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PARA UM PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social ALEXANDRE MORAIS DA ROSA Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal e UNISINOS, Brasil. Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Mestre em Direito pela UFSC. Professor do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI. Juiz de Direito (TJSC). E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com SYLVIO LOURENÇO DA SILVEIRA FILHO Especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC/UFPR). Professor de Direito Processual Penal da UniBrasil (Curitiba/PR). Advogado. E-mail: sylviofilho.adv@gmail.com PARA UM PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 12X20.5 • 125 págs EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2007 Prefácio É com especial satisfação que tenho a honra de apresentar essa obra, escrita a quatro mãos, por dois grandes amigos, que conheci em diferentes momentos e que, por indetermi- nações de um futuro aberto, acabaram se encontrando. Antes de entrar na obra dos autores, gosta- ria de falar-lhes um pouco sobre autores da obra. Bauman escreveu com muita propriedade sobre o “arrivista”, uma espécie de nômade, cuja fluidez gera um mal-estar, pois evidencia a inércia dos que lá estão. Esse é, sem dúvida, o desafio a ser enfrentando pelo arrivista, gen- te como Sylvio e Alexandre, seres em constan- te movimento, que encontram seu locus no entre-lugar. É incrível sua capacidade de, em não sendo de lugar algum, sentir-se ambientando em todos os lugares. Como bom arrivista, é alguém que não sendo do lugar, está inteira- mente no lugar. Mas, ao contrário do constata- do por Bauman, Sylvio e Alexandre conseguem superar o mal-estar inerente ao arrivista, fazen- do-se queridos por onde passam. E não foi diferente do que ocorreu em Rio Grande com Sylvio. Eu voltava do doutorado em Madri para continuar lecionando na Fundação Universidade Federal do Rio Grande e, lá che- gando, encontro esse arrivista chegado do Rio de Janeiro, cujo convívio com Nilo Batista e Afranio Silva Jardim lhe renderam uma baga- gem cultural e científica peculiar. Imaginem minha surpresa em encontrar um carioca boa- praça, como esses “antecedentes”, lá na pe- quena FURG, no interior do Rio Grande do Sul! Sem dúvida uma pessoa única, cujo caris- ma decorre da sua postura humilde, tranqüila, de quem não é dado a verborragias inúteis, pois conhece o valor da palavra. Foi meu aluno, estagiário, bolsista, orientando, mas, acima de tudo, um grande amigo. Foi e continua sendo, sem prejuízo da distância. Mas, arrivistas não ficam inertes. Depois de 10 anos na FURG, pedi minha exoneração e fui para Porto Alegre. Pouco depois, Sylvio foi para Curitiba, onde acabou se aproximando de outros grandes amigos, como Luiz Antonio Câmara, Juarez Cirino dos Santos, Jacinto Coutinho e claro, Alexandre Rosa. Paralelo a isso tudo, Alexandre Morais da Rosa era um nome recorrente nos eventos que participava, até que tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente. O contato foi rápido, mas com suficiente empatia para fundar ali as bases de uma grande amizade. Mas foi lendo que perce- bi “com quem estava falando”. Simplesmente brilhante. É assim que considero Alexandre e suas duas obras primas, “Introdução Crítica ao Ato Infracional” e “Decisão Penal”. Com uma base invejável de conhecimento jurídico, mas, principalmente, com rara capacidade de articu- lá-lo com o muito que sabe de psicanálise e filo- sofia, Alexandre desponta como um grande jurista. Para além disso, é uma pessoa fantásti- ca, que demonstra seu raro valor ao estender a mão para alguém que dá seus primeiros passos. Sylvio teve muita sorte nessa relação que estruturou com Alexandre, mas acima de tudo, fez por merecer essa chance. Interessante que nesse vinculo, não se estabeleceu o recorrente cinismo interesseiro que sói permear as relações geradas no am- biente acadêmico, especialmente na pós-gra- duação, onde os phdeuses flutuam (sim, pois a inflação do ego lhes dá esse incrível poder de levitar), rodeados de servis discípulos. Feliz- mente não precisei passar por essa experiência no meu doutoramento. Eis uma das muitas vantagens de estudar numa instituição com mais de 500 anos de tradição, orientado por um catedrático de verdade, avesso a essas medio- cridades. E fico mais feliz de ver que não foi esse tipo de relação que aqui se estabeleceu. Daí porque, fortalecidos saem os dois e maior a minha admiração e carinho. Já falei um pouco dos autores. Agora veja- mos esse pequeno-grande-livro. O tamanho reduzido é um fato relevante a ser considerado. Quando conferi o número de páginas, imediatamente me veio a cabeça a idéia de democratizar o conhecimento, de quem escreve para ser acessível a muitos, no tempo e no custo. Isso é fundamental num país em que muitos optam pela escrita hermética e as longas (e enfadonhas) exposições. vii A leitura é fluída, aguçando a capacidade de recusa-requestionamento do leitor, com uma rara habilidade de encantar e desvelar as falá- cias do senso comum teórico. Não farei antecipações do mérito, de modo que, a partir daqui, só nos resta gozar o que temos nas mãos... Boa leitura!! Aury Lopes Jr. Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. Pesquisador do CNPq. Advogado. www.aurylopes.com.br Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social ix Noutra dimensão, pode ser visto como uma conseqüência da narcose dromológica na qual estamos imersos, impondo seu ritmo. Para ser lido, deve-se tomar pouco tempo de quem já não dispõe de tempo. Ou ainda, só a acelera- ção salva. Nenhum inconveniente nisso, desde que, como fazem os autores, não se sacrifique a seriedade da análise. Eis o valor da obra deles. Breve, mas jamais superficial. Gosto deste formato, pois me remete as prazerosas leituras que fiz, inúmeras vezes, de pequenas-grandes obras. Carnelutti escreveu preciosidades em pou- cas páginas (sem desprezar os tratados, é claro), basta ler “Las Misérias del Proceso Penal” ou “Como se hace el Proceso”. Chio- venda, em 1903, marca época com pouco mais de 40 páginas ao publicar “La Acción en el sis- tema de los derechos”, fruto de “la prolusión de Bolonha”. Da genialidade de Goldschmidt nas- ceu “Problemas Juridicos y Politicos del Proceso Penal”, fruto das palestras que ministrou na Universidad Complutense de Madrid em 1935. E, por aí vão as boas lembranças as quais me remetem os “libros de bolsillo”. E os autores começam bem quando par- tem da noção de processo penal como limite- garantia, ou seja, limite em relação ao poder punitivo, talvez nossa última esperança de recusa à banalização operada em relação ao (ab)uso do direito penal; e, por outro lado, uma garantia do sujeito, um lugar de reconstrução da democracia. Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho viii Sumário xi Introdução Este texto decorre de um esforço paralelo e que se abriu para um diálogo. O resultado da pós-graduação em Direito Penal e Criminologia realizado por Sylvio, no âmbito do ICPC/UFPR foi debatido com as pesquisas recentes de Alexandre. Desde o concurso de idéias surgiu o interesse em (re)colocar o processo penal como limite, barreira, ao discurso totalitário em voga no campo do Direito e do Processo Penal. Para tanto, o trabalho foi dividido entre os autores. Nos três primeiros capítulos apresenta-se um panorama atual dos discursos e se promove aproximação com a Criminologia Crítica, des- velando-se, ademais, o fundamento economi- cista das propostas. Finaliza-se com a (re)colo- cação do ProcessoPenal como instrumento de garantia do sujeito em face dos arroubos totali- tários do momento, neste verdadeiro momento de metástase-inquisitória do processo penal. Os autores esperam que o texto possa contribuir para o debate das propostas legisla- tivas em tramitação no Congresso Nacional, nos meios de comunicação, nas academias de direito e, fundamentalmente, para que os ato- res jurídicos anônimos, não componentes do senso comum teórico (Warat), possam refletir sobre o papel que acabam exercendo (in)cons- cientemente com suas práticas diárias. Enfim, 1 Capítulo 1 Meios de Comunicação: Violência Simbólica e a Construção dos Esteriótipos Nos sistemas penais do capitalismo tardio ocorre uma especial vinculação entre os meios de comunicação e o sistema penal. Esta vincu- lação faz com que seja transformada (ideologi- camente) a mera função comunicativa da mí- dia, a tornando verdadeira agência do sistema penal. A mídia procede a mobilização dos apa- ratos de punição,1 seja através de mensagens explícitas, como nos mais variados programas policias atualmente existentes, ou mesmo im- plícitas, em diversos níveis de expressões.2 Seu papel de protagonista da “seleção” é inescon- dível, com interesses nem sempre manifestos. O tema alcança ainda mais valor no atual contexto da era da informação instantânea. Argumenta Aury Lopes Jr. que estamos viven- do o mundo da presença virtual, da telepresen- ça, que não se resume apenas à telecomunica- 3 1 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tar- dio, p. 01. 2 Vera Regina Pereira de Andrade alerta para os mecanis- mos de controle social informal, como os desenhos ani- mados e os brinquedos bélicos que reproduzem a lógica do “mocinho x bandido” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima, p. 29). acreditam que o processo pode ser um lugar de reconstrução da democracia. O pensamento crítico deve agradecer a estes dois homens: João Luiz da Silva Almeida e João de Almeida, Editores da Lumen Juris. É o canal por onde se respira (ainda) um pouco de oxigênio (jurídico) democrático. Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 2 pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce po que ultrapassados, foram substituindo-se frente a uma falta de referência. Extrapolou-se uma cultura, uma idoneidade. Nesse vácuo vir- tual, subtraiu-se a essência, em troca de uma satisfação efêmera, que nem ao menos nos mos- tra o verdadeiro; acostumados que estamos, cul- tuamos o falso, e, por que não dizer, o nosso pró- prio cadafalso”.6 Doravante, os meios de comunicação indi- reta da atual mídia terciária têm o poder de construir a realidade (entendida como limites simbólicos) através da representação de um espectro simbólico e efêmero de um duplo do mundo, na medida em que a (in)existência da “realidade” está relacionada ao grau em que é comunicado, veiculado e transmitido, com velo- cidade (Virilio7). A isso Eugênio Raúl Zaffaroni logrou chamar de fábrica da realidade.8 Não se deve olvidar que os meios de comunicação de massa fazem parte da socialização dos indiví- duos em um processo contínuo que vai desde a infância até a morte na (con)formação dos valo- res sociais necessários à construção de “laço Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 5 6 ESTIVALLET, Jaqueline; FONTOURA MACHADO, Maris- tela da. Algumas indagações sobre a violência. In: GAUER, Ruth M. Chittó; GAUER, Gabriel J. Chittó. A fenomenologia da violência, p. 170. 7 VIRILIO, Paul. El cibermundo, la política de lo peor. Trad. Mónica Poole. Madrid: Catedra, 1999; El procedimiento silencio. Trad. Jorge Fondebrides. Buenos Aires: Paidós, 2005; Ciudad pánico: el afuera comienza aquí. Trad. Iair Kon. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2006; La bomba informática. Trad. Mónica Poole. Madrid: Catedra, 1999; Velocidad y Política. Trad. Víctor Goldstein. Buenos Aires: La Marca, 2006. 8 ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 128. ção, compreendendo, ademais, a “teleação (trabalho e compra a distância) e até em teles- senssação (sentir e tocar a distância)”.3 Obser- va Maria Lúcia Karam que “nas sociedades atuais, a apreensão da realidade se faz, cada vez mais, através dos meios massivos: as expe- riências diretas da realidade cedem espaço e passam a ser experiências do espetáculo da rea- lidade, que é passado pelos meios massivos de informação, da mesma forma que a própria comunicação entre as pessoas se refere muito mais às experiências apreendidas através do espetáculo do que às experiências vividas”.4 Superados os contextos da mídia primária (corpo) e da mídia secundária (impressos), o triunfo da mídia terciária denota um verdadeiro processo paradoxal que, se por um lado elimi- na os limites espaciais da comunicação, permi- tindo uma interação instantânea entre diversas culturas distintas, por outro, reduz a complexi- dade humana, ao forçar a abdicação da comu- nicação primária, ou seja, da experiência direta com as pessoas.5 Nesse contexto, corre-se o risco do pro- gresso tecnológico acarretar o esvaziamento da condição humana, a razão desintegrar o pensar, sistematizando-o em meras técnicas: “os contatos entre pessoas, na versão da máqui- na, apresenta-nos assim: destituídos de ser. Certos valores, antes cultivados, ao mesmo tem- Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 4 3 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal, p. 26. 4 KARAM, Maria Lúcia. De Crimes, penas e fantasias, p. 199. 5 CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico, pp. 53 e 69. pf Realce pf Realce No âmbito do sistema penal, os meios de comunicação exercem um importante papel ideológico, pois sem eles não seria possível induzir os medos no sentido desejado, nem reproduzir os fatos conflitivos interessantes de serem reproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no momento em que são favoráveis ao poder das agências do sistema penal.13 Atualmente, experimenta-se a era do expansionismo penal(izante). Há verdadeira sobreposição do discurso alarmista (de terror e do risco – Beck) acerca da ameaça da crimina- lidade sobre a ótica substancialmente demo- crática na solução dos inevitáveis conflitos sociais. O combate aos crimes e aos criminosos parece – ilusoriamente – encerrar o grande de- safio da sociedade contemporânea. Cada vez mais se crê (ou se faz crer) na solução penal: o sistema penal, intensamente presente no cotidiano das pessoas, acaba por se constituir como objeto de discussão fora dos mínimos parâmetros científicos (uma espécie de every day theories14), formando um senso comum penal forjado pelos meios de comunica- ção de massa, através do grande espaço dis- pensado na divulgação de notícias relaciona- das à criminalidade e ao seu respectivo comba- te – que, de preferência, deve ser o mais efi- ciente possível, bem ao gosto neoliberal. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 7 13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdi- das, p. 128. 14 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 42. social”. Assim sendo, explícita ou implicita- mente “as mensagens que são transmitidas passam a integrar a maneira de ser da popula- ção que está submetida a sua influência”.9 Nossa época vivencia a transmissão de uma imagem codificada do mundo, capaz de alterar o significado e conteúdo da realidade. Em várias ocasiões aquilo que é transmitido não reflete a realidade, porém, efetivamente, realiza uma permanente intervenção sobre a mesma, ou seja, a realidade não mais é reco- nhecida senão quando mediatizada, talvez como o “duplo perfeito” de Orwell (1984).10 Configura-se uma situação, na qual a “mistura do real e do imaginário traz um processo de intervenção que transmiteà realidade cenas do próprio imaginário, além de fazer com que o imaginário se influencie pelo real”.11 Esse fenômeno pode ser identificado como um verdadeiro processo da sucumbência do real frente ao virtual, vislumbrando-se uma possível vitória do duplo equivalente ao mundo, o virtual, pois este “não é mais real em potência, como foi o caso em outros tempos. Doravante sem referência, orbital e exorbital, não está nunca mais destinado a recortar o mundo real”,12 mas se prestes a substituí-lo. Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 6 9 SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Mídia e crime. In: CORRÊA JR, Alceu. Teoria da pena, p. 378. 10 ORWELL, George. 1984. Trad. Wilson Velloso. São Paulo: Nacional, 1983. 11 SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Mídia e crime. In: CORRÊA JR, Alceu. Teoria da pena, p. 380. 12 BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível, p. 20. pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce insegurança e, conseqüentemente, proceder cada vez mais à legitimação do poder punitivo. Reiteradamente (nos) é insinuada a idéia se- gundo a qual a violência e a insegurança se esgotam na criminalidade (convencional), idéia essa que estabelece o consenso acerca da necessidade de endurecimento do sistema penal e, assim, abrindo espaço para mitigação de garantias e direitos fundamentais. É facilmente perceptível que, nos mais variados espaços de discussão, é lugar-comum a idéia de que uma almejada “paz social” só adquiriria possibilidade através da radizaliza- ção penal(izante). Entretanto, os menos avisados não perce- bem que os enunciados criminológicos que emergem dos meios de comunicação de massa estabelecem, também, uma espécie de violên- cia: a chamada violência simbólica. Como se depreende das lições de Pierre Bourdieu “a vio- lência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la”.17 Harry Pross a define “como el poder de hacer que la validez de significados mediante signos sea tan efectiva que otra gente se indentifique con ellos”.18 A violência simbólica, além de criar o con- senso em torno do sistema penal (que, por esse viés, é sempre carente de severidade, inócuo, Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 9 17 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão, p. 22 18 Apud CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico, p. 100. Percebe-se, assim, a vertente ideológica do dis- curso. O horror de cada esquina das grandes metrópoles e dos mais variados cantões invade os lares, contribuindo decisivamente para a difusão do medo e da insegurança,15 produzin- do espasmos de irracionalidade, criando mons- tros e obstaculizando qualquer proposta de solução pacífica, racional e democrática dos conflitos. Fomenta-se uma verdade única: repressão a qualquer custo (inclusive a despei- to das regras do jogo democrático). Evidentemente, não há como – e nem se pretende – negar o desassossego provocado pela violência no cotidiano social. Entretanto, não se pode olvidar que se trata de um fenôme- no imanente à vida em sociedade, presente em toda e qualquer civilização ou agrupamento humano. Ensina Ruth M. Chittó Gauer que, vista sob esse prisma, “a violência é um ele- mento estrutural, intrínseco ao fato social e não o resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extinção”.16 A problemática apontada situa-se, contu- do, em outro plano: a exploração dos casos extremos como forma de difundir o medo, a Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 8 15 Há tempos Francesco Carnelutti já alertava que “os jor- nais ocupam boa parte das suas páginas para as crônicas dos delitos e dos processos. Quem as lê, aliás, tem a impressão de que tenha muito mais delitos do que não boas ações neste mundo” (CARNELLUTI, Francesco. As misérias do processo penal, p.12). 