo penal – é um campo de forças e também de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças. É a estrutura das relações objetivas entre os diferentes agentes que são as bases do campo. Como afirma Bourdieu, “[…] é a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posição” (2004, p. 23)8. A compreensão, portanto, do que diz ou do que faz um agente engajado num campo depende diretamente de sua condição de perceber a posição que ocupa nesse campo, de conhecer “de onde ele fala”. O espaço social específico a que se refere Bourdieu quando desenvolve o conceito de campo – e disso não escapa o campo jurídico – é aquele em que um conjunto de relações ou um sistema de posições sociais se definem umas em relação às outras. Essas relações definem-se de acordo com um tipo especial de poder ou capital específico, titularizado pelos agentes que entram em luta ou concorrem entre si, isto é, que jogam nesse espaço social (GARCÍA, A., 2001, p. 14-15). As posições dos agentes, portanto, definem-se historicamente de acordo com sua situação atual e potencial na estrutura de distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital, na dicção de Bourdieu), cuja titularidade condiciona o acesso aos proveitos específicos – bens – que estão em jogo no campo, bem assim definem-se por suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação, semelhança, etc.). A importância das categorias desenvolvidas por Bourdieu é evidente quando se tem em conta o reclamo de contextualização da realidade, isto é, o reclamo de que os operadores do sistema de justiça criminal não ignorem a realidade subjacente à atuação de caráter jurídico ou repressivo. É que o sistema de relações sociais em que consiste o campo é independente da população que essas relações definem. Significa dizer que os indivíduos não são meras ilusões inexistentes socialmente, mas existem como agentes – como sujeitos – que se constituem como tais e atuam no campo sempre que possuam as propriedades necessárias 8 Afirma Bourdieu que essa estrutura é determinada, grosso modo, “[…] pela distribuição do capital científico num dado momento. Em outras palavras, os agentes (indivíduos ou instituições) caracterizados pelo volume de seu capital determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço. Mas, contrariamente, cada agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se impõe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais frágil. Essa pressão para ser efetivos, para produzir efeitos nesse campo. É a relação entre campo e capital (ou, como se prefere aqui, entre campo e posição), que se relacionarão mutuamente numa espécie de círculo hermenêutico, que construirá o campo para que sejam identificadas as formas de capital (ou posições) específico que operam nele. Para construir as formas de capital específico, isto é, para construir suas posições, há de se conhecer o campo (GARCÍA, A., loc. cit.). Desse modo, pode-se afirmar que os campos são os lugares de relações de forças que implicam tendências imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada momento. Em outras palavras, há estruturas objetivas – posições –, mas há também lutas em torno dessas estruturas. Os agentes sociais, evidentemente, não são partículas passivamente conduzidas pelas forças do campo. Os agentes sociais – no campo penal, os agentes jurídico- criminais – titularizam disposições adquiridas. Bourdieu as chama de habitus; aqui serão referidas apenas como disposições. São elas maneiras de ser permanentes, duráveis, que podem levar os agentes a resistir, a se opor às forças do campo. A advertência de Bourdieu é precisa (2004, p. 28-29): […] Aqueles que adquirem, longe do campo em que se inscrevem, as disposições que não são aquelas que esse campo exige, arriscam-se, por exemplo, a estar sempre defasados, deslocados, mal colocados, mal em sua própria pele, na contramão e na hora errada, com todas as consequências que se possa imaginar. Mas eles podem também lutar com as forças do campo, resistir-lhes e, em vez de submeter suas disposições às estruturas, tentar modificar as estruturas em razão de suas disposições, para conformá-las às suas disposições. A compreensão do campo, portanto, é construída a partir da consideração de suas características. Ao ter em conta a situação atual e potencial dos agentes na estrutura de distribuição do campo, Bourdieu (1996, p. 48-52) salienta a necessidade de considerar não apenas o estado da estrutura social, mas igualmente o processo de sua constituição. De modo mais específico, é preciso considerar não apenas a situação do agente, mas também sua trajetória social. Significa dizer que cada campo define-se como um sistema de diferenças, em que o valor de cada posição social não se define por si, mas por meio da distância social que a separa de outras posições, inferiores ou superiores. Há também formas de codificação e institucionalização das distâncias sociais para que sejam elas respeitadas (e mantidas) estrutural não assume, necessariamente, a forma de uma imposição direta que se exerceria na interação (ordem, (GARCÍA, A., 2001, p. 16-17; BORDIEU, 2001, p. 95 et seq.). É a ausência de consideração – ou o que as torna invisíveis – da situação e da trajetória do delinquente que fomenta a incidência de um sistema de justiça criminal descompromissado com a modificação da realidade em que atua, isto é, fomenta a mantença de uma atuação regulatória e alheia a um compromisso de mudança social que deveria permear toda a atuação estatal. O campo também caracteriza-se pelo fato de que a posição (ou capital) específica nele substancia condição de entrada, objeto e arma de atividade nesse mesmo campo. Daí a percepção do que Bourdieu (2008, p. 179 et seq.) chama de capital simbólico, a ser considerado como qualquer forma de capital representada ou apreendida