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REVISTA DO PROFESSOR, jan./mar. 2007 39 (89):Porto Alegre, 23 39-44, PROPOSTA EDUCACIONAL Promovendo a alfabetização em grupos heterogêneos O desafio de viver a diferença como um princípio educativo Histórico A Casa Monte Alegre (CMA) é uma pequena instituição particular, situada em um bairro eminentemente residencial do Rio de Janeiro, Santa Teresa. Fundado há 11 anos, este espaço recebe crianças de 0 a 6 anos, em grande parte morado- ras das imediações. Embora nesta instituição compreen- damos que o trabalho de formação do leitor e do escritor acontece em todos os grupos, só começamos a alfabetizar de forma sistemática as crianças de 6 anos há cerca de 5 anos. Antes disto, as crianças saíam da instituição para serem alfabetizadas em outras escolas. Ao assumirmos esta nova dimensão no nosso trabalho, tínhamos como de- safio garantir que nossos objetivos mais amplos continuassem vivos e presentes, mesmo em face do aspecto mais for- mal que a tarefa de dominar o código escrito apontava. Ou seja, queríamos que o fato de incorporarmos a tarefa de alfabetizar não excluísse outros enfoques que caracterizam a identida- de do projeto pedagógico da Casa Mon- te Alegre. Então, para situarmos a experiência de alfabetização, é necessário que pos- samos caracterizar mais amplamente esses pressupostos teóricos e filosóficos que norteiam o trabalho na CMA, tendo em vista que nosso movimento tem sido o de estar atentos para a coerência en- tre as propostas desenvolvidas com os grupos de alfabetização e os demais. Referencial Os autores que dão sustento ao pro- jeto político-pedagógico da CMA são, entre outros, Vygotsky, Wallon, Freire e Kramer, e nossos pressupostos, alicer- çados em estudos dos campos da His- tória, da Educação e da Psicologia, são os que seguem. 1. Toda a criança é produtora de sa- beres e culturas. 2. A aprendizagem acontece na ação da criança sobre o mundo, ou seja, ela se dá na relação que as crian- ças estabelecem com o meio, com os objetos e com o outro. 3. É na possibilidade do encontro com o outro (criança/criança; criança/adul- to) que a criança desenvolve diferentes relações pessoais, sociais e ambientais, tornando-se cidadã presente em seu es- paço-tempo, desenvolvendo o respeito, a escuta, a solidariedade e a parceria. 4. A valorização das diferenças é fun- damental em nosso trabalho. Apostamos nas possibilidades e necessidades de cada corpo, na pluralidade de cada um. 5. As diferentes formas-de-expres- são são enfocadas no dia-a-dia: dança, música, desenhos, construções, drama- tizações, textos, entre muitas outras. 6. Reconhecer o valor social assumi- do pela leitura e pela escrita é um dos desafios do cotidiano do nosso tra- balho, que se expressa em ações como: ler para o outro, escrever cartas, men- sagens, bilhetes, histórias para serem partilhados. 7. A comunicabilidade das experiên- cias é fundamental. As produções das crianças ganham lugar e se espalham pelas paredes da casa e tomam outros espaços do próprio bairro (exposições em centros culturais, convites que se espalham pelo comércio local, etc.). As cartas são levadas para o correio e os cadernos servem para registrar as ex- periências vividas. Desta maneira, bus- camos garantir espaço e valorização da Projeto Nacional de Intercâmbio de Experiências Educacionais Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003 a 2005 37 crianças de 3 anos e 6 meses a 6 anos Casa Monte Alegre Educação Infantil • Adrianne Ogêda Guedes Especialista em Educação Infantil e em Alfabetização Mestre em Educação Diretora • Daniela Guimarães Especialista em Educação Infantil Mestre em Educação Diretora • Nuelna Vieira Especialista em Educação Infantil Professora • Ruani Maceira de Moraes Especialista em Educação Infantil Professora Município: Unidade Federada: Período de realização: População-alvo: Escola atingida: Executoras e relatoras do projeto: DADOS DE IDENTIFICAÇÃO promovendo_alfabetizacao_um.p65 1/12/2006, 00:0539 REVISTA DO PROFESSOR, 40 jan./mar. 2007(89):Porto Alegre, 23 39-44, PROPOSTA EDUCACIONAL expressão infantil colocada em suas produções. Pautado nesses pressupostos, o tra- balho da CMA caracteriza-se pela va- lorização