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osrgnum REVISTA DA ABREM Assoc¡nçno BRasrrernn ur Esruoos Meotevnls Núnpno 7 .2005 Copyright @ 2005 by Autores rssN - 1516-6295 Produção e Projeto Gr¿fco Negrito Design Editorial Diagramação Ana Paula Fujita Signam é uma publicação da ABREM - Associaçáo Brasileira de Estudos Medievais Sede em São Paulo: Av Prof. Luciano Gualbe¡to, 403 USB P¡édio de Letra¡, sala 34, Cidade Unive¡sitária 05508-900 - São Paulo, SP - B¡asil sede em Po¡to Alegre: Av' Bento Gonçalves, 9500 - Bloco 3 - Prédio A1 - Sala 216 UFRGS - Campus do Vale - Agronomia 91509-900 - Porto Alegre, RS - B¡asil fl ens biblio gr6lfico IoeoB MÉou, p Epoce MoosRNe: FRoNr¡IR¡.s p PRo¡r-¡¡res LAURA DE MELLO E SOUZA- r. A r,oNcR Ioeos MÉoIA Aquela que se convencionou chamar de a terceira geraçâo dos An' nøhs foi profundamente marcada pela idéia braudeliana da temporali- dade longa r.Em I974, Emmanuel Le Roy Ladurie chamou a'atençáo para a hisairia irntiuel e ofereceu uma interpret açâo geral para o período que vai do século XI ao XlX, situado entre dois intervalos de inovaçáo e expansáo - nove séculos em que a vida das populaçóes européias per- maneceu praticamente inalterada2, No Prefácio a Pour un autre Moyen Age e dizendo-se ancorado na Departamento de História, Universidade de Sáo Paulo. Ver, entre outros, P BURKL,I ¿¡¿¿ k dns Annal¿s - 1929-1989'Sio Paulo, UNESB 1991' E. LE ROY IÁDURIE, "Lhistoire im mobile" , Annales - 8.5.C.,29, 1974, pp. 673-682. Para um comentário, ver "The Renaissance and the drama of tJ(/estern History'', em \ü J. BOU\)øSM.,C., I *søble pat - asays in European Culrural History, Berkeley/Los Angeles /Oxford, Universiry of California Press, 1990, pp. 348-36:5. n3 I¿ura d¿ Mello t Souza emologia, Jacques Le Goff defendeu, três anos depois, â idéia de umâ Idade Média longuíssima, iniciada no século II ou III de nossa era e encefrando-se com a revoluçáo industrial. "Essa longa Idade Médiâ", diz-nos, " é a história da sociedade pré-industrial"' Náo se trata de hia- to, como viram os humanistas do Renascimento e tantos outros' nem de ponte, mas de grande impulso criador, mesmo se entrecortado Por crises: ,.momento de criaçáo da sociedade modefna, de uma civilizaçâo moribunda ou mortâ sob suas formas cafnponesas tradicionais mas viva pelo que criou de essencial em nossâs estruturas sociais e mentais:" a ci- dade, a naçáo, o Estado, a universidade, o moinho e a máquina' a hora e o relógio, o livro, o garfo' a roupa branca, â pessoâ' a consciência e fi- nalmente a revoluçáo' Náo se üata' tampouco, de substituir uma Idade Média de trevas Por uma ldade Média áurea, mas de proPor "uma outra Idade Médid" como diz o título: total, longa mas estfutufâda em siste- mâ que, "no essencial, funciona do Baixo Império Romano à revoluçáo industrial dos séculos XVI[-XÌ]C''3 Por mais substantiva que seja a proposta de Le Gofl ancorada numa vida de estudos medievais, e ainda que postule a apreensáo de nexos in- ternos capazes de captar o sistemaldade Média, há, nela, umintuito d¿s' periodizadnn,,lanço aqui as bases de uma nova ciência cronológica", náo apenas linear, mas capaz de comparar de modo legítimo condiçóes cien- tíficas que sejam comparáveis. Le Goffnáo o cita, mas nâo há como dei- xar de pensar que Marc Bloch é o seu inspirador, obstinado que foi na busca dos nexos comparáveis entre sociedades feudais, sistemas de explo- raçáo rural, sistemas de crença que' na sua totalidade, integraram o sis- rema maior que foi a Idade Médiaa. Na formulaçáo de Le Goffhá ainda um pendor hegemônico, expresso de modo direto num grande medie- valista brasileiro: "Sem o risco de exagerar' pode-se dizer que o medieva- Iismo se rofnou uma espécie de carro-chefe da historiografia contempo- 3. J. LE GOFF, Pour un aøte Moyen Age - temps, trduail et culture en Occident - 18 essais' Paris, Gallimard, 1977, citaçi¡es às pp. 10 e 11' 4. Ver, entre ouos, La sociétëþodale,^Paris, Albin Michel, 1949,2 vols; "Pou¡ une histoire comparée des societés européenes", Reuue d¿ Slnthèse Historiqae, nouvelle série' vol 20' dec. 1928. SIGNUM 224 Idade Média e Época Modtrna' Jronteiras e probbmas rânea, ab¡indo caminhos ao propor temas, exPerimentâr métodos, rever conceitos, dialogar intimamente com outras ciências humanas".s Em 1985, Le Goffvoltou à carga com muito mais força, retoman- do a proposta de uma Idade Média longa de dezessete séculos. Argu- mentou com base nas continuidades da economia, invocadas por Ar- mando Sapori e ignoradas pelo clássico de J. Burckhardt, bem como no caráter medieval de muitos dos fenômenos considerados renâscen- tistas. Qualificou o Renâscimento de incerto, valorizando antes a Re- forma enquanto momento de clivagem, e deu à Época Moderna o esta- tuto de "terceiro painel [significando fase] dessa longa Idade Média."6 "Essa longa Idade Média é a do cristianismo dominante, um cristianis- mo que é, ao mesmo tempo, religiáo e ideologia, que estabelece, pois, uma relaçáo muito complexa com o mundo feudal, contestando-o e justificando-o ao mesmo tempo."7 Pensar uma "longa' Idade Média fere o âmago de todas as grandes problemáticas invocadas pelos historiadores da chamada Época Moder- na e corrói-lhe a própria identidade. No que, ao fim e ao cabo, " Épo." Moderna é distinta da Medieval? Na proliferaçáo de cidades, bafejadas pelo crescimento da economia de mercado? Na intensificaçáo das trocas enüe o Ocidente e o Oriente, cada vez mais conectados por viagens ter- restres e marítimas? Na desagregaçáo do sistema feudal, onde a relaçáo servil passa a ser crescentemente solapada pelo salariato - sob¡etudo a oeste da Europa? Na emergência de uma nova espiritualidade e, por ou- tro lado, da secularizaçâo da vida? Na revivescência do direito romano' na proliferaçáo de um novo grupo social formado por homens de letras que âssessoram o poder real, no fortalecimento do próprio poder real, que transcende o âmbito privado da casa - a corte, com toda a gama de serviçais diretamente ligados à vida e às atividades do monarca - e ga- nha o espaço público da política de estado? 5. H. FMNCO JUNIOP., A ldide Média, nascimenn do Oci.dente U9861, Sáo Paulo, Bra- siliense, nova ed. 2001, pp.13-14. 6. J. LE GOFF, Lïmaginøire médiéu¿l - essøh, Paris, Gallimard, 1985, "Préface", p,p. XIII e anteriores. 7. LE GOFF, "Pour un long Moyen Age", em L'imaginaire mëdiéual' p.ll' ARTIGOS INÉDITOS 225 Laura de Mello e Souza Se os elementos invocados - e seria possível lembrar outros mais - servem ao historiador da Época Moderna para reiterar o argumento da ruptura e da originalidade do período configurado a Partir do século XV, náo faltaram medievalistas que' para cada um desses pontos, puxa- ram a brasa para suâ sardinha. O estudo da pujança citadina da Idade Média produziu clássicos como os de Henri Pirennes, enquanto aidéia, do mesmo autor, de que cessaram as comunicaçóes entre mundo oci- dental e oriental, sobretudo entre Cristandade e Isláo, vem sendo rela- tivizadahá tempose. AIiás, o que é a mesquita de Córdoba senáo o mo- numento à memória do entrecruzar medieval de mundos e culturas? As viagens náo sáo testemunhadas pelas trajetórias de homens como Pian Del Carpine, Guilherme de Rubruck, Marco Polo, Monte Corvino, Odorico de Pordenona e toda a legiáo dos cruzados que foram Êcando nas imediaçóes da Têrra Santa?ro A servidáo náo permaneceu, aûnal, sendo uma das formas de exploraçáo do trabalho vigentes na sociedade moderna, e a sua crise náo gerou arranjos novos - sem falar que' em es- sência, vigorou em regiões mais orientais da Europa até a segunda me- tade do século XIX? Cátaros, albigenses, joaquimitas, franciscanos náo foram reformadores medievais, expressóes do anseioinequívoco de hu- manizar a religiáo por meio da crítica ao catâtet excessivamente tem- poral da lgrejarl? As universidades, viveiros de intelectuais, náo foram 8. Por exemplo, as consideraçóes de H. PIRENNE sobre o crédito em particular e o cap-i- talismo em geral na Idade Média, em História econôrnica e social d¿ ldade Média, trad., Sáo Paulo, ÀZ.stre Jo,.r, s/d.. Sobre o continuum eître as cidades medievais e as do Antigo Regime, ver PIRENNE, ,4r r¡á d¿s d¿ ld¿dc Média, trad., ll.isboa], Publicaçóes Europa- América, 2^ ed. 11964l. 9. Trata-se do belo livro de PIRENNE, Maomé e Carlos Magno, t¡ad., Lisboa, Publicaçóes D. Quixote, s/d, que postula a idéia da interrupçáo: "O Ocidente é engarrafado e força- do "ìiu.r rob.. ri -.tmâ, fechado" : o império romano de Carlos Magno "consagra a ruptura do Ocidente e do Oriente" (p. 252). 