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parentalidade e bioetica

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TEXTO IMPORTANTE SOBRE PARENTALIDADE 
	
A Tripla Parentalidade (Biológica, Registral e Socioafetiva)
I – Família, Parentalidade e Bioética
	A sociedade tem como célula fundamental a família. Esse vocábulo geralmente é entendido em sentido restrito, como a sociedade conjugal, compreendendo tão-somente os cônjuges a sua prole. Como a modificação dos costumes decorrente dos dias que hoje correm, esse conceito precisou ser alterado para abranger as chamadas famílias monoparentais, aquelas formadas por apenas um dos genitores e a prole. A problemática da vida moderna está colocando em xeque conceitos antes tidos como claros e singelos, o que está a exigir dos operadores do direito a reavaliação e a redefinição de diverso conteúdos.
	Isso ocorre, com clareza, quando nos deparamos com o conceito de família; à primeira vista, este parece muito simples, mas, diante da complexidade do cotidiano, verificamos múltiplas facetas que precisam ser aclaradas para a completa compreensão do que seja família, bem como de sua abrangência e relevância. Para essa completa compreensão, entendemos que se precisa passar pela identificação do que seja parentalidade; é neste aspecto que se pretende lançar algumas idéias.
	Hodiernamente, a questão da parentalidade está sendo apresentada sob três enfoques distintos, a saber: a parentalidade biológica, que envolve a vinculação genética entre pais e filhos; a parentalidade registral, explicitada pela identificação no assento de nascimento de quem são os genitores da pessoa; e a parentalidade socioafetiva, que envolve aspectos de afeto e representação em/para a sociedade.
	Nos primórdios da história humana, a parentalidade era apenas biológica, até em razão da falta de sistema social e registral organizado. É de se lembrar que, em períodos pré-históricos, quando a vinculação entre congresso sexual e procriação ainda não era um conceito plenamente conhecido, acreditava-se que as mulheres eram seres quase mágicos, que geravam vida, sem que se soubesse exatamente de que forma. Posteriormente, surgiu a percepção de que a responsabilidade pela geração de uma nova vida era do homem, pois se acreditava que no sêmen estava a semente de uma nova pessoa, sendo o útero materno apenas uma espécie de incubadora da nova pessoa. É bastante recente o conhecimento dos meandros da reprodução humana, ou seja, que é da união de gametas sexuais feminino e masculino que é gerada a nova vida.
	Com avanços do conhecimento sobre a forma de geração da vida e a organização da sociedade em grupamentos, bem como a premente necessidade de regulamentar uma vivência social cada vez mais complexa, a questão da identificação das origens passou a apresentar efetiva importância. Não se pode deixar de referir que a apropriação, por parte do cristianismo, da idéia de casamento monogâmico, faz com que a sociedade ocidental passe a se alicerçar na idéia de família, entendida esta como a união de um homem e uma mulher, perante a autoridade constituída, para o fim de procriação.
	A regulamentação torna-se necessária para aclarar aquilo que até então era absolutamente obscuro, as origens da pessoa humana. ELIZABETH ROUDINESCO, ao analisar a questão sobre a ótica de THOMAS HOBBES, lembra que este, em sua obra mais conhecida, O Leviathan, “vê a ordem do mundo como composta de dois princípios soberanos: o estado da natureza, figurado pela mãe, única a designar o nome do pai, e o estado de aquisição, encarnado pelo pai: ‘se não existe contrato, a autoridade é a da mãe. Pois, no estado de natureza, lá onde não existe lei alguma sobre o casamento, não se pode saber quem é o pai, a menos que seja designado pela mãe. Portanto o direito da autoridade sobre o filho depende de sua vontade e, por conseguinte, este direito é seu’”.
	É por meio da instituição do casamento que as famílias se tornam organizadas, passando seus registros a tomarem especial importância na organização da sociedade. Dentro de uma idéia cristã, tem-se que as origens das pessoas passam a ser aclaradas nos assentos de batismo, casamento e óbito, todos administrados e custodiados pelas autoridades religiosas, havendo uma presunção de publicidade de tais informações.
	Embora tal documentação tenha sua origem nas instituições religiosas, a recente separação entre Igreja e Estado exigiu que este último assumisse tal responsabilidade. Com isto, a presunção de conhecimento e publicidade dos assentos tomou dimensão nunca dantes cogitada na história da humanidade.
	Em tempos ainda mais recentes, principalmente em razão da evolução das técnicas periciais, os vínculos genéticos passaram a poder ser rastreados e identificados. Tal possibilidade, em princípio, deveria indicar um reforço na parentalidade biológica, pois esta poderia finalmente ser identificada de forma clara e indiscutível. No entanto, o que se está constatando é que estão sendo reforçados os laços afetivos, demonstrando claramente que família é muito mais do que laços de sangue. Assim, fica aberto espaço para a valorização da parentalidade socioafetiva.