simbolicamente numa relação de conhecimento (melhor seria dizer, desconhecimento e reconhecimento). Não se cuida, vale dizer, de uma espécie particular de capital, mas sim da posição em que se converte o capital quando não é reconhecido como posição; isto é, a força, o poder, a capacidade de exploração (atual ou potencial) apresentam-se por meio desse caráter simbólico como posição legitimamente aceita. O capital simbólico, assim, exibe-se como o poder de representar e outorgar valor, importância social, às formas de capital. Por conseguinte, todos os tipos de capital podem vir a se converter em capital simbólico. Tal fenômeno é corriqueiro no campo penal, em que as posições ocupadas costumam apresentar-se e manter-se por meio da ocultação dos contextos subjacentes à atuação do sistema de justiça criminal. Outra característica do campo é ser um espaço assimétrico de produção e distribuição do capital (ou das posições) e um lugar de concorrência pelo monopólio das posições. O estado das relações de força entre os agentes que ali competem entre si definem a estrutura do campo. A compreensão desses antagonismos sociais, no campo penal, reclama uma nova abordagem da leitura dos problemas envolvendo a prática criminosa e também das possíveis soluções a serem adotadas; ou seja, a consideração desses antagonismos sociais reclama uma reconstrução do próprio conceito de política criminal, para abarcar toda a atuação do sistema de justiça criminal, e não apenas o momento de normogênese penal. Dentro do campo, destaca-se o campo do poder. Este é definido em sua estrutura pelo estado das relações de força entre as formas de poder e as diferentes posições ocupadas pelos agentes, ou seja, o espaço das relações de força entre as diferentes espécies de capital. O destaque dado ao campo do poder conduz a uma constatação inevitável: o influxo dinâmico ‘influência’ etc.)” (Id., p. 24). do campo tende continuamente a produzir e reproduzir o jogo entre os agentes e suas posições. De um lado, essa dinâmica permite ao próprio jogo ventilar-se e originar constantemente a adesão prática (dos que participam e também dos alijados do jogo) ao valor do jogo e de suas “apostas”, de sorte a legitimar a mantença dessas posições. No campo penal, aqueles que mais sofrem a incidência dos filtros do sistema de justiça criminal são justamente os que afirmam a legitimidade de um sistema cruel, que mantém invisível o contexto subjacente à sua efetivação e oculta seus próprios fracassos. Aqueles que corriqueiramente escapam da seleção do sistema de justiça criminal – e, não por coincidência, geralmente detentores de posições privilegiadas no campo econômico ou mesmo no campo do poder – são justamente os que mais questionam a legitimidade do sistema. De outro lado, os próprios órgãos e instituições estatais encontram-se permanentemente mobilizados para a mantença da posição então galgada ou mesmo, se possível, mobilizam-se para a ampliação da posição. A compreensão dessas características do campo social, tão bem tratada por Bourdieu (2001; 2004), esclarece que não existem atos gratuitos, ao menos numa percepção sociológica. Ser socialmente é ter interesse ou estar interessado. Desse modo, aplicadas as categorias de Bourdieu, com a ressalva quanto à terminologia, nota-se que é preciso sempre ter em conta os antagonismos existentes no seio social e, mais, o reconhecimento do caráter político das ações concretizadas inclusive pelas instituições estatais de assumido viés técnico, (verbi gratia, o Ministério Público brasileiro e o próprio Judiciário). Se as instituições formalizam-se com atuações que se afirmam de cariz técnico, é preciso enxergá-las também a partir de um cariz político, já que inafastáveis ou incindíveis de seus próprios interesses, especialmente por conta das posições por elas ocupadas no campo penal. Perquirir sobre o papel dos agentes envolvidos com o sistema de justiça e seus compromissos com os direitos humanos passa necessariamente pela abordagem da posição ocupada por cada um deles na ordem jurídico-normativa brasileira. O habitus, expressão de Bourdieu, ou as disposições, expressão que aqui se prefere, referem-se ao conjunto de disposições dos agentes em que as práticas se convertem em princípio gerador de novas práticas. Como didaticamente explica García Inda (2001, p. 25), “[…] El habitus, los diferentes habitus, son por lo tanto el sistema de disposiciones que es a su vez producto de la práctica y principio, esquema o matriz generadora de prácticas, de las percepciones, apreciaciones y acciones de los agentes”9. Por conseguinte, essas disposições são um produto social. Isso quer dizer que não são um conjunto de disposições para atuar, sentir, pensar e perceber adquiridas de forma inata ou “natural”; ao contrário, são adquiridas socialmente e, concretamente, em relação à posição que os agentes ocupam no sistema, em virtude da lógica de funcionamento desse sistema e da ação pedagógica que exerce sobre seus agentes. Daí compreende-se o habitus (disposições) como um sistema de competências sociais que implica duplamente, de um lado, uma capacidade prática de ação e, de outro lado, um reconhecimento social para exercê-las. O agente social em qualquer campo, inclusive no penal, busca nas estratégias que concretiza no jogo dos diversos campos sociais uma racionalidade implícita em suas respostas às demandas e censuras do espaço em que se move. De qualquer modo, uma advertência é necessária: ainda que o habitus seja uma matriz prática, não se pode afirmá-lo como princípio exclusivo de toda prática; em outras palavras, há sempre uma margem de indeterminação ou imprevisibilidade (ou mesmo liberdade?) que não permite identificar o sistema de disposições com um inconsciente estruturalista (BOURDIEU, 2008, p. 85 et seq.). Uma vez mais a lição de García Inda é útil (2001, p. 28): […] El habitus, por lo tanto, es inconsciente (o una forma de inconsciente), pero no es el inconsciente. […] En cuanto sistema de disposiciones, no somos nosotros quienes poseemos el habitus sino que es el habitus quien nos posee a nosotros. El habitus no es, por lo tanto, un concepto abstracto sino que es parte de la conducta (el “modo de conducir la vida”) del individuo, traducida tanto en maneras corporales (hexis) como en actitudes o apreciaciones morales (ethos). Tanto hexis como ethos son habitus o, mejor dicho, forman parte del habitus.10 Essa noção conceitual de disposições (ou habitus), tal como construída por Bourdieu, uma vez que constitui uma subjetividade socializada, serve de ferramenta à compreensão tanto da combinação das práticas como das práticas de combinação social, na medida em que são elas práticas sociais mutuamente compreensíveis e imediatamente ajustadas às estruturas, objetivamente concertadas e dotadas de um sentido objetivo unitário e sistemático, transcendente em face das intenções subjetivas e dos projetos conscientes, 9 Tradução: […] O habitus, os diferentes habitus, constituem, portanto, o sistema de disposições que, por sua vez, é o produto da prática e princípio, esquema ou matriz geradora de práticas, das percepções, apreciações e ações dos agentes”. 10 Tradução: “[…] O habitus, portanto, é inconsciente (ou uma forma de inconsciente), mas não é o incosciente. […] Enquanto sistema de disposições, não somos nós que possuímos o habitus, mas é o habitus que nos possui. O habitus não é, portanto, um conceito abstrato, mas sim parte da conduta (o “modo de conduzir a vida”) do indivíduo, traduzida tanto em maneiras corporais (hexis) quanto em atitudes ou apreciações morais (ethos). Tanto hexis quanto ethos são habitus ou, melhor dizer, formam parte do habitus”. individuais e coletivos. Um dos efeitos fundamentais desse acordo entre o sentido prático e o sentido objetivo é a produção de um mundo de sentido comum, cuja evidência se reveste de uma pretensa objetividade e “naturalidade”. Ainda que duradouras, tais disposições não são imutáveis. Podem configurar-se como ferramenta hábil a desvendar as razões pelas quais o sistema de justiça criminal se naturaliza, isto é, o sistema torna-se imutável não pela rigidez de suas estruturas, mas por sua imposição, que nega a possibilidade de reação cultural face a ele. Isso porque, como salienta Herrera (2005a, p. 112 et seq.), os produtos culturais – e a atuação do sistema de justiça criminal evidentemente constitui manifestação de uma produção cultural – não são uma ação primária do ser humano; primeiramente surgem as relações e depois as representações – ou signos culturais – de que se valem os indivíduos para explicar, interpretar e estabelecer modos de intervenção sobre essas mesmas relações. Textualmente, leciona Herrera (2005a, p. 113): Primero son, pues, las relaciones y, después, llegan las representaciones – los signos-culturales, las cuales servirán para que los individuos que las construyen puedan explicar, interpretar y establecer modos de intervención sobre dichas relaciones. La cultura no funda nada, ni está en el origen de nada. Es una intervención de segundo orden sobre el conjunto de relaciones que mantenemos con la naturaleza, los otros y nosotros mismos. Ahora bien, lo cultural no es una actividad pasiva que se dedique a representar estáticamente dicho conjunto de relaciones. Al procurarnos medios e instrumentos que nos van a permitir explicar, interpretar e intervenir en las relaciones, vamos modificándolas ya sean en un sentido regulador o emancipador. Por esa razón, más que de “culturas”, hablamos de proceso cultural de humanización, el cual nos permitirá, si es que queremos buscar una alternativa al orden de cosas existente, acceder a la realidad de un modo emancipador y solidario. El proceso cultural supone siempre ese camino de ida y vuelta entre las reacciones culturales – individuales y colectivas – y las redes de relaciones que las provocan. Esto es lo que hemos denominado como el circuito de ‘reacción’ cultural.11 O desafio, portanto, é compreender as disposições presentes no campo penal e, principalmente, orientá-las para uma atuação de cunho emancipador, vocacionada a modificar a realidade social em que atuam os agentes desse campo, a fim de tornar visível o contexto 11 Tradução: “Primeiro, então, são as relações e, depois, chegam as representações – os sinais culturais que servirão para que os indivíduos as constroem possam explicar, interpretar e estabelecer modos de intervenção sobre as mencionadas relações. A cultura não funda nada nem está na origem de nada. É uma intervenção de segunda ordem sobre o conjunto de relações que mantemos com a natureza, os outros e com nós mesmos. É de ver, contudo, que o cultural não é uma atividade passiva que se dedique a representar estaticamente esse conjunto de relações. Ao procurarmos meios e instrumentos que nos permitam explicar, interpretar e intervir nas relações, nós as modificamos, seja num sentido regulador, seja num sentido emancipador. Por essa razão, mais que “culturas”, falamos de processo cultural de humanização, que nos permitirá, se buscamos uma alternativa à ordem de coisas existente, ascender à realidade de um modo emancipador e solidário. O processo cultural pressupõe sempre esse caminho de ida e volta entre as reações subjacente à atuação de seus atores e, principalmente, contaminar essa atuação com os reclamos e demandas, de baixo para cima, dando poder (ou empoderando) às vozes populares para informar a atuação das instituições de garantia da coletividade, de sorte a bem compreender que a ordem hoje vigente é apenas uma ordem vigente dentre outras possíveis realidades que cabe a todos modificar ou recriar. O campo é objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade. Em