10.Para uma introduçáo ao assunto, ver o pequeno livro de J.P ROllx, I¿s explorateurs øu Moyen Age, Paris, Seuil, 1967, que ar¡ola os contatos freqüentes e ininterruptos entre Ori.rrt. ã O"id.nte desde o inícø do século XIII, tanto individuais - como as refe¡idas viagens - quanto coletivos e "institucionais"; missóes pontifícias, embaixadas, como as dos mongóis no Ocidente. 11.O célebrl colóquio de Royaumont, ocorrido em 1962, defende' na sua concepçáo, a idéia de uma longa Idade Média herética, correspondente ao mundo pré-industrial e se estendendo do sé-culo Xl ao X\4II. J. LE GOFF (org), Hérésies et socütés dans I'Europe SIGNUM 226 Maria Linha Maria Linha Maria Linha Idade Mídia e É,poca Modtrna, Jronteiras e probbmas um dos frutos privilegiados do movimento urbano, os universitários trazendo, por sua vez, problemas ânálogos aos desencadeados por seus contemporâneos, os me¡cadores?r2. Filipe o Belo, Luís XI, Frede¡ico II, Joáo I de Avis detiveram em suas máos um poder bastante centtaliza' do que em nada lembrava a fragmentaçáo feudal. Os primeiros corpos legais datam da Idade Média: a Magna Cørta dos Plantage netas , as Sete Partidas de Afonso o Sábio, as Ordenações Aþnsinas do período tardio dos Borgonhas portugueses. Evidentemente, â questáo é muito mais complexa do que este in- tróito pode deixar entrever. Tiadicionalmente considerado como forma política surgida dos escombros do feudalismo, o Estado centralizado, moderno - como o da Itália renascentista - ou absoluto - como o das monarquias dos séculos XW, XVII e X\4II - vazà baila o problema da Idade Média longa. Em O imperador Frederico 11, clássico de 1927, Ernst Kantorowitz destacou o papel desempenhado Por este monarca Hohenstaufen na constituiçáo do Estado monárquico como forma po- lítica original. Tiinta anos depois, em Os dois corpos do rei' ptocrtfort desvendar a constituiçáo da rcaleza européia com base no enüelaça- mento do conteúdo místico e político da figura real, tecido na longuís- sima duraçáo e capaz de fazer da Idade Média - quando o Processo se inicia, no século X - . da Época Mode¡na - quando, no século XVII, se fecha - um verdad eiro continautr¿I3. Em Os reis taumaturgos' para muitos a obra magna da historiografia francesa, Marc Bloch também buscou motivos náo-racionais parâ compreender a gênese do poder real e do Estado monárquico, enfocando a questáo do toque tâumatúrgi- co dos reis de França e Inglaterra do século XII ao XIXla. Num liv¡o pré-indutrielle, Paris/La Haye, Mouron, 1968. Para um interessante estudo de caJo, ver G. G. MERLO, Eretici e inquisitori nella società piemontese dzl trec¿nto,To¡ino, Claudia- na, 1977. 12.L8 GOFF, "Préface", L'imøginaire medieual, p. 12. Do mesmo autor, ver ainda Les intel' lectuels au Moyen Age, Pa¡is, Seuil, 1957. 13.8. KANTORO\Ø CZ, L'empereur Frédcric II ll927l, traá', Paris, Gallimard, 1987'; IDEM, Les deux corps du roi lI957l, trad., Paris, Gallimard, 1989. 14. M. BLOCH, Les rois thaumaturges - etude sur l¿ caractère sømdturel a'ttfibué à la paissance rolale parriculièrement en Frdnce et en Angleterre [1923], Paris, Armand Colin, 1961. ARTIGOS INÉOI-fOS 2n Laura de Mello e Souza fascinante e pâradoxal, Linhagens do Estado Absolutista, o historiador marxista Perry Anderson arrolou argumentos e exemplos que ajudam a compreender a modernidade do Estado absoluto mas, vendo a nobre- za. como sua classe fundamental, acabou, a contrapelo dos argumentos elencados, concluindo ffatar-se de um Estado feudall5. Apesar de um dos dogruas da historiografia da Época Moderna ser, com obras desse quilate, arranhado ou pelo menos relativizado desde o início do século )O(, a boa maioria dos especialistas continuou, entáo, vendo o Estado dos séculos XVI, XVII e XVIII como quase sempre ab- solutista, associado à ascensáo burguesa ou à necessidade de arbitrar os conflitos políticos e sociais da época, dotado de aparato legal e burocra- cia unificados e, na maior parte das vezes, identificado a uma naçáo.t6 z. TneNstçÁo: uM.A' sAÍDÁ'? Abraçando uma perspectiva mais matizada, contudo, houve quem preferisse pensar ântes em termos de transiçáo, forma de reflexáo inter- mediária entre o endosso da homologia absolutismo-modernidade e o re- conhecimento da longa duraçáo monárquica. O Estado que Jacob Bur- ckhardt, referência obrigatória no assunto' viu como "obra de arte" náo foi necessariamente o monárquico, mas aquele que, polissêmico, multi- forme e, mais que tudo, assentado no cáIculo, nâsceu nâ península ita- liana sem contudo ser capâz de consumar sua unifica$o 17. Cabe ao his- toriador estabelecer a separaçáo entre a modernidade do Estado e o seu caráter absolutista, que, este sim, pode, dependendo do enfoque, ser visto 15. P ANDERSON, El Exado absolutista 11974), trad', Madri, Siglo )Cil, i979' l6.para citar alguns exemplos: I. \øAILERSTEIN, El moderno sistema mundial - la agricul. tura capitalista 1 los orígenes dr la economla mundo europea en el siglo XVI ll97 4l' vad'' Méxicå, Siglo XXI, 1979 (apesar do título náo deixar transparecer, o liv¡o discute em profundidade a natureza do estado moderno absoluto); R MOUSNIER" Les instituti7ns de k Frønce sous lt¿ Monarchie Absolae - 1598'1789 119741' 2' ediçáo, Pa¡is, 1990; R' MANDROU, L'Europe Absolutistd - raison et raison d'Etdt: - 1649-1775' Paris, Fayard, 1977; E. LE ROY LÀDURIE, L'Etat Royal- 1460-1610, Päris, Hachette, 1987; IDEM, LAncien Regime - I - 1610-1715, Paris, Hachette, 1991; IDEM, LAncien Réþme - II - 1715-1770, Paris, Hachene, 1991. 