16 GAUER, Ruth M.Chittó. Alguns aspectos da fenomenolo- gia da violência. In: GAUER, Ruth M. Chittó; GAUER, Gabriel J. Chittó. A fenomenologia da violência, p. 13. pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce (...). Quem tem a palavra constrói identidades pessoais ou sociais”.21 A partir dos estigmas criados22, está aber- to o espaço para a orientação seletiva das agências de criminalização. Fomenta-se um esquema de cunho deliberadamente bélico, de incessante combate aos “indesejados”, aos “diferentes”, enfim, aos outsiders. Com extre- ma propriedade, Zygmunt Bauman observa que a produção social de estranhos ocupa uma função específica nas sociedades: “Se os estra- nhos são as pessoas que não se encaixam no plano cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua simples presença, dei- xam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma receita para ação, e impe- dem a satisfação de ser totalmente satisfatória; (...). Ao mesmo tempo que traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados fundamentais para sua vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais dolorosa e menos tolerável”.23 Constata-se, assim, a simbolização de uma (anti)estética, na qual o sujeito (dito) Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 11 21 GUARESCHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação. In: GUARESCHI, Pedrinho A Comunicação e controle social, p. 15. 22 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre pre- conceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 23 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 27. estimulante de uma suposta impunidade), o serve como verdadeiro instrumento, pois repre- senta um substituto da violência física e da força bruta. Estas últimas são exercidas somente no caso de falhar o controle da primei- ra, pois “sempre é mais econômico e eficaz colo- car a instância de controle, a polícia, na mente dos indivíduos do que manter e utilizar corpos de repressão física”.19 Por isso, torna-se imperativa uma inversão – ou, pelo menos, um desvelamento – do senso comum para se trazer à tona a violência exerci- da pelo poder do sistema punitivo e sua insti- tuições, como leciona Vera Regina Pereira de Andrade: “os códigos da violência têm que ser urgente e vitalmente submetidos a outras lupas e holofotes que não os da tecnologia midiática, cujo flash não ultrapassa a cena da dor – san- gue é lágrimas – para radiografar os braços que se armam muito aquém do humano”.20 É não há dúvidas em se afirmar que uma das manifestações mais cruéis da violência simbólica exercida pela mídia é identificada no processo de “etiquetamento”, de rotulação e na criação do estereótipo criminoso, pois como ensina Pedrinho Guareschi “os que detêm a comunicação chegam até a definir os outros, definir determinados grupos sociais como sendo melhores ou piores, confiáveis ou não confiáveis Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 10 19 ROMANO, Vicente. “Apresentação”. In: CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico, p. 17. 20 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- mo x cidadania mínima, p. 28. paulocesarbusato Realce paulocesarbusato Realce paulocesarbusato Realce pf Realce pf Nota Entendi que é mais fácil controlar através da violência simbólica, através da mídia, do que através da violência física. pf Realce pf Realce queísta do bem e do mal: simbolizam-se os out- siders. Afirma Vicente Romano, que “a violência e a contraviolência representam na comunica- ção estereotipadados chamados “meios de massa” a luta épica entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a democracia e o totalitarismo, a civi- lização e a anarquia, a ordem e o caos. A maior parte do conhecimento público acerca da violên- cia, dessa luta baseia-se nas imagens, definições e explicações proporcionadas pelos meios. A esse respeito convém lembrar que na tecnificada sociedade atual a imensa maioria de aventuras e experiências não são diretas, mas sim mediadas e indiretas”.26 Com relação ao estereótipo criminoso, a Criminologia Crítica desloca, em oposição à Criminologia positivista, o objeto de estudo da ciência. Enquanto na Criminologia Positivista (paradigma etiológico) pretende-se desvendar as causas da criminalidade, encarada como da- do ontológico, pré-constituído – ou seja, seu objeto é criminalidade –, a Criminologia Crítica (paradigma da reação social27), por seu turno, Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 13 partir da interioridade da consciência do outro, criando evidências e adesões, que interiorizam e introjetam nos grupos destituídos a verdade e a evidência do mundo dominador, condenando e estigmatizando a prática e a verdade do oprimido como prática anti-social”. (GUARES- CHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação. In: GUA- RESCHI, Pedrinho A Comunicação e controle social, p. 19). A propósito ver o excelente SOARES, Luiz Eduardo; BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco, especial- mente p. 95 e seguintes. 26 ROMANO, Vicente. “Apresentação”. In: CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico, p. 16. 27 Segundo Vera Regina Pereira de Andrade, “por reação ou controle social designa-se pois, em sentido lato, as formas “delinqüente” é exposto como o avesso dos padrões adequados à sociedade de consumo (os não consumidores ou consumidores falhos): expõem-se símbolos, linguagens, (des)valores e rotinas dos grupos marginalizados de forma que acabam pautando a orientação seletiva das demais agências do sistema penal, que, por sua vez, confirmam o estereótipo criado,24 de acordo com o conceito sociológico da profe- cia que se auto-realiza. O estigma difundido no “imaginário coleti- vo”, via “violência simbólica”, passa a ser sufi- ciente para se presumir a periculosidade do eti- quetado, bem ao estilo lombrosiano, que carre- ga consigo – numa espécie de pena perpétua – a contingência de ser diferente: são “eles”, os “- outros”, intolerantemente, diferentes de “nós” e dos “nossos”.25 Impõe-se a fronteira mani- Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 12 24 Esta (anti)estética é muito bem percebida por Vera Malaguti Batista: “O esteriótipo do bandido vai-se consu- mando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cená- rio de miséria e fome que o circunda. A mídia, a opinião pública destacam o seu cinismo, a sua afronta. São came- lôs, flanelinhas, pivetes e estão por toda a parte, até em supostos arrastões na praia. Não merecem respeito ou tré- gua, são sinais vivos, os instrumentos do medo e da vulne- rabilidade, podem ser espancados, linchados, extermina- dos ou torturados. Quem ousar incluí-los na categoria cidadã estará formando fileiras com o caos e a desordem, e será também temido e execrado”. (MALAGUTI BATIS- TA, Vera. Difíceis ganhos fáceis, p. 28). 25 Sustenta Pedrinho A. Guareschi que “a posse da comuni- cação e a informação tornam-se instrumento privilegiado de dominação, pois criam a possibilidade de dominar a paulocesarbusato Realce paulocesarbusato Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce dução da mesma”.29 A criminalização primária se refere à decisão política de sancionar deter- minada conduta ilícita com uma pena (elabora- ção de tipos penais pelo Poder Legislativo). A criminalização secundária, por seu turno, é a ação punitiva sobre pessoas que infringem as normas penais, ou seja, o programa penal posto em prática.30 O modus operandi para levar a cabo os pro- cessos de criminalização é norteado pela atua- ção seletiva, “por meio de fatos burdos ou gros- seiros (cuja detecção é mais fácil) e de pessoas que causem menos problemas (por sua incapaci- dade de acesso positivo à comunicação de mas- sas)”.31 Desse modo, a criminalidade é consti- tuída por “processos seletivos fundados em este- reótipos, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais, desencadeados por indicadores sociais negativos de marginalização, desemprego, pobreza, moradia em favelas etc”.32 Aquilo que a Criminologia positivista tratava – através do método etiológico – como causas da criminali- dade eram, na verdade, conseqüências da cri- minalização, pois, “uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade ine- rente) nem seu autor um criminoso por concretos Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 15 29 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal brasileiro, p. 60. 30 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal brasileiro, p. 60. 31 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal brasileiro, p. 60. 