verdade, no campo penal, os agentes sociais estão inseridos na estrutura e em posições (relações objetivas existentes entre as estruturas) que orientam as estratégias que desenvolvem nos limites de suas disposições. Essas estratégias orientam-se seja para a conservação da estrutura seja para a sua transformação. Quanto mais os agentes ocupam posição favorecida na estrutura, mais tendem a conservar ao mesmo tempo a estrutura e sua posição, nos limites, porém, de suas disposições (isto é, de sua trajetória social, de sua origem social) que são apropriadas mais ou menos à sua posição (BOURDIEU, 2004, p. 29). É na relação entre a posição e a disposição que hoje ocupam os agentes realizadores do sistema de justiça criminal que se encontra o grande desafio de implementação dos direitos humanos no campo penal. UMA NOVA CULTURA DOS DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE CONTEXTUALIZAÇÃO A ausência da contextualização, além de trazer o risco do importe de soluções justificáveis apenas em realidades distintas da brasileira, traduz abstração que apenas colabora para a não efetivação de garantias jurídicas colocadas em favor dos direitos humanos. O encadeamento – ora como consequência, ora como causa – dessa descontextualização das relações que atuam por trás da intervenção penal do Estado é próprio de uma abordagem essencialista dos direitos humanos. De acordo com ela, os direitos humanos são algo dado, tomados por pressuposto e, por conseguinte, prescindem de justificação e esforço teórico12. culturais – individuais e coletivas – e as redes de relações que as provocam. É o que denominamos de circuito de ‘reação’ cultural”. 12 Nesse sentido, a título de exemplo, Niccola Matteucci, ao tratar da natureza dos direitos humanos, explica: “[…] os que defendem que tais direitos são naturais, no que respeita ao homem enquanto homem, defendem também que o Estado possa e deva reconhecê-los, admitindo assim um limite preexistente à sua soberania. Para os que não seguem o jusnaturalismo, trata-se de direitos subjetivos concedidos pelo Estado ao indivíduo, com base na autônoma soberania do Estado, que desta forma não se autolimita. Uma via intermediária foi seguida por aqueles que aceitam o contratualismo, os quais fundam estes direitos sobre o contrato, expresso pela Constituição, entre as diversas forças políticas e sociais. Variam as teorias, mas varia também a eficácia da defesa destes direitos, que atinge seu ponto máximo nos fundamentos jusnaturalísticos por torná-los indisponíveis. A atual Constituição da República Federativa alemã, por exemplo, prevê a não possibilidade de revisão constitucional para os direitos do cidadão, revolucionando assim toda a tradição juspublicista alemã, fundada sobre a teoria da autolimitação do Estado” (BOBBIO, 1995, v. 1, p. 354). Por força dessa abordagem essencialista que parece imutável, “natural”, a realidade jurídico-penal é vista como algo apartado de considerações sobre as desigualdades sociais e econômicas. O fenômeno criminoso, em regra, apenas permite uma visualização dualista e maquiavélica: quem pratica crime é “mau” e, por isso, há de receber uma resposta dura para preservação de quem é “do bem”. A incidência do sistema de justiça criminal se “naturaliza” e, nesse processo, torna-se invisível. A prática criminosa ganha a pecha de livre arbítrio ou mesmo de opção facilitada para concretizar ambições materiais desarrazoadas. O campo da repressão penal oscila numa dualidade evidente. A repressão penal – cada vez mais utilizada dentre os diversos instrumentos formais de controle social – atua de modo ambivalente e frequentemente contraditório, o que em grande medida permite visualizar um pensar criminológico igualmente ambivalente e contraditório. David Garland (1999, p. 59 et seq.) identifica pelas expressões “criminologia do eu” e “criminologia do outro” essa dualidade contraditória em si, que expressa um conflito que está no próprio coração da política contemporânea, e não uma resposta logicamente diferenciada às diversas espécies de criminalidade. Deveras, de um lado, tem-se a percepção da necessidade de enfrentar a criminalidade como um aspecto constitutivo e inexpurgável da vida social contemporânea (aqui incidiria o que chama Garland de “criminologia do eu”); de outro lado, vê-se a negação histérica dessa realidade (aqui, a “criminologia do outro”), que aponta o criminoso como monstro e indica um recuo a estratégias de enfrentamento do crime mais primitivas e de eficácia meramente simbólica. Embora se refira à realidade do Reino Unido, a observação de Garland acerta igualmente em relação ao contexto brasileiro e à dura realidade da violência urbana (1999, p. 64): A difícil situação que os governos têm que enfrentar reside no fato de que eles não podem mais ser a principal fonte de segurança e da repressão criminal, ao mesmo tempo em que sabem que a curto prazo uma tal confissão pública tem todas as chances de ser politicamente desastrosa. Daí um esquema de ação política notavelmente ambivalente: de um lado, a preocupação em enfrentar o problema e desenvolver novas estratégias que lhe sejam racionalmente adequadas; mas, de outro lado, ao lado dessas novas e às vezes dolorosas adaptações, uma tendência recorrente a uma espécie de “negação” histérica e à reafirmação enfática do velho mito da soberania do Estado. A característica distintiva do período atual não é a “punitividade”, mas antes a ambivalência. Ele oscila de modo errático entre a “adaptação” e “negação”, entre tentativas de enfrentar a situação e tentativas de fazê-la desaparecer magicamente. Uma visão isolada dos aportes trazidos pela criminologia é uma visão descontextualizada, o que impede seja o atual panorama colocado em crise. A triste realidade de encarceramento por critérios