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A superação da visão abstrata do sistema de justiça criminal a partir dos direitos humanos

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Referência: SUXBERGER, A. H. G. A superação da visão abstrata do sistema de justiça 
criminal a partir dos direitos humanos. In: MANENTE, Ruben Rockembach; DIAS, Jefferson 
Aparecido; SUXBERGER, A. H. G. (org.). Teoria crítica dos direitos humanos: das lutas aos 
direitos.1 ed. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2011, p. 97-126. 
 
A superação da visão abstrata do sistema de justiça 
criminal a partir dos direitos humanos 
 
Antonio Henrique Graciano Suxberger 
RESUMO 
A distância existente entre as prescrições normativas e a realidade do sistema de justiça 
criminal, no que toca à efetividade dos direitos humanos, reclama uma abordagem de cunho 
crítico, comprometida com a visibilização do contexto, com a desestabilização da situação 
vigente e com a modificação do campo penal. Este é marcado por um altíssimo grau de 
autonomia e de refração e retradução da realidade social, daí o seu isolamento do contexto em 
que se insere. A compreensão do campo penal é construída a partir da consideração de suas 
características, da situação dos agentes que o integram e das trajetórias desses mesmos 
agentes. É a tensão existente entre as posições e as disposições ocupadas pelos agentes 
realizadores do sistema de justiça criminal que define o dinamismo do campo penal. Os 
direitos humanos constituem a prática de disposições críticas em relação ao conjunto de 
posições desiguais que as pessoas e grupos ostentam tanto em nível local quanto em nível 
global. O campo jurídico-penal reforma as complexidades jurídica e empírica da temática dos 
direitos humanos. É a reconstrução da categoria política criminal que propiciará uma 
aproximação teórica hábil a permitir a visibilização do contexto subjacente ao sistema de 
justiça criminal. 
PALAVRAS-CHAVE: 
Direitos humanos; sistema de justiça criminal; política criminal; campo social; teoria crítica. 
 
DIREITOS HUMANOS NO CAMPO PENAL: A CRUEL DISTÂNCIA ENTRE PRESCRIÇÕES 
NORMATIVAS E A REALIDADE SOCIAL 
A temática dos direitos humanos no campo penal é geralmente identificada por 
discursos que reclamam a efetividade de maiores garantias de cunho individual aos indivíduos 
 
 O autor é Promotor de Justiça no Distrito Federal; Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade 
de Brasília (2005); Máster em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo 
de Olavide, Sevilha, Espanha (2008); Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo 
de Olavide, Sevilha, Espanha (2009). Sócio-fundador do Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e 
Desenvolvimento (IDHID). 
 
 
 
 
 
submetidos ao sistema de justiça criminal. Paradoxalmente, em que pese a ampla gama de 
diplomas normativos e de produções acadêmicas que registram, desenvolvem e sustentam 
cada vez mais um maior número de direitos e liberdades do indivíduo em face da atuação 
estatal de controle social, vê-se a proliferação de um sem número de diplomas legais 
criminalizadores e de práticas sociais que pouco se ocupam das razões pelas quais se legitima 
a resposta penal do Estado. 
Além dessa percepção, somem-se a cruel distância existente entre o conteúdo das 
prescrições normativas de caráter penal (materiais ou processuais) e a realidade 
experimentada por aqueles selecionados pelos filtros do sistema de justiça criminal, que 
evidencia, de um lado, um quadro de impunidade em favor daqueles mais beneficiados pelas 
desigualdades sociais, como ocorre no contexto brasileiro, e, de outro lado, as condições 
desumanas e frustradoras das razões que justificaram a imposição de reprimendas àqueles 
condenados pela prática de crimes. Vê-se a ausência de um aprofundamento das razões que 
justificam a intervenção do Estado no cumprimento de sua obrigação de garantir segurança, 
que hoje substancia um bem de acesso aprioristicamente hierarquizado e não igualitário pela 
maior parte da população brasileira na atualidade, ou mesmo de assegurar um acesso à 
prestação jurisdicional de natureza penal com esses mesmos reclamos igualitários. 
De plano, quando são apresentados os problemas e as misérias do funcionamento 
do sistema de justiça criminal, os operadores do Direito em geral são céleres em propor 
mudanças que se referem a alterações de preceitos normativos. Mas será essa solução hábil a 
ensejar os frutos dessa preocupação de dignidade no acesso aos bens manuseados pelo sistema 
de justiça criminal? A urgência na apresentação das respostas tem dado azo a propostas 
irrefletidas e descompromissadas com alguns marcos éticos que deveriam orientar a ação dos 
agentes sociais preocupados com a realização e efetividade dos direitos humanos. 
A abordagem dos temas que envolvem o sistema de justiça criminal carece de 
maior reflexão, de maior maturação entre soluções a serem apresentadas e as devidas 
reflexões sobre elas, para evitar a tomada de posturas supostamente comprometidas com uma 
ação de caráter emancipatório, mas que acabe por desvelar uma prática de natureza 
hegemônica e regulatória. Embora se refira ao fenômeno poliédrico da violência, Slavoj Žižek 
traz advertência perfeitamente aplicável também aos temas que se referem à política criminal 
e ao funcionamento do sistema de justiça criminal (2009, p. 16): 
 
 
 
 
 
Un análisis crítico de la actual constelación global – que no ofrece soluciones claras, 
ningún consejo “práctico” sobre qué hacer, y no señala luz alguna al final del túnel, 
pues uno es consciente de que esa luz podría pertenecer a un tren a punto de 
arrollarnos – que a menudo va seguido de un reproche: “¿Queieres decir que no 
deberíamos hacer nada? ¿Simplemente sentarnos y esperar?”. Deberíamos tener el 
coraje de responder: “¡Sí, exactamente eso!”. Hay situaciones en que lo único 
verdaderamente “práctico” que cabe hacer es resistir la tentación de implicarse y 
“esperar y ver” para hacer un análisis paciente y crítico.1 
A valer, a superação do “abismo” entre as prescrições normativas e a dura 
realidade do sistema de justiça criminal passa, necessariamente, pelo fortalecimento de uma 
abordagem teórica comprometida com mudanças sociais e a justificação de práticas sociais 
emancipatórias já existentes ou a serem criadas, qual seja, a teoria crítica dos direitos 
humanos tal como desenvolvida por Joaquín Herrera Flores. Afirmando a necessidade de 
visibilização dos contextos subjacentes à realidade normativa e à natureza dos direitos como 
produtos culturais, Herrera apresenta uma proposta metodológica comprometida com a 
realização da dignidade humana num sentido concreto, material, efetivo. Por meio da repulsa 
a soluções que reduzam os problemas sociais ao âmbito jurídico – não se nega o jurídico; mas 
cumpre reconhecer a necessidade de construir soluções que não sejam só jurídicas para 
assegurar a efetividade das prescrições normativas –, Herrera reivindica a formulação de 
propostas hábeis a fomentar o exercício das potencialidades humanas, bem assim diminuir a 
distância existente entre as prescrições normativas postas como garantias dos direitos 
humanos e a realidade que insiste em negá-los. Em verdade, um diálogo entre o âmbito 
estritamente jurídico de abordagem dos problemas penais e a rica gama de conhecimentos 
produzidos e empiricamente verificáveis fora da visão jurídica contribuiria decisivamente a 
evitar falsas expectativas e reduziria a exploração da resposta penal como panaceia, máxime 
em países que enfrentam contextos de crua desigualdade social como o Brasil. 
O compromisso de uma teoria crítica é o de tomada de consciência, de 
modificação da realidade. Nesse sentido, inserir-se num marco teórico crítico exige do 
investigador a assunção desse
compromisso de mudança. Exige, igualmente, daquele que 
trava contato com os frutos desse esforço intelectual a ciência desse compromisso e dessa 
orientação finalisticamente dirigida à construção de propostas, meios, instrumentos destinados 
 
1 Tradução: “Uma análise crítica do atual contexto global – que não oferece soluções claras nem 
conselho ‘prático’ sobre o que fazer, tampouco sinaliza luz alguma no final do túnel, vez que é consciente de que 
essa luz poderia pertencer a um trem na iminência de nos atropelar – amiúde é acompanhada de uma censura: 
‘Quer dizer que não deveríamos fazer nada? Simplesmente sentar-nos e esperar?’. Deveríamos ter a coragem de 
responder: ‘Sim, exatamente isso!’. Há situações em que o único verdadeiramente ‘prático’ que cabe fazer é 
resistir à tentação de envolver-se e ‘esperar e ver’ para fazer uma análise paciente e crítica”. 
 