32 SANTOS, Juarez Cirino.Criminologia crítica e a reforma da legislação penal, p. 01. mostra o crime como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça criminal – seu objeto é, portanto, não a criminalidade, mas a criminalização: a crimina- lidade é um fato socialmente construído pela distribuição de cargas negativas a fatos ou pes- soas, através do processo de criminalização.28 Segundo Eugênio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, et. al., o sistema penal “é o conjunto das agências que operam a criminalização (pri- mária e secundária) ou que convergem na pro- Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 14 com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamento e a pes- soas que contempla como desviantes, problemáticas, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e, nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) o próprio desvio e a criminalidade como uma forma espe- cífica dele. Daí a distinção entre o controle social infor- mal ou difuso e controle social formal ou institucionaliza- do. O primeiro é controle exercido por instâncias que não têm uma competência específica para agir e são exem- plos típicos dele: a Família,a Escola, a Mídia, a Religião, a Moral, etc. O segundo é precisamente o controle insti- tucionalizado no sistema penal (Constituição – Leis Penais, Processuais Penais e Penitenciárias – Polícia- Ministério Público – Justiça – sistema penitenciário – Ciências criminais e ideologia) e por ele exercido, com atribuição normativa específica. Daí a denominação de sistema de controle penal, espécie do gênero controle social que, por isso mesmo, atua em interação com ele. Em suma, a unidade funcional do controle é dada por um princípio binário e maniqueísta de seleção; a função do controle social, informal e formal é selecionar entre os bons e maus, os incluídos e os excluídos, quem fica den- tro e quem fica fora do universo em questão” (ANDRA- DE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima, p. 42). 28 SANTOS, Juarez Cirino.Criminologia crítica e a reforma da legislação penal, p. 01. paulocesarbusato Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce minal oficial oferece dados somente acerca do total da criminalização, porém nunca dados reais do total da criminalidade. A importância da Criminologia Crítica no desvelamento do significado e da projeção de imagens ou de símbolos pelos meios de comu- nicação na psicologiapopular é notável: pelo teorema de Thomas – através do qual situações definidas como reais produzem efeitos reais – constatou-se que ações sobre a “imagem da cri- minalidade” para a criação de alarma social são necessárias para produzir o desencadeamento das campanhas repressivas e de alargamento do poder punitivo. De acordo com Juarez Cirino dos Santos “o estudo de percepções e atitudes projetadas na opinião pública permitiu à Criminologia Crítica revelar efeitos reais de ima- gens da criminalidade difundidas pelos meios de comunicação de massa, que disseminam representações ideológicas unitárias de luta con- tra o crime – apresentado pela mídia como inimi- go comum da sociedade – e, desse modo, intro- duzem divisões nas camadas sociais subalter- Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 17 conhecimento e às estatísticas das agências recebeu a denominação da criminologia de “cifras ocultas” ou “- cifras negras” do sistema penal. Observa Vera Regina Pereira de Andrade que “a conclusão de que a cifra negra é considerável e de que criminalidade real é muito maior que oficialmente registrada permitiu concluir que, desde o ponto de vista das definições legais, a criminalidade se manifesta como o comportamento da maioria, antes que de uma minoria perigosa da população e em todos os estratos sociais, mas a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima, p. 50) traços de sua personalidade ou influências de seu ambiente. A criminalidade se revela, princi- palmente, como um status atribuído a determi- nados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas”.33 A criminalização, portanto, é formada pela seleção de estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias e, conseqüentemente, isso importa reconhecer que a diferença entre o comportamento desviante e o comportamento conforme a lei “depende menos de uma atitude interior intrinsecamente boa ou má, social ou anti social, valorada positiva ou negativamente pelos indivíduos do que a definição legal que, em um dado momento distingue, em determina- da sociedade, o comportamento criminoso do comportamento lícito”.34 A quantidade de condutas tipificadas (o programa legal da criminalização primária) é tão imensa que é inviável ser posta na prática em sua totalidade ou mesmo em parcela consi- derável. Daí, o funcionamento do aparelho punitivo se dirigir a um número deveras delimi- tado de sujeitos, por meio da orientação seleti- va da criminalização:35 qualquer estatística cri- Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 16 33 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- mo x cidadania mínima, p. 41. 34 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 86. 35 A inevitável discrepância entre o número de condutas cri- minalizadas que diariamente são consumadas em deter- minada sociedade e aquela ínfima parcela que chega ao pf Realce pf Realce pf Realce concernentes nos direitos e garantias indivi- duais e coletivas, doravante empecilhos na luta da “sociedade de bem”. Tudo com propósitos bem definidos pela pauta política. Assim, a política criminal, enquanto programa de con- trole do crime e da criminalidade, no Brasil, influenciada pelo modelo norte americano, con- figura-se como mera “política penal despoliti- zada”, pois, como afirma Juarez Cirino dos San- tos “exclui políticas públicas de emprego, salá- rio, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas ofi- ciais capazes de alterar ou de reduzir as condi- ções sociais adversas da população marginali- zada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estru- turais do crime e da criminalidade”.39 Dito de outra forma: exclui-se imaginariamente o fator político da esfera do controle social. O jurídico é transformado, assim, numa esfera técnica despolitizada, balizada pelo saber científico dos especialistas e adubado ideologicamente. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 19 39 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 01. Ensina Alessandro Baratta que deve ser distinguida, de forma programática, a política penal da política criminal, “entendendo-se a pri- meira como uma resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado (lei penal e sua aplicação, execução da pena e das medidas de segurança), e entendendo-se a segunda, em sentido amplo, como política de transformação social e institucio- nal (...). Entre todos os instrumentos de política criminal o direito penal é, em última análise, o mais inadequado” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 201). nas, infundindo na força de trabalho ativa atitu- des de repúdio contra a população marginaliza- da do mercado de trabalho, por causa de poten- cialidades criminosas estruturais erroneamente interpretadas como defeitos pessoais”.36 Entretanto, a mudança de paradigma ope- rada não perpassa o âmbito acadêmico para alcançar o espaço público, provocando a neces- sária transformação cultural no senso comum acerca da criminalidade e do sistema penal,37 pois o caminho único é traçado pelo discurso midiático da expansão penal.38 Desse modo, pela exploração do medo e da insegurança, adota-se o discurso da uma reforma radical da legislação penal e da políti- ca criminal pelo viés do terror, ao mesmo tempo em que se desprezam conquistas históricas Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 18 36 SANTOS, Juarez Cirino.Criminologia crítica e a reforma da legislação penal, pp. 03 e 04. 37 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- mo x cidadania mínima, p. 34. 38 Observa Joe Teninyson Velo: “A despeito da maioria da população ver o crime apenas como atitude de alguns des- graçados, moralmente perversos, ou dignos de novas e oportunas exclusões, olhar mais esclarecido desconfia das intenções políticas que a criminalização por vezes escon- de. A propósito da cifra reservada aos considerados “per- versos”, não raro ela tem sido matéria-prima de setores bem definidos de manifestação de poder, onde o crime é fato social anormal, por isso categoria bastante disponível a instrumentalizar o serviço de propagando política – oportuna superestrutura baseada em certo modo de pro- dução jornalística e motivo fundante de um discurso qual- quer. Naturalmente, como corrupção do espírito crítico, o tagarelar “jornalístico” é tanto pernicioso quanto o des- viance”. (VELO, Joe Tennyson. “Postura criminológica: entre a etnometodologia e o mito de Hermes”. In: Revista de Ciências Penais. nº 02,.pp. 114 e 115). pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce Capítulo 2 A Ideologia Repressiva Neoliberal: Movimento da Lei e aa Ordem e Tolerância Zero O tema em questão pressupõe o des-cobri- mento de uma relação de poder, tendo em vista que o discurso criminológico encontra-se “sem- pre presente no marco histórico do poder mun- dial, seja na revolução mercantil, seja na revolu- ção industrial, e depois na tecnologia exercida como globalização”.1 Nesse sentido, afirma Eugenio Raúl Zaffaroni que “o mero enunciado das principais funções dos meios de comunicação de massa, como aparato de propaganda do siste- ma penal e sua dedicação quase exclusiva a tal propaganda, revela o alto grau de empenho da civilização industrial e dos albores da civilização tecnocientífica para preservar a ilusão e fabricar a realidade dosistema penal e a função-chave que este sistema cumpre na manutenção do poder planetário desta civilização industrial”.2 Há, portanto, um paralelo entre o discurso da repressão à delinqüência – capitaneado pelos meios de comunicação de massa – e a nefasta política econômica neoliberal. O regime 21 1 MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro – Dois tempos de uma história, p. 95. 