censitários, étnicos, culturais, etc.; a gritante ausência de efetividade de reclamos de criminalização para uma clientela intocável pelo braço estatal (white collar crime13); a desarrazoada utilização da resposta punitiva, seja por reclamos tidos como progressistas (recrudescimento penal do tratamento da homofobia14, da violência de gênero15, para citar dois exemplos), seja por reclamos rotulados como conservadores (criminalização do aborto, por exemplo); a repetição impensada e descompromissada de práticas que apenas justificam a mantença de uma ordem desigual e injusta por parte de agentes e instituições dotadas de meios para o exercício de uma vocação diametralmente oposta a esse matiz regulador; enfim, os exemplos são infindáveis a respeito da invisibilização dos contextos que reclamam mudanças ao se assumir um compromisso de realização dos direitos humanos. O reflexo desse essencialismo na abordagem dos direitos humanos e seus reflexos no campo penal é evidenciado pela sofisticação extremada do cabedal teórico-dogmático para enfrentamento das questões penais. Talvez a preocupação com questões de alta sofisticação dogmática só sirva mesmo como reforço aos antolhos dos operadores do sistema de justiça 13 A expressão é atribuída a Edwin Sutherland, expoente do interacionismo simbólico. A explicação de Bruno Amaral Machado (2006, p. 283) é precisa sobre a expressão, razão pela qual convém citá-la: “O conceito de crime de colarinho branco, cunhado por Sutherland (1940), acabou gerando certa confusão. Em determinados momentos, o autor se refere aos delitos cometidos por indivíduos das camadas altas da sociedade e, em outros, aos delitos praticados no desempenho de uma ocupação (SUTHERLAND, 1940; 1945). Na investigação empírica realizada posteriormente, Sutherland (1940) centra-se nos delitos cometidos por organizações de indivíduos, a que ele também denomina White-collar crime. Conforme salientam Weisburd e Waring (2001), status, ocupação e organização são aspectos centrais da definição de Sutherland. Nos estudos posteriores, o conceito refere-se ao abuso de poder pelas pessoas que ocupam posições privilegiadas e, em determinadas pesquisas, relaciona-se ao contexto em que os crimes são praticados e métodos usados. Investigações empíricas sugerem que a maioria dos delitos dessa natureza advém dos estratos médios da sociedade, o que seguramente é significativo, por evidenciar a seletividade da justiça criminal. De qualquer forma, Sutherland deve ser entendido no contexto em que ele escreveu seus trabalhos. Naquela época, apenas uma pequena elite teria acesso aos meios necessários para cometer delitos dessa natureza. Assim, diversas mudanças sociais e econômicas ampliaram as oportunidades para um grupo maior de pessoas (WEISBURD; WARING, 2001, p. 8-10). Conferir as críticas sobre o conceito de crimes de colarinho branco em: Nelken (1994) e Shapiro (1994)”. No mesmo sentido, cf., BARATTA, 2004, p. 63-65. 14 Tramita no Senado Federal brasileiro o Projeto de Lei 122 de 2006. Iniciado na Câmara dos Deputados, sob o n. 5.033, em 7 de agosto de 2001, o projeto altera a Lei 7.716, de 1985, bem assim dá nova redação a dispositivos do Código penal brasileiro e da Consolidação das Leis do Trabalho, para estabelecer “sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas”. O projeto recebeu diversas manifestações de apoio de entidades costumeiramente vinculadas a lutas pelos direitos humanos. 15 É o caso da Lei 11.340, de 2006, nominada “Lei Maria da Penha”, que recrudesceu o tratamento penal nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda que muitas de suas medidas tenham vindo a lume em boa hora, como as medidas protetivas e outras respostas que não necessariamente impõem a privação da liberdade. criminal em relação à dura realidade, que, embora alijada das discussões jurídicas, insiste fazer-se presente de modo “incômodo”, insistente. Vê-se uma tensão entre o jurídico e a temática dos direitos humanos, muito por conta da costumeira confusão entre o que sejam as garantias colocadas à disposição para a implementação dos direitos humanos e o que sejam os próprios direitos humanos. A redução é evidente e traz só uma consequência: se a garantia se confunde com o objeto da garantia, a simples previsão de uma garantia (uma só, que de per si não é hábil a implementar direitos e provocar mudanças na realidade) encerra a discussão e dá a falsa impressão de que a temática dos direitos humanos resolve-se com novas leis, novos tratados, novos diplomas legais. Revela-se oportuno, então, desde logo, fixar a compreensão de que os direitos humanos não se resumem a previsões normativas lançadas no plano internacional ou mesmo interno dos países que com eles se dizem compromissados. Num marco teórico crítico, de metodologia relacional e de rechaço a abordagens essencialistas e abstratas, os direitos humanos são compreendidos como processos. Assumem uma concepção dinâmica e constituinte. São processos dirigidos à obtenção de bens materiais e imateriais. A razão pela qual se justifica a construção de um conceito nesses termos reside na evidente percepção de que hoje não existe um acesso igualitário e não hierarquizado aprioristicamente a bens materiais e imateriais. O compromisso com os direitos humanos é um compromisso de modificação dessa realidade. É um compromisso com a efetivação de condições hábeis a potencializar ferramentas de construção de igualdade para todos. É a busca da realização da igualdade a partir da compreensão de que esta há de ser alcançada por meio de um exercício de alteridade, isto é, na medida em que a dimensão de igualdade só existe enquanto e na medida em que a igualdade também é permitida e assegurada ao que se diz igual e para quem se afirma igual. Toda a construção crítica de direitos humanos representa um esforço de modificação da