 
 
 
 
a uma maior participação em práticas insurgentes voltadas às necessidades humanas 
essenciais e às interações sociais das pessoas envolvidas. 
No campo penal, construir criticamente implica desenvolver um instrumental 
pedagógico operante, isto é, que atue tanto no plano teórico como no plano prático. Vale 
destacar que esses planos – teórico e prático – não são cindíveis; ao revés, confluem entre si, 
porque o primeiro só deve justificar-se na medida em que disser respeito ao segundo. Em 
outras palavras, na esteira do que destaca o próprio Herrera Flores, se a teoria 
tradicionalmente construída sobre os direitos humanos parece sobrepor-se aos próprios fatos, 
a preocupação maior desse esforço acadêmico centra-se na elaboração de ferramentas teóricas 
destinadas a justificar práticas sociais de caráter emancipatório. E, se tais ferramentas não se 
revelarem úteis à modificação da realidade, pior para a teoria! (HERRERA, 2008, p. 86). 
Já passa da hora de assumir a necessidade de um maior diálogo entre, de um lado, 
a dogmática jurídico-penal e as construções atinentes à política criminal, em particular, e, de 
outro lado, a teoria crítica dos direitos humanos. Isso porque o campo penal é a feição mais 
dura das abstrações e essencialismos, ao entender como suficientes construções de uma 
legitimação penal tão-somente derivada dos fins da pena, que são cotidianamente ignorados 
tanto na elaboração das respostas penais quanto na concretização das respostas penais já 
existentes. Por que razão se discutem temas como participação popular, práticas de 
empoderamento e ações políticas emancipatórias em quase todos os campos do direito público 
e, quando se cuida do campo penal, parece que tais temas devem restar alijados, como se o 
funcionamento do sistema de justiça criminal fosse reservado a doutos juristas, hábeis a 
construir soluções que conformem a integral realidade humana? 
Uma teoria crítica dos direitos humanos para o campo penal implica assumir a 
necessidade de melhor visibilizá-lo a fim de colocá-lo em crise justamente por meio da 
contextualização de suas práticas. Mas não basta desconstruir as bases do sistema de justiça 
criminal; aliás, pensar que tal desconstrução por si só é suficiente materializa o cada vez mais 
usual equívoco em que incorrem as teorias deslegitimadoras do sistema penal. É preciso 
avançar e desestabilizar o campo penal, para pôr em evidência a necessidade de uma nova 
visão, que parta de critérios de valor diversos dos tradicionalmente apontados como 
orientadores do sistema e, na prática, apenas funcionais para um direito penal de cunho 
seletivo e repressor. A essa desestabilização, por conta do compromisso de mudança social 
 
 
 
 
 
que movimenta a teoria crítica, deve-se seguir uma transformação, a ser alcançada por meio 
da proposição e assunção de critérios emancipadores que sejam idôneos a permitir a 
articulação entre os agentes sociais implicados nos processos de funcionamento do sistema de 
justiça criminal. 
Trabalhar a política criminal no marco da teoria crítica dos direitos humanos, 
portanto, significa assumir as funções das construções teóricas de política criminal. A 
primeira função é de caráter epistêmico e consiste justamente nessa tarefa de visibilizar as 
relações havidas do agente social consigo, entre os demais agentes e deles em face da 
natureza. Parece ser essa a única possibilidade de fugir da armadilha comum no campo penal: 
as soluções alvitradas para os problemas usais recaem sempre na fórmula “mais do mesmo”. 
Se o sistema de justiça criminal é seletivo e refoge das razões que o justificam, incrementar 
simplesmente as agências envolvidas em seu funcionamento não parece ser a solução única 
para questões de maior complexidade. 
A segunda função é de natureza ética e, por conseguinte, orienta-se a 
desestabilizar o próprio campo de incidência dessa política criminal. Isso se faz por meio da 
criação ou mesmo recriação dos valores envolvidos. Não há dúvida de que o sistema de 
justiça criminal, por seu arcabouço jurídico, tem por finalidade o resguardo da dignidade 
humana. Mas a que dignidade se refere? Será que tal conceito não restou tão esvaziado a 
ponto de admitir quase tudo em sua fórmula abstrata? É preciso apresentar um critério que 
torne possível concretizar essa dignidade humana, para efetivamente sopesar as práticas e 
propostas que tenham por destinação potencializar capacidades humanas. 
A terceira função do pensamento político-criminal num marco crítico é política e 
se refere justamente à tarefa de transformação, a ser alcançada por meio da abertura de 
espaços para novos atores sociais e políticos ou, no caso dos já existentes, de modificação das 
disposições por eles ocupadas. É preciso criar singularidades no campo penal, e tal papel deve 
ser instrumentalizado por propostas e instrumentos de política criminal de caráter 
emancipatório. 
 
 
 
 
 
O PORQUÊ DE UMA ABORDAGEM CRÍTICA NO CAMPO PENAL 
Apesar da sofisticação dogmática das ciências criminais no Brasil e das 
prescrições veiculadas nos avançadíssimos diplomas normativos brasileiros, a política social 
brasileira, o diálogo democrático para a solução de conflitos e a preocupação com os 
verdadeiros problemas sociais seguem sendo substituídos cada vez mais por um discurso 
alarmista sobre as ameaças advindas da criminalidade. Preocupações democráticas e os 
avanços duramente conquistados que permitem afirmar o modelo de Estado social cedem 
lugar ao discurso fácil e tentador de um Estado penal.2 
O resultado disso, além do alijamento do componente político nas discussões a 
respeito do campo penal, é uma dualidade das manifestações que ocupam hoje um espaço que 
seria de incumbência da política criminal. De um lado, os partidários da ampliação da 
repressão penal tentam justificar esse crescimento por meio de uma afirmada necessidade de 
combater a criminalidade e de estabelecer uma reação oficial a manifestações de desvios 
“causados”3 por fatores biológicos, psicológicos ou mesmo sociais. De outro lado, há quem 
reconheça a preponderância dos fatores sociais da criminalidade e, a partir disso, propõe 
estratégias que se dirigem à melhoria da situação social das classes mais pobres, e não 
centradas no combate aos próprios criminosos.4 
A par disso, a temática dos direitos humanos frequentemente é associada a 
posições utópicas, sonhadoras ou descompromissadas com um ideal de segurança coletiva. O 
discurso identificado com os direitos humanos, em geral, é encarado como um discurso de 
abolição ou laxismo penal, porque centrado na defesa intransigente de liberdades e garantias 
 
2 A expressão “Estado penal” é aqui tomada de Wacquant, quando descreve o que chama de “febre 
neoliberal”
nos Estados Unidos e em diversos países europeus, bem como a difusão de uma política pública 
característica do “Estado mínimo”: o programa “Tolerância Zero” da cidade de Nova Iorque. A propósito da 
redução do Estado Social e consequente aumento do Estado Penal, diz: “Pois à atrofia deliberada do Estado 
Social corresponde a hipertrofia distópica do Estado Penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida 
direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro” (2001, p. 80). Ainda que se refira a países 
centrais – Estados Unidos e países europeus – a assertiva de Wacquant é perfeitamente aplicável ao Brasil; aliás, 
no Brasil, as consequências de tal constatação são ainda mais duras, porque a situação do sistema prisional – 
superlotação, falta de vagas, instalações antigas, ausência de programas de reintegração social etc. – dá 
tratamento a seres humanos que os assemelha a animais. Em outras palavras, mesmo o Brasil, que nunca passou 
por uma experiência de Estado de bem-estar social, vê agigantar-se essa figura fixada por Wacquant como 
“Estado penal”. 
3 É nítido o viés etiológico da assertiva, reproduzida aqui justamente para salientar o que se verá mais 
adiante, isto é, a insistente reprodução de um modelo teórico de criminologia há muito superado. 
4 Ainda que por um discurso de sofisticado cariz social, aqui também há a reprodução desavisada de um 
modelo etiológico de abordagem criminológica, na medida em que veicula a ideia de que a criminalidade se 
centra nos pobres. Logo, se superada a pobreza, superado estaria o fenômeno criminoso. 
 
 
 
 
 
individuais. Quando se cuida das discussões que tocam a intervenção penal do Estado, tal 
percepção é ainda mais agravada, como se a luta pela concretização dos direitos humanos 
fosse conflitante com as razões que justificam a intervenção do Estado por meio da repressão 
penal. 
É em razão dessa abissal distância entre duas temáticas – direitos humanos e 
política criminal – que se faz necessária uma abordagem diferenciada das questões que tocam 
a intervenção penal do Estado. Mais que propostas que se reduzam a modificações 
legislativas, o tema reclama contribuição que respeite a complexidade das questões 
envolvidas e, principalmente, assuma um compromisso de realização material da dignidade 
humana. 
Para a consecução dessa tarefa, parece evidente que, em lugar das vazias 
construções estritamente jurídicas e dogmáticas – as quais, diga-se desde logo, possuem sua 
importância e valor, mas não têm aptidão de modificar por si sós a realidade, se consideradas 
isoladamente –, faz-se necessária uma abordagem com vocação mundana, impura, 
contaminada pelo contexto e pela dura realidade do sistema de justiça criminal. A utilização 
dessa abordagem guarda referência ao pensamento de Joaquín Herrera Flores (2000, p. 21 et 
seq.; 2008, p. 42 et seq.), para quem, ao se pôr em crise um objeto de estudo, especialmente 
um produto cultural, é preciso afastar todo tipo de metafísica e ontologia transcendentais, isto 
é, é preciso mundanizar o objeto de estudo. Todo fenômeno jurídico – e assim o é também 
para o fenômeno criminoso – está perpetrado de interesses ideológicos e não pode ser 
entendido à margem de seu fundo cultural. Essa realidade é muito mais presente quando se 
trata de temas próprios das ciências criminais. É essa tendência “descontextualizante” que 
permite ao direito ser objeto exclusivamente de análises lógico-formais e submetido a um 
fechamento epistemológico, autopoiético, como se suas normas estivessem separadas e 
isoladas dos contextos e interesses que necessariamente são subjacentes a toda produção 
normativa. 
Rejeitar abstrações ou essencialismos parece ser o único meio possível a evitar 
que o operador do sistema de justiça criminal exerça um papel descompromissado com a 
concretização da dignidade humana e dos direitos humanos. Em outras palavras, ou se 
constroem ferramentas para visibilizar o contexto subjacente ao funcionamento desse sistema, 
para comprometer a ordem que mantém essa realidade desigual (desestabilizar) e para 
 