17.J. BURCKFIARDT, A culrura do Renascirnento na báli¿ - um ensøio [1860], trad', Sáo Paulo, Companhia das Letras, 1991. SIGNUM 228 ldade Médía e Época Moderna: Jronteiras e problemas como rebento da Idade Média: em teoria e em direito, como argumentou Mousnier, a monarquia foi absoluta muito antes da Modernidaders. Uma das reflexóes mais instigantes sobre a possibilidade de ter exis- tido uma forma política transitória partiu, no Ênal dos anos 50, de Fe- derico Chabod. Destacando o surgimento de uma nova estruturâ - â bu¡ocracia e o mercenarismo militar - e de um novo modo de atuaçáo - a diplomacia e a busca do equilíbrio - no Estado do renascimento, concluiu que este pode ser visto como ltntecipação do chamado Estado modernole. Outros depois dele pensaram a questáo sem a mesma origi- nalidade, recolocando, entretanto, o problema das formas transitórias20. O atual debate sob¡e a efetiva centralidade de poder do Estado absolutista arranha tanto â idéia de que o absolutismo é especificamen- te moderno quanto a que o vê como originário das formas medievais, acentuando o carâter híbrido e, em última instância, transitório da for- maçáo estatal. Se há os que destacam com certâ ligeireza o aspecto mí- tico do absolutismo - que nunca teria existido, os reis sempre alternan- do, na prática, o uso do poder pessoal e a consulta às assembléias2l -há outros que, de fato, tfazem contribuiçóes substantivas pâra se entender a natureza do Estado que é anterior à Ilustraçáo e à teoria dos três pode- res, quando nasce de fato a forma moderna de governar. Muitos destes autores inspiram-se na historiografia constitucional alemá, voltada para as análises jurídicas tributárias dos escritos de Otto Brunner, utilizada tanto para evidenciar a indistinçáo entre público e privado, própria ao mundo do Antigo Regime, quanto as especificidades de uma ordenaçáo social estamental e corporativa. Na ltália, onde, como se viu, a discus- são sobre o Estado teve um momento importante nos estudos de Fede- 18.F. IÌARTUNG e R. MOUSNIER" "Quelques problèmes concernant la monarchie abso- lue", em Axí del X Congresso internazionale di scienze storiche, Roma, 1957, pp. 429ss, 19.F CHABOD, Estitos sobre el Renacimiento lL967l, trad., México, Fondo de Cultura Económica, 1990, "Existe un Estado del Renacimiento?", pp. 523-548. Toda a parte tetceira, "Los orígenes del Estado Moderno", interessa muito a essa discussão. 20.R. MAJOR From Renaissance monarcby to absolute monarclty - fench hings, nobles and estates [1994], Baltimore /Lond¡es, The Johns Hopkins Universiry Press, 1997. 21.N. HENSFIALL, The MJth of Absolatism - change Ò continuity in Earþ Modern Euro- pean Monarchy, Lond¡es/Nova York, Longmans, 1992. ARTIGOS INÉDITOS 229 Laura de Mello e Souza rico Chabod, o âssunto continua na ordem do dia, girando em torno da perplexidade quanto ao fato de os italianos terem organizado o poder no "momento ideal e genético" dos Principados sem, contudo, "produ- zirerri' formações monárquicas absolutistas22. Com suas peculiaridades - entre elas, o papel "cimentador" que nela teve o "império multipolar" espanhol - a Itâlia do Seiscentos, como ocorrera já nos séculos anterio- res, continua sendo, na convicçáo de Aurelio Musi, "um extraordinário Iaboratório político" 23. Há que destacar, ainda, os estudos sobre o papel dos ministros na consolidaçáo do poder monárquico absoluto: "Institu- cionalmente, o valido surgiu na fase de transiçáo entre uma burocracia privada e uma burocracia pública, entre uma concepçáo jurisdicionalis- ta e instrumentalista do governo, entre o Rechtsstaat e o Wrwøhangssta- at, eîtÍe a Republica Cristí. e a raison d'éta/'.24 Na vertente portuguesa, inspirado tanto por Michel Foucault quânto pela história do Di¡eito acima referida, Antônio Manuel Hes- panha ressaltou a importância da estrutura polissinodal do Estado - quase que desprovido de centro - e dos afetos - tais como o amor - no estabelecimento e consolidaçáo dos laços enüe rei e súditos. Aquele era um mundo onde os "atos informais" importavam tânto ou mais do que os formais, onde os 'þoderes senhoriais", a "autonomia municipal", "os órgáos perifericos da administraçáo real" e¡am decisivos25. No mundo ibérico, o paradigma jurisdicionalista teria limitado muito a açáo da Coroa, e o esquema polisionodal fez com que cada um defendesse vee- 22,Cf. P. SCHIERA, "Legitimità, disciplina; istituzioni: tre presupposti per la nascita dello Stato moderno", em G. CHITTOLINI, A. MOLHO e P SCHIERA (org), Origini dello Stato. Procexi di formazione statale in balia fa Medioeuo ed età moderna, Bolonha, Il Mu- lino, 1994¡ G. PETRALIA, " 'Stato" e 'moderno' in ltalia e nel rinascimento", Storica, S, 1997, pp. 7-48. 23. Cf. os ensaios do åutor que compóem o inte¡essantíssimo L'halia dei Wceré - integrazione e reristenz/l. nel sistema imperiale spagnolo [2000], Nápoles, ,{vagliano, 2". ed.2001, cita- çâo à p. 223. 24.LA.A. THOMPSON, "El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito", em J. ELLIOTT e L. BROCKLISS (org), El mundo de los ualidos [1999], trad., Madri, 'lãurus, 2'. Ed. 2000, p. 37 . Todo o livro t¡ata de quesáo dos validos, em diferentes par- tes da Europa. 25.,4s uésper¿s do Leuiathan, Coimbra, Almedi na, 1994, pp. 33 e segs. SIGNUM 230 Idaù Média e ilpoca Moderna: Jrontdrus e probbmas mentemente a sua esfera de competência, gerando conflitos cotidianos e contribuindo de modo decisivo "pan a paralisia e a ineÊcácia da ad- ministraçáo central da Coroì' .26 Sem ser elemento determinante na questáo, os impasses sofridos pelo Estado nacional na Europa de hoje ajudam â entender a voga d€s- ses estudos, intensos sobretudo entre o início da década de 1970 e a de 1990, e que, na sua versáo mais radical e pós-moderna, implodem a própria possibilidade de existência de um Estado moderno. O que in- teressa ao argumento deste ensaio é ressaltar que há uma tendência his- toriográfica contemporânea empenhada em limitar a especificidade do Estado moderno, sobretudo o absolutista, e que, ao fazê-lo, subtrai ou pelo menos relativiza um dos melhores argumentos dos "modernistas" ante a idéia de uma Idade Média longa. Até aqui, deu-se destaque às discussóes sobre o Estado por serem mais recentes, mas foi no campo da economia que se travou , talvez, a mais encarniçada das batalhas sobre a transiçáo da ldade Média para a Época Moderna. Muito mais do que a periodizaçâo, o que estava em jogo era a reflexáo sobre o surgimento do capitalismo: quando se po- deria falar, com segurânça, de que este sistema triunfara sobre o feudal: quando as trocas comerciais começâram a gem acumulaçáo de capi- tal ou quando a forma de trabalho assalariado se generalizou? Como qualificar a fase intermediária: pré-capitalismo, capitalismo mercântil ou comercial, mercantilismo? O marxismo desempenhou papel central na polêmica, náo raro colocando questóes instigantes mas teleológicas, como a que abre umâ das partes do célebre ensaio de E.J. Hobsbawm: "Por que a expansáo de tnais do séculos XV e XW náo conduziu di- retamente à época da Revoluçáo Industrial dos séculos XVIII e XIX? Em outras palavras, quais foram os obstáculos para a expansáo capi- talista?"27 A explicaçáo recaiu freqüenremente sobre a crise geral do 26. IDEM, ibidem, pp. 286, 288-289. 27. E.J.HOBSBA\X,'1.J, "La crisis general de la economia eu¡opee en el siglo XVII", em.äz nrno a los orígenes d¿ la reuolución induxrial, trad., Buenos Aires, Siglo )C(I, 2". ed. 1972, p. 19. No Brasil, fizeram época certos escritos sob¡e a passegem do feudalismo para o ARTIGOS INEDITOS 23r I-nura d¿ Mello e Souza século XVII, período transitório por excelência' fustigado pelos hor- rores da Guerra dos Tiinta Anos, pela estagnaçáo econômica e Por um sem-númefo de revoltas sociais: nobres, como a Fronda dos Príncipes franceses; burguesas, como a inglesa de 1640; camPonesas' como a dos croquants e a Ãos ,u-pied's; "nacionalistas", como as da Catalunha (fra- cassada) e a de Portugal (vitoriosa)28' Questáo análoga à de Hobsbawm sobre o surgimento hipotético da Revoluçáo Industrial a Partir da expansâo do comércio nos sécu- los XV-X\{ coloca-se para a consoli daçâo daburguesia enquanto classe dominante: nem poderia ser diferente, na medida em que os burgueses comerciantes foram os principais agentes da acumulaçáo primitiva de capital. Análoga, igualmente, é a célebre explicaçáo de Braudel: a bur- guesia fracassou ou traiu, preferindo investir em terras ou em cargos o dinh.iro ganho com a mercancia, "enorme reaanche dâ terra e dos campos sobre as cidades". Na Toscana, a volta à terra dos grandes co- ^.r.i"n,., é "imagem loquaz" desse processo' um século apenas após Lourenço, o Magnífico; quando Stendhal visitou a ltália' o "antigo ce- nário burguês havia se esboroado" 2e. Braudel relariviza: "Tiaiçáo semi- inconsciente, pois náo existe ainda uma classe burguesa que sinta de fato constituir-se como classe". De qualquer modo' é fato que' por toda capitalismo, como M' DOBB,,4 euoluçá'o do capitaksmo [1963]' trad" fuo de Janeiro' i.