realidade, de mudança social, porque rechaça por completo concepções que impedem a visibilização e a modificação de um contexto. A expressão “crítica”, aqui veiculada repetidamente, é compreendida como referência ao instrumental pedagógico operante, nas esferas teórica e prática, hábil a permitir uma tomada histórica de consciência e, com isso, desencadear processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora, num marco histórico-concreto, de prática cotidiana insurgente, dos conflitos, das interações sociais e das necessidades humanas essenciais (WOLKMER, 2002, p. 5). Os direitos humanos, sob o prisma de sua realização, materializam processos. Porém, sob o prisma de seu surgimento, são produtos culturais e a importância de tal consideração reside justamente na percepção de que os produtos culturais, modificam a realidade. Cuida-se de matizar e gerir efeitos da percepção cultural dos direitos humanos, partindo para a formulação de propostas e instrumentos que se ponham além da investigação de causas. Fixar os direitos humanos como produtos culturais significa que eles possibilitam processos de reação alternativa e contextualizada ao ambiente em que se vive e às relações nele travadas.16 Daí, então, pode-se conceituá-los da seguinte forma (HERRERA, 2005b, p. 246-247): […] los derechos humanos, como productos culturales, supondrían la institución o puesta en marcha de procesos de lucha por la dignidad humana. […] Son productos culturales que instituyen o críen las condiciones necesarias para implementar un sentido político fuerte de libertad (opuesto a la condición restrictiva de la libertad como autonomía): mi libertad (de reacción cultural) comienza donde comienza la libertad de los demás; por lo que no tengo otro remedio que comprometerme y responsabilizarme – como ser humano que exige la construcción de espacios de relación con los otros – con la creación de condiciones que permitan a todas y a todos poner en marcha, continua y renovadamente, caminos propios de dignidad. […] los derechos humanos son el resultado de luchas sociales e colectivas que tienden a la construcción de espacios sociales, económicos, políticos y jurídicos que permitan el empoderamiento de todas y todos para poder luchar plural y diferenciadamente por una vida digna de ser vivida.17 16 Herrera Flores (2005b, p. 118) afirma que o conceito de direitos humanos imposto na segunda metade do século XX baseou-se em tendências estritamente unidas entre si: a universalidade dos direitos e sua identidade inata à pessoa humana. Por consequência, apresentavam-se como produtos culturais imutáveis e não mais como produtos convencionais ou culturais surgidos em contextos históricos reais. Por conseguinte, nada nem ninguém poderia contrariar essa essência, pois tal atitude significaria atentar contra as próprias características da natureza e o mistério da dignidade humana, costumeiramente indefinível e só formulada em termos gerais e difusos. 17 Tradução: “[…] os direitos humanos, como produtos culturais, implicariam instituir ou colocar em prática processos de luta pela dignidade humana […] São produtos culturais que instituem ou criam as condições necessárias a implementar um sentido político forte de liberdade (oposto à condição restritiva de liberdade como autonomia): minha liberdade (de reação cultural) começa onde começa a liberdade dos demais; pelo que não tenho outro remédio que me comprometer e me responsabilizar – como ser humano que exige a construção de espaços de relação com os outros – com a criação de condições que permitam a todos e a todas pôr em marcha, contínua e renovadamente, caminhos próprios de dignidade. […] os direitos humanos são o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e todos para poder lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida”. O esforço deve voltar-se à elaboração de uma concepção material e concreta de dignidade humana, que é o acesso igualitário e não hierarquizado a bens materiais e imateriais necessários a uma vida que valha a pena ser vivida. A concretização dessa dignidade, decerto, orienta-se pela assunção de um valor, que se dirigirá, por sua vez, a um acordo construído (e não assimilado como dado). O critério de valor para alcance da dignidade humana assim conceituada é o critério de valor da riqueza humana, cujo único conteúdo de universalidade aceito refere-se justamente a assegurar as lutas para acesso a bens materiais e imateriais. Para Herrera Flores, os direitos humanos, portanto, devem ser compreendidos como meios discursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os seres humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida, permitindo a abertura de espaços de luta e reivindicação. São processos dinâmicos que permitem a abertura e a conseguinte consolidação e garantia de espaços de luta pela dignidade humana. Em suas palavras, “[…] El único universalismo válido consiste, pues, en el respeto y la creación de condiciones sociales, económicas y culturales que permitan la lucha por la dignidad” (2008, p. 156)18. Daí a necessidade de abandonar toda concepção abstrata e assumir o dever imposto pelo valor da liberdade: a construção de uma ordem social justa que permita e garanta a todos lutar por suas reivindicações. Nessa ótica, revela-se imprescindível a criação de mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam o reconhecimento, o empoderamento, aos excluídos pelos processos hegemônicos de construção da realidade social. Se uma abordagem crítica supõe problematizar o objeto de investigação, cumpre questionar qual a relação da política criminal com o sistema penal em geral, suas próprias estruturas internas e como ela atua face aos operadores do sistema de justiça criminal. Objetiva-se pôr em crise a ideia de política criminal, isto é, ampliar a visão político-criminal