 
 
 
 
modificar essa realidade social (transformar), ou os agentes envolvidos com esse mesmo 
sistema de justiça criminal permanecerão como meros reprodutores de uma ordem 
hegemônica e cultora de desigualdades. 
Uma abordagem crítica dos direitos humanos, que fixa por pressuposto a 
superação de uma visão abstrata, revela-se ainda mais necessária quando se refere ao campo 
penal. A abordagem tradicional dos direitos humanos, num discurso reproduzido pelas 
contribuições estritamente dogmáticas que cuidam do sistema de justiça criminal, peca 
justamente por considerá-los alijados de seu contexto (econômico, social, político) quando, na 
verdade, é justamente o contexto que informa uma visualização mais concreta das tramas 
sociais que são pano de fundo dos direitos humanos. 
Utiliza-se a expressão campo na presente investigação de acordo com a acepção 
desenvolvida por Pierre Bourdieu. A contribuição do pensador francês revela-se útil 
especialmente quando se toma o direito como produto cultural. Bourdieu afirma que, para 
compreender uma produção cultural (literatura, ciência, religião, direito, etc.), não basta 
referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se ao contexto social 
contentando-se em estabelecer uma relação direta entre o texto e o contexto. Satisfazer-se 
com isso implicaria o que ele chama de “erro de curto-circuito”. Entre o texto e o contexto 
existe um universo intermediário que Bourdieu chama de campo literário, artístico, jurídico, 
científico – a denominação varia conforme o segmento da realidade visualizado –, isto é, o 
universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou 
difundem a arte, a literatura, a ciência, o direito, etc. Esse universo é um mundo social como 
os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. 
 A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, 
esse microcosmo dotado de suas leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é 
submetido a leis sociais, essas não são as mesmas, jamais escapa às imposições do 
macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou 
menos acentuada. E uma das grandes questões que surgirão a propósito dos campos 
(ou dos subcampos) científicos, isso que se chamam as disciplinas, estará, de fato, 
em seu grau de autonomia. A mesma coisa entre as instituições. […] Um dos 
problemas conexos será, evidentemente, o de saber qual é a natureza das pressões 
externas, a forma sob a qual elas se exercem, créditos, ordens, instruções, contratos, 
e sob quais formas se manifestam as resistências que caracterizam a autonomia, isto 
é, quais são os mecanismos que o microcosmo aciona para se libertar dessas 
imposições externas e ter condições de reconhecer apenas suas próprias 
determinações internas. (2004, p. 20-21)5 
 
5 Embora se refira ao campo científico, vale notar que a lição de Bourdieu é válida também para o campo 
jurídico: basta acrescentar o qualificativo jurídico às referências que o autor faz a campo. 
 
 
 
 
 
O campo jurídico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações, 
etc., que são, no entanto, relativamente independentes das pressões do mundo social global 
que o envolve. As pressões externas, independente de sua natureza, só se exercem por 
intermédio do campo, são mediatizadas pela lógica do campo. Uma das manifestações mais 
visíveis da autonomia do campo é sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma 
específica as pressões ou as demandas externas. 
O grau de autonomia de um campo tem por indicador
principal seu poder de 
refração, de retradução. O aumento do grau de autonomia do campo é diretamente 
proporcional ao seu poder de refração. Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta-
se, essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em especial os problemas 
políticos, aí se exprimem diretamente. Isso significa que a “politização” de um campo não é 
indício de uma grande autonomia. Nesse particular, vê-se um altíssimo grau de autonomia do 
campo penal, em que as imposições externas são comumente transfiguradas a ponto, 
frequentemente, de se tornarem irreconhecíveis. 
Com efeito, é essa demasiada autonomia que explica a insensibilidade de 
operadores jurídicos a eventuais reclamos sociais ou políticos que tocam o campo penal. 
Estritamente vinculado ao jurídico, o campo penal praticamente fecha-se ao surgimento de 
novos sujeitos ou vozes políticas que lhe sejam exteriores. Quando permite a elas que o 
alcancem, as recebe num processo de refração e releitura que acaba por desqualificá-las.6 
A “retradução” da temática dos direitos humanos realizada pelo campo penal 
apenas se presta a reduzir a complexidade daquela. Em grande medida, é esse caráter 
refratário do campo penal às demandas que lhe são externas, notadamente as de caráter 
político, que explica a invisiblização dos contextos social, cultural e econômico subjacentes 
ao filtro seletivo que orienta a atuação do sistema de justiça criminal (seleção normativa, 
seleção pelos órgãos e sujeitos envolvidos na persecução penal, seleção do sistema prisional 
daqueles que passarão por suas agruras) e a mantença de uma ordem injusta e desigual. 
 
6 Por essa razão é que pululam, no campo da política criminal, assertivas que identificam demandas 
criminalizadoras como “coisas de leigos” ou advindas de “pessoas descompromissadas com princípios 
constitucionais”. Igualmente, demandas de descriminalização são comumente lidas como “conversa de liberal” 
ou “defesa de interesses próprios”. 
 
 
 
 
 
Mesmo a produção de conhecimento é reflexo também desse caráter refratário do 
campo penal. O tema da política criminal é exemplo patente de que todo conhecimento exerce 
uma função social. Qual a abordagem teórica que se volta à construção de novos espaços 
políticos de empoderamento7 popular em temas, por exemplo, de segurança pública? A 
ausência dessa produção de conhecimento dá-se pela impossibilidade de criação de novos 
espaços políticos ou porque a criação desses novos espaços pouco interessa à modificação da 
realidade miserável das questões penais? Parece claro que a segunda alternativa evidencia 
justamente que o conhecimento “científico” no campo penal revela-se como de baixa 
intensidade no que diz respeito ao exercício de uma função social, pois se mostra apenas 
como paradigma de conhecimento científico, mas ignora seu necessário conteúdo social, 
próprio de um paradigma de uma vida decente (SANTOS, 2007b, p. 37). 
Boaventura de Sousa Santos (2007a, p. 78-81) situa, na modernidade, dois tipos 
de conhecimento: o conhecimento-emancipação, dirigido a um estado de solidariedade, e o 
conhecimento-regulação, que se dirige a um estado de ordem. Ao longo do tempo, a 
supremacia da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia possibilitou ao 
conhecimento-regulação sobrepor-se ao conhecimento-emancipação, de modo a permitir que 
aquele recodificasse este em seus próprios termos. A exigência de uma nova postura 
epistemológica, entre outras, exige a assunção de uma estratégia que permita revalorizar a 
solidariedade como forma de saber, uma vez que se cuida de conhecimento obtido por meio 
do processo, sempre inacabado, de tornar as pessoas capazes de reciprocidade por meio da 
construção e do reconhecimento da intersubjetividade. A supremacia do pensamento 
dogmático no campo penal é ao mesmo tempo razão e consequência dessa supremacia da 
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia. Também por isso é que o 
pensamento penal apresenta-se esvaziado de um componente político e de práticas sociais de 
caráter emancipatório. 
 
7 A expressão empoderamento, que configura neologismo, deriva da expressão inglesa empowerment, 
tradicionalmente vinculada à ideia de dar poder às pessoas. A Real Academia Española já inclui o verbo 
empoderar em seu rol como sinônimo do verbete apoderar (cf. busca disponível na internet em 
<http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=empoderar>. Acesso em: 16 jul. 2009). 
Embora tenha surgido nos estudos de administração e vinculada à concepção de delegação de poder às pessoas, 
para melhor comprometimento nas respostas finais a serem construídas pela máquina administrativa; a 
expressão, que hoje é tão cara à abordagem crítica dos direitos humanos, deve ser compreendida como a 
atribuição de força, de poder, para se buscar expressões materiais e imateriais de dignidade. Em outras palavras, 
para os fins do presente trabalho, entenda-se empoderar como atribuir poder a alguém, para si e de per si, a fim 
de que esse alguém possa buscar, de per si, meios para lutar por uma vida digna. 
 
