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A filosofia de Kant destaca-se de todas as outras
pela obrigação que instituiu para todo pensamen
to ulterior de examinar seus própr ios princípios.
Corno pensar a or igem dos conhecimentos hu
manos sem se interrogar sobre os limites, nos
terrnos insubstituíveis da Crítica da razão pura?
Corno pensar ou contestar a consciéncia moral
sem se referir à presença, ern nós, da lei, que
Kant considera urn fato da razão? Corno explicar
o belo, os fins da humanidade ou os do individuo
sem lançar mão dessa faculdade de julgar cuja
especial sutileza Kant soube exprimir?
Este livro de síntese e de reflexão tem o mérito
de fornecer as chaves para a compreensão de
um pensamento indubitavelmente complexo, de
destacar campo por campo sua importância his
tórica precisa, de extrair tudo o que ele
conserva de vivo e até mesmo inexplorado
para o filósofo contemporâneo.
Olivier Dekens, doutor em filosofia, é professor
adjunto na Universidade de Tours. É autor de vá
rias obras sobre a história da filosofia moderna e
contemporânea.
{ www.loyola.com.h
Compreender
Olivier Dekens
Co mpreender
T radução
Paula Silva
Biblioteca Padre Vaz
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll/111
20101662
Compreender Kant
Edições Loyofa
r 
liTULO ()f{!GIN,\L.:
Co111pre11dre f...:a11t
(' Arrnand Col in 2003 
ISBN: 2-200-26426-7 sumário
PllU'.-\H.·\,\(I: ivlauricio B l eal
P1;11JET0 Gi;Arito: Ronaldo Hideo lnoue
Rrvis..\o: lVlaria de f :\lima Cavallaro
Nota bi bliog ráfica 7
J:l :·
I S I i>
201 01 662-1
Edições Loyola
R ua !822 n" 347 - l piranga 
0421 6-000 São Pa ulo SP
Caixa Postal 42.335 - 04218-970 São Paulo SP
® 11 1 ) 6914-1922
@.) ( l i) 6163-4275
Homc pagc e vendas: www loyola com br 
Editorial: !oyola(frloyola com br
Vendas: vcndas( ·loyola con1 br
liido.1 111·dir1.:ito.1· n·1·c11·ados Ne11/111111a f!ill"fC dc1w obro podi• 1·er
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1·iste111a m1 hw1co de dados l'l.'111 f!t..TllliHâlJ l!l'lTÍfil da Editora
ISBN: 97885* l 5*035236
(' EDIÇÕES LOYOLA. São Paulo. Brasi l. 2008
Introdução
A d isposição filosófica 9
Uma filosofia da filosofia 1O
A natureza filosófica 11
A herança kantiana 13
Capitulo 1
A d efinição ka ntia na da filosofia 15
Que é filosofia? 15
O dispositivo arquitetônico do pensamento kantiano 26
Capitulo li
A invenção do tra nscendental 33
O sentido de uma revolução na teoria do conhecimento 33
A estética. ou o a pnort dos sentidos 43
A analítica Conceitos. princípios subjetividade 47
A dialética, ou o desejo das idéias 70
Factum rat1on1
Capitulo Ili
O fato do dever 85
A moral como reflexão sobr e a consciência da obrigação 85
Os imperativos: o homem e seu dever 97
Da moral à religião. ou a religião moral 119
CAPÍTULO IV
O pri ncípio reflexivo 141
O lugar da reflexão 141
Do belo ao sublime: as faculdades em sua livre correspondência 148
Os fins da natureza 163
Os fins do homem 166
Capitulo V
O arqui pélago da política 171
Resistências do político 171
História e política 173
O direito e a racionalidade política 181
Política sensível e política racional: a necessidade da ação 189
Nota bibliográf ica
As obras de Kant são citadas segundo a paginação da edição de referência dita
"da Academia de Berlim" (abreviatura "AK" seguida do número do volume
em romano e a página)
Conclusão
O dever de filosofar 197
O filósofo e sua atualidade 198
A infância do pensamento 199
Bi bliog rafia 201
Índ ice 205
7