^h^r, 1973;T. SANTIAGO '(otg), C)Pitati:ni - Tiansþão' tuo de Janei'o' Eldo¡ado'it;l S.," i.p.ssível arrolar ioà'o, o, ií.,rlo, que se ativeram ao assunro. Cito, à guisa ã. .*.-pf., al'gumas coletâneas: P M' S\øEEZY, M DOBB' H'K'TAKAHASHI' R' HILTOÑ, C. ífnf - Do feudalismo do cdPitulismo" trad'' Lisboa' Publicaçóes Dom.q"i-"i., iqzr ,l. coneðuof vr' cnniuo, A SoBouL et alii' Ld ^bolicitin del i"a"A,*t ,n ,i *uodo occidental Í197ll, tad'' Madri' -Siglo ÆI' 1979; G' CONTE' 'Da crise d.o feudalismo ¿o nascimento do capitalism,o [1976], Lisboa' Presença, 1979' zg. É ;*..n.írrí." a bibliograÊa sobre a crise ão século XVII e as revoltas de naturezavaiada* ;;;;,;;; " Eurof," de ocidente a oriente no século XVII e início do XVIII PaTa ,i- b"l",,ço bibliográfico mais completo, remeto a meu-ârtigo "]'l9tas s1b,r1^a¡ t"t*1t-' ", ,.uoltçã.. da E[ropa Moder n¿Ì' , Reuista d¿ História (Sãto Paulo)' 135' 1996' pp'9'17 ' l"r" " pråUt.^,i ica då mercantilismo veja-se o clássico de E' F HECKSCH.EF.' La época *inr*iut¡,* - histori¿ dz h organizøciói 7 Lu ifuas economic¿s døde el fnal dt k Edød Mrdi¿ høta k Socied¿d Libe;l .ir93|l, irad'' México' Fondo de Cultura Económica' 1943. P. DEYON, O mercantilhmo [1969], t¡ad, Sáo Paulo' Perspectiva',1973' -- - 2g.F. BRAUDEL, La Méd.itenanée et lc mond¿ méditenanée à répoque dz Phiþpe II' Paris' Armand Colin, 1949 ' P.6L6. SIGNUM 232 Idade lvlediø e L2ora Moàerna' Jronteíras e probbmas parte, "os burgueses de todas as origens sáo atraídos pela nobreza; ela é o seu sol. Sua ambiçáo é galgar as fileiras nob¡es, misturar-se com elas, pelo menos nelas introduzir suas filhas ricamente dotadas" 30. O melhor retrato do burguês arrivista que deseja parecer o que náo é encontra-se no Monsieur Joudain de O burguês f'dalgo, comédia de Molière representada pela primeira vez em 1673. Por outro lado, numa explicaçáo engenhosa, a tragédia de Racine, bem como a filosofia de Pas- cal, expressam o dilaceramento, próprio à nobreza togada - que é uma burguesia enobrecida - entre o valor do dinheiro e o da honra3l. Análi- ses mais mâtizadas, como a de Braudel, agorâ em Ciuilizaçáo material, economia e capitalismo, escandem os limites entre burguesia e nobreza, entre trabalho e ócio, entre hon¡a e dinheiro: os nobres comerciaram, os grandes burgueses nem sempre valorizaram os atributos da nobreza de espada e acabaram por criar seu modo próprio de vida32. A burguesia consagrada pelo século XIX e pelo romance - quando, parâ usar a termi- nologia marxista, é cksse em si e para si - náo tem muito a ver com a bur- guesia hesitante da Época Moderna, economicamente poderosa, mas, muitas vezes ainda, eclipsada pela nobreza ou a ela convertida. Se o Estado, a economia e a sociedade alternam os traços que os aproximam da modernidade com os que os puxam de volta para o mundo medieval, a esfera da alta cultura apresenta clivagens mais ní- tidas, mesmo assim passíveis de discussóes acaloradas, como se verá no próximo tópico. O universo da cultura, da religiosidade e das crenças populares, por sua vez, é um dos aspectos mais ambíguos e enigmáticos dessa fase, Náo por acaso, muitos dos medievalistas que' como Le Gofi reivindicaram para a Idade Média uma duraçáo de dezessete séculos fo- ram ou sáo estudiosos desse universo. 30.IDEM, ibidem, p. 619. 31.L. GOLDMANN, Le dieu caché - étøde sur la uision tragi.que dzns les Pensées d¿ Pøscøl et d¿ns le théane d¿ Racine, Patis, Gallimard, 1969. 32. F. BRAUDEL , Ciuilisation matériell¿, écznomie et ca\itd'lisme - XVe - XWIIe siècle' Pat\s, Armand Colin, 1979, vol 2, Les jeux dz l'échange, cap.5, "Lz société ou l'ensemble des ensembles", pp. 407 -536. ARTIGOS INÉOTTOS 233 I-aura de lvlello e Souzø Como ¡essaltaram os trabalhos da escola dos Annales e de muitos outros historiadofes eufopeus náo diretamente ligados a ela, a religião e o conto popular continuaram encantados até o coraçáo do mundo in- dustrial - se é que, hoje, se desencantaram, como indagam os estudiosos que, na contemporaneidade, se debruçam sobre esses fenômenos' Uma das grandes constataçóes do Concílio de Thento foi a de que se abria um fosso incontornável entre o cristianismo dogmático e o do povo, enüe re- ligiáo e religiosidade. Como viu Delumeau, a religiáo era eivada de "fol- clorismos", imperfeita taJvez3l. Os jesuítas, missionários de primeira hora no mundo americano, chamavam os campos europeus de "as nossas In- dias"3a. Ninguém sabia as oraçóes de praxe - Pai Nosso, Credo, Ave-Ma- ria - ou os mandamentos da Lei de Deus, para náo falar de tópicos bem mais complicados, como a ordem dæ pessoas da santíssima Tiindade ou o dogma da concepçáo de Maria, que continuou virgem após o pârto' A Reforma Católica reforçou o papel das dioceses e dos bispos, obriga- dos desde entáo a visitar regularmente suas ovelhas para melhor vigiar e normatizar as populaçóes européias, que continuavam misturando ma- gia e religiáo, indistinguindo î u$ezà e culrura: no dizer de Bartolomé Bennassar, foi o tempo da 'þedagogia do medo"35. No mundo popu- 33.J. DELUMEAU, Le catholicisme entre Lather et Vohaire, Paris, PUF' l97l; IDEM' Un chemin d'Histoire - Chrétienté et christianisation, Paris, Fayarcl, 1981, liv¡o muito interes- sânte por ¡evelar as mudanças sofridas pelas concepçóes teóricas do autor' que evolui de uma visáo segundo a qual a religiosidade popular é "imperfeita" porque folclorvada, para outra, mais ira*i*" f d, t.r..-iru g.raçáo dos Annales, que relativiza a idéia de sobrevi- vência em binefício de uma idéia positiva de "vivência religiosd' ("Náo existe sobrevivên- cia: tudo é vivência ou náo é", diìia Jean-Claude SCHMITT em " 'Religion populaire' et culture folklorique", Annøles, E.S.C',31,1975)' Náo me deterei na problemática da Reforma, que acompanha quase sempre a do Renascimento, como se constituíssem' com .1., uro ,reto. Disco¡do de posiçóes "o-o ", d. LE GOFF em Poør un autre Moyen Age' que vêm a Reforma como ruPtura mais plausível com o mundo medieval' 34.