 
 
 
 
UMA APROXIMAÇÃO DO CAMPO PENAL 
Todo campo – e dessa afirmação não escapa o campo penal – é um campo de 
forças e também de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças. É a estrutura 
das relações objetivas entre os diferentes agentes que são as bases do campo. Como afirma 
Bourdieu, “[…] é a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles 
podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa 
estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posição” 
(2004, p. 23)8. A compreensão, portanto, do que diz ou do que faz um agente engajado num 
campo depende diretamente de sua condição de perceber a posição que ocupa nesse campo, 
de conhecer “de onde ele fala”. 
O espaço social específico a que se refere Bourdieu quando desenvolve o conceito 
de campo – e disso não escapa o campo jurídico – é aquele em que um conjunto de relações 
ou um sistema de posições sociais se definem umas em relação às outras. Essas relações 
definem-se de acordo com um tipo especial de poder ou capital específico, titularizado pelos 
agentes que entram em luta ou concorrem entre si, isto é, que jogam nesse espaço social 
(GARCÍA, A., 2001, p. 14-15). As posições dos agentes, portanto, definem-se historicamente 
de acordo com sua situação atual e potencial na estrutura de distribuição das diferentes 
espécies de poder (ou de capital, na dicção de Bourdieu), cuja titularidade condiciona o acesso 
aos proveitos específicos – bens – que estão em jogo no campo, bem assim definem-se por 
suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação, semelhança, etc.). 
A importância das categorias desenvolvidas por Bourdieu é evidente quando se 
tem em conta o reclamo de contextualização da realidade, isto é, o reclamo de que os 
operadores do sistema de justiça criminal não ignorem a realidade subjacente à atuação de 
caráter jurídico ou repressivo. É que o sistema de relações sociais em que consiste o campo é 
independente da população que essas relações definem. Significa dizer que os indivíduos não 
são meras ilusões inexistentes socialmente, mas existem como agentes – como sujeitos – que 
se constituem como tais e atuam no campo sempre que possuam as propriedades necessárias 
 
8 Afirma Bourdieu que essa estrutura é determinada, grosso modo, “[…] pela distribuição do capital 
científico num dado momento. Em outras palavras, os agentes (indivíduos ou instituições)
caracterizados pelo 
volume de seu capital determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de 
todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço. Mas, contrariamente, cada agente age sob a pressão da estrutura 
do espaço que se impõe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais frágil. Essa pressão 
 
 
 
 
 
para ser efetivos, para produzir efeitos nesse campo. É a relação entre campo e capital (ou, 
como se prefere aqui, entre campo e posição), que se relacionarão mutuamente numa espécie 
de círculo hermenêutico, que construirá o campo para que sejam identificadas as formas de 
capital (ou posições) específico que operam nele. Para construir as formas de capital 
específico, isto é, para construir suas posições, há de se conhecer o campo (GARCÍA, A., loc. 
cit.). 
Desse modo, pode-se afirmar que os campos são os lugares de relações de forças 
que implicam tendências imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta 
totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada momento. 
Em outras palavras, há estruturas objetivas – posições –, mas há também lutas em torno 
dessas estruturas. Os agentes sociais, evidentemente, não são partículas passivamente 
conduzidas pelas forças do campo. Os agentes sociais – no campo penal, os agentes jurídico-
criminais – titularizam disposições adquiridas. Bourdieu as chama de habitus; aqui serão 
referidas apenas como disposições. São elas maneiras de ser permanentes, duráveis, que 
podem levar os agentes a resistir, a se opor às forças do campo. 
A advertência de Bourdieu é precisa (2004, p. 28-29): 
[…] Aqueles que adquirem, longe do campo em que se inscrevem, as disposições 
que não são aquelas que esse campo exige, arriscam-se, por exemplo, a estar sempre 
defasados, deslocados, mal colocados, mal em sua própria pele, na contramão e na 
hora errada, com todas as consequências que se possa imaginar. Mas eles podem 
também lutar com as forças do campo, resistir-lhes e, em vez de submeter suas 
disposições às estruturas, tentar modificar as estruturas em razão de suas 
disposições, para conformá-las às suas disposições. 
A compreensão do campo, portanto, é construída a partir da consideração de suas 
características. Ao ter em conta a situação atual e potencial dos agentes na estrutura de 
distribuição do campo, Bourdieu (1996, p. 48-52) salienta a necessidade de considerar não 
apenas o estado da estrutura social, mas igualmente o processo de sua constituição. De modo 
mais específico, é preciso considerar não apenas a situação do agente, mas também sua 
trajetória social. Significa dizer que cada campo define-se como um sistema de diferenças, em 
que o valor de cada posição social não se define por si, mas por meio da distância social que a 
separa de outras posições, inferiores ou superiores. Há também formas de codificação e 
institucionalização das distâncias sociais para que sejam elas respeitadas (e mantidas) 
 
estrutural não assume, necessariamente, a forma de uma imposição direta que se exerceria na interação (ordem, 
 
 
 
 
 
(GARCÍA, A., 2001, p. 16-17; BORDIEU, 2001, p. 95 et seq.). É a ausência de consideração 
– ou o que as torna invisíveis – da situação e da trajetória do delinquente que fomenta a 
incidência de um sistema de justiça criminal descompromissado com a modificação da 
realidade em que atua, isto é, fomenta a mantença de uma atuação regulatória e alheia a um 
compromisso de mudança social que deveria permear toda a atuação estatal. 
O campo também caracteriza-se pelo fato de que a posição (ou capital) específica 
nele substancia condição de entrada, objeto e arma de atividade nesse mesmo campo. Daí a 
percepção do que Bourdieu (2008, p. 179 et seq.) chama de capital simbólico, a ser 
considerado como qualquer forma de capital representada ou apreendida simbolicamente 
numa relação de conhecimento (melhor seria dizer, desconhecimento e reconhecimento). Não 
se cuida, vale dizer, de uma espécie particular de capital, mas sim da posição em que se 
converte o capital quando não é reconhecido como posição; isto é, a força, o poder, a 
capacidade de exploração (atual ou potencial) apresentam-se por meio desse caráter simbólico 
como posição legitimamente aceita. O capital simbólico, assim, exibe-se como o poder de 
representar e outorgar valor, importância social, às formas de capital. Por conseguinte, todos 
os tipos de capital podem vir a se converter em capital simbólico. Tal fenômeno é corriqueiro 
no campo penal, em que as posições ocupadas costumam apresentar-se e manter-se por meio 
da ocultação dos contextos subjacentes à atuação do sistema de justiça criminal. 
Outra característica do campo é ser um espaço assimétrico de produção e 
distribuição do capital (ou das posições) e um lugar de concorrência pelo monopólio das 
posições. O estado das relações de força entre os agentes que ali competem entre si definem a 
estrutura do campo. A compreensão desses antagonismos sociais, no campo penal, reclama 
uma nova abordagem da leitura dos problemas envolvendo a prática criminosa e também das 
possíveis soluções a serem adotadas; ou seja, a consideração desses antagonismos sociais 
reclama uma reconstrução do próprio conceito de política criminal, para abarcar toda a 
atuação do sistema de justiça criminal, e não apenas o momento de normogênese penal. 
Dentro do campo, destaca-se o campo do poder. Este é definido em sua estrutura 
pelo estado das relações de força entre as formas de poder e as diferentes posições ocupadas 
pelos agentes, ou seja, o espaço das relações de força entre as diferentes espécies de capital. O 
destaque dado ao campo do poder conduz a uma constatação inevitável: o influxo dinâmico 
 
‘influência’ etc.)” (Id., p. 24). 
 
 
 
 
 
do campo tende continuamente a produzir e reproduzir o jogo entre os agentes e suas 
posições. 
De um lado, essa dinâmica permite ao próprio jogo ventilar-se e originar 
constantemente a adesão prática (dos que participam e também dos alijados do jogo) ao valor 
do jogo e de suas “apostas”, de sorte a legitimar a mantença dessas posições. No campo penal, 
aqueles que mais sofrem a incidência dos filtros do sistema de justiça criminal são justamente 
os que afirmam a legitimidade de um sistema cruel, que mantém invisível o contexto 
subjacente à sua efetivação e oculta seus próprios fracassos. Aqueles que corriqueiramente 
escapam da seleção do sistema de justiça criminal – e, não por coincidência, geralmente 
detentores de posições privilegiadas no campo econômico ou mesmo no campo do poder – 
são justamente os que mais questionam a legitimidade do sistema. De outro lado, os próprios 
órgãos e instituições estatais encontram-se permanentemente mobilizados para a mantença da 
posição então galgada ou mesmo, se possível, mobilizam-se para a ampliação da posição. 
A compreensão dessas características do campo social, tão bem tratada por 
Bourdieu (2001; 2004), esclarece que não existem atos gratuitos, ao menos numa percepção 
sociológica. Ser socialmente é ter interesse ou estar interessado. Desse modo, aplicadas as 
categorias de Bourdieu, com a ressalva quanto à terminologia, nota-se que é preciso sempre 
ter em conta os antagonismos existentes no seio social e, mais, o reconhecimento do caráter 
político das ações concretizadas inclusive pelas instituições estatais de assumido viés técnico, 
(verbi
gratia, o Ministério Público brasileiro e o próprio Judiciário). Se as instituições 
formalizam-se com atuações que se afirmam de cariz técnico, é preciso enxergá-las também a 
partir de um cariz político, já que inafastáveis ou incindíveis de seus próprios interesses, 
especialmente por conta das posições por elas ocupadas no campo penal. Perquirir sobre o 
papel dos agentes envolvidos com o sistema de justiça e seus compromissos com os direitos 
humanos passa necessariamente pela abordagem da posição ocupada por cada um deles na 
ordem jurídico-normativa brasileira. 
O habitus, expressão de Bourdieu, ou as disposições, expressão que aqui se 
prefere, referem-se ao conjunto de disposições dos agentes em que as práticas se convertem 
em princípio gerador de novas práticas. Como didaticamente explica García Inda (2001, p. 
25), “[…] El habitus, los diferentes habitus, son por lo tanto el sistema de disposiciones que 
es a su vez producto de la práctica y principio, esquema o matriz generadora de prácticas, de 
 