2 ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 131. Na seqüência, procurar-se-á situar a expan- são punitiva em face da globalização neoliberal tendo em conta a orquestração jurídica, política e midiática que prega o Estado mínimo no âmbi- to social ao mesmo tempo em que exige um Estado máximo no campo penal, de acordo com o fundamentalismo punitivo do movimento da Lei e da Ordem e da política de tolerância zero40 incubados nos Estados Unidos da América. Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 20 40 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; CARVALHO, Edward. Teoria das janelas quebradas: E se a pedra vem de dentro?. In: Revista de estudos criminais. !TEC/PUC- RS, nº 11. Sapucaia do Sul: Notadez, 2003. pf Realce pf Realce pf Realce Miranda Coutinho “é nesse espaço que entra a noção de ação eficiente, no lugar daquela causa-efeito, da falibilidade humana na previ- são dos fins. Com isso, combatia-se – e comba- te-se – o construtivismo, ou seja, as instituições deliberadamente criadas (pense-se, antes de tudo, no processo como objeto cultural), frutos da razão (falha por natureza) e da crença em resultados não raro impossíveis. No seu lugar, ordens naturais espontâneas seriam eleitas, após os erros dos atores sociais, tudo mirado no mercado, a principal delas e sua balizadora. Não foi por outro motivo que o mercado acabou glorificado; e o pensamento em torno dele o supra-sumo da intelectualidade, ao ponto de, para quem tem alguma memória, todos os que se colocaram em seu caminho serem taxados de neoburros e/ou neobobos”.7 A idéia da rede de segurança do Estado de Bem-Estar Social8 – que tinha que arcar com os Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 23 7 MIRANDA COUTINHO, Jacinto N. Efetividade do Pro- cesso Penal e Golpe de Cena: Um Problema às Reformas Processuais. In. WUNDERLICH, Alexandre (org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tovo, p. 144. 8 Ressalta-se, desde logo, que não se pretende aqui – como pode parecer – de propor um endeusamento do Estado de Bem-Estar Social, mas da constatação do câmbio estrutu- ral ocorrido no âmbito econômico que produz a conse- qüente conformação do campo penal à nova estrutura, tomando-se por base o alerta de George Rusche e Otto Kirchheimer, segundo os quais “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relação de produção (RUSCHE, Geoge; KIRCHHEI- MER, Otto. Punição e estrutura social, p. 20). A propósito dessa relação no Estado de Bem-Estar Social: CARVA- LHO, Salo de. As feridas narcísicas do Direito Penal (pri- fundado pela “Société du Mont Pelérin” e pelos financistas do “Consenso de Washington” impõe o receituário econômico global, mesmo para os países que sequer passaram alçaram as vantagens da modernidade: abertura dos mer- cados, onda de privatizações, taxas de juros exorbitantes, regime cambial vulnerável, redu- ção das verbas orçamentárias sociais, recessão econômica, desemprego, índices elevados de inadimplência civil e empresarial, sucateamen- to do aparelho estatal, além da servilização dos Parlamentos e subjugação do Poder Judiciário.3 Como conseqüência, o aumento da complexida- de dos problemas sociais ante o desemprego estrutural e a radicalização da pobreza. No vácuo da crise principiológica do Es- tado, o discurso da globalização e de sua ma- triz economicista, o neoliberalismo, capitanea- do por Friedrich Hayek4 e Milton Friedman5 – se incumbiu de propor um câmbio espistemológi- co, abandonando a relação causa-efeito para configurar a eficiência (relação custo/ benefí- cio) como balizamento de atuação, doravante integrada na principiologia constitucional (art. 37, CR/88), (con)fundindo efetividade (fins) com eficiência (meios).6 Segundo Jacinto Nelson de Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 22 3 POTTES DE MELLO, Aymoré Roque. A política neoliberal de endividamento e exclusão e instrumentos para o exer- cício da cidadania e da democracia. In Revista da Ajuris, nº 84, p. 35. 4 HAYEK, Friedrich A. Direito, legislação e liberdade. Vol. I, II e III. Trad. Anna Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1985. 5 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Trad. Luciana Carli. São Paulo: Abril, 1984. 6 ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao ato infracional. Princípios e garantias constitucionais, p. 19. cidadão é sinônimo de consumidor, o individua- lismo apresentado na forma de consumismo, sendo que “eficiência, flexibilização, produtivi- dade e competitividade são as características do mercado sem fronteiras, onde os países se divi- dem em produtores e consumidores”.10 Como destaca Zygmunt Bauman, no Estado de Bem-Estar Social, havia o controle da conduta disciplinada dos seus membros atra- vés dos seus respectivos papéis produtivos e a sociedade incitava forças combinadas e busca- va avançar mediante esforços coletivos. A dou- trina neoliberal promove uma guinada desse papel a ser desempenhado: de produtores os indivíduos passam a ser encarados como con- sumidores, restando evidente que ao contrário do processo produtivo, o processo de consumo é uma atividade inteiramente individualista e que coloca as pessoas em campos marcada- mente distintos e opostos: a exacerbação do conflito é inevitável, mormente através do pro- cesso de sedução do mercado consumidor. 11 Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 25 10 BERBERI, Marco Antonio Lima. Reflexos da pós-moderni- dade no sistema processual penal brasileiro (algumas considerações básicas). In MIRANDA COUTINHO, Jacin- to N. de Miranda. Crítica à Teoria geral do Direito Proces- sual Penal, p. 63. 11 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 54: “Quanto mais elevada a “procura do consumidor” (isto é, mais eficaz a sedução do mercado), mais a sociedade de consumidores é segura e próspera. Todavia, simultanea- mente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos, ou entre os que foram seduzidos e passam a agir de modo como essa condição leva a agir e os que foram seduzidos mas se mostram impossibilitados de agir do modo como se custos marginais da corrida do capital pelo lucro – é esvaída sob o argumento de que não mais se conseguia cumprimento de suas promessas, além das teses cínicas de que os cortes dos gas- tos assistenciais eram plenamente justificados porque desestimulavam a vontade de trabalhar de seus beneficiários, alimentando uma cultura de dependência: deixemos, de agora em diante, tudo aos cuidados do deus-mercado!9 Assim, o neoliberalismo dita o ritmo da globalização, visando criar um mercado mun- dial voltado (somente) para quem possui o po- der de consumir (homo economicus): doravante Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 24 meiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea. In: GAUER, Ruth M. Chittó. A qualidade do tempo: para além das aparências históricas, pp. 182-187). 9 De acordo com Zygmunt Bauman, “poucos de nós se lem- bram hoje de que o estado de bem-estar foi, originalmen- te, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo- os do medo de perder a aptidãono meio do processo... Os dispositivos da previdência eram então considerados uma rede de segurança, estendida pela comunidade como um todo, sob cada um de seus membros... A comunidade assu- mia a responsabilidade de garantir que os desempregados tivessem saúde e habilidades suficientes para se reempre- gar e de resguardá-los dos temporários soluços e caprichos das vicissitudes da sorte(...). Hoje, com um crescente setor da população que provavelmente nunca reingressará na produção e que, portanto, não apresenta interesse presen- te ou futuro para os que dirigem a economia, a “margem” já não é marginal e o colapso das vantagens do capital ainda o faz parecer menos marginal – maior, mais inconve- niente e embaraçoso – do que o é. A nova perspectiva se expressa na frase da moda: “Estado de bem-estar? Já não podemos custeá-lo”...” (BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 51). pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce Assim, o modelo neoliberal expõe sua face- ta numa equação que implica: a) a supressão do Estado econômico; b) o enfraquecimento do Estado social; e c) o fortalecimento e glorificação do Estado penal: “à atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal”.13 Em outros termos, ao Estado social mínimo deve corresponder um Estado penal máximo, que dê respostas às desordens provocadas pela desregulamentação econômi- ca, pela pulverização do trabalho assalariado e alarmante aumento da pobreza. De acordo com Nilo Batista, “(...) prover mediante criminaliza- ção é quase a única medida de que o governan- te neoliberal dispõe: poucas normas ousa ele aproximar do livre mercado – fonte de certo jus- naturalismo globalizado, que paira acima de todas as soberanias nacionais – porém, para garantir o “jogo limpo” mercadológico a única política pública que verdadeiramente se mante- ve em suas mãos é a política criminal”.14 Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 27 o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerá- vel da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho “ao qual se reintegrar.” ”(BAU- MAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências huma- nas, pp. 119-120). 13 WACQUANT. Loic. As prisões da miséria, pp. 18 e 80. 