Énviado à Córsega em 1553, o jesuít" Sl¡,.rtro Landini escreveu a Santo Inâcio: Non ho mai prouato terri che sai piti bisiognosa dellz rcse dit Signor di questt' Wro è quello che me. ,rr¡ri ¡t P Maecro Pokico,che q"urrto ßok sara l¿ mia india, meritória quanto quella dil prexe Giouanni, perché qua c'è grandíssima ignoranti.a di Dio, em A. PROSPERI, Tiibun¿li 'd¿lk coscienzø I ¡nqrihori, lonfesori, mi¡tionari' Turim, Einaudi, 1996' c,.p' 28"'Le nosrre Indie", pp. 551-599, c\ttçâo à p- 555' 35..,lÌlnquisition oi l" pédagogie de la peur", em B. BENASSAR (ory.), L'Inquisition Espag' nole - Xue-XIXe siècl'e,Paris, Hachene, 1979. SIGNUM 234 ldad¿ Média e Époø Moderna:Jronteiras e probltmas Iar, animais infratores deviam sofrer julgamento e puniçáo, reservando- se a bênção e o acolhimento nas igrejas para os bichos doentes ou para os bem-compo¡tados36. Amantes inseguros murmuravam as palavras da consagraçáo junto à boca do parceiro, durante o ato sexual, ce¡tos de, as- sim, garandrem afeiçáo por muito tempo. Mundo em que sapos viravam príncipes, moças malcriadas punham lagartixas e imundícies pela boca, curandeiros extraíam novelos de espinhos, unhas e cabelos dos corpos doentes, padres exorcizavaÍr os demônios imundos escondidos nas pos- sessas e bruxas freqüentavarn conventículos cavalgando vassouras3T. "Aliás, a feitiçaria é um objeto privilegiado para se pensar o problema da passagem do mundo medieval para o moderno, e poucos se deram conta disso táo bem como Hugh Tievor-Roper, num ensaio brilhante, apesar de entremeado de equívocos: 'A obsessáo das bruxas na Euro- pa dos séculos XW e XVII é um fenômeno surpreendente: um aviso a todos aqueles que pretendem simplificar os estágios do progresso hu- mano. A pardr do século XVIII, tem havido umâ certa tendência para considerar a história da Europa, da Renascença emdiante, como a his- tória do progresso, e de um progresso que tem parecido constante. Pode ter havido variações locais, ol¡stáculos locais, recuos ocasionais, mas o padráo geral é o de um avanço persistente. A luz conquista terreno às trevâs, contínua, se bem que irregularmente. A Renascença, a Reforma, a Revoluçáo CientíÊca assinalam os estádios da nossa emancipaçáo das grilhetas medievais." Olhando reffospectivamente e de fo;rma rápida, diz o autor, é compreensível que a apreensáo seja esta. De perto, e mais de- tidamente, vê-se, contudo, um outro padún: "Nem a Renascença, nem a Reforma, nem a Revoluçáo Científica sáo, de acordo com os nossos 36. E.P EVANS, The timinal prosecution and capital punishm€nt of d.nimals - the lost hhtory of Europe î animal tials 119061, Londres, Faber and Faber, 1987. O autor apresentâ um apêndice documental com umâ relaçáo de animais excomungados e processados entre o século IX e o XIX: um caso de longuíssima duraçáo. Cf. pp. 265-286. 37.É extensíssima a bibliografla sobre o conto e a cultura popular. Lembro aqui a ótima in- troduçáo de P BURL(E, Popukr culture in Earþ Modcrn Europe, L.ondres, Gmple Smith, 1978, e o esrudo clássico de P SAINTYVES, Les contes d¿ Penault * lzs récits parakles (leurs origines) lI923l, Paris, Robert Laffont, 1!87. ARTIGOS INÉ,PITOS 235 Laura de Mcllo ¿ Souza termos, Pufâ ou necessâriamente pfogfessivas. Cada uma delas tem uma face de Jano. Cada uma delas é composta de luz e trevas. [...] E por de- baixo da superficie de uma sociedade cada vez mais sofisticada, que pai- xóes obscuras e credulidades inflamáveis náo encontramos, umas v€zes libertas acidentalmente, outras deliberadamente mobilizadas. A crença nas brtxas é uma dessas forças. Nos séculos XW e XWI náo era âpenas o vestígio de uma antiga supersti@o prestes a desaparecer, como poderiam supor os profetas do progresso. Era uma força nova e explosiva, que com a passagem do tempo se expandia contínua e assustadoramente. Naque- les anos de aparente iluminaçáo, as trevas estavam a ganhar terreno sobre a luz em pelo menos um quarto do céu'38. Náo cabe aqui arrolar as explicaçóes plausíveis para a intensifica- çáo da caça as b¡uxas entre o final do século XV e a primeira metade do XVIII, nem sobre as variaçóes regionais e temporais que conheceu - foi tardia na Rússia e em Portugal, mais intensa na Alemanha e em algumas regióes da França etc3e. Explicar por que o povo acreditava em bruxas, mesmo que tais crenças tenham se mostrado cresc€ntemente demonizadas no período, também náo vale a pena: afinal, elas têm en- raizamento milenar em mitologias e cosmogonias várias, pertencentes a múltiplas tradiçóesao. O que de fato intriga, e ajuda" a pensar o pro- blema da periodizaçáo, é que o momento áureo da caça * entre 1580 e 1630 - coincidisse com períodos da vida de Bacon, Montaigne e Des- cartes. Que a vanguarda do pensamento europeu da época e a demono- logia - verdadeira ciência que entáo se constituiu - andassem de máos 38.H. T ROPE& 'A obsessáo das bruxas na Europa dos séculos X\4 e XVII" (1967), em Religi,ão, reþrma e transformaçáo socidl, trad., Lisboa, Presença/Martins Fontes, 1981, ci- taçóes à p.73. 39.4 bibliografía sobre feitiçaria é enorme. Uma boa introdu@o é a de B. LF,YACK, 7be tYitch-hunt in Eaþ Modern Etropa Londres/Nova York, tr-ongman, 1987, e o belo livro de J. C. BAROJA, Iøs brujøs y su mundt, Madti, Revista de Occidente, 1961. 40.C. GINZBURG deteve-se sobre os aspectos morfológicos da crença em bruxas em O¡ and¿rilhos do bem - feitiçarids e cubos agrários [1966], trad., Sáo Paulo, Companhia das Letras, 1988, e em História Noturnø - dccifrando o søbá [1989], trad., Sáo Paulo, Com- panhia das lætras, 1991. Este último trabalho coloca também o problema da difusáo das crenças no contexto euro-asiático. SIGNUM 236 Idade Médía e Época Moderxa, Jronteiras e probltmas dadas: Jean Bodin escreveu obras decisivas sobre economia e política, sendo também autor de um célebre tratado demonológico; o rei Jaime I da Inglaterra foi, simultaneamente, demonólogo e teórico do Estado; Martín del Rio, demonólogo jesuíta, era homem de vasta cultura' Con- siderando em conjunto a obra de todos eles, lembra Roper, "verifica- mos que escteverâm sobre demonologia náo Porque se interessassem es- pecialmente por esse campo da ciência, mâs porque tiveram de o fazer' Homens que procuravam exprimir uma filosofia consistente da nature- za nâo podiam excluir esse prolongamento necessário e lógico, se bem que pouco edificante, da mesmd' ar. Contrariamente a Febvre, para quem o platonismo renascentista, "na medida em que postulava um mundo de demônios", teria ajuda- do na crença em bruxâs, Roper considera-o logicamente incòmpatível com tais crenças, deÊnidas pelos demonólogos com base no aristotelis- mo escolástico que as Reformas prolongaram e trouxeram até o século XVII42. Com a vitória da ciência moderna, esse râmo medieval seria para sempre decepado. Tendo bebido em Roper, mas também em Evans-Pritchard e no contextualismo britânico de Poccock, Stuart Clark publicou, há poucos anos, um estudo fundamental sobre a feitiçaria européia, para ele cons- titutiva de um momento específico do pensamento euroPeu - a primei- ra modernidade - e presente em todas as suas manifestaçóes: na lingua- gem, na ciência, na história, na religiáo e na políticaa3. Como se vê, a feitiçaria é um objeto especial Para se Pensar a tran- siçáo, e autores diferentes podem puxar essa sardinha para brasas me- dievais ou modernas. Um dos elementos invocados por Le Goff para caracrerizar sua longa Idade Média foi, afinal, a onipresença de Deus e do Diabo: "sobretudo, essa longa Idade Média é dominada pela luta, 4l.TREVOR-ROPER, oP. cit., p. 136. 4Z.IDEM, ibidem, p. 103, nota I. 43.S. CIARCK Tltinhing wlth dzmons - the ideø of witchcr¿rt in Earþ Modern EuroPe, ox; ford, Clarendon Ptesi t997. A obra de PzuTCHARD é, evidentemente, Vitch*af, Oracbs and Magic among the witchcraf, Oxfo¡d, Clarendon Press, 1937, que analisa a bruxaria Azande como forma de explicaçáo causal. ARTIGOS INÉDITOS 237 m ì1 Lura de Mello e Souza no homem ou em torno dele, de dois grandes Poderes quase iguais, ape- sar de um deles ser, teoricamente, subordinado ao outro, Satá e Deus' A longa Idade Média feudal é a luta do Diabo e do Bom Deus' Satá nasce e morre nas duas extremidades do período" aa. 3. O RrNescrMENTo: PERloDIz.açÁo E coNcEITo' Dada a impossibilidade de analisar em detalhe cada uma das ques- tóes passíveis de serem desperiodizadas e rePeriodizadas, darei ênfase ao papel desempenhado pelo Renascimento nessa discussáoa5' Indepen- dente do fato de as fronteiras entre a Idade Média . " Épo"" Moderna serem flexíveis, difusas, sob constante disputa e ¡einventadas a cada mo- mento histórico, o Renascimento é um fenômeno desperiodizador por excelência, e desta maneira recolocado em voga nos ânos 40 e 50 do século )O(a6. Fenômeno, por outro lado, constitutivo, como os demais referidos até aqui, da Época Moderna: como bem viu Delio Cantimori, a renovaçáo do interesse pelo Renascimento náo pode ser visto isolada- mente. Se envolveu historiadores da arte, da literatura, da filosofia, do pensamento político ou, mais genericamente, "das idéias", ocorreu no mesmo contexto em que historiadores econômicos, no geral marxistas, debateram o problema do fim do feudalismo e dos começos do capita- lismo ou da preeminência burguesa. Em síntese, a petiodizaçio do Re- nascimento é, no fundo, uma problem atizàçâo sobre o onde e o como das mudanças estruturais4T. Infindáveis seriam os argumentos acerca das origens medievais dos fenômenos artísticos considerados como eminentemente fenascentistas' invocados - e discutidos - com raro brilho em um dostmelhores textos 44.LEGOFB "Pour un long Moyen Age", p. 11. 