 
 
 
 
las percepciones, apreciaciones y acciones de los agentes”9. Por conseguinte, essas 
disposições são um produto social. Isso quer dizer que não são um conjunto de disposições 
para atuar, sentir, pensar e perceber adquiridas de forma inata ou “natural”; ao contrário, são 
adquiridas socialmente e, concretamente, em relação à posição que os agentes ocupam no 
sistema, em virtude da lógica de funcionamento desse sistema e da ação pedagógica que 
exerce sobre seus agentes. 
Daí compreende-se o habitus (disposições) como um sistema de competências 
sociais que implica duplamente, de um lado, uma capacidade prática de ação e, de outro lado, 
um reconhecimento social para exercê-las. O agente social em qualquer campo, inclusive no 
penal, busca nas estratégias que concretiza no jogo dos diversos campos sociais uma 
racionalidade implícita em suas respostas às demandas e censuras do espaço em que se move. 
De qualquer modo, uma advertência é necessária: ainda que o habitus seja uma matriz prática, 
não se pode afirmá-lo como princípio exclusivo de toda prática; em outras palavras, há 
sempre uma margem de indeterminação ou imprevisibilidade (ou mesmo liberdade?) que não 
permite identificar o sistema de disposições com um inconsciente estruturalista (BOURDIEU, 
2008, p. 85 et seq.). Uma vez mais a lição de García Inda é útil (2001, p. 28): 
[…] El habitus, por lo tanto, es inconsciente (o una forma de inconsciente), pero no 
es el inconsciente. […] En cuanto sistema de disposiciones, no somos nosotros 
quienes poseemos el habitus sino que es el habitus quien nos posee a nosotros. El 
habitus no es, por lo tanto, un concepto abstracto sino que es parte de la conducta (el 
“modo de conducir la vida”) del individuo, traducida tanto en maneras corporales 
(hexis) como en actitudes o apreciaciones morales (ethos). Tanto hexis como ethos 
son habitus o, mejor dicho, forman parte del habitus.10 
Essa noção conceitual de disposições (ou habitus), tal como construída por 
Bourdieu, uma vez que constitui uma subjetividade socializada, serve de ferramenta à 
compreensão tanto da combinação das práticas como das práticas de combinação social, na 
medida em que são elas práticas sociais mutuamente compreensíveis e imediatamente 
ajustadas às estruturas, objetivamente concertadas e dotadas de um sentido objetivo unitário e 
sistemático, transcendente em face das intenções subjetivas e dos projetos conscientes, 
 
9 Tradução: […] O habitus, os diferentes habitus, constituem, portanto, o sistema de disposições que, por 
sua vez, é o produto da prática e princípio, esquema ou matriz geradora de práticas, das percepções, apreciações 
e ações dos agentes”. 
10 Tradução: “[…] O habitus, portanto, é inconsciente (ou uma forma de inconsciente), mas não é o 
incosciente. […] Enquanto sistema de disposições, não somos nós que possuímos o habitus, mas é o habitus que 
nos possui. O habitus não é, portanto, um conceito abstrato, mas sim parte da conduta (o “modo de conduzir a 
vida”) do indivíduo, traduzida tanto em maneiras corporais (hexis) quanto em atitudes ou apreciações morais 
(ethos). Tanto hexis quanto ethos são habitus ou, melhor dizer, formam parte do habitus”. 
 
 
 
 
 
individuais e coletivos. Um dos efeitos fundamentais desse acordo entre o sentido prático e o 
sentido objetivo é a produção de um mundo de sentido comum, cuja evidência se reveste de 
uma pretensa objetividade e “naturalidade”. 
Ainda que duradouras, tais disposições não são imutáveis. Podem configurar-se 
como ferramenta hábil a desvendar as razões pelas quais o sistema de justiça criminal se 
naturaliza, isto é, o sistema torna-se imutável não pela rigidez de suas estruturas, mas por sua 
imposição, que nega a possibilidade de reação cultural face a ele. Isso porque, como salienta 
Herrera (2005a, p. 112 et seq.), os produtos culturais – e a atuação do sistema de justiça 
criminal evidentemente constitui manifestação de uma produção cultural – não são uma ação 
primária do ser humano; primeiramente surgem as relações e depois as representações – ou 
signos culturais – de que se valem os indivíduos para explicar, interpretar e estabelecer modos 
de intervenção sobre essas mesmas relações. Textualmente, leciona Herrera (2005a, p. 113): 
Primero son, pues, las relaciones y, después, llegan las representaciones – los 
signos-culturales, las cuales servirán para que los individuos que las construyen 
puedan explicar, interpretar y establecer modos de intervención sobre dichas 
relaciones. La cultura no funda nada, ni está en el origen de nada. Es una 
intervención de segundo orden sobre el conjunto de relaciones que mantenemos con 
la naturaleza, los otros y nosotros mismos. Ahora bien, lo cultural no es una 
actividad pasiva que se dedique a representar estáticamente dicho conjunto de 
relaciones. Al procurarnos medios e instrumentos que nos van a permitir explicar, 
interpretar e intervenir en las relaciones, vamos modificándolas ya sean en un 
sentido regulador o emancipador. Por esa razón, más que de “culturas”, hablamos de 
proceso cultural de humanización, el cual nos permitirá, si es que queremos buscar 
una alternativa al orden de cosas existente, acceder a la realidad de un modo 
emancipador y solidario. 
El proceso cultural supone siempre ese camino de ida y vuelta entre las reacciones 
culturales – individuales y colectivas – y las redes de relaciones que las provocan. 
Esto es lo que hemos denominado como el circuito de ‘reacción’ cultural.11 
O desafio, portanto, é compreender as disposições presentes no campo penal e, 
principalmente, orientá-las para uma atuação de cunho emancipador, vocacionada a modificar 
a realidade social em que atuam os agentes desse campo, a fim de tornar visível o contexto 
 
11 Tradução: “Primeiro, então, são as relações e, depois, chegam as representações – os sinais culturais 
que servirão para que os indivíduos as constroem possam explicar, interpretar e estabelecer modos de 
intervenção sobre as mencionadas relações. A cultura não funda nada nem está na origem de nada. É uma 
intervenção de segunda ordem sobre o conjunto de relações que mantemos com a natureza, os outros e com nós 
mesmos. É de ver, contudo, que o cultural não é uma atividade passiva que se dedique a representar 
estaticamente esse conjunto de relações. Ao procurarmos meios e instrumentos que nos permitam explicar, 
interpretar e intervir nas relações, nós as modificamos, seja num sentido regulador, seja num sentido 
emancipador. Por essa razão, mais que “culturas”, falamos de processo cultural de humanização, que nos 
permitirá, se buscamos uma alternativa
à ordem de coisas existente, ascender à realidade de um modo 
emancipador e solidário. O processo cultural pressupõe sempre esse caminho de ida e volta entre as reações 
 
 
 
 
 
subjacente à atuação de seus atores e, principalmente, contaminar essa atuação com os 
reclamos e demandas, de baixo para cima, dando poder (ou empoderando) às vozes populares 
para informar a atuação das instituições de garantia da coletividade, de sorte a bem 
compreender que a ordem hoje vigente é apenas uma ordem vigente dentre outras possíveis 
realidades que cabe a todos modificar ou recriar. 
O campo é objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade. Em 
verdade, no campo penal, os agentes sociais estão inseridos na estrutura e em posições 
(relações objetivas existentes entre as estruturas) que orientam as estratégias que desenvolvem 
nos limites de suas disposições. Essas estratégias orientam-se seja para a conservação da 
estrutura seja para a sua transformação. Quanto mais os agentes ocupam posição favorecida 
na estrutura, mais tendem a conservar ao mesmo tempo a estrutura e sua posição, nos limites, 
porém, de suas disposições (isto é, de sua trajetória social, de sua origem social) que são 
apropriadas mais ou menos à sua posição (BOURDIEU, 2004, p. 29). É na relação entre a 
posição e a disposição que hoje ocupam os agentes realizadores do sistema de justiça criminal 
que se encontra o grande desafio de implementação dos direitos humanos no campo penal. 
UMA NOVA CULTURA DOS DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE CONTEXTUALIZAÇÃO 
A ausência da contextualização, além de trazer o risco do importe de soluções 
justificáveis apenas em realidades distintas da brasileira, traduz abstração que apenas colabora 
para a não efetivação de garantias jurídicas colocadas em favor dos direitos humanos. O 
encadeamento – ora como consequência, ora como causa – dessa descontextualização das 
relações que atuam por trás da intervenção penal do Estado é próprio de uma abordagem 
essencialista dos direitos humanos. De acordo com ela, os direitos humanos são algo dado, 
tomados por pressuposto e, por conseguinte, prescindem de justificação e esforço teórico12. 
 
culturais – individuais e coletivas – e as redes de relações que as provocam. É o que denominamos de circuito de 
‘reação’ cultural”. 
12 Nesse sentido, a título de exemplo, Niccola Matteucci, ao tratar da natureza dos direitos humanos, 
explica: “[…] os que defendem que tais direitos são naturais, no que respeita ao homem enquanto homem, 
defendem também que o Estado possa e deva reconhecê-los, admitindo assim um limite preexistente à sua 
soberania. Para os que não seguem o jusnaturalismo, trata-se de direitos subjetivos concedidos pelo Estado ao 
indivíduo, com base na autônoma soberania do Estado, que desta forma não se autolimita. Uma via intermediária 
foi seguida por aqueles que aceitam o contratualismo, os quais fundam estes direitos sobre o contrato, expresso 
pela Constituição, entre as diversas forças políticas e sociais. Variam as teorias, mas varia também a eficácia da 
defesa destes direitos, que atinge seu ponto máximo nos fundamentos jusnaturalísticos por torná-los 
indisponíveis. A atual Constituição da República Federativa alemã, por exemplo, prevê a não possibilidade de 
revisão constitucional para os direitos do cidadão, revolucionando assim toda a tradição juspublicista alemã, 
fundada sobre a teoria da autolimitação do Estado” (BOBBIO, 1995, v. 1, p. 354). 
 