dos afetos, pela promoção dos encontros entre crianças de idades va- riadas e, também, com diferentes adul- tos envolvidos com o compromisso pe- dagógico. Diferentes! Diferença é uma palavra presente em nosso trabalho. Entendemos que todo e qualquer grupo é uma multiplicidade de corpos, onde cada um vive sua potência na expres- são da sua singularidade. Viver a po- tência é aquele instante onde reconhe- ço o que é meu, o que me pertence. É um lugar onde o corpo se integra. De certa forma, é o que temos em comum que produz as diferenças entre nós, o que, por sua vez, depende de nos- sos inter-relacionamentos. A diversida- de é mais uma função das relações que unem os grupos do que algo que os leva ao isolamento, segundo Kuper. Um grupo é composto por pessoas, sejam elas crianças e/ou adultos, que tra- zem para ele suas histórias e experiên- cias. Como a singularidade, ou seja, a di- ferença pode aparecer no grupo?! Para trabalhar com a diferença é preciso criar um campo para que esta possa apare- cer. É preciso acolher cada um que che- ga. É preciso que o educador possa es- treitar a relação com cada um, em con- tato com os desejos, as necessidades, os afetos, o jeito, as possibilidades do outro. Não para julgar, conceituar, mas para proporcionar que cada um encontre a expressão do próprio corpo e possa com- partilhar com o coletivo. Precisamos de um meio acolhedor, seguro. Só assim é possível a exposi- ção pessoal. Para crescer é preciso exposição! Esta é uma tarefa comple- xa para todos os grupos: construir um meio acolhedor onde cada um possa viver o que lhe for possível e necessá- rio. Um meio onde a diferença possa somar e conjugar infinitas possibilida- des de experiências, expressões, histó- rias e conhecimentos. Não é uma tare- fa fácil em tempos como os nossos em que a busca pela homogeneização é um convite constante! Acolhimento, se- gurança nas relações e exposição das diferenças são eixos fundamen- tais do trabalho. No que diz respeito a esta temática, Kuper afirma que os especializados em estudos sociais vêem um proces- so de americanização (chamado de globalização), onde o resto do mun- do está aparentemente condenado a repetir a peça de teatro cultural que estreou na metrópole. Sujeito à mes- ma mídia, o mundo todo irá encenar as mesmas lutas. Objetivos Em nossas práticas de produção cultural com as crianças, no cotidiano de nosso trabalho, buscamos constituir espaços onde também a relação entre as crianças e as letras, as escritas e as leituras possam mobilizar prazer, des- lumbramento diante das descobertas e, simplesmente, alegria. Com relação à leitura e à escrita pro- priamente, nosso trabalho na CMA tem como objetivo que as crianças se apro- priem do ler e do escrever como possi- bilidades de expressão de emoções e idéias, combinação de elementos arbi- trários na concretização de suas fanta- sias e histórias, para que ler e escrever sejam arma e sonho na vida de cada uma, hoje. E para que sejam inscritos como formas de exercício de potência e prazer para toda a vida. Buscamos a criação de espaços onde ler e escrever articulem-se com a pai- xão de conhecer o mundo, desvendá- lo, e com a magnífica possibilidade de fixar algo dele no papel. Desenvolvimento ! Crianças alfas e não-alfas No que diz respeito ao trabalho rea- lizado com grupos heterogêneos com- posto por alfas e não-alfas , os primei- ros assumem dentro do grupo o lugar dos que podem contribuir com um co- nhecimento de que, naquele momento, estão mais apropriados que os demais: ler e escrever alfabeticamente. As crianças do grupo (e tambémda escola de modo geral), reconhecem isso e é muito comum que elas busquem auxílio dos alfas para ler ou registrar algo de seu interesse. Os questionamentos dos não-alfas provocam uma reflexão nos alfas e vice-versa. Vale esclarecer que chamamos de alfas as crianças que estão vivendo o momento de sistematização da aprendi- zagem da leitura e da escrita, tendo em vista o ingresso na 1a série do Ensino Fundamental no ano seguinte. Denomi- namos de não-alfas as crianças que par- ticipam do mesmo grupo, mas não têm o compromisso da sistematização da leitu- ra e da escrita naquele momento. É na intensidade das trocas que as crianças vão experimentando diferen- tes papéis. Ora uma criança está res- pondendo, ou seja, apropriando-se dos seus saberes e compartilhando com o outro, ora essa mesma criança poderá estar questionando, expondo alguma dúvida. É essa mobilidade dos papéis que expõe as crianças a refletirem so- bre o mundo que as rodeia. O mesmo acontece com relação à língua. Neste sentido, entendemos que mesmo aque- las crianças que não estão vivendo a sistematização do processo de alfabeti- zação estão no curso dele, experimen- tando-se cotidianamente como leitores e escritores. A relação entre os alfas e não-alfas garante desafios que se des- dobram em potencialidades para ambos. Apesar de designarmos algumas cri- anças por uma aparente negativa (não- alfa), a força do papel de cada uma é muito valorizada no grupo. A presença das crianças que não estão envolvidas no compromisso de sistematização da leitura e da escrita contribui para que todas as linguagens estejam em cena o tempo todo, em cada projeto vivido. As crianças entendem que saber ler e escrever não é um aval que faz delas crianças mais importantes que outras. Muito pelo contrário. Ter crianças num mesmo grupo que vivem o desafio de sistematizar a leitura e a escrita e outras que não estão vivendo isso é mais uma possibilidade de garantir encontros cada vez mais ricos, expressivos, solidários, produtivos, onde todos os saberes têm o seu valor, e onde cada experiência ga- nha um sabor particular. Fazer o teatro de uma história (como dizem as crian- ças) ou desenhá-la são atividades tão de- safiadoras e gostosas quanto escrevê-la ou escrever seu título. Enfim, de acordo com nossos pres- supostos, entendendo que toda criança produz saberes e culturas e que é no encontro com outras crianças e adultos que estes saberes se constituem, per- cebemos que a idade cronológica pas- sa a ser um fator de pouca relevância na construção destes saberes. O conhe- cimento faz-se presente na relação onde o adulto assume o papel fundamental de interlocutor, desafiador e promotor de encontros, com base nos princípios teóricos de alfabetização de grupos he- terogêneos (Quadro 1). ! Experiências alfabetizadoras: a diferença em cena Passemos agora às experiências pro- priamente ditas. Desde o primeiro ano do trabalho de alfabetização na CMA, promovendo_alfabetizacao_um.p65 1/12/2006, 00:0540 REVISTA DO PROFESSOR, jan./mar. 2007 41 (89):Porto Alegre, 23 39-44, PROPOSTA EDUCACIONAL buscamos estruturar o grupo mesclando crianças de diferentes idades. Desse modo, a faixa etária destes agrupamen- tos oscila entre 4 anos e meio e 6 anos. Esta composição instigou-nos sem- pre a pensar a diferença em cada pro- posta planejada. Era preciso levar em conta os diferentes momentos, saberes, desejos de cada criança. Além disto, era também o desafio descobrir os pontos comuns, os interesses que uniam, a iden- tidade do grupo. Na verdade, a diferença explícita para todos era que havia um ponto de chegada para as crianças que sairiam da escola ao final do ano rumo à pri- meira série. Elas tinham como meta apropriarem-se da escrita e da leitura com desenvoltura suficiente para ingres- sar com segurança num novo momento escolar. Não acreditávamos que pelo fato de algumas das crianças terem esta meta como perspectiva, deveriam ser separadas das demais. O critério para a separação não poderia ser os conteú- dos do que deveríamos ensinar. Havia muitas possibilidades de trocas e cons- truções quando misturávamos as idades e foi nisto que apostamos. Neste sentido, para garantir que a diferença fosse algo a somar e não a dificultar o trabalho, sabíamos que se- ria imprescindível termos clareza das diferenças com relação aos conheci- mentos sobre leitura e escrita das crian- ças. Era também preciso que, além disto, discutíssemos amplamente os desafios adequados, discriminando as necessida- des específicas de cada uma. Não que- ríamos que o fato de termos crianças em alfabetização fizesse com que pla- nejássemos a maior parte do tempo pro- postas voltadas para a leitura e a escri- ta. Era fundamental garantir outros es- paços de expressão. Era também fun- damental que, mesmo nos momentos voltados para ler e escrever, distinguís- semos os desafios apropriados para cada uma. Além disso, era importante pensarmos em como organizar o grupo de modo que, mesmo que os desafios precisassem ser diferenciados, houves- se momentos em que estar juntos e pro- duzir coletivamente enriquecesse as propostas. Trata-se de perceber a ne- cessidade de olhar o individual e a ri- queza do compartilhar. Pensando nisso, vimos que o primei- ro passo do início do ano letivo seria mapear as diferentes formas de expres- são de cada criança. Esta avaliação não leva em conta apenas o que a criança sabe sobre leitura e escrita, mas tam- bém a forma como ela se expõe no gru- po, seu modo próprio de estabelecer re- lações, suas dificuldades, seus interes- ses e desejos. Assim, uma criança que se mostra muito desenvolta no aprendi- zado da língua escrita, pode revelar difi- culdades em produzir coletivamente, ou mesmo em integrar-se em brincadeiras que envolvam movimento. Para esta criança, será importante pensar em or- ganizações grupais em que ela possa ter experiências de trabalhar coletivamen- te, em propostas em que ela se engaje pela via da corporeidade (Quadro 2). O papel que cada uma precisa viver no grupo é também considerado. Para uma criança que, por exemplo, mostra- se muito insegura de seu saber, pode ser interessante integrar-se em alguns momentos num subgrupo em que ela seja a mais velha, podendo-se afirmar como potente, assumindo lugar de quem sabe no auxílio das outras. O importante nesta avaliação inicial, que na verdade é constantemente re- pensada à luz do que vamos perceben- do ao longo do desenvolvimento do tra- balho, é que as crianças possam viver juntas experiências significativas, onde estejam garantidos desafios pertinentes às necessidades de pequenos subgrupos e até mesmo individuais. O grupo não trabalha o tempo todo junto, subgrupos são compostos tendo em vista o desenvolvimento da autonomia e do aprendizado de construir junto. O pro- fessor não assume papel centralizador, estabelecendo uma tarefa igual para to- dos a todo o momento. De um modo geral, todos os dias existem momentos coletivos (de grupo inteiro integrado) e outros de trabalho em subgrupos (trios, duplas, quadras). Esta estruturação fa- vorece também o aprofundamento no estudo e/ou na produção, uma vez que a troca e a cooperação ampliam as possi- bilidades de descoberta. Colocamos em foco, neste momen- to, algumas experiências vividas nos úl- timos anos letivos de 2003 e 2004 e 2005. Apresentamos, então, três grupos: Gru- po Gelo , constituído de 13 crianças com idades entre 4 e 6 anos, estando 4 delas no último ano do processo de alfabeti- zação; Grupo do Desenho, constituí- do de 9 crianças, todas elas com idade entre 5 anos e meio e 6 anos e conclu- indo o processo de alfabetização; Gru- po Misturado, constituído de 15 crian- ças cujas idades variam entre 3 anos e meio e 6 anos, duas delas concluindo o processo de alfabetização. Vale desta- car que as diferençasetárias oscilaram nestes três grupos, constituindo desafi- os diferenciados a cada ano e, com o resultado obtido, fortalece-se a confian- ça em nossa opção de integrar diferen- tes faixas etárias. Faz parte da identidade do trabalho desenvolvido na Casa Monte Alegre que cada grupo tenha um nome específico. Este nome é, de um modo geral, esco- lhido pelas crianças e traduz o movi- mento, os interesses, as particularida- des dos agrupamentos. Nomear confe- re ao grupo identidade própria, fortale- cendo os laços de pertencimento das • Toda a criança é produtora de sabe- res e cultura. • A aprendizagem acontece na ação das crianças sobre o mundo, ou seja, na relação que estabelecem com o meio, com os objetos e com o outro. • O cotidiano do trabalho prioriza os afe- tos e os relacionamentos, onde as crian- ças experienciam o respeito mútuo, a escuta, a solidariedade e a parceria. • A valorização das diferenças é fun- damental. • É importante apostar nas possibilida- des de cada corpo, na pluralidade de cada um e nas diferentes formas de expressão (dança, música, desenhos, construções, dramatização, textos, en- tre muitos outros). • Reconhecer o valor social assumido pela leitura e pela escrita é um dos desafios do cotidiano do nosso traba- lho que se expressa em ações como: ler para o outro, escrever cartas, men- sagens, bilhetes, histórias para serem partilhados. Princípios teóricos na alfabetiza- ção de grupos heterogêneos QUADRO 1 QUADRO 2 Práticas de alfabetização em gru- pos heterogêneos • Mapear as diferentes formas de ex- pressão de cada criança, levando em conta suas hipóteses sobre como se lê e como se escreve, a maneira como se expõe no grupo, seus interesses e desejos. • Garantir desafios individuais e em pe- quenos subgrupos. • Possibilitar que cada criança assuma diferentes papéis (mais velha/mais nova; quem desenha/quem escreve, etc.). promovendo_alfabetizacao_um.p65 1/12/2006, 00:0541 REVISTA DO PROFESSOR, 42 jan./mar. 2007(89):Porto Alegre, 23 39-44, PROPOSTA EDUCACIONAL crianças e criando um vínculo mais es- treito entre elas. Isso é muito interessante porque, se para muitos educadores alfabetizar crianças com a mesma idade é mais fácil, vemos que muitas vezes esta fa- cilidade se torna uma arma poderosa para a sonegação da diferença e, prin- cipalmente, para o insucesso do proces- so alfabetizador. Em suma, mesmo quando um grupo de crianças que es- tão sendo alfabetizadas apresenta a mesma faixa etária, os saberes e os conhecimentos que estas crianças dis- põem sobre o mundo e, principalmente sobre a leitura e a escrita, na maioria das vezes são diferentes. • Grupo Gelo O primeiro grupo, o Grupo Gelo, vi- veu inúmeras experiências ricas e pro- dutivas durante o ano de 2003. Desta- camos aqui os projetos O céu e seus mistérios e Poesias. A valorização das diferentes lingua- gens infantis é ponto norteador do nos- so trabalho, a presença da relação com a arte, com a cultura e o saber científi- co é intensa. As temáticas geradoras de experiências (céu e poesias) são fru- to do desejo trazido pelas crianças, cap- tados em diálogos, perguntas, etc. No projeto O céu e seus mistérios, para mergulhar a fundo nos mistérios celestiais, as aventuras foram infindas. Pesquisamos livros sobre o tema, visi- tamos o planetário, realizamos dramati- zações, escutamos músicas que fala- vam do assunto; enfim, encontramo-nos com diferentes formas de saber sobre o mesmo assunto. À medida que íamos nos aprofundando no tema, íamos re- gistrando, também de diferentes manei- ras, o nosso conhecimento. Surgiram desenhos, pinturas, histórias, maquetes, listas de diferentes elementos que com- punham o céu, etc. Pensar nas inúmeras possibilidades de desdobramentos que poderiam estar asseguradas ao vivenciar cada projeto não era o suficiente. Era preciso tam- bém e, sobretudo, pensar como realizar cada uma destas propostas, quais os de- safios pertinentes a cada criança e qual o lugar que as crianças que estavam concluindo o processo de alfabetiza- ção assumiriam naquele momento. Essa tarefa não é fácil, mas em um trabalho que visa à valorização da di- ferença enquanto algo que soma e potencializa, ela é primordial. Na produção de uma história coleti- va, por exemplo, pensamos o papel dos alfabetizandos (os alfas como chamá- vamos) como escribas. Para a produção de uma lista das coisas que têm no céu, organizamos duplas ou trios com a pre- sença de um alfa que assumiu o papel de escriba do pensamento do(s) outro(s). Depois, todos desenharam juntos no mesmo papel. Numa visita ao Museu, os alfas foram os leitores das placas explicativas. Na confecção de um con- vite para os demais grupos, tivemos al- guns desenhistas para produzir a ilustra- ção, enquanto outros cuidam do texto. Cada um expôs suas habilidades e isso é valorizado no grupo. Uma apresentação para o grupão de algo produzido em um subgrupo é fun- damental no momento de conferir sen- tido à produção coletiva. Experiências igualmente significa- tivas foram vividas no projeto Poesias, onde estavam garantidos dois pilares de sustentação dessas experiências: o encontro com a obra de vários poetas brasileiros e a possibilidade de criar- mos nossas poesias infantis (coletivas e individuais), desdobrando-se em pro- duções plásticas, literárias e corporais. Eis o exemplo da poesia produzida livremente por um menino em seu ca- derno depois do mergulho em várias poesias de autores consagrados (é cla- ra a alusão ao poema de Cecília Meireles Ou Isto Ou Aquilo): • Grupo do Desenho