	Como afirma ASTRIED BRETTAS GRUNWALD, as “inovações tecnológicas criaram para o homem uma nova forma de perceber a humanidade e a si mesmo enquanto espécie. As inovações que há tempos atrás nos pareciam utópicas ou simples ficção científica hodiernamente são reais e problematizadas pelos seus aspectos éticos, sociais e jurídicos. (...) a bioética rompeu um liame na concepção de filiação em que bastam os genes para se declarar a filiação, alertou para a necessidade de uma análise de vida, a pesquisa de todo um histórico social para então se declarar os direitos de pai-filho, reconhecendo-se a posse de estado não apenas como meio probatório, mas como instrumento efetivo de determinação da filiação, resguardando-se efetivamente os interesses das crianças e adolescentes, uma vez de tal modo que como asseverava MARIA CLÁUDIA BRAUNER: ‘(...) deste modo estaria se construindo um sistema definidor dos laços de família, vinculando pessoas que desejam amar-se e cuidar-se reciprocamente. Além disso, afirmar-se-ia a noção de interesse superior da criança como papel principal e indispensável às decisões dos litígios no âmbito familiar’.”
	Considerando isso, impõe-se aclarar os conceitos de paternidade biológica, registral e socioafetiva, como forma de buscar a real identificação da relevância de cada uma para a apuração do conceito de família, elemento absolutamente necessário para aclarar diversos litígios judiciais que ocorrem quotidianamente nas Varas de Família.
II – Parentalidade Biológica
	Impõe-se repetir que a parentalidade biológica é a primeira que surge, pois ela decorre diretamente da existência de vida; par que se inicie uma vida, tem-se a união de gametas sexuais, um masculino e outro feminino, formando um novo agrupamento de genes; desta união surge o vínculo biológico, que jamais poderá ser modificado, pois, para todo o sempre, o novo ser trará em seu código genético a marca de sua origem, sendo metade de seus genes herdados da mãe e a outra metade, do pai. Esse encontro único ensejará a criação de um novo código genético, que dará uma individualidade biológica própria ao novo ser.
	Para aqueles que seguem a doutrina religiosa católica, a existência de uma pessoa se inicia no momento da fecundação (união dos gametas feminino e masculino), ou seja, no momento em que pela primeira vez o código genético do novo ser se apresenta completo. Para as ciências médicas, a vida começa no momento que o óvulo fecundado se fixa na parede do útero, iniciando-se a gestação. Para as ciências jurídicas, somente há existência com o nascimento com vida.
	Desde muito antes já existe (ainda que de forma teórica) uma pessoa em formação, pois a parentalidade biológica já está identificada, visto já ter recebido a carga genética do pai e da mãe, formando seu código único, que a identificará para todo o sempre. A existência desta pessoa em formação já gera direitos passíveis de tutela jurisdicional. No entanto, somente após o nascimento com vida
é que essa pessoa em formação se tornará uma pessoa humana, com direitos plenamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
	Parece claro que a formação da parentalidade biológica, em princípio, independeria da intervenção de pessoas outras que não o casal que, ao manter congresso sexual, une (voluntária ou involuntariamente) seus gametas, formando o embrião que dará origem ao filho de ambos.
	Mas mesmo tal situação hoje se modificou, ante as inúmeras possibilidades de reprodução assistida, em que a participação de terceiros mostra-se necessária para que ocorra a parentalidade biológica (v.g., fecundação in vitro). Embora tal participação não modifique o código genético final, pois os gametas continuam sendo os mesmos que se uniriam espontaneamente em um ato sexual corriqueiro, por vezes essa participação é necessária do ponto de vista prático, embora não influa, por óbvio, no resultado final, que é o que caracteriza a parentalidade biológica.
III – Parentalidade Registral
	A parentalidade registral se consubstancia quando da lavratura do assento de nascimento de uma criança; possui presunção de veracidade e de publicidade. Aqueles que comparecem perante o Oficial de Registro Civil, declarando-se como pai e mãe do infante recém-nascido, passam a ser considerados, para fins legais, como sendo os genitores daquela criança, assumindo todos os encargos decorrentes dessa condição, ficando imbuídos do poder familiar. A parentalidade registral é um ato, pode-se dizer, voluntário, pois é necessário que ocorra o comparecimento perante o Ofício de Registro para se fazer a declaração. É de se lembrar que a legislação pátria presume a paternidade dos filhos havidos durante o casamento, bastando nestes casos, que um dos genitores compareça à serventia registral para proceder à lavratura do assento de nascimento.
	Em caso de não serem os genitores casados, o ordenamento pátrio exige a presença de ambos para que o assento possa ser lavrado. Comparecendo apenas a mulher, ela poderá declinar o nome do genitor, dando início ao procedimento administrativo de Investigação Oficiosa de Paternidade, no qual o suposto pai será chamado para informar se reconhece ou não a paternidade que lhe foi imputada.