 
 
 
 
Por força dessa abordagem essencialista que parece imutável, “natural”, a 
realidade jurídico-penal é vista como algo apartado de considerações sobre as desigualdades 
sociais e econômicas. O fenômeno criminoso, em regra, apenas permite uma visualização 
dualista e maquiavélica: quem pratica crime é “mau” e, por isso, há de receber uma resposta 
dura para preservação de quem é “do bem”. A incidência do sistema de justiça criminal se 
“naturaliza” e, nesse processo, torna-se invisível. A prática criminosa ganha a pecha de livre 
arbítrio ou mesmo de opção facilitada para concretizar ambições materiais desarrazoadas. 
O campo da repressão penal oscila numa dualidade evidente. A repressão penal – 
cada vez mais utilizada dentre os diversos instrumentos formais de controle social – atua de 
modo ambivalente e frequentemente contraditório, o que em grande medida permite visualizar 
um pensar criminológico igualmente ambivalente e contraditório. David Garland (1999, p. 59 
et seq.) identifica pelas expressões “criminologia do eu” e “criminologia do outro” essa 
dualidade contraditória em si, que expressa um conflito que está no próprio coração da 
política contemporânea, e não uma resposta logicamente diferenciada às diversas espécies de 
criminalidade. Deveras, de um lado, tem-se a percepção da necessidade de enfrentar a 
criminalidade como um aspecto constitutivo e inexpurgável da vida social contemporânea 
(aqui incidiria o que chama Garland de “criminologia do eu”); de outro lado, vê-se a negação 
histérica dessa realidade (aqui, a “criminologia do outro”), que aponta o criminoso como 
monstro e indica um recuo a estratégias de enfrentamento do crime mais primitivas e de 
eficácia meramente simbólica. 
Embora se refira à realidade do Reino Unido, a observação de Garland acerta 
igualmente em relação ao contexto brasileiro e à dura realidade da violência urbana (1999, p. 
64): 
A difícil situação que os governos têm que enfrentar reside no fato de que eles não 
podem mais ser a principal fonte de segurança e da repressão criminal, ao mesmo 
tempo em que sabem que a curto prazo uma tal confissão pública tem todas as 
chances de ser politicamente desastrosa. Daí um esquema de ação política 
notavelmente ambivalente: de um lado, a preocupação em enfrentar o problema e 
desenvolver novas estratégias que lhe sejam racionalmente adequadas; mas, de outro 
lado, ao lado dessas novas e às vezes dolorosas adaptações, uma tendência 
recorrente a uma espécie de “negação” histérica e à reafirmação enfática do velho 
mito da soberania do Estado. A característica distintiva do período atual não é a 
“punitividade”, mas antes a ambivalência. Ele oscila de modo errático entre a 
“adaptação” e “negação”, entre tentativas de enfrentar a situação e tentativas de 
fazê-la desaparecer magicamente. 
 
 
 
 
 
Uma visão isolada dos aportes trazidos pela criminologia é uma visão 
descontextualizada, o que impede seja o atual panorama colocado em crise. A triste realidade 
de encarceramento por critérios censitários, étnicos, culturais, etc.; a gritante ausência de 
efetividade de reclamos de criminalização para uma clientela intocável pelo braço estatal 
(white collar crime13); a desarrazoada utilização da resposta punitiva, seja por reclamos tidos 
como progressistas (recrudescimento penal do tratamento da homofobia14, da violência de 
gênero15, para citar dois exemplos), seja por reclamos rotulados como conservadores 
(criminalização do aborto, por exemplo); a repetição impensada e descompromissada de 
práticas que apenas justificam a mantença de uma ordem desigual e injusta por parte de 
agentes e instituições dotadas de meios para o exercício de uma vocação diametralmente 
oposta a esse matiz regulador; enfim, os exemplos são infindáveis a respeito da invisibilização 
dos contextos que reclamam mudanças ao se assumir um compromisso de realização dos 
direitos humanos. 
O reflexo desse essencialismo na abordagem dos direitos humanos e seus reflexos 
no campo penal é evidenciado pela sofisticação extremada do cabedal teórico-dogmático para
enfrentamento das questões penais. Talvez a preocupação com questões de alta sofisticação 
dogmática só sirva mesmo como reforço aos antolhos dos operadores do sistema de justiça 
 
13 A expressão é atribuída a Edwin Sutherland, expoente do interacionismo simbólico. A explicação de 
Bruno Amaral Machado (2006, p. 283) é precisa sobre a expressão, razão pela qual convém citá-la: “O conceito 
de crime de colarinho branco, cunhado por Sutherland (1940), acabou gerando certa confusão. Em determinados 
momentos, o autor se refere aos delitos cometidos por indivíduos das camadas altas da sociedade e, em outros, 
aos delitos praticados no desempenho de uma ocupação (SUTHERLAND, 1940; 1945). Na investigação 
empírica realizada posteriormente, Sutherland (1940) centra-se nos delitos cometidos por organizações de 
indivíduos, a que ele também denomina White-collar crime. Conforme salientam Weisburd e Waring (2001), 
status, ocupação e organização são aspectos centrais da definição de Sutherland. Nos estudos posteriores, o 
conceito refere-se ao abuso de poder pelas pessoas que ocupam posições privilegiadas e, em determinadas 
pesquisas, relaciona-se ao contexto em que os crimes são praticados e métodos usados. Investigações empíricas 
sugerem que a maioria dos delitos dessa natureza advém dos estratos médios da sociedade, o que seguramente é 
significativo, por evidenciar a seletividade da justiça criminal. De qualquer forma, Sutherland deve ser entendido 
no contexto em que ele escreveu seus trabalhos. Naquela época, apenas uma pequena elite teria acesso aos meios 
necessários para cometer delitos dessa natureza. Assim, diversas mudanças sociais e econômicas ampliaram as 
oportunidades para um grupo maior de pessoas (WEISBURD; WARING, 2001, p. 8-10). Conferir as críticas 
sobre o conceito de crimes de colarinho branco em: Nelken (1994) e Shapiro (1994)”. No mesmo sentido, cf., 
BARATTA, 2004, p. 63-65. 
14 Tramita no Senado Federal brasileiro o Projeto de Lei 122 de 2006. Iniciado na Câmara dos Deputados, 
sob o n. 5.033, em 7 de agosto de 2001, o projeto altera a Lei 7.716, de 1985, bem assim dá nova redação a 
dispositivos do Código penal brasileiro e da Consolidação das Leis do Trabalho, para estabelecer “sanções às 
práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas”. O projeto recebeu diversas manifestações 
de apoio de entidades costumeiramente vinculadas a lutas pelos direitos humanos. 
15 É o caso da Lei 11.340, de 2006, nominada “Lei Maria da Penha”, que recrudesceu o tratamento penal 
nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda que muitas de suas medidas tenham vindo a 
lume em boa hora, como as medidas protetivas e outras respostas que não necessariamente impõem a privação 
da liberdade. 
 