14 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tar- dio, p 05. No mesmo sentido aduz Maria Lúcia Karam que “dentro do Estado mínimo da pregação neoliberal faz-se presente um simultâneo e incontestado Estado máximo, vigilante e onipresente, que se vale de ampliadas técnicas de investigação e de controle, propiciadas pelo desenvolvi- mento tecnológico, que manipula o medo e a insegurança, para criar novas e dar roupagem pós-moderna a antigas formas de intervenção e de restrições sobre a liberdade Ademais, é certo que as diretrizes neolibe- rais, pregando a austeridade orçamentária e o fortalecimento dos direitos do capital, acompa- nhado da contenção dos gastos públicos e redução da cobertura social, necessitam englo- bar o tratamento punitivo como forma de conter a insegurança e a marginalidade: ao lado da mão-invisível do mercado no âmbito econômico, há que se utilizar a mão-de-ferro do Estado no campo penal, para o contenção dos deserdados, excluídos, indesejados, não consumidores.12 Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 26 espera agirem os seduzidos. A sedução do mercado é, simultaneamente, a grande igualadora e a grande diviso- ra. Os impulsos sedutores, para serem eficazes, devem ser transmitidos em todas as direções e dirigidos indiscrimi- nadamente a todos aqueles que os ouvirão. No entanto, existem mais daqueles que podem ouvi-los do que daque- les que podem reagir do modo como a mensagem seduto- ra tinha em mira fazer aparecer. Os que não podem agir em conformidade com os desejos induzidos dessa forma são diariamente relegados com o deslumbrante espetácu- lo dos que podem fazê-lo” 12 Segundo Eduardo Galeano “em muitos países do mundo, a justiça social foi reduzida à justiça penal. O Estado vela pela segurança pública: de outros serviços já se encarrega o mercado, e da pobreza, gente pobre, regiões pobres, cui- dará Deus, se a polícia não puder” (GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso, p. 31). Nesse sentido explica Zygmunt Bauman que “outrora ansioso em absorver quantidade de trabalho cada vez maiores, o capital hoje reage com nervosismo às notícias de que o desemprego está diminuindo; através dos pleni- potenciários do mercado de ações, ele premia as empresas que demitem e reduzem postos de trabalho. Nessas condi- ções, o confinamento não é nem escola para o emprego nem um método alternativo compulsório de aumentar as fileiras de mão-de-obra produtiva quando falham os méto- dos “voluntários” comuns e preferidos para levar à órbita industrial aquelas categorias particulares de rebeldes e relutantes de “homens livres”. Nas atuais circunstâncias, pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce bilidade individual em torno dos conflitos esta- belecidos. Assim como se apóia na comparti- mentalização entre o campo econômico (pre- tensamente dirigido por mecanismo neutro, fluido e eficiente do mercado) e o campo social (povoado pela arbitrariedade imprevisível das paixões e dos poderes), estabelece uma doxa penal que “postula uma cesura nítida e definiti- va entre as circunstâncias (sociais) e o ato (cri- minoso), as causas e as conseqüências, a socio- logia (que explica) e o direito penal (que legisla e pune)”.17 Segundo Vera Regina Pereira de Andrade “a chave decodificadora desse senso comum radica no livre arbítrio ou na liberdade de vontade, tão cara aos liberalismos do passa- do e do presente. Se tudo radica no sujeito, se sua bondade ou maldade são determinantes de sua conduta, as instituições, as estruturas e as relações sociais podem ser imunizadas contra toda culpa”.18 Tal política, no âmbito penal, é pautada pela pregação totalitária dos seguidores do movimento da Lei e da Ordem. Por se tratar de um movimento e não de um corpo de doutrina estável, o discurso é cambiante, mas sempre com o propósito de endurecimento do sistema penal nos momentos e nos locais difundidos. O surgimento das bases do Law and Order remonta à década de setenta, nos Estados Uni- dos, configurando-se como reação ao cresci- Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 29 17 WACQUANT. Loic. As prisões da miséria, p. 61. 18 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- mo x cidadania mínima, p. 21. A importância do discurso criminológico do modelo neoliberal se mostra presente, por um lado, na necessidade da despolitização dos conflitos sociais e, por outro, na politização da questão criminal.15 Observa Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que a lógica da ação eficien- te, de forma paulatina, toma corpo no cotidia- no, “e projeta-se como um raio no fundamento ético da sociedade. Afinal, a deificação do mer- cado, quando vista pelo eficientismo, glorifica o consumidor (Homo Economicus, que substitui o Homo faber), mas, naturalmente, toma o não- consumidor (excluído, ou homo famelicus?) como um empecilho. Ora, para ele resta o desa- mor de seu semelhante, em um mundo de com- petição, aético em seus postulados e antiético em seus mecanismos e efeitos”.16 Na visão desse modelo, é imperativa a dis- sociação entre os fatores sociais e a responsa- Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 28 individual” (KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do siste- ma penal. In PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionis- mo penal, p. 71) 15 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tar- dio, p. 14. 16 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de.“Atualizando o discurso sobre direito e neoliberalismo no Brasil”. In: Revista de Estudos Criminais. !TEC, nº4, p.29. O novo modelo do Direito, como explica Marco Antonio de Lima Berberi, “caracteriza-se pela falta de preocupação ética (que ética pode existir no deus-mercado?), no qual não há espaço para qualquer preocupação social – ou ela é secun- dária –, até porque o entendimento da das demandas oriundas dos movimentos sociais não decorre de uma pos- tura distributiva, mas apaziguadora” (BERBERI, Marco Antonio Lima. Reflexos da pós-modernidade no sistema processual penal brasileiro (algumas considerações bási- cas). In MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à Teoria geral do direito processual penal, p. 63). pf Realce pf Realce pf Realce Estado-Providência, na medida em que os pro- gramas voltados ao contingente populacional pobre – os negros, em sua maioria – eram limi- tados, fragmentários e apartados das demais ações estatais.21 A partir dos anos setenta, a política de ação caritativa é progressivamente substituí- da por uma política de ação repressiva, inician- do o avanço do Estado penal a partir de duas frentes: a) a primeira, transformando os servi- ços sociais em instrumento de controle moral das classes socialmente hipossuficientes, “condicionando o acesso à assistência social à adoção de certas normas de conduta (sexual, familiar, educativa, etc.) e ao cumprimento de obrigações burocráticas onerosas ou humi- lhantes”; e b) a segunda, recorrendo de forma vultuosa e sistemática ao aprisionamento, pois após experimentar uma diminuição “em 12% durante a década de 60, a população carcerá- ria americana literalmente explodiu, passando de menos de 200 mil detentos em 1970 a cerca Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 31 21 De acordo com o autor, “o princípio que guia a ação públi- ca americana não é a solidariedade, mas a compaixão; seu objetivo não é fortalecer os laços sociais (e ainda menos reduzir as desigualdades), mas no máximo aliviar a misé- ria mais gritante” (WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres, p. 20). A respeito, são valiosas as lições de Eduardo Galeano, quando afirma que “diferentemente da solida- riedade, que é horizontal e praticada de igual para igual, a caridade é praticada de cima para baixo, humilha quem a recebe e jamais altera um milímetro as relações de poder: na melhor das hipóteses, um dia poderá haver jus- tiça, mas lá no céu. Aqui na terra, a caridade não pertur- ba a injustiça. Só se propõe a disfarçá-la” (GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, pp. 319 e 320). mento da taxa de criminalidade no período mencionado, mas, principalmente, uma respos- ta aos intensos conflitos raciais que vinham ocorrendo nos grandes guetos das metrópoles norte-americanas. Após a escravidão, o chamado sistema Jim Crow19 e o gueto, a sociedade estaduni- dense encontra na prisão uma nova forma de contenção das populações marginalizadas, mormente as afro-americanas: “estas políticas apontavam para uma outra instituição capaz de confinar e controlar, senão a comunidade afro-americana em seu conjunto, pelo menos aqueles dentre seus membros que se mostra- vam demasiados disruptivos, desviantes ou perigosos: a prisão”.20 De acordo com Loïc Wacquant, nos Estados Unidos, ao contrário da Europa, não eram implementadas políticas realmente con- dizentes com o conjunto de sistemas de prote- ção e de transferência universalista do Welfare State, mas sim programas dirigidos à popula- ção realmente dependente da caridade do Estado. Assim, o autor entende que, ao contrá- rio da experiência européia, não havia na América do Norte um Estado de Bem-Estar Social, mas um Estado caritativo ou um semi- Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 30 19 O sistema Jim Crow se constituiu num “sistema legal de discriminação e de segregação do berço à tumba que ancorava a sociedade agrária do Sul [dos EUA] do fim da Reconstrução até a Revolução dos Direitos Civis, que o derrubou um longo século depois da abolição da escrava- tura” (WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres, p. 99). 