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SAGRADO, O QUE É ISTO? Aula organizada pelo Professor Dr. Clóvis Ecco CAROLINA TELES LEMOS (artigo publicado) Segundo o teólogo Otto (1985, p. 17-22), sagrado significa o “totalmente outro”, aquele que está além da esfera do cotidiano, do compreensível, do familiar. É algo pleno de valor, que ultrapassa toda a capacidade de compreensão; possui um valor objetivo que impõe respeito por si mesmo. Seguindo e criticando a definição de Otto, Eliade (1972, p.7-23) afirma que a primeira definição que se pode dar do sagrado é que este se opõe ao profano. O sagrado se caracteriza pela ambigüidade, ou seja, as coisas e forças sagradas são ambíguas pois são físicas e morais, humanas e cósmicas, positivas e negativas, propícias e não-propícias, atraentes e repugnantes, favoráveis e perigosas para as pessoas. O sagrado é também relativo, isto é, algo pode ser sagrado para algumas pessoas e não ser para outras. Por exemplo, a vaca é um animal sagrado para os indianos, mas é um animal como os outros para as culturas ocidentais; a eucaristia é algo sagrado para os cristãos, mas é apenas um pão para outras culturas. A hierofania (manifestação do sagrado) consiste em uma aparição que se diferencia do profano, do cotidiano, do normal. Esta hierofania pode se dar através de objetos, de lugares ou do espaço temporal, tornando-os também sagrados. Hierofania em objetos: neste caso, um objeto qualquer se transforma em outra coisa; isto, no entanto sem que o objeto deixe de ser ele mesmo. É como afirma Durkheim (1989, p. 485-490): a qualidade sagrada não é intrínseca ao objeto, mas a ele é conferida por pensamento e sentimento religioso. O sagrado não é um aspecto da natureza empírica, mas é colocado sobre ela. É como diz O'Dea (1969, p.25), os objetos sagrados simbolizam o "mundo-não- visto", e a atitude provocada pelos mesmos é de intenso respeito e reverência. Segundo Durkheim (1989, p. 485-490), o culto religioso não se dirige, fundamentalmente, a símbolos ou outros objetos, mas a um poder que se difunde em tais objetos. Os poderes ou forças estão na raiz da atitude religiosa de quem pratica ou busca estes rituais. Os objetos sagrados ou símbolos utilizados nos rituais religiosos, normalmente são retirados da natureza viva, ou são objetos que fazem parte do cotidiano das pessoas, tais como toalhas brancas, xícaras com água, sal, cinza, faca, pão, vinho, etc. Hierofania em espaços físicos: segundo Eliade (1972, p.7-23), para a pessoa humana religiosa, há porções de espaços qualitativamente diferentes das outras: “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa” (Êxodo, 3:5). Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência “forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por conseqüência, sem estrutura nem consistência, “fracos”. Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e torná-lo qualitativamente diferente. Não são somente os templos que podem ser sagrados. A casa, a sala de aula, algum local em que ocorreu algo especial para a pessoa podem também ser considerados sagrados. Hierofanias em espaços temporais: Eliade (1972, p.7-23) afirma que não são somente os lugares que podem ser sagrados. O tempo também não é homogêneo. Na duração temporal quotidiana há intervalos de tempos sagrados, que são as festas. A festa sagrada consiste na reatualização de um acontecimento sagrado, acontecido em um passado mítico. A festa é, antes de tudo, um vencimento periódico, a conclusão de um ciclo. O ciclo mais importante, o anual, remete a pessoa ao princípio, à nova criação e à cosmogonia originária. A festa tem também a função de atualização do ato cosmogônico. Desta forma tem a função de regenerar o tempo, conduzindo-o de novo à condição do tempo inicial. A pessoa que celebra a festa volta a nascer com as forças intactas. O sagrado é inerente ao fenômeno religioso, uma vez que o fenômeno religioso é fruto da experiência religiosa e esta consiste na relação da pessoa com o sagrado. Uma vez tendo concordado com a existência de um sagrado como inerente ao fenômeno religioso, coloca-se a possibilidade de duas formas de relação com este sagrado: a do “serviço divino” e a de “coação sobre o deus”. O serviço divino: oração e sacrifícios, está mais relacionado a uma