45.Veç como exemplo da qu"r. r.-pr. estéril "busca das origens", \( ULLMANN' "The medieval origins of the Renaissance", em A'CHASTEL et alii, The Renaisance - esays in interpretatioi ll979l, trad. do italiano, Londres/ Nova York, Methuen, 1982, pp' 33-82' 46.E. PÀNOFSKY, "Renacimiento: autodefinición o autoengaÁo?", em Renacimiento 7 re' nacimientos en el arte occidental [1960], trad., Madri, Alianza Unive¡sidad, 3" ed. 1981, p.35. D. CANTIMORI, oP. cit.' P.345. 42.b. CANTIMORI, "La peiiodización de la época renacentista" Í19551, em Los historiado- res y la hhtoria, t¡ad., Barcelona, Península, 1985, citaçáo à'p.345' SIGNUM 238 Iàaìe Mídia e Íipoca Moderna: Jronteiras e problunas já escritos sobre o assunto: "Renacimento e Renascimentos", de Erwin Panofsþ. Náo detalharei os argumentos, mas em seu devido tempo vol- tarei a este escrito do autor48. Instrumento imprescindível para a reflexáo sobre a História, pois tenta agrupâr as temporalidades de modo lógico e sistêmico - ou' como diz Delio Cantimori, por delimitar e subdividir "um processo histórico dado (de história 'universal', de história nacional, de história de uma instituiçáo etc) em termos cronológicos" - a periodizaçáo carrega em si, por um lado, um grau considerável de arbit¡ariedade e, por outro, im- plica obrigatoriamente em critérios de interpretaçáoae. Todo historiador digno do nome periodiza: à sua maneira, quando o trabalho tem viés mais específico, monográfico, ou na forma tradicional e acadêmica' que é a que interessa aqui. Com muita propriedade, Cantimori lembra que a diferença entre uma e outra forma - a própria e a tradicional - reside no fato de, no primeiro caso, seus adeptos estarem conscientes de que interpretam quando optâm por um determinado corte cronológico, o que, no segundo caso, quase nunca ocorre. Poucas discussóes sobre periodizaçáo trzem, pois, tantas questóes interpretativas e conceituais como a que envolve os limites entre Idade Média e Época Moderna. Em que Pesem as consideraçóes sobre o ca- ¡áter intermediário da Antigüidade Tärdia, Antigüidade e Idade Média sáo considerados períodos distintos: Le Goff, por exemplo, assim o fez nos textos acima referidos. Tämbém pouco se questionam as caracterís- ticas constitutivas da Época Contemporânea, cujo período mais recente começa âgora a se esfumar ante a velocidade vertiginosa de mudanças que, com certeza,já indicam uma outra temporalidade, ainda impossí- vel de qualificar. Náo entrarei na discussáo sobre o viés ocidentalizante e redutor da periodizaçáo acadêmica, muito em voga nâ Pós-Moderni- 43. "Renacimiento y Renacimientos", pp. 83-773. 49. Obviamente, deÊno periodizaçáo de modo simples e meramente operacional, com vis- tas âpenas ao desenvolvimento de minha argumentaçáo. Para uma deÊniçáo muito mais complexa, remeto a Delio Cantimori, op. cit., em quem me baseei para os comentários que seguem. A cit açâo acima é sua, p' 543. ARTIGOS INÉDITOS 239 ll.r Laurø de Mello e Souza dade - como compatibilizar essa periodizaçáo com a história africana, indígena, chinesa, indiana etc - porque o objeto de que aqui se trata é eminentemente ocidental. Mantendo tal escopo, talvez a primeira questáo cabível seja a do caráter mutuamente referido dos dois períodos em questáo: Idade Mé- dia e Época Moderna só sáo definíveis com relaçáo uma à outra, já que, historicamente, foram os homens do Renascimento que começaram a qualificar os seus antecessores imediatos para, simultaneâmente, serem capazes de se distinguir: como bem viu Erwin Panofsþ uma das carac- terísticas marcântes do Renascimento é a auto-consciência5o, que para Eugenio Garin se manifestou sobretudo enüe os humanistas. Náo fo- ram poucos os que, como Leon Battista Alberti - o homem universal de J. Burckhardt - sentiram com tristeza que viviam um momento úni- co, em que a insegurança e a transformaçáo contínuâs impunham Ii- mites às obras: "...o mito do renascimento, da nova luz e, portanto, da obscuridade correspondente que teve de precedê-la foi produto, preci- samente, da polêmica dos humanistas contra a cultura dos séculos pre- cedentes. É indiscutível que os escritores do século XV insistiram até o paroxismo na sua revolta contra uma situaçáo de barb¿írie e em favor de um renascime nto da hurnanitøs. Também é indiscutível que nunca, até entáo, havia existido umâ impressáo táo viva de estar-se assistindo a um giro radical do curso da história. Por todas as partes surge a idéia de que se está produzindo a submersáo de um mundo, e por todas as partes aparecem elementos que a confirmam. lJma visáo de mundo que pare- cia já cristalizada se desfazia, náo obstante, inevitavelmente." 5r Geraçóes sucessivas de italianos se autodenominaram "modernos", opondo-se aos "velhos" - os medievais - mas identificando-se com os "antigos" - os gregos e romanos. Fazendo-o, construíram a imagem 50. "Renacimienro: autodeûnición o autoengaño?", em Ren¿cimíento y Renacimientos en el arte accidentdl, op. cit., pp.3l-81. 51. BURCKÉIARDT, A cultura do Renascimento n¿ ltdli¿, parte 2, "O desenvolvimento do indivíduo", p, 117, E. GARIN, "Inrerpremciones del Renacimiento", em Medioeuo y Re- nacimiento Í19731, trad., Madri, Täurus, 1986, pp. 69-81, dtação ù p.77. SIGNUM 240 Idade Méàía e Íþoca Moàerna, Jronteíras t problzmas - positiva - de si próprios como especiais, e caracrerizârâm o período imediatamente ânterior como idade das trevas, tenebrae: dava-se início ao processo de detraçáo de um longo período histórico, hiato tenebroso que repudiara ou esquecera o legado da brilhante Antigüidade clássica, agora reclamado pelos renascentistas. Petrarca teria sido o auror dessa verdadeira inflexáo na teoria dâ histó¡ia, substituindo a idéia de um desenvolvimenro conrínuo, origi- nâdo com a criação do mundo, pela idéia de interrupçáo: enrre a histó- ria antiga e a história nova, esrendia-se uma idade obscura e decadente, iniciada "quando o nome de Cristo começou a ser venerado em Roma e adorado pelos imperadores romanos": "...ao transferir para o estado da cultura intelectual exatamente os termos que os teólogos, os Padres da Igreja e inclusive a Sagrada Escritura aplicavam ao esrado da alma (lux e sol em oposiçáo a nox e tenebrae,'vigílid em oposiçáo a 'torpor', 'visáo' em oposiçáo a'cegueira) e sustentar que os romanos pagáos tinham vi- vido na luz enquanto os cristáos caminhavam na escuridáo, [Petrarca] revolucionou a interpretaçáo da história de modo táo radical quanro Copérnico, duzentos anos mais tarde, haveria de revolucionar a inter- pretaçáo do universo físico." 