a um compromisso com os direitos humanos. Não se cuida de rechaçar as construções até então havidas em torno desse tema, mas ampliá-lo a fim de visualizar sua relação com outros fenômenos sociais que lhe tocam. A partir daí, impõe-se buscar critérios emancipadores para análise e reconstrução do objeto em crise. Em outras palavras, por meio da formulação de um instrumental teórico que permita o resgate da ação política no campo penal, pavimentar a possível apresentação de propostas hábeis à modificação da realidade num marco de concretização dos direitos humanos. Só aí é 18 Tradução: “O único universalismo válido consiste, pois, no respeito à criação de condições sociais, econômicas e culturais que permitam a luta pela dignidade”. que uma contribuição teórica deduzida a partir de um marco crítico se justifica, isto é, a incursão acadêmica em temas do sistema de justiça criminal só guarda relevância e compromisso com uma abordagem crítica se prestar-se: a visibilizar o contexto subjacente ao instrumental normativo já existente; a desestabilizar esse mesmo contexto, para orientar ações compromissadas com um empoderamento popular; e a transformar a realidade a que se refere. Em consonância com Bourdieu e sua compreensão da realidade social em campos, Herrera Flores (2008, p. 83-84) salienta os elementos referentes ao conjunto de capitais, distribuídos hierárquica e desigualmente em função das relações de força e de poder que predominam nesses capitais. Daí salienta as diferentes posições que ocupam os sujeitos no momento de ascender aos bens que constituem o objetivo do respectivo campo. Juntamente às posições, destaca as disposições, que, como já mencionado, são as atitudes que as pessoas e os grupos que atuam no campo criam na hora de reproduzir ou transformar as distribuições hierárquicas e desiguais de posições que ocupam no acesso aos bens que compõem os objetivos do campo em questão. O estado de tensão entre posições e disposições constitui o próprio dinamismo e a historicidade de uma estrutura ou ordem social. Nesse marco, os direitos humanos constituem a prática de disposições críticas com respeito ao conjunto de posições desiguais que as pessoas e grupos ostentam tanto em nível local quanto em nível global (HERRERA, 2008, p. 104 et seq.). A fixação de instituições de garantia ou mesmo de agentes estatais compromissados com os direitos humanos, de um modo geral, reclama a permanente discussão das disposições assumidas por eles, sob risco, repita-se, de se prestarem apenas a reproduzir a ordem contra a qual deveriam lutar. A intervenção penal do Estado, num marco de abordagem essencialista, abstrato, alija o componente político do campo penal. Em verdade, o direito penal e as garantias formalizadas para a concretização do acesso aos bens de que as normas são instrumentos de alcance devem ser compreendidos a partir da experiência política, dentro da prática política e para a prática política. Como consequência, surge a preocupação de abordar a política criminal: será ela o meio pelo qual a intervenção penal do Estado será informada e ao mesmo tempo limitada, a fim de que a resposta penal do Estado não assuma o viés de simples vulneração dos direitos humanos. Em outras palavras, uma prática de sistema de justiça criminal comprometida com os direitos humanos exige a assunção do compromisso de elevar o componente político à discussão no campo penal. Qual a finalidade dessa discussão política no campo penal? O resgate da ação política surge como meio de empoderamento popular, de emancipação social e de abertura ao surgimento de um novo papel político-criminal a ser exercido pelos agentes envolvidos na realização do sistema de justiça criminal e pela própria coletividade numa abordagem mais ampla. Para tanto, há de se repensar a atuação do sistema de justiça de modo integral, respeitar a complexidade que envolve o tema e, com isso, assegurar – ou se comprometer a buscar os meios hábeis a assegurar – um acesso igualitário e não hierarquizado a bens imateriais muito caros à questão político-criminal: a segurança pública e o acesso à jurisdição penal. O que se vê hoje é um acesso absolutamente desigual e hierarquizado a esses bens. O desenho das grandes cidades, que cada vez mais dá lugar à formação de guetos e pontos de absoluta exclusão social, contrasta com a proliferação de “ilhas” fechadas e autorreferentes, onde classes mais ricas preocupam-se em se manter “seguras” em face dos mais pobres. A ampla gama de garantias formalmente previstas, por exemplo, para aqueles que ingressam no sistema prisional, hoje, só são alcançadas por uns poucos, ao passo que a grande massa carcerária sofre com condições desumanas, degradantes, que evidenciam uma “coisificação” do ser humano. Mesmo a percepção das possíveis respostas ao problema da segurança pública passa por uma avaliação que, curiosamente, responde a uma formação de caráter econômico ou financeiro. No mês de março de 2008, foram divulgados os resultados de uma pesquisa promovida no Brasil sobre a avaliação quantitativa da população com relação à segurança pública. Nela, vê-se que 55% da população que se encontra na faixa de renda superior a dez salários mínimos avalia a segurança pública no Brasil como péssima (as respostas possíveis eram “ótima”, “boa”, “regular”, “ruim”, “péssima”, “não sei/não tenho opinião”). No cômputo geral, sem considerar a renda, apenas 31% da população avalia a segurança pública como péssima. O seguinte quadro demonstra a opinião sobre o tema19: 19 Cuida-se da pesquisa promovida pela Confederação Nacional da Indústria – CNI e realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE, de abrangência nacional, em que foram ouvidas, num universo de eleitores com 16 anos de idade ou mais, uma amostragem de 2.002 entrevistados distribuídos em 141 municípios brasileiros (CONFEDERAÇÃO, 2008). A mesma pesquisa indicou que os aspectos mais Tabela - Avaliação da segurança pública no Brasil Total Renda (em salários mínimos) Mais de 10 Mais de 5 a 10 Mais de 2 a 5 Mais de 1 a 2 Até 1 Ótima 3 1 2 2 4 4 Boa 15 7 13 16 15 16 Regular 29 27 30 27 31 26 Ruim 22 10 25 25 20 23 Péssima 31 55 30 30 29 30 Não sabe/Não opina 0 0 0 0 0 1 Saldo -35 -57 -40 -37 -30 -33 Pergunta: “Atualmente, como o sr.