visão racionalizada e sistematizada do sagrado. Neste caso, o sagrado é visto como divindade que influencia fenômenos naturais muito universais. Nesta concepção, o sagrado é considerado como ser supremo, criador do mundo, como um grande senhor que, quando lhe convém, também pode falhar. Deste sagrado não se pode aproximar com medidas de coação mágica, mas apenas com súplicas e presentes. A coação sobre o deus está mais relacionada com uma imagem do sagrado enquanto uma divindade próxima, palpável, ligada ao cotidiano e influenciável por meios mágicos. Este sagrado pode ser forçado a estar a serviço da pessoa humana. Quem possui o carisma de empregar os meios adequados para isto pode ser considerado mais forte do que a própria divindade. Isto porque pode impor à divindade sua vontade, através da coação. Apesar de diferentes, o serviço divino e a coação sobre o deus não ocorrem de forma totalmente separada, ou seja, no serviço divino sempre permanece algo da magia, objetos e ritos utilizados na coação sobre o deus; na coação sobre o deus sempre há algo de oração e sacrifícios, próprios do serviço divino. Segundo Weber (1991, 158-167), o que há de comum entre o serviço divino e a coação sobre o deus é a relação do “toma lá, da cá” que caracteriza o fenômeno religioso. Este caráter é inerente à religião quotidiana e das massas de todos os tempos e povos e também de todas as religiões. O afastamento do mal externo e a obtenção de vantagens externas, “neste mundo” ou em um mundo vindouro constituem o conteúdo de todas as “orações” normais, mesmo nas religiões extremamente dirigidas ao além. BIBLIOGRAFIA DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1989. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Argonautas do Pacífico Ocidental. Trad. Anton P. Carr e Ligia Aparecida Cardieri Mendonça, São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1984. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. Sugestão de atividade complementar: Veja a seguinte narrativa de um trecho da obra de Erico Veríssimo: O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, Vol. 1, 3ª. Ed., p. 293. Quando Fandango entrou na igreja e viu-a abarrotada de gente, disse em voz alta a Bibiana, que caminhava a seu lado: -Está apertado que nem queijo em cincho. - Cht! – repreendeu-o a velha, franzindo a testa e acrescentando num cochicho: - Na igreja não se fala. O sino começou a badalar. Eram quase dez horas da manhã, e o rosto da velha imagem de Nossa Senhora da Conceição resplandecia à luz do morno sol de inverno que entrava pelas janelas do templo. Para Bibiana a santa tinha uma fisionomia familiar, pois desde menina ela se habituara a vê-la ali no altar com as mesmas roupas, a mesma postura e o mesmo sorriso bondoso. Vezes sem conta, quando moça, Bibiana viera ajoelhar-se ao pé da imagem da padroeira de Santa Fé, confiar- lhe suas dificuldades e fazer-lhe promessas. Fora por obra e graça de Nossa Senhora que Bibiana casara-se com o Capitão Rodrigo. Quando aos três anos Boli caíra de cama com um febrão medonho,ela viera um dia à igreja e dissera à santa: “se vosmecê faz o Boli melhorar, prometo mandar rezar dez missas e dar cinco patacões pra igreja”. Ao chegar à casa encontrara já o menino com as roupas úmidas de suor e a testa fresquinha. Depois, com o passar do tempo, e à medida que Bibiana perdia sua fé nos homens e nos santos, suas relações com Nossa Senhora foram deixando de ser de santa para crente para serem quase de mulher para mulher. E agora o olhar que a velha ao sentar-se lançara para a imagem parecia querer dizer: “Bom dia, comadre, como vão as coisas?”. Eram ambas donas de casa e tinham grandes responsabilidades. Durante mais de cinqüenta anos Bibiana não tivera segredos para com a santa. Eram velhas amigas e confidentes: entendiam-se tão bem que nem precisavam falar... Responda: 1. Qual é a concepção de sagrado que aparece neste texto? 2. O que você tem a dizer sobre a forma de relação com o sagrado que aparece no texto? 3. Vimos acima que o elemento comum entre o serviço divino e a coação sobre o deus é a relação do “toma lá, da cá” que caracteriza o fenômeno religioso. Como se pode perceber essa característica no texto literário? O que você diz sobre isso?
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