 
 
 
 
criminal em relação à dura realidade, que, embora alijada das discussões jurídicas, insiste 
fazer-se presente de modo “incômodo”, insistente. 
Vê-se uma tensão entre o jurídico e a temática dos direitos humanos, muito por 
conta da costumeira confusão entre o que sejam as garantias colocadas à disposição para a 
implementação dos direitos humanos e o que sejam os próprios direitos humanos. A redução é 
evidente e traz só uma consequência: se a garantia se confunde com o objeto da garantia, a 
simples previsão de uma garantia (uma só, que de per si não é hábil a implementar direitos e 
provocar mudanças na realidade) encerra a discussão e dá a falsa impressão de que a temática 
dos direitos humanos resolve-se com novas leis, novos tratados, novos diplomas legais. 
Revela-se oportuno, então, desde logo, fixar a compreensão de que os direitos 
humanos não se resumem a previsões normativas lançadas no plano internacional ou mesmo 
interno dos países que com eles se dizem compromissados. Num marco teórico crítico, de 
metodologia relacional e de rechaço a abordagens essencialistas e abstratas, os direitos 
humanos são compreendidos como processos. Assumem uma concepção dinâmica e 
constituinte. São processos dirigidos à obtenção de bens materiais e imateriais. A razão pela 
qual se justifica a construção de um conceito nesses termos reside na evidente percepção de 
que hoje não existe um acesso igualitário e não hierarquizado aprioristicamente a bens 
materiais e imateriais. 
O compromisso com os direitos humanos é um compromisso de modificação 
dessa realidade. É um compromisso com a efetivação de condições hábeis a potencializar 
ferramentas de construção de igualdade para todos. É a busca da realização da igualdade a 
partir da compreensão de que esta há de ser alcançada por meio de um exercício de alteridade, 
isto é, na medida em que a dimensão de igualdade só existe enquanto e na medida em que a 
igualdade também é permitida e assegurada ao que se diz igual e para quem se afirma igual. 
Toda a construção crítica de direitos humanos representa um esforço de 
modificação da realidade, de mudança social, porque rechaça por completo concepções que 
impedem a visibilização e a modificação de um contexto. A expressão “crítica”, aqui 
veiculada repetidamente, é compreendida como referência ao instrumental pedagógico 
operante, nas esferas teórica e prática, hábil a permitir uma tomada histórica de consciência e, 
com isso, desencadear processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de 
 
 
 
 
 
uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora, num 
marco histórico-concreto, de prática cotidiana insurgente, dos conflitos, das interações sociais 
e das necessidades humanas essenciais (WOLKMER, 2002, p. 5). 
Os direitos humanos, sob o prisma de sua realização, materializam processos. 
Porém, sob o prisma de seu surgimento, são produtos culturais e a importância de tal 
consideração reside justamente na percepção de que os produtos culturais, modificam a 
realidade. Cuida-se de matizar e gerir efeitos da percepção cultural dos direitos humanos, 
partindo para a formulação de propostas e instrumentos que se ponham além da investigação 
de causas. 
Fixar os direitos humanos como produtos culturais significa que eles possibilitam 
processos de reação alternativa e contextualizada ao ambiente em que se vive e às relações 
nele travadas.16 Daí, então, pode-se conceituá-los da seguinte forma (HERRERA, 2005b, p. 
246-247): 
[…] los derechos humanos, como productos culturales, supondrían la institución o 
puesta en marcha de procesos de lucha por la dignidad humana. […] Son productos 
culturales que instituyen o críen las condiciones necesarias para implementar un 
sentido político fuerte de libertad (opuesto a la condición restrictiva de la libertad 
como autonomía): mi libertad (de reacción cultural) comienza donde comienza la 
libertad de los demás; por lo que no tengo otro remedio que comprometerme y 
responsabilizarme – como ser humano que exige la construcción de espacios de 
relación con los otros – con la creación de condiciones que permitan a todas y a 
todos poner en marcha, continua y renovadamente, caminos propios de dignidad. 
[…] los derechos humanos son el resultado de luchas sociales e colectivas que 
tienden a la construcción de espacios sociales, económicos, políticos y jurídicos que 
permitan el empoderamiento de todas y todos para poder luchar plural y 
diferenciadamente por una vida digna de ser vivida.17 
 
16 Herrera Flores (2005b, p. 118) afirma que o conceito de direitos humanos imposto na segunda metade 
do século XX baseou-se em tendências estritamente unidas entre si: a universalidade dos direitos e sua 
identidade inata à pessoa humana. Por consequência, apresentavam-se como produtos culturais imutáveis e não 
mais como produtos
convencionais ou culturais surgidos em contextos históricos reais. Por conseguinte, nada 
nem ninguém poderia contrariar essa essência, pois tal atitude significaria atentar contra as próprias 
características da natureza e o mistério da dignidade humana, costumeiramente indefinível e só formulada em 
termos gerais e difusos. 
17 Tradução: “[…] os direitos humanos, como produtos culturais, implicariam instituir ou colocar em 
prática processos de luta pela dignidade humana […] São produtos culturais que instituem ou criam as condições 
necessárias a implementar um sentido político forte de liberdade (oposto à condição restritiva de liberdade como 
autonomia): minha liberdade (de reação cultural) começa onde começa a liberdade dos demais; pelo que não 
tenho outro remédio que me comprometer e me responsabilizar – como ser humano que exige a construção de 
espaços de relação com os outros – com a criação de condições que permitam a todos e a todas pôr em marcha, 
contínua e renovadamente, caminhos próprios de dignidade. […] os direitos humanos são o resultado de lutas 
sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o 
empoderamento de todas e todos para poder lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida”. 
 
 
 
 
 
O esforço deve voltar-se à elaboração de uma concepção material e concreta de 
dignidade humana, que é o acesso igualitário e não hierarquizado a bens materiais e imateriais 
necessários a uma vida que valha a pena ser vivida. A concretização dessa dignidade, decerto, 
orienta-se pela assunção de um valor, que se dirigirá, por sua vez, a um acordo construído (e 
não assimilado como dado). O critério de valor para alcance da dignidade humana assim 
conceituada é o critério de valor da riqueza humana, cujo único conteúdo de universalidade 
aceito refere-se justamente a assegurar as lutas para acesso a bens materiais e imateriais. 
Para Herrera Flores, os direitos humanos, portanto, devem ser compreendidos 
como meios discursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os seres 
humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida, permitindo a abertura de espaços 
de luta e reivindicação. São processos dinâmicos que permitem a abertura e a conseguinte 
consolidação e garantia de espaços de luta pela dignidade humana. Em suas palavras, “[…] El 
único universalismo válido consiste, pues, en el respeto y la creación de condiciones sociales, 
económicas y culturales que permitan la lucha por la dignidad” (2008, p. 156)18. Daí a 
necessidade de abandonar toda concepção abstrata e assumir o dever imposto pelo valor da 
liberdade: a construção de uma ordem social justa que permita e garanta a todos lutar por suas 
reivindicações. 
Nessa ótica, revela-se imprescindível a criação de mediações políticas, 
institucionais e jurídicas que garantam o reconhecimento, o empoderamento, aos excluídos 
pelos processos hegemônicos de construção da realidade social. Se uma abordagem crítica 
supõe problematizar o objeto de investigação, cumpre questionar qual a relação da política 
criminal com o sistema penal em geral, suas próprias estruturas internas e como ela atua face 
aos operadores do sistema de justiça criminal. Objetiva-se pôr em crise a ideia de política 
criminal, isto é, ampliar a visão político-criminal a um compromisso com os direitos 
humanos. Não se cuida de rechaçar as construções até então havidas em torno desse tema, 
mas ampliá-lo a fim de visualizar sua relação com outros fenômenos sociais que lhe tocam. A 
partir daí, impõe-se buscar critérios emancipadores para análise e reconstrução do objeto em 
crise. Em outras palavras, por meio da formulação de um instrumental teórico que permita o 
resgate da ação política no campo penal, pavimentar a possível apresentação de propostas 
hábeis à modificação da realidade num marco de concretização dos direitos humanos. Só aí é 
 
18 Tradução: “O único universalismo válido consiste, pois, no respeito à criação de condições sociais, 
econômicas e culturais que permitam a luta pela dignidade”. 
 
 
 
 
 
que uma contribuição teórica deduzida a partir de um marco crítico se justifica, isto é, a 
incursão acadêmica em temas do sistema de justiça criminal só guarda relevância e 
compromisso com uma abordagem crítica se prestar-se: a visibilizar o contexto subjacente ao 
instrumental normativo já existente; a desestabilizar esse mesmo contexto, para orientar ações 
compromissadas com um empoderamento popular; e a transformar a realidade a que se 
refere. 
Em consonância com Bourdieu e sua compreensão da realidade social em campos, 
Herrera Flores (2008, p. 83-84) salienta os elementos referentes ao conjunto de capitais, 
distribuídos hierárquica e desigualmente em função das relações de força e de poder que 
predominam nesses capitais. Daí salienta as diferentes posições que ocupam os sujeitos no 
momento de ascender aos bens que constituem o objetivo do respectivo campo. Juntamente 
às posições, destaca as disposições, que, como já mencionado, são as atitudes que as pessoas e 
os grupos que atuam no campo criam na hora de reproduzir ou transformar as distribuições 
hierárquicas e desiguais de posições que ocupam no acesso aos bens que compõem os 
objetivos do campo em questão. 
O estado de tensão entre posições e disposições constitui o próprio dinamismo e a 
historicidade de uma estrutura ou ordem social. Nesse marco, os direitos humanos constituem 
a prática de disposições críticas com respeito ao conjunto de posições desiguais que as 
pessoas e grupos ostentam tanto em nível local quanto em nível global (HERRERA, 2008, p. 
104 et seq.). A fixação de instituições de garantia ou mesmo de agentes estatais 
compromissados com os direitos humanos, de um modo geral, reclama a permanente 
discussão das disposições assumidas por eles, sob risco, repita-se, de se prestarem apenas a 
reproduzir a ordem contra a qual deveriam lutar. 
A intervenção penal do Estado, num marco de abordagem essencialista, abstrato, 
alija o componente político do campo penal. Em verdade, o direito penal e as garantias 
formalizadas para a concretização do acesso aos bens de que as normas são instrumentos de 
alcance devem ser compreendidos a partir da experiência política, dentro da prática política e 
para a prática política. Como consequência, surge a preocupação de abordar a política 
criminal: será ela o meio pelo qual a intervenção penal do Estado será informada e ao mesmo 
tempo limitada, a fim de que a resposta penal do Estado não assuma o viés de simples 
vulneração dos direitos humanos. Em outras palavras, uma prática de sistema de justiça 
 