20 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, p. 107. eram alheios por completo à conflituosidade cri- minalizada”.24 Na década de noventa, o avanço das cam- panhas de Lei e Ordem se intensificaram com a implementação da política de tolerância zero, conduzida pelo prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, ganhando ares de cientificidade, com a difusão da teoria das janelas quebradas.25 A referida teoria tem origem nos estudos de James Q. Wilson e George L. Kelling, autores do artigo “Broken windows: the police and neigh- borhood safety”, publicado na edição de março de 1982, no periódico Atalantic Monthly,26 onde sustentavam que se a janela de uma proprieda- de fosse quebrada e não reparada imediatamen- te, denotaria a inexistência de uma autoridade responsável pela manutenção da ordem. Assim, passou-se a trabalhar com a hipóte- se (absurda e inverificável) de que pessoas Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 33 24 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal brasileiro, p. 632. 25 “Em julho de 1994, o prefeito recém-eleito de Nova Iorque, RUDOLF GIULIANI, e seu chefe de polícia, WILLIAN BRANTON, começaram a implantar uma estratégia de policiamento baseada na manutenção da ordem, enfati- zando o combate ativo e agressivo de pequenas infrações – a grande maioria, quando muito, meros atos desviantes, como estudados na criminologia – contra a qualidade de vida, como pichação, urinar nas ruas, beber em público, catar papel, mendicância e prostituição” (MIRANDA COU- TINHO, Jacinto Nelson de; CARVALHO, Edward. Teoria das janelas quebradas: E se a pedra vem de dentro?. In: Revista de estudos criminais. !TEC/PUC-RS, nº 11, p. 23) 26 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; CARVALHO, Edward. Teoria das janelas quebradas: E se a pedra vem de dentro?. In: Revista de estudos criminais. !TEC/PUC- RS, nº 11, p. 23. de 825 mil em 1991, ou seja, um crescimento nunca visto em uma sociedade democrática, de 314% em vinte anos”.22 Esta política criminal fundou-se na tradi- ção hegeliana de direita cuja tese consiste em considerar realizado ou consumado o projeto da modernidade (ficção da modernidade con- sumada). Desse modo, encontrando-se o esta- do racional realizado, o poder não possuiria ele- mentos criminógenos. Portanto, o delito deve- ria ser encarado como fruto de uma decisão individual que, no mínimo, implicaria em sua retribuição.23 Nesta linha teórica rudimentar destaca- ram-se, nos anos setenta, o novo realismo de Ernest van der Haag, identificando a ordem e a utilidade como valores supremos, mesmo em face da solidariedade e da justiça e, nos anos oitenta, o pragmatismo burocrático de Richard J. Herrnstein, cuja proposta limitava-se a esta- belecer pragmaticamente como reprimir de modo eficaz (denotando o eficientismo neolibe- ral). Segundo E. Raúl Zaffaroni, Nilo Batista et. al., esses autores “não fizeram parte da crimi- nologia estadunidense tradicional; eles foram apenas ideólogos oportunistas, que obtiveram notoriedade justamente por causa de suas racionalizações insólitas, fruto de sua tática consistente em colocar entre parênteses o esta- do, supondo que este e seu exercício de poder Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 32 22 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, p. 28. 23 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal brasileiro, p. 632. Entretanto, esta política se apresenta como verdadeira criminalização das conse- qüências da miséria do Estado mínimo neoli- beral, sendo caracterizada pela “tática policial de realizar busca e perseguições aos inconve- nientes sociais, vadios, ébrios, desordeiros, cujos atos representariam um acinte à qualida- dede vida da sociedade estabelecida e respon- sável”.28 Tanto assim que o slogan “tolerância zero” (a qual pode ser lida como “intolerân- cia”, porque a tolerância chegou a zero) foi praticamente abandonado nos Estados Unidos sendo substituído pelo termo “iniciativa de qualidade de vida” (quality-of-life initiative), por considerá-lo menos ofensivo.29 De Nova York, a “doutrina” ganhou o mundo. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 35 grande tiragem Atlantic Monthly (...). E que desde então não recebeu o menor início de prova empírica”. (WAC- QUANT, Loïc. Sobre a “janela quebrada” e alguns outros contos sobre segurança vindos da América. In: Revista brasileira de ciências criminais. IBCCRIM. nº 46, p. 244). 28 REALE JR., Miguel. Insegurança e tolerância zero. In: Revista de estudos criminais, !TEC/PUC-RS, nº 09, p. 68. De acordo com Miguel Reale Jr., estas políticas são iden- tificadas no Brasil no início da República, logo após o des- monte da escravidão quando “os negros e mulatos, viven- do em situação de subemprego, nas margens das cidades ou nos cortiços centrais, vieram a ser os clientes preferen- ciais da polícia, detidos por infração cotravencional, mor- mente vadiagem, embriaguez, desordem, em proporção mais de duas vezes superior ao percentual que represen- ta[va]m na cidade de São Paulo”. (REALE JR., Miguel. Insegurança e tolerância zero. In: Revista de estudos cri- minais. !TEC/PUC-RS, nº 09, p. 67). 29 O Estado norte-americano é definido por Loïc Wacquant como um Estado-centauro, eis que “guiado por uma cabe- ça liberal, montada sobre um corpo autoritarista, aplica a doutrina do “laissez-faire, laissez-passer” a montante em começariam a atirar pedras para quebrar as demais janelas, até que todas estivessem que- bradas. Desta forma, os indivíduos que por ali passassem concluiriam pela inexistência de qualquer responsável pela ordem daquele prédio ou rua em que se localizava. Desse modo, toda “janela quebrada” (comportamento desviante), deve ser consertada (punição), sob pena de se estabelecer a decadência da rua e da comunida- de como um todo (aumento da criminalidade). Ou seja, realizando um paralelismo ilógi- co, essa tese foi conduzida para o âmbito do sistema punitivo, passando a broken windows theory a fundamentar a política de punir as pequenas infrações como forma de conter a violência em sua raiz, de modo a evitar a “pri- meira janela quebrada”. Em outras palavras, os seus sequazes sustentam (sem qualquer com- provação) que o combate à grande criminalida- de deveria iniciar-se através da austera repres- são e perseguição dos pequenos delitos.27 Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 34 27 Segundo Loïc Wacquant a teoria da janela quebrada “pos- tula que a repressão imediata e severa de menores infra- ções e desentendimentos em via pública abarca o desen- cadeamento dos grandes atentados criminais, (r)estabele- cendo um clima sadio de ordem – em outras palavras, que prender ladrões de ovos permite frear, ou mesmo simples- mente parar, os potenciais matadores de bois, pela reafir- mação da norma e dramatização do respeito à lei. Ora, essa autodenominada teoria é tudo menos científica, pois foi formulada vinte anos atrás pelo cientista político ultra- conservador James Q. Wilson e seu acólito George Kelling (antigo chefe da polícia de Kansas City, reconvertido depois em Senior fellow no Manhattan Institute) sob a forma de um curto texto de nove páginas publicado, não em uma revista de criminologia, submetido à avaliação de pesquisadores competentes, mas no seminário cultural de pf Realce pf Realce pf Realce mesmice, diante da aceitação de fórmulas e de teorias que acabam sendo encaradas como “verdades naturais”. O lugar-comum alcança os operadores jurídicos que, formados com o intuito de buscar soluções razoáveis para os conflitos sociais, bem como “neutralizar o ímpeto de vendeta em massa e sublimar a retaliação, acabam por internalizar e intermediar o ódio comunitário, sendo cooptados por disciplina social extrema- mente autoritária, legitimadora de verdadeira ‘política criminal do terror’”.33 Assim, empreende-se “um condiciona- mento sutil das mentalidades em escala plane- tária”:34 a pseudocientificidade das “teses” da tolerância zero, especialmente a broken win- dows theory, difunde-se pelo globo, apresen- tando-se como fundamento de experiências bem-sucedidas no combate à violência urbana e à criminalidade local. Contudo, a falácia é desmistificada por diversos fatores: em primeiro plano, a diminui- ção dos índices de violência criminal em Nova York ocorreu três anos antes de Giulianni se estabelecer no poder, no fim de 1993, seguindo a tendência de baixa no curso de seu mandato. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 37 qual há uma crescente necessidade de disciplinar impor- tantes grupos sociais e segmentos populacionais” (BAU- MAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências huma- nas, pp. 122) 33 CARVALHO, Salo de. “Execução da pena e sistema acu- satório: leitura desde o paradigma do garantismo jurídi- co-penal”. In: Direito penal e processual penal: uma visão garantista. (Org. Gilson Bonato), p. 213. 34 RAMONET, Ignácio. A tirania da comunicação, p. 08. Isso, em grande medida, denota que na globalização neoliberal é verificada a intensifi- cação de um fenômeno de igualação, uniformi- zação, padronização e homogeneização das idéias e dos costumes das sociedades contem- porâneas. As práticas características da cultu- ra dominante eliminam a diversidade, impon- do-se como modelo universal, forçando-nos a contemplarmos-nos “num único espelho, que reflete os valores da sociedade de consumo”.30 De um extremo a outro do planeta “mes- mos filmes, mesmas séries de televisão, mesmas informações, mesmas canções, mesmos slogans publicitários, mesmos objetos, mesmas roupas, mesmos carros, mesmo urbanismo, mesma arquitetura, mesmo tipo de apartamento (...)”31. Os campos econômico e político (englobando, obviamente, o viés penal32) não escapam da Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 36 relação às desigualdades sociais, mas mostra-se brutal- mente paternalista a jusante no momento em que se trata de administrar suas conseqüências” (WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, p. 21). 