52 A convicçáo de que se verificara uma mudança náo foi genenliza- da, ocorrendo paulatinamente entre os séculos XIV e XVI: Petrarca viu renovação no âmbito da palavra, Boccaccio pensou-a para a experiência visual, Lorenzo Valla incorporou-a à arquitetura e à escultura. Por fim, em 1550, Vasari enfrentou o renascimenro arrístico enquanto fenôme- no total, dividido em rrês idades, e o badzou, conforme Panoßþ com um nome coletivo: Lø Rinascita5i. Na época de Vasari, havia grande confusáo terminológica entre ve- lho, antigo e moderno. Afinal, como lembra Panofsþ - guia impres- cindível neste trajeto - "os termos que nomeiam relaçóes temporais sáo imprecisos por natureza"sa. Moderno, palavra cunhada provavelmente 52.IDEM, ibidem, p.43 53. PANOFSKY, op. cit., p. 69. 54.IDEM, ibidtm,p.72. ARTIGOS INÉPI:fOS 24r ffi ]t Inura d¿ lv[ello t Souza por Cassiodoro no século YI (modernu), denotava aPenas algo recente ou do pr.r..r,e, "mas náo necessariamente algo moderno Por oPosiçáo a algo distinto e deÊnido, que haja ocorrido antes"'55 Acepçáo próxi- -" I qr.r. se encontra ainda hoje enüe a populaçáo de algumas regióes do Brasil, Paråquem o irmáo mais jovem é "o mais moderno"' Para complicar as coisas, usavâ-se mld'erno também para qualificar as obras arquit.tônic"s dos mestres transalpinos, que hoje chamaríamos de góti' , . q,r. eram, entáo, designados como os adeptos da maniera tedesca' A"ti*, por sua vez, designava em geral algo do passado e se confun- dia com uelho. Por meio de umâ terminologia complicada mas coeren- te, Vasari procurou tornâr os conceitos mais claros: a expressáo manie- ra uecchia (equivalente a "estilo antiquado") ficava restrita ao esdlo dos gregos uelhos,mas náo antigos: os do passado' mas náo daAntigüidade; o,, .rrr ou,ræ palavras, âo que hoje se conhece como bizantino ou bi- zàîtirúzar'fie. Maniera a'nticø, Pot suâ vez' identiÊcava-se com "estilo antigo", com a buona n1a'nierr greca anticd ("o bom estilo grego ânti- go"), equivalente âo que hoje se chama de clássico' "E para diferenciar " "rt" d. sua própria época, tanto do estilo 'antiquado' da Idade Média como do estilo 'clássico' da Antigüidade, Vasari propôs designá-la com o mesmo termo até entáo reservad o para z arte medieval i o termo nlo- d.erno. Naterminologia de Vasari, pois, esta palavra ainda náo denota um estilo oposto à 'boa maneira grega antiga" mas essa 'boa maneira grega antig; restauradn' por oposiçáo 'a 'boa maneira grega anrigì pro' jrlo*rnt, ditø. Fteqientemente qualiÊcado com epítetos como 'bom' ou 'glorioso' (buona maniera rnod'ernø, il rnod¿rno si glorioso)' o termo 'moderno' se converte, assim, em sinônimo geral do estilo do 'Renasci- mento' enquanto oPosto ao da Idade Média"'t6 Num sentido mais estri- to, "moderno" aplicou-se sobretudo ao Alto Renascimento do Cinque- cento, a"terceira idade" para Vasari, distinguindo-se das duas outras que compunham a Rinascita. 55.IDEM, íbidem' P.72' 56.IDEM, ibidem, P.73 SIGNUM Idade Média e i)poca Moderna' Jronteiras e proùbmas Foi assim que anllgp se rornou uma designaçáo positiva e velho adquiriu tom negarivo: até hoje, um móvel velho náo rem nada a ver com um móvel antigo. Moderno, como período da História, rornou- se, por sua vez, sinônimo de Renascimento; no mundo acadêmico do Ocidente, a História Moderna (que os ingleses, talvez por originalida- de, talvez por pragmarismo, chamam de Earþ Modern) abre-se justa- mente com essa época. Surgido â partif da auto-consciência humanista, o Renascimento é muito mais do que um marco cronológico: desde o primeiro mo- mento foi um conceito cultural, pois era do renascimento da civi- Iizaçáo que se trarava. Esse conteúdo, Iembra Huizinga num ensâio imprescindível57, foi descartado pelos homens do século XVII, afeitos à disciplina, à sobriedade e pouco dados à emoçáo. Mas a primeira geraçáo de ilustrados reromou-o e o Dicionári¿ de Pierre Bayle o for- mulou do modo que seria, daí em diante, enconrrado aré em livros didáticos: com a queda de Constantinopla, os sábios migraram para altâlia,levando consigo o conhecimenro grego. Algumas décadas de- pois, contudo, Voltaire traria, no Ensaio sobre os costames, uma outrâ visáo do fenômeno: a pujança econômica e a liberdade das cidades italianas foram as razóes ve¡dadeiras do Renascimento, a Toscaná - e náo Constantinopla - sendo a grande força renovadora. A explicaçáo náo repousava em câusas externas, mas internas, o que sem dúvida significava um refinamento analítico. Ao longo do primeiro quartel do século XIX, o termo foi usado várias vezes na acepçáo estilística: na Histoire de la peinture en ltalie ( I 8 t 7), por exemplo, Stendhal falou de ¡enascimento das artes. Huizinga acredita ter sido Balzac quem, de novo, passou a ver "a palavra Renascimento como um conceito cul- tu¡al autônomo, no conro Le bal de Sceaux, escrito no final de 1829, no qual se diz de uma das principais personagens que þodia discorre¡ fluentemente sobre pintura italiana ou flamenga, sobre a Idade Média 57. j. HUIZINGA, "The problem of the Renaissance?, em Men dt ldeas - History the Middte Ages, the Renaissanrr, trad., londres, Eyre & Sponiswoode, 1960. ARTIGOS INÉOITOS 243 Løura dr l[ello e Souza ou o Renascimento' ,,.58 la-se delinenado, assim, "o sistema conceitu- al por meio do qual a história da Europa deveria, quase sempre' ser concebida desde entáo", e onde a Idade Média e o Renascimento aPa- reciam como "antíteses explícitas, cada uma delas constituindo uma imagem cultural"se. um momento decisivo na construçáo européia do conceito fo- ram as conferências proferidas por Jules Michelet no collège de Fran- ce, em 1840 e 1841, base para o futuro volume sobre o século XW' o qual, em 1855, integraria, com o subtítulo Renaissønce' a sua História da França. Lucien Febvre estudou em profundidade essas conferências e teceu sobre elas algumas consideraçóes interessantes' mesmo se arris- cadas - o que fosse, talvez, bem do gosto do próprio Michelet' Após rer exâltado a Idade Média, diz Febvre, Michelet matou-a' "para que a Renascença pudesse viver'"60 Para matar a Idade Média' rompeu com o cristianismo e criou um conceito civilizacional: ""' a sua Renascença náo é introduzida, simplesmente' no domínio das artes na ltália' por Cimabue e Giotto, florentinos. Nem simplesmente' na história literá- ria, pelo êxodo de alguns Hermonymes e Chrysoloras para o Ocidente' "pó, " ."tástro fe de 1453.4 renascença de Michelet é a Renascença do ho-.- integral, Porque a sua história é a história do homem integral' do homem em toda a açáo das suas diversas faculdades" 6r. criou-se, as- sim, a bela formula que vigora até hoje: o século XVI vai de Colombo a Copérnico, de Copérnico a Galileu, da descoberta da terra à descoberta do céu, consagrando, pois, ø descoberta d'o mundo e d'o hornem' Huizinga acredita que, influenciado por Voltaire e por Michelet' J.Burckhardt deu ao Renascimento o seu significado conceitual mais pleno. Michelet prendia-se ainda à tradiçáo ilustrada, que procurou ver um nexo entfe o Renascimento e as Luzes, o primeiro constituindo "a 58.IDEM, ibidem., P. 253. 