 
 
 
 
criminal comprometida com os direitos humanos exige a assunção do compromisso de elevar 
o componente político à discussão no campo penal. 
Qual a finalidade dessa discussão política no campo penal? O resgate da ação 
política surge como meio de empoderamento popular, de emancipação social e de abertura ao 
surgimento de um novo papel político-criminal a ser exercido pelos agentes envolvidos na 
realização do sistema de justiça criminal e pela própria coletividade numa abordagem mais 
ampla. Para tanto, há de se repensar a atuação do sistema de justiça de modo integral, 
respeitar a complexidade que envolve o tema e, com isso, assegurar – ou se comprometer a 
buscar os meios hábeis a assegurar – um acesso igualitário e não hierarquizado a bens 
imateriais muito caros à questão político-criminal: a segurança pública e o acesso à jurisdição 
penal. 
O que se vê hoje é um acesso absolutamente desigual e hierarquizado a esses 
bens. O desenho das grandes cidades, que cada vez mais dá
lugar à formação de guetos e 
pontos de absoluta exclusão social, contrasta com a proliferação de “ilhas” fechadas e 
autorreferentes, onde classes mais ricas preocupam-se em se manter “seguras” em face dos 
mais pobres. A ampla gama de garantias formalmente previstas, por exemplo, para aqueles 
que ingressam no sistema prisional, hoje, só são alcançadas por uns poucos, ao passo que a 
grande massa carcerária sofre com condições desumanas, degradantes, que evidenciam uma 
“coisificação” do ser humano. 
Mesmo a percepção das possíveis respostas ao problema da segurança pública 
passa por uma avaliação que, curiosamente, responde a uma formação de caráter econômico 
ou financeiro. No mês de março de 2008, foram divulgados os resultados de uma pesquisa 
promovida no Brasil sobre a avaliação quantitativa da população com relação à segurança 
pública. Nela, vê-se que 55% da população que se encontra na faixa de renda superior a dez 
salários mínimos avalia a segurança pública no Brasil como péssima (as respostas possíveis 
eram “ótima”, “boa”, “regular”, “ruim”, “péssima”, “não sei/não tenho opinião”). No cômputo 
geral, sem considerar a renda, apenas 31% da população avalia a segurança pública como 
péssima. O seguinte quadro demonstra a opinião sobre o tema19: 
 
19 Cuida-se da pesquisa promovida pela Confederação Nacional da Indústria – CNI e realizada pelo 
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE, de abrangência nacional, em que foram ouvidas, 
num universo de eleitores com 16 anos de idade ou mais, uma amostragem de 2.002 entrevistados distribuídos 
em 141 municípios brasileiros (CONFEDERAÇÃO, 2008). A mesma pesquisa indicou que os aspectos mais 
 
 
 
 
 
Tabela - Avaliação da segurança pública no Brasil 
 Total Renda (em salários mínimos) 
Mais de 10 Mais de 5 
a 10 
Mais de 2 
a 5 
Mais de 1 
a 2 
Até 1 
Ótima 3 1 2 2 4 4 
Boa 15 7 13 16 15 16 
Regular 29 27 30 27 31 26 
Ruim 22 10 25 25 20 23 
Péssima 31 55 30 30 29 30 
Não 
sabe/Não 
opina 
0 0 0 0 0 1 
Saldo -35 -57 -40 -37 -30 -33 
Pergunta: “Atualmente, como o sr.(a) avalia a segurança pública no Brasil? O(a) sr.(a) diria que a segurança no 
Brasil é:” 
 
Na persecução penal, em que pese a figura do acusado no sistema jurídico estar 
positiva e formalmente afirmada como sujeito de direitos, vê-se na prática uma automatização 
do instrumental punitivo em relação a muitos e uma crise de efetividade do sistema de justiça 
criminal em relação a uns poucos (“coincidentemente”, os mais ricos). A percepção da 
violência urbana faz-se mais presente na criminalidade violenta, amplamente noticiada pela 
mídia; a mesma mídia que reserva colunas sociais e notícias mais amenas a outros 
comportamentos delinquentes não identificados como tão lesivos ou sujeitos a reprovação 
(desvios de recursos públicos, corrupção, etc.). Mesmo as discussões jurisprudenciais só 
trazem embates mais detidos sobre o conteúdo constitucional de preceitos atinentes à 
persecução penal e ao direito penal quando os envolvidos ostentam alguma qualidade que os 
distinga da vala comum que alberga a “clientela” usual do sistema penal (pobres).20 
 
importantes para melhorar a segurança são, nessa ordem, o combate ao tráfico de drogas, o combate à corrupção 
da polícia, o reforço do policiamento e a adoção de leis mais rigorosas para punição dos delinquentes. 
Curiosamente, entre as ações enumeradas como respostas possíveis, nenhuma delas se referia a estratégias de 
discussão democrática ou mesmo de participação popular na eleição dos temas a serem aprofundados ou mesmo 
das soluções a serem adotadas. 
20 Nesse sentido, merece destaque a pesquisa empreendida por Marina Quezado Grosner (2008) na 
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, corte superior brasileira responsável pela uniformização do 
entendimento jurisprudencial a respeito da legislação infraconstitucional. Para demonstrar a discricionariedade 
seletiva da Corte, a autoria debruçou-se sobre 3.790 julgados no período de 15 anos (de 1989 a 2004) cujos 
pedidos referiam-se ao trancamento de ações penais (processos de habeas corpus). Na conclusão de sua 
investigação, verificou que as decisões de trancamento da ação penal ocorrem com mais frequência nos crimes 
econômicos, crimes contra a administração pública, crimes contra a honra e crimes contra o patrimônio (com 
destaque ao estelionato), nessa ordem. Registra a autora, com precisão, que o Tribunal, em sua atuação seletiva, 
reforça a distribuição desigual do status de criminoso, ao excluir apenas determinados indivíduos, devidamente 
selecionados, do sistema penal (2008, p. 190-191). Em outro estudo, centrado nas decisões do Tribunal de 
Justiça do Estado de São Paulo, de modo quantitativo e qualitativo, concluiu-se que “[…] a maioria dos 
indivíduos acusados por roubo obtém uma condenação no regime mais gravoso que o previsto em lei […] a 
fundamentar tais decisões encontram-se, em grande medida, motivações de caráter extrajurídico e de cunho 
ideológico, comuns às teses encontradas no senso comum sobre a criminalidade” (DECISÕES, 2005, p. 58). 
 
 
 
 
 
O campo jurídico-penal, quando relacionado à temática dos direitos humanos, 
reforça as complexidades jurídica e empírica deles (HERRERA, 2008, p. 30 et seq.)21. A 
complexidade empírica destaca a necessidade de sempre se ter em conta que o direito se 
expressa em linguagem deôntica e, por conseguinte, há que se efetivar por meio da construção 
de todo tipo de intervenções sociais e públicas. Não é porque o direito se expressa 
normativamente que as garantias para sua implementação resumem-se às garantias jurídicas. 
Aliás, a desconsideração dessa complexidade é que fomenta contextos como o brasileiro, que 
conta com textos normativos avançadíssimos e, paradoxalmente, uma realidade de 
 
21 Como didaticamente explicita Herrera Flores, os direitos humanos são tema de alta complexidade que 
pode ser visualizada por meio de sete abordagens. Aqui, apenas duas delas são mencionadas – complexidades 
empírica e jurídica. Porém, a primeira complexidade é a cultural, consistente na compreensão do contexto de 
surgimento dos direitos humanos tal como são compreendidos hoje – surgiram como resposta às reações sociais 
e filosóficas que supôs a consciência de expansão global de um novo modo de relação social baseada na 
constante acumulação de capital. Por conseguinte, não é possível visualizá-los fora de seus contextos ocidentais, 
máxime quando se tem em conta que veiculam uma estreita confluência entre elementos ideológicos 
(supostamente universais) e premissas culturais (próprias das relações particularizadas das pessoas). A segunda e 
a terceira abordagens são justamente as complexidades empírica e jurídica. A quarta abordagem diz respeito à 
complexidade científica, que exige uma tomada de posição científica quanto aos obstáculos e aos esforços para 
implementação dos direitos humanos. Essa posição implica afastar toda pretensão de objetividade e neutralidade 
no estudo e na prática dos direitos humanos, pois essas pretensões implicam inevitavelmente em especialização e 
formalização, a tratar os direitos humanos como se fossem algo autônomo, neutro e já realizado. Em verdade, 
“[…] son las luchas sociales las que impulsan a la creación de nuevas teorías e, incluso, a que las normas 
jurídicas internacionales vayan cambiando de rumbo” (2008, p. 39-40; Tradução: “[…] são as lutas sociais que 
dão impulso à criação de novas teorias e, inclusive, a que

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