30 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, p. 26. 31 RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos, p. 47. 32 Constata Zygmunt Bauman que “cresce rapidamente em quase todos os países o número de pessoas na prisão ou que esperam prováveis sentenças de prisão. Em quase toda parte a rede de prisões está se ampliando intensa- mente. Os gastos orçamentários do Estado com as “forças da lei e da ordem”, principalmente os efetivos policiais e os serviços penitenciários, crescem em todo o planeta. Mais importante, a proporção da população em conflito com a lei e sujeita à prisão cresce num ritmo que indica uma mudança mais que meramente quantitativa e sugere uma “significação muito ampliada da solução institucional como componente da política criminal – e assinala, além disso, que muitos governos alimentam a pressuposição, que goza de amplo apoio na opinião pública, segundo a pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce por outro, no fomento da indústria carcerária,38 além de produzir um campo fértil para a dema- gogia política, pela dramatização e clamor que envolve o tema “violência urbana”. E neste viés, há uma espécie de consenso entre as tendências políticas conservadoras e Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 39 cos do sexo masculino e 7% dos homens negros estavam atrás das grades em 1994. Em probabilidade acumulada, 9% do conjunto dos homens do país estarão, no curso de suasvidas, confinados nas prisões federais ou estaduais” (WESTERN, Bruce; BECKETT, Katherine; HARDING, David. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos. In: Discursos sediciosos. ICC. nº 11, p. 43). Do mesmo modo, explica Loïc Wacquant que “o sistema penal contribui diretamente para regular os segmentos inferiores do mercado de trabalho – e isso de maneira infi- nitamente mais coercitiva do que todas as restrições sociais e regulamentos administrativos. Seu efeito aqui é duplo. Por um lado, ele comprime artificialmente o nível do desemprego ao subtrair-se à força de milhões de homens da “população em busca de um emprego” e, secundaria- mente, ao produzir um aumento do emprego no setor de bens e serviços carcerários, setor fortemente caracteriza- do por postos de trabalho precários (e que continua ele- vando mais ainda a com a privatização da punição). Estima-se assim que, durante a década de 90, as prisões tiraram dois pontos do índice do desemprego americano” (WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria, pp. 96 e 97). 38 Explica Loïc Wacquant que “dezessete firmas, quinze americanas e duas britânicas, oferecem a gestão completa (full-scale management) de estabelecimento de detenção. Sete dentre elas estão cotadas em bolsa, no mercado Nasdaq: Correction Corporation of America, Correctional Services Corporation, Securicor (sediada em Londres), Wackenhut, Avalon Community Services, Cornell Corrections e Correctional Systems. Estas sete empresas controlam 82% dos efetivos do setor comercial e totalizam, sozinhas, um capital superior a 500 milhões de dólares (...). Com uma taxa de crescimento global de 45% ao ano duran- te a década passada, a maioria destas firmas duplicaram seu volume de prisioneiros e suas vendas de um ano para o outro”. (WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, pp. 33 e 86). Ademais, o refluxo da criminalidade violenta foi alcançado em cidades onde não foram aplica- das as doutrinas do “tolerância zero” (incluin- do cidades com políticas absolutamente opos- tas: Boston, San Francisco, San Diego, etc.)35 Acrescente-se, ainda, ao grande cresci- mento econômico, de cunho amplo e durável, experimentado pelos Estados Unidos nas últi- mas décadas. Desse modo, o rei fica nu quando se constata que “o espantoso aumento do número de encarcerados não correspondeu a nenhuma alteração relevante na incidência cri- minal, estabilizada nos anos noventa graças ao pleno emprego e a uma redução demográfica da população jovem, deixando em aberto o real objetivo desse encarceramento massivo”.36 O sentido dessa política criminal se con- substancia, por um lado, em mascarar os índi- ces de desemprego (regulação da miséria e armazenamento dos refugos do mercado37) e, Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 38 35 Segundo Loïc Wacquant, em San Francisco “uma política sistemática de “diversão” dos jovens delinqüentes para programas de formação, de aconselhamento e de trata- mento social e médico permitiu reduzir o número de entra- das em delegacias em mais da metade, diminuindo, ao mesmo tempo, a criminalidade violenta em 33% entre 1995 e 1999 (contra 26% em Nova York, onde os volumes dos aceitos em detenção aumentou em um terço no mesmo intervalo)” (WACQUANT, Loïc. Sobre a “janela quebrada” e alguns outros contos sobre segurança vindos da América. In: Revista brasileira de ciências criminais. IBC- CRIM. nº 46, p. 238). 36 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal brasileiro, p. 632. 37 De acordo com Bruce Western, Katherine Beckett e David Harding, os EUA intervêm diretamente na área do empre- go pelo viés penal: “Aproximadamente 1% dos adultos bran- pf Realce Capítulo 3 Política Repressiva Global: Institucionalização de Medidas Típicas do Estado de Polícia. Direito Penal do Inimigo? Não, Obrigado A faceta penal da globalização neoliberal se expressa de forma evidente pela maximização do direito penal e pela supressão das garantias processuais, ajustada e fomentada de acordo com a opinião pública(da). Apresenta-se com as seguintes peculiaridades: a) é própria de um contexto político-econômico b) fomenta a repres- são de cunho autoritário, especialmente para com a criminalidade rua; c) estimula a diversifi- cação e a extensão de sanções jurídicas, sejam penais ou extrapenais; d) pretende a mitigação dos direitos e garantias individuais e coletivos.1 A transição do Estado providência para o Estado penitência2 denota o claro objetivo de gestão penal da pobreza da política criminal neoliberal. Este tráfico internacional das cate- gorias da concepção neoliberal – utilizando-se a 41 1 A propósito, conferir: TAVAREZ, Juarez. A globalização e os problemas da segurança pública. In: Ciências penais, ABPCP. nº 00, p. 134. 2 WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres, p. 140. progressistas. O discurso penal(izante) alcança unanimidade, seduzindo setores (até então) comprometidos com a mudança de paradigma social, denotando o surgimento do que Maria Lúcia Karam logrou chamar “esquerda puniti- va”.39 Assevera Manuel Cancio Meliá, referindo- se ao âmbito político espanhol que “a esquerda política tem aprendido o quanto rentável pode resultar o discurso da law and order, antes monopolizado pela direita política. Esta se soma, quando pode, a habitualidade político-criminal que caberia supor, em princípio, pertencente- mente à esquerda, uma situação que gera uma escala na qual ninguém está disposto a discutir, verdadeiramente, questões de política criminal no âmbito parlamentar e na qual a demanda incriminadora de maiores e “mais efetivas” penas já não é tabu político para ninguém”.40 Na continuação busca-se descrever a ins- titucionalização de medidas tendentes ao Estado de Polícia, denotando a ideologia penal global de (re)produção de um Direito Penal sim- bólico, derivando a recente formulação do denominado “Direito Penal do inimigo”, que vai de encontro às conquistas históricas con- cernentes nos direitos e garantias individuais e coletivos, fruto do empreendimento democráti- co do Estado de Direito. Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira Filho 40 39 CLEINMAN, Betch A esquerda punitiva: entrevista com Maria Lúcia Karam. In: Revista de estudos criminais. !TEC. nº 01, pp. 11 a 15. 40 MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo? In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito pe- nal do inimigo, p. 62. pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce pf Realce leiro é emblemático nesse sentido, pois ao mesmo tempo em que não foram consolidadas as promessas do Estado Social no plano subs- tancial, o intervencionismo foi devidamente instaurado no viés penal (substituição da pers- pectiva absenteísta pela intervenciosnista),5 Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social 43 “Evidentemente, a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare state tem conseqüências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve Estado Social.” (STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 24) Explica Ana Lúcia Sabadell que “mesmo naqueles países que nunca passaram pela expe- riência de um Estado de bem-estar social, como é o caso do Brasil, constatamos a criação de um Estado penal, mui- tas vezes atuando no limite entre a legalidade e a ilegali- dade. Essa política tem levado à propagação, por meios formais e informais, de uma cultura do pânico, que permi- te legitimar como única solução viável para a efetivação da cidadania (segurança!), a segregação de parcelas cada vez maiores da população e, principalmente, sua estigma- tização como ‘bandidos’”. (SABADELL, Ana Lúcia. Prefacio. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima, p. 02). 5 Salienta Salo de Carvalho que “ao ser chamado
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