59.IDEM, ibid¿m, PP. 253-254. ã0.r. rgs\RE, Miihrtrt , o Renascença, trad., Sáo Paulo, Scritta' 1995' p' 263' Os cursos foram publicados pela primeira vez n a'Frença em 1994' 61.IDEM, ibidtn, P.250 eP.46. SIGNUM 244 T I Idade Médía e Épom Moderna, Jtonteiras e probltmas âurorâ festivi' da segunda' A ltália, como viu Febvre, desempenhava papel diminuto nâ suâ exPlicaçáo, que enfadzava também a proximida- de entre Renascimento e Reforma (que aliás Permaneceu freqüente até os estudos contemporâneos, sobretudo no mundo protestante)62' Com A Cuhura do Renascimento na ltáliø (1860), dava-se de fato uma guina- da, e a perspectiva, lançada por Michelet, de que ocorrera umâ grande transformaçáo cultural foi dirigida num sentido diferente: "Foi o pri meiro a ver o Renascimento independentemente de qualquer conexáo com a Ilustraçáo e com o Progresso, náo mais como prelúdio e anúncio da excelência posterio! mas como ideal cultural sui genetis"' 63 Huizinga rermina sublinhando a fragilidade do conceito Renasci- mento: náo é definido nem no que diz respeito a seus limites temporais' nem no que diz respeito à natureza e essência dos fenômenos que o cons- tituem. "O Renascimento foi uma virada da maré": a melhor imagem para a transiçáo entre Idade Média e Renascimen to "é a de uma longa sucessáo de ondas que rolam para a pnia, cada uma quebrando num ponro e num momenro diferentes".Ga A possibilidade de múltiplas perio- dizaçóes esfumaça o conceito: "o Renascimento náo pode ser conside- rado mero contraste com relaçáo à cultura medieval, nem mesmo como território de fronteira entre â época medieval e a moderna. Entre as li- nhas básicas que dividem a cultura intelectual mais antiga dos povos do ocidente e a cultura intelectual mais moderna, algumas separam Idade Médiae Renascimento; outras sePâram o Renascimento e o século XVII; out¡as ainda correm direto ao coraçáo do Renascimento; ouüâs' Por suâ vez, remontam ao século XIII ou avançam até o século XVIII"'65 Huizinga, como Ladurie, Le Goff e muitos outros' quis reagir 62.Yer, por exemplo, D. I-IA{ "Historians and the Renaissance" em A' CHASTF'L et alil' 7h,'R nairraorrr "para muitas criânças protestantes, até meus tempos de escola na G-rá- Bretanha, a importância do Renascimento residia no fato de ser um prelúdio da Re- fo¡ma, muito mais importante, como atestam os dois primeiros volumes da Cambridge Modzrn History: I Renaissance; II' Reformation", p' 4' 63.HUIZINGA, oP. cit,, P. 256. 64. IDEM, ibidem, pP. 282-282' 65.IDEM, ibid¿m,P 286. ARTIGOS INÉDITOS 245 Ltura de lv[ello e Souza à polaridade que, com Michelet e com Burckhardt' ou seja' a Pârtir dos anos de 1840 e 1860 do século XIX, estabelec€u-se entre a Idade Média e o Renascimento. Hoje em dia, hâ certa voga €m rejeitar por completo qualquer petiodizaçâo, cada época' como quis tWitold Kula' âpresentando uma 'toexistência de asincronismos" '66 De certo modo' o Pós-Mode¡nismo, que é um nominalismo' trouxe à baila uma crítica exacerbad.a ao anacronismo: cada época teria que se deÊnir conforme seus próprios parâmetros. Por válido que seja o alerta' levá-lo ao pé da letra anularia belas interpretaçóes históricas' como a de Hobsbawm sobre a crise do século X\4I ou a de Braudel sobre a traiçáo da bur- guesia: invalid aria, ao fim e ao cabo, qualquer interpretaçáo' Além do q,r., .or.ro lembrou Kristeller, é preciso náo esquecer "que o chamado período renâscentista tem uma Êsionomia própria e distinta' e que a , incaoacidade dos historiadores atuais de dar uma deÊniçáo simples e -.// ' satisfarória dele náo nos autoriza a duvidar de sua existência: se o fizés- semos, e na mesma medida, teríamos que pôr em dúvida a existência da Idade Média ou do século XVIII"'67 "Renascimento:auto-definiçáoouauto-engano?"e"Renascimen- toeRenascimentos",deErwinPanofsþsáoestudosreferenciaisde história cultural, porque se movem o temPo todo denno do fenômeno ânalisado, desvendando sua complexidade' Ao mostrarem a auto-cons- ciência que os homens do renascimento tinham acerca da sua própria modernidade, bem como ao desucarem a originalidade do movimento entâorealizado,colocamlimitesaqualqueranacronismo'Adivisáoen- tre Idade Média e Renascimento é constitutiva de uma forma mental e de um momento histórico, mesmo que, ainda por muito tempo' tenha havido continuidades - as "ondas" de Huizinga' Mais ou menos nâ mesma época que Panofsky escrevia esses en- saios - entre 1950 e 1952 - Eugenio Garin' outro estudioso do Renas- 66.Cf. K. POMIAN, "Périodisatiori', em LE GOFF (ory) ' L¿ Nouuell¿ Histoire' Patis' Retz' 1978, pp. 455-457. Oz. pó.fiÄjsf¡l-r-E1, The classics and Renaßsance thoughr' Cambridge' Harvard University Press, 1955, p. 3: SIGNUM 246 Idadc Méãía e iþoca Moderna: Jronteiras e problenus cimento (voltado, contudo, para a filosofia e não Para as representações visuais e literárias), terminou um ensâio sobre as interpretaçóes acerca do período, de forma muito semelhante à utilizâda por Panoksky em "Renascimento e Renascimentos". Náo é possível, no momento, saber quem influenciou quem. Gostaria apenas de concluir com as duas, que dizem muito mais do que eu consegsiria fazer: "Por isso, há, na realidade, um abismo entre os que tinham amado os antigos, confundindo-se com eles numa espécie de amorosa violên- cia [os homens da Idade Média], e esses outros, que restauraram aA¡ti- güidade com um detalhismo quase pedante. Um mundo acabava, e era descoberto justamente porque estava acabando; rosto antigo que já náo era usado pârâ uma novâ construçáo, mas que se colocava definitiva- mente na história, separado de nós; que já, nâo se confundia com nossa vida, mas que se contemplava na sua verdade. [....] O mito renascentista da Antigüidade entranha â morte desta última no exato momento em que se alcança a definiçáo de suas características próprias. Por isso, não há ruptura entre a Antigüidade e a Idade Média, ou, se há, é muito me- nor do que a existente entre a Idade Média e o Renascimento ; Porque só este, ou melhor, a filologia humanista, tomou consciência de uma ruptu¡a, cuja maturaçáo, náo obstante, tinha-se produzido - e exacer- bado - na Idade Média. Entáo é, precisamente, quando se colocam as exigências mais vivas da nossa cultura: a preocupaçáo em definirmo-nos por meio da definiçáo daquilo que de nós se diferencia; a aquisiçáo do sentido da história, que é o sentido do tempo [...]."6' "A distância criada pelo Renascimento despojou a Antigüidade de realidade. O mundo clássico deixou de ser possessáo e ameaça ao mes- mo rempo pâra se converter em objeto de uma nostalgia apaixonada que encontrou expressáo simbólica na reapariçáo - ao cabo de quinze séculos - dessa visáo encantâdora que é a Arcádia. [...] O Renascimento se deu conta de que Pan tinha morrido; de que o mundo da Grécia e a Roma antigas [...] era algo perdido como o Paraíso de Milton, e ape- 68. GARIN, "Interpretaciones del Renacimiento", pp. 80-8 1. ARTIGOS INÉDITOS 2+? x I.aura de Mello e Souza nas suscedvel de ser recordado pelo esPírito' Pela primeira vez' o Pâssa- do clássico apareceu como totalidade desligada do presente; e Portanto' como ideal ansiado em vez de realidade utilizada e' ao mesmo tempo' temida. A Idade Média deixara a Antigüidade insepulta' e alternativa- mente galvanizou e exorcizou o seu cadâver' O Renascimento chorou diante de seu túmulo e tratou de ressuscitar sua alma: e' num momen- to fatalmente propício' conseguiu-o' Por isso' o conceito medieval de Antigüidade foi táo concreto e' ao mesmo tempo' táo incompleto e de- formado; enquanto o moderno, desenvolvido gradativamente ao longo dos últimos trezentos ou quâtrocentos anos' é completo e conseqüente mas, se me permite dizêlo, abstrato' E por isso, os renascimentos me- dievais foram transitórios, enquânto o Renascimento foi permanente' As almas ressuscitadas sáo intangíveis, mas têm as vantagens da imorta- Iidade e da ubiqüidade'" 6e 6g. "Renacimiento y renacimientos"' pp' 172-173 SIGNUM z4B
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