	Essa parentalidade fornece uma base documental para toda a vida do ser humano; é a partir de tal registro que são feitos todos os demais documentos que a pessoa poderá precisar ao longo de sua existência (v.g., matrícula escolar, documento de identidade, inscrição eleitoral etc.). É esse documento que comprova que a pessoa existe juridicamente, pois aquele que não é registrado não tem existência no plano jurídico.
	Em razão disso é que os ordenamentos jurídicos, em regra, partem da presunção alicerçada na parentalidade registral, apenas adentrando nos outros aspectos da situação, a questão biológica e a socioafetiva, quando aquela é questionada ou inexiste.
	Embora se possa afirmar que o valor do liame registral hoje é inferior ao valor do liame socioafetivo, aquele ainda é o principal gerador de deveres e direitos. Afinal, a indenização registral é, como já se mencionou, pública e concomitante com a identificação da pessoa perante o ordenamento jurídico e com seu grupo social. Já a questão socioafetiva, em regra, demanda dilação probatória, não sendo pré-constituída, nem possuindo presunção de publicidade.
	O vínculo, ainda que meramente registral, gera o dever alimentar e de mútua assistência. Esse vínculo também alicerça o direito sucessório e as limitações legais que regulam atos jurídicos entre ascendente e descendente. Ainda que o vinculo seja meramente registral, enquanto este persistir, diversas limitações existem, como, por exemplo, a condição de herdeiros necessários e o impedimento ao negócio de bens imóveis sem a anuência dos demais descendentes.
	Uma ação de investigação de paternidade, bastante comum nas Varas de Família, nada mais é do que uma ação na qual aquele que não possui identificação de parentalidade registral busca a apuração daquele(s) com quem mantém liame biológico, para, então, sanar a omissão ou incompletude de sua identificação formal/jurídica.
IV – Parentalidade Socioafetiva
	A paternidade socioafetiva envolve os vínculos afetivos e sociais. Envolve aquilo que a jurisprudência e a doutrina por vezes chamam posse do estado de filho, em que alguém existe perante seus iguais, em sociedade, como sendo filho de outrem, visto ser assim tratado pelo alegado pai. Segundo JOSÉ BERNARDO RAMOS BOEIRA, são seus elementos caracterizadores o nome, o trato e a fama, pois “deve o indivíduo ter sempre usado o nome do pai ao qual ele identifica como tal; que o pai o tenha tratado como seu filho e tenha contribuído, nesta qualidade, para a sua formação como ser humano; que tenha sido constantemente reconhecido como tal na sociedade e pelo presumido pai. Aqui, a fama representa a exteriorização do ‘estado’, em que terceiros consideram o indivíduo como filho de determinada pessoa, ou seja, mostra que ele é conhecido como tal pelo público.”
	Diz EDSON LUIZ FACHIN que a paternidade socioafetiva “capta juridicamente na expressão posse do estado de filho. Embora não seja imprescindível o chamamento de filho, os cuidados na alimentação e na instrução, o carinho no tratamento (quer em público, quer na intimidade do lar) revelam no comportamento a base da parentalidade. A verdade sociológica da filiação se constrói. Essa dimensão da relação paternofilial não se explica apenas na descendência genética que deveria pressupor aquela a serem coincidentes. Apresenta-se então a paternidade como aquela que, fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico, ‘reside antes do serviço e a mor que na procriação”.
	A paternidade socioafetiva envolve sentimentos, atenção e cuidados que se protraem no tempo, demonstrando preocupação e genuíno interesse entre pais e filhos. Esse relacionamento tende a se fortalecer com o passar dos anos, aprofundando-se e dando o alicerce para a construção da personalidade dos filhos.
	Consoante afirma ELIZABETH NAAS ANDERLE, “na paternidade sócio-afetiva, pai não é apenas aquele ligado por um laço biológico, e sim aquele ligado pelos intensos e inesgotáveis laços de afeto, ou seja, pai é aquele que cuida, protege, educa, alimenta, que participa intensamente do crescimento físico, intelectual e moral da criança, dando-lhe o suporte necessário para que se desenvolva como ser humano, eis aqui o fundamento de validade da noção de posse de estado de filho, a valorização das relações calcadas no afeto”.
	É de se lembra que, no direito romano, o pater é aquele que se designa a si mesmo como pai de uma criança, assumindo, através de gesto ou palavra, tal condição; a filiação biológica (genitor) é totalmente desconsiderada caso não seja seguida desse reconhecimento público. A paternidade decorre da vontade do homem. Tal comportamento é, em resumo, uma demonstração pública de concessão da posse do estado de filho, pois aquele que se pretende pai assume publicamente seu vínculo com aquela criança, passando a ser responsável por ela e estabelecendo vínculos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. A paternidade é, em sínteses, voluntária.
	Em síntese, a paternidade socioafetiva tem como premissa que pai/mãe é quem cria e não quem gerou/concebeu. Quem se preocupa, cuida, orienta, se envolve na vida da prole, é genuinamente pai/mãe.

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