(a) avalia a segurança pública no Brasil? O(a) sr.(a) diria que a segurança no Brasil é:” Na persecução penal, em que pese a figura do acusado no sistema jurídico estar positiva e formalmente afirmada como sujeito de direitos, vê-se na prática uma automatização do instrumental punitivo em relação a muitos e uma crise de efetividade do sistema de justiça criminal em relação a uns poucos (“coincidentemente”, os mais ricos). A percepção da violência urbana faz-se mais presente na criminalidade violenta, amplamente noticiada pela mídia; a mesma mídia que reserva colunas sociais e notícias mais amenas a outros comportamentos delinquentes não identificados como tão lesivos ou sujeitos a reprovação (desvios de recursos públicos, corrupção, etc.). Mesmo as discussões jurisprudenciais só trazem embates mais detidos sobre o conteúdo constitucional de preceitos atinentes à persecução penal e ao direito penal quando os envolvidos ostentam alguma qualidade que os distinga da vala comum que alberga a “clientela” usual do sistema penal (pobres).20 importantes para melhorar a segurança são, nessa ordem, o combate ao tráfico de drogas, o combate à corrupção da polícia, o reforço do policiamento e a adoção de leis mais rigorosas para punição dos delinquentes. Curiosamente, entre as ações enumeradas como respostas possíveis, nenhuma delas se referia a estratégias de discussão democrática ou mesmo de participação popular na eleição dos temas a serem aprofundados ou mesmo das soluções a serem adotadas. 20 Nesse sentido, merece destaque a pesquisa empreendida por Marina Quezado Grosner (2008) na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, corte superior brasileira responsável pela uniformização do entendimento jurisprudencial a respeito da legislação infraconstitucional. Para demonstrar a discricionariedade seletiva da Corte, a autoria debruçou-se sobre 3.790 julgados no período de 15 anos (de 1989 a 2004) cujos pedidos referiam-se ao trancamento de ações penais (processos de habeas corpus). Na conclusão de sua investigação, verificou que as decisões de trancamento da ação penal ocorrem com mais frequência nos crimes econômicos, crimes contra a administração pública, crimes contra a honra e crimes contra o patrimônio (com destaque ao estelionato), nessa ordem. Registra a autora, com precisão, que o Tribunal, em sua atuação seletiva, reforça a distribuição desigual do status de criminoso, ao excluir apenas determinados indivíduos, devidamente selecionados, do sistema penal (2008, p. 190-191). Em outro estudo, centrado nas decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de modo quantitativo e qualitativo, concluiu-se que “[…] a maioria dos indivíduos acusados por roubo obtém uma condenação no regime mais gravoso que o previsto em lei […] a fundamentar tais decisões encontram-se, em grande medida, motivações de caráter extrajurídico e de cunho ideológico, comuns às teses encontradas no senso comum sobre a criminalidade” (DECISÕES, 2005, p. 58). O campo jurídico-penal, quando relacionado à temática dos direitos humanos, reforça as complexidades jurídica e empírica deles (HERRERA, 2008, p. 30 et seq.)21. A complexidade empírica destaca a necessidade de sempre se ter em conta que o direito se expressa em linguagem deôntica e, por conseguinte, há que se efetivar por meio da construção de todo tipo de intervenções sociais e públicas. Não é porque o direito se expressa normativamente que as garantias para sua implementação resumem-se às garantias jurídicas. Aliás, a desconsideração dessa complexidade é que fomenta contextos como o brasileiro, que conta com textos normativos avançadíssimos e, paradoxalmente, uma realidade de 21 Como didaticamente explicita Herrera Flores, os direitos humanos são tema de alta complexidade que pode ser visualizada por meio de sete abordagens. Aqui, apenas duas delas são mencionadas – complexidades empírica e jurídica. Porém, a primeira complexidade é a cultural, consistente na compreensão do contexto de surgimento dos direitos humanos tal como são compreendidos hoje – surgiram como resposta às reações sociais e filosóficas que supôs a consciência de expansão global de um novo modo de relação social baseada na constante acumulação de capital. Por conseguinte, não é possível visualizá-los fora de seus contextos ocidentais, máxime quando se tem em conta que veiculam uma estreita confluência entre elementos ideológicos (supostamente universais) e premissas culturais (próprias das relações particularizadas das pessoas). A segunda e a terceira abordagens são justamente as complexidades empírica e jurídica. A quarta abordagem diz respeito à complexidade científica, que exige uma tomada de posição científica quanto aos obstáculos e aos esforços para implementação dos direitos humanos. Essa posição implica afastar toda pretensão de objetividade e neutralidade no estudo e na prática dos direitos humanos, pois essas pretensões implicam inevitavelmente em especialização e formalização, a tratar os direitos humanos como se fossem algo autônomo, neutro e já realizado. Em verdade, “[…] son las luchas sociales las que impulsan a la creación de nuevas teorías e, incluso, a que las normas jurídicas internacionales vayan cambiando de rumbo” (2008, p. 39-40; Tradução: “[…] são as lutas sociais que dão impulso à criação de novas teorias e, inclusive, a que
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