Introdução
A disposição filosófica
Há filósofos sobr e os quais nos per gun tamos às vezes por que sua obra
con tinua a influenciar, muito tempo depois de sua morte, o campo do
pensamen to A influência de um texto filosófico pode dever-se à sua qualidade
objetiva, à personalidade do homem que o engendrou, à ruptura que
introduziu no curso tranqüilo da história das idéias ou ainda ao momen to de
sua irrupção Quando se trata de Kant, uma questão assim parece desti tuída de
sentido, pois os seus escritos superam, em originalidade e força conceitual,
os escritos da maior parte de seus contemporâneos, bem como da maior
parte da produção filosó fica As razões do sucesso são aqui manifestas:
criatividade da obra, majestade do sistema, sutileza das análises - tudo
isto concorre para a excelência do propósi to Mais ainda: a filosofia de Kan
t parece condenar todo pensamento ulterior a um novo exame de seus
próprios princípios, tornados frágeis pelo sopro da crítica Como refletir
seriamente sobre a origem dos conhecimen tos humanos sem levantar a
questão de seus limites, nos pr óprios termos, insubsti tuíveis, da Crítica da
razão pura? Como fundar a consciência moral, mesmo que fosse para
contestá-la em seguida, sem evocar o que Kant chama de um fato da razão: a
presença em nós, misteriosa e incompreensível, da lei? Como dizer o belo, os
fins da humanidade ou os do individuo sem aplicar essa
9
Compreender A disposição filosófica
faculdade de julgar da qual Kan t soube, malgrado tudo o que se possa
censurar even tualmente em sua definição, exprimir a flexibilidade tão
particular? Há, pois, um antes e um depois de Kan t, e teremos ocasião de
mostrar em que essa revolução filosófica é sem dúvida uma revolução, para
além da invejável fortaleza em que a tradição situa, de bom grado, o kantismo
Uma filosofia da filosofia
Mas há mais ainda Para expressá-lo de modo simples, o pensamen to critico 
parece-nos dever ser definido como uma filoso fia da filoso fia Devemos nos 
en tender bem sobre esta fórmula, que poderia ser apenas um slogan Kan t 
não propõe, em nenhum caso, uma filosofia última, que reagruparia, 
unificando as, as tentativas anteriores, fornecendo-lhes desse modo a caução 
do sistema Kan t, como homem e como filósofo, não tem tais pretensões 
Mas não se trata tampouco de reduzir o pensamen to crí tico a uma longa 
interrogação so bre a iden tidade da filosofia, em que Kan t seria só um 
exemplo entre outros desse exercido habitual que consiste em perguntar "o 
que é a filosofia?" Esse estilo de prosa consti tui um verdadei ro gênero na 
história do pensamen to, que não gerou apenas obras-primas Dito de outro 
modo: se o criticismo é uma filosofia da filosofia, não é por se furtar ao 
trabalho da construção da fi losofia, mas porque inventa a própria forma de 
reflexividade que toda filosofia põe em andamento
Neste sentido, Kant, em cada um de seus escritos, faz duas coisas ao mes
mo tempo: de um lado, elabora, e muito bem, as condições de possibilidade do
conhecimen to, da moral ou do juízo estético (en tre outros); de outro, deter
mina, de modo casual, o próprio instrumento de seu pensamen to, aquilo que
deve em suma figurar no princípio de todo procedimento filosófico
A obra kantiana é, portanto, uma filosofia da filosofia por uma razão ain
da mais profunda, que se poderia expressar assim: o pensamento crítico pre
tende ser a elaboração de uma filosofia do homem como animal filosó fico.