Agora, daremos destaque ao Grupo do Desenho (2004). Num primeiro mo- mento, se tomamos como ponto de par- tida a organização por faixa etária, pode parecer que este foi o grupo onde, como OU EU SEI OU EU NÃO SEI VIVO ESCOLHENDO O DIA INTEIRO OU EU SEI OU EU NÃO SEI (Lui) Pinturas e maquetes constituem registros no projeto O céu e seus mistérios promovendo_alfabetizacao_um.p65 1/12/2006, 00:0542 REVISTA DO PROFESSOR, jan./mar. 2007 43 (89):Porto Alegre, 23 39-44, PROPOSTA EDUCACIONAL dissemos anteriormente, alfabetizar se- ria mais fácil, tendo em vista a maior homogeneidade etária. Engano! As nuances das diferenças eram mais sutis e mais pontuais, exigindo do educador um olhar atento e cuidadoso. Identificar quais as necessidades e os desafios que precisavam ser abordados para cada criança foi o primeiro passo. Enquanto uns dominavam a língua escrita com de- senvoltura, outros estabeleciam esta re- lação mais dinâmica com a escrita. Al- guns escreviam silabicamente, enquan- to outros, dominavam a escrita alfabéti- ca. Havia também aqueles que não es- tavam seguros o suficiente e não conhe- ciam as letras do alfabeto. De fato, a diferença entre as crian- ças é a única certeza que temos no co- tidiano do trabalho pedagógico e, por isso, ela deve ser o nosso maior valor. O Grupo do Desenho viveu três projetos norteadores: Aranhas e mor- cegos, Caricaturas e Bruxarias. As propostas de trabalho vividas nestes projetos e que envolviam leitura e es- crita eram pensadas ora para produ- ções coletivas, onde todo o grupo pu- desse criar coletivamente uma histó- ria (aqui o adulto assumia o papel de escriba), ora em duplas, trios ou pe- quenos subgrupos, como para fazer lis- tas, produzir histórias que se transfor- mariam em livros, etc. O mais impor- tante na elaboração destes subgrupos era garantir a presença de crianças que dispusessem de diferentes saberes sobre a língua, para que o confronto desses estivesse assegurando novos saberes. Uma situação que exemplifica este confronto de saberes em prol da cons- trução do novo aconteceu no Projeto morcegos. Na escrita em dupla de uma lista com o nome de bichos que, assim como os morcegos, tivessem hábitos noturnos, tínhamos, por exemplo, uma criança noestágio silábico de escrita das palavras e outra no período alfabé- tico. Num primeiro momento, pedimos que a primeira criança dissesse para a outra o que era para ser escrito. Num segundo momento, propusemos o inver- so, ou seja, a criança que fazia escrita alfabética diria à que se encontra no nível silábico quais os bichos que preci- savam ter na lista. O importante é que o educador pon- tue para as crianças que dominam o có- digo, que é fundamental que elas não façam pelo outro, que respeitem a es- crita do amigo e o ajudem a identificar letras que faltam ou que aparecem so- bressalentes com perguntas do tipo: Você acha que, para escrever tal coi- sa, estas letras são suficientes? Vê se falta alguma letra? Você acha que está faltando alguma coisa para es- crever esta palavra ou este número de letras está bom? Serão estes conflitos de saberes que irão possibilitar a construção de novos. • Grupo Misturado O terceiro grupo, o Grupo Mistu- rado (2005) viveu um projeto que to- mou dimensões amplas: Homem das cavernas. No início do ano, o foco central era a própria estruturação das crianças. De fato, integravam-se dois grupos do ano anterior e o desafio era que desta integração se constituísse um único grupo. Tal desafio foi sendo vi- vido ao longo dos primeiros meses e a desorganização inicial foi cedendo lu- gar a uma sintonia, construída a partir das experiências partilhadas. No iní- cio, foi preciso mapear qual o conhe- cimento que cada criança tinha a res- peito da língua (se reconhecia as le- tras dos nomes ou não, se nomeava ou não as letras do alfabeto; se esta- belecia a relação som/grafia entre elas ou não). A partir daí, foi possível pen- sar na composição de trios e duplas para a elaboração de propostas. O mais importante deste momento, como em todos os outros, era não atribuir à diferença existente entre as crianças nenhum juízo, colocando-as como as que sabem mais ou menos no decor- rer do processo. Era preciso mapear a diferença com o objetivo de possibi- litar parcerias ricas e produtivas. Aos poucos, o grupo foi ganhando uma sintonia que o faz peculiar. As crian- ças se sentiram muito à vontade para se colocar e dar idéias. A criatividade encontrou espaço garantido e os sa- beres trazidos pelas crianças foram ga- nhando corpo em projetos e propostas que os valorizaram. Conclusão Precisamos dizer que, para pensar- mos na formação de subgrupos para es- crever algo (por exemplo), é importan- te que a distância dos saberes das crian- ças (sobre a escrita) não seja muito grande (para que um represente desa- fio para o outro), se não, há o risco da- quele que já escreve fluentemente de forma alfabética atropelar o que está descobrindo as letras. É importante também levar em con- sideração que, na formação destes subgrupos (especialmente duplas) onde o desafio é a escrita de algo, onde um vai contribuindo com as idéias e o outro escrevendo, as crianças con- frontem-se especialmente com a ques- tão do tempo da escrita; com freqüên- cia, o que não está escrevendo tende a correr com a fala e é desafiado a acompanhar o tempo do outro que estáProjeto Poesias priorizou o trabalho em duplas e a escrita coletiva promovendo_alfabetizacao_um.p65 1/12/2006, 00:0543 REVISTA DO PROFESSOR, 44 jan./mar. 2007(89):Porto Alegre, 23 39-44, PROPOSTA EDUCACIONAL pensando a escrita (geralmente, um tempo mais lento). Nestas propostas em dupla, é inte- ressante que o escriba seja o não-alfa (viver as duas alternativas é algo rico, sempre), pois o alfa (com o conheci- mento mais avançado) engaja-se na produção escrita do não-alfa, incenti- vando-o a colocar mais letras, fazer es- paços entre as palavras, etc. Mais uma vez reiteramos que a ex- posição para o grupão do que foi pro- duzido em subgrupos é sempre funda- mental. Trata-se de uma nova forma de posicionamento acerca da produ- ção: dizer o que foi feito, como foi fei- to para o outro implica refletir sobre o produto e o processo de elaboração dele. Mesmo quando as propostas são individuais (por exemplo, cada um vai escrever ou desenhar uma parte de uma história em seu caderno), incen- tivamos as trocas de idéias, a busca de modelos que possam inspirar a pro- dução de cada um (olhar os murais que temos na sala, com textos já produzi- dos; perguntar para o amigo uma dú- vida). Sentar em subgrupos, ter a sala repleta de muitas produções culturais das crianças como pinturas, objetos modelados, textos, livros mobiliza a sensação de pertencimento e auto-con- fiança, por meio das quais as crian- ças vão se sentindo confiantes para experimentarem-se no que sabem, no que estão conquistando, e, em segui- da, também no que não sabem. É comum escutarmos não sei dian- te de um outro que sabe. As crianças vão reconhecendo as limitações do seu saber, à medida que vão descobrindo a arbitrariedade do mundo letrado. Este não sei revela que ela já sabe que não sabe (o que é valioso). A partir daí va- mos investindo naquilo que cada um pode (Mas o que você sabe? Qual é o seu melhor?). Esta é uma tarefa essencial e com- plexa que exige do professor muita es- cuta e sensibilidade para avaliar as ne- cessidades e a partir daí propor desa- fios do tamanho de cada um. A valori- zação do saber de cada um é um desa- fio que se faz presente todos os dias, fazendo-nos conscientes de que a dife- rença jamais pode ser entendida como desigualdade. Viver as diferenças existentes en- tre as crianças de modo geral, sobre- tudo, entre alfas e não-alfas é mais que o desejo de valorizar as potencia- lidades de cada um e descobrir muitas possibilidades de conhecimento nestas diferenças. No caso da CMA, o lugar dos alfas marca também um momen- to de despedida, com o início de uma nova etapa do processo de escolariza- ção. Relaciona-se também com fazer novos amigos, conhecer novos espa- ços, novos professores... enfim... tem a ver com continuar crescendo. REFERÊNCIAS BARREIROS, Tereza; GUEDES, Adrianne. Car- tas sobre Leitura e Escrita: uma Paixão nas Entrelinhas. Rio de Janeiro: Pontifícia Universi- dade Católica, 2003. ______.; ______.; GUIMARÃES, Daniela; LACOMBE, Renata. Ler e Escrever na Casa Monte Alegre: uma Experiência Saboreada por Inteiro. 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