Kant considera, com efeito, que há, no mais profundo do ser humano, um
desejo, uma tensão apon tando para o além da experiência, que seria ilusório
preten der controlar A natureza metafísica do espírito é um dado, ou antes,
uma disposição originária do pensamento, que a filosofia pode e deve
exprimir, mas que não é chamada a combater Kant vai mais longe Esta
tendência de pensar Deus, a liberdade, o mundo -esta orientação do
homem em direção
ao incondicionado -é justamente o que é preciso preservar e salvar, desem 
baraçando-a de seus aspectos mais contestáveis e de suas errâncias ilegitimas 
A crítica pode assim ser entendida como um dispositivo intelectual destinado aafirmar o direito a uma disposição do homem com relação à metafisica
O kantismo é, pois, uma filosofia da filosofia por sua letra -a
elaboração da reflexão como princípio de todo pensamento -e por sua
finalidade -sal var o filósofo natural que habita em todo homem Tal é, ao
menos, o sentido último das análises que gostaríamos de propor aqui, e o
de algumas observa ções que nos parece necessário acrescen tar a esta
breve apresentação, antes mesmo de en trarmos no cerne do corpus
kantiano
A natureza filosófica
Define-se comumente a crítica kan tiana como uma avaliação dos poder es da
razão, tan to teórica como prática 'Tra tar-se-ia, em suma, de determinar os
limites da razão cognoscente e o dever da razão agente Tudo isso é verdade 
E preciso acrescentar, primeiramen te, que esse procedimento não visa princi 
palmente a restringir as aspirações da razão, mas antes a guiá-la, a fim de que
ela manifeste seu valor, sua utilidade e sua vocação da maneira mais sólida e
mais legitima Kant constrói, pois, seu pensamen to como uma defesa e uma
ilustração da razão humana em seu destino fundamen tal Convém, pois, que
nos interroguemos brevemente sobre a natureza dessa faculdade
A razão kan tiana é, primeiramen te, o poder mais elevado do espirito, pelo
qual as regras do entendimen to -que organiza a experiência dos sentidos -
são conduzidas à unidade de um principio' Esta razão é, contudo, marcada 
por uma tendência mais essencial ainda: aspira ao infinito, ao além dos fenô 
menos, ao que Kant chama de Idéias Não é, pois, a arma triunfante de um 
espirito in teiramente senhor de si, mas a faculdade própria do homem, pela 
qual este se abre obscuramente àquilo que não pode verdadeiramente conhe 
cer: Deus e a liberdade. Na origem do projeto kantiano, acha-se assim uma 
potência inquieta, "curvada sob o peso de questões que não pode descartar"', 
que ela pr ópria produz, sabendo que não poderá responder a elas Se ela não 
é, como acabamos de ver, uma faculdade perfeitamente independente, não se
1 Cf Crítica da razão pura (doravante CRP), A 302/B 359
2 lbid . A Vil
10 11
Compreender A disposição filosófica
deve tampouco considerá-la um puro espaço de recepção daquilo que ultrapas
sa o saber A razão kantiana não é nem mística, nem submetida a uma fonte
exterior qualquer da experiência O trabalho crítico deve, assim, compreen
der-se como uma partilha entre uma boa receptividade da razão em relação a
certas Idéias ou em relação à lei moral e uma má receptividade da razão, que a
condena a perder sua autonomia consti tutiva
A razão kantiana está em semiliberdade Produtora de conceitos e capaz
de síntese, não é livre na escolha de suas questões Mais exatamen te: a
razão não é livre para buscar o que é verdadeiramente a finalidade do
homem, ou aquilo que existe além da experiência sensivel3 Como esta
nunca satisfaz sua aspiração ao absoluto, a razão é obrigada a ir além do
sensível Os conceitos que ela vai criar então -a alma, o mundo, Deus
-não são nunca o fruto de
um poder, mas o efeito de uma dependência interna da razão em relação a seus
próprios fins. A crítica nunca deverá reprimir ou desconsiderar essa aspiração
Deverá se contentar -mas a tarefa é talvez ainda mais difícil -em orientar a
tensão metafísica para seu domínio de aplicação legítima, isto é, em Kant, para
o domínio da moral
Kant qualifica de dialética tal tendência do espírito a superar os limites
do saber assegurado Existe aí, bem entendido, certo vicio em pretender co
nhecer o que não pode ser conhecido; mas tal vicio é virtude, na medida em
que essa louca pretensão dá ao filósofo a possibilidade de compreender que
uma outra relação com o além da experiência, distinta da ciência é, ao mesmo
tempo, possível e legítima, a da lei moral O trabalho aparentemen te negativo
da crítica teórica transforma a exigência da razão submetida a priori ao fogo
de questões que ela não escolheu em fon te fecunda de conceitos práticos que
encon tra todo o seu valor precisamente no fato de não provir da experiência
O criticismo não é um ceticismo Certamente, a razão vagueia fr eqüente
mente Mas tal errância é salutar, pois nos indica um espaço de pensamento, o
da prática, onde o filósofo vai construir o que é, para ele, o essencial. Condenar
a razão em nome da certeza cientifica atentaria contra seu direito mais funda
mental, o de pensar a liberdade e o dever Voltaremos a essa hierar quia dos
cam pos da razão, que vê a moral como verdadeiro objeto do pensamento
crítico
3 (f Profegõmenos a toda meta física futura que possa se apresentar conw ciência, AK IV,
351; P li, p 135: "É verdade, não podemos dar, fora de toda experiência possível_ um conceito
deter minado do que podern ser as coisas em si Mas não somos contudo livres, em face das
investi gações que as concernem, de delas nos abster completamente"
A herança kantiana
Filosofia da filosofia, filosofia do homem, filosofia da razão, o kantismo aparece
assim como um pensamento antes de mais nada preocupado em não quebrar
o grande impulso do espírito humano A recepção dada a Kant, desde seus pri
meiros leitores alemães, insistiu muito no caráter destruidor de sua obra, que
exclui, com efeito, todo conhecimento teórico de um objeto não-sensível Esse
juízo deve ser matizado à luz do que dissemos sobre os direitos da razão Kant é,
segundo sua própria terminologia, um pensador dos limites, mais que um pen
sador das fronteiras'; isso significa que ele não busca restringir o campo de apli
cação da razão, mas sim delimitar suas difer entes partes E é aqui que intervém
a faculdade cuja importância sublinhamos logo no início de nossa exposição: a
reflexão A crítica é o exercício pelo qual a reflexão determina a fronteira entre
os campos possíveis da racionalidade; tal levantamento do campo da reflexão
permite, in fine, à razão expressar sua natureza metafísica onde deve fazê-lo (a
moral), e fazê-la calar onde é preciso (a ciência) O kantismo não destrói, pois, a
razão clássica, unificante e soberana; ele a rompe, constituindo espaços de
especialização, cada um com suas regras próprias de funcionamento. A razão
prática pode se permitir o que é proibido à razão teórica; mais ainda: deve fazê-
lo
A leitura que propomos será a narrativa desse levantamento critico.
Tentaremos ver como a reflexão age, a cada vez, para conceder o devido lugar
à voz da razão, salvaguardando desse modo a disposição filosófica que Kant
detecta, em germe, em todo ser humano Atravessaremos sucessivamente
seus mo mentos essenciais: a crítica do poder da razão teórica; a de uma
razão prática que se dá na evidência de um fato, a consciência moral; enfim, a
de uma razão ainda mais hesitante, que busca, tateante, sinais de sua própria
presença no território da estética ou no da política Esse percurso estaria
incompleto sem uma análise mais aprofundada de algumas pistas que
acabamos de esboçar rapidamente; a definição kantiana da filosofia, a do
homem como ser metafísico e, enfim, a determinação original do conceito de
reflexão, tal como podemos encontrá-lo na Critica da faculdade de julgar
É, pois, por essas questões que começaremos Elaborá-las nos permitirá talvez
seguir, sem perigos excessivos, as sinuosidades do procedimento kantiano,
que constituem toda a força e - por que não dizê-lo? -todo o encanto
de seus escritos 
4 Esta distinção essencial é longamente elaborada nos Prolegômenos Cf AK V, 352; P !I,
p 136
12 13
Capítulo 1
A definição kantiana da
filosofia
Se nossa hipótese de lei tur a é correta -o kantismo é uma filosofia da
filoso fia -, os textos consagrados à definição da filosofia deveriam
naturalmente ser numerosos e impor tantes. Eles o são, o que facilita muito
o trabalho do intérpr ete Mas não nos enganemos Kant não determina
verdadeiramente a especificidade do trabalho da filosofia nas passagens que
lhe consagra As pá ginas, também numerosas e importantes, em que Kant
elabora sua doutrina do juízo, da reflexão ou do procedimento critico são bem
mais significativas a esse respeito, já que essas diferen tes noções estão no
principio de toda filoso fia, e não somente no de sua própria filosofia
Uue é filosofia?
Di to isto, é impor tan te ler um pouco mais aten tamen te alguns tex tos expli
citamen te destinados a determi nar os objetos da filosofia Kant põe ai em
andamen to a separação cr í tica , e expõe a organização de seu pensamen to, e
enuncia o resultado da aplicação da reflexão à totalidade dos objetos possí
veis de análise
15
Compreender
Os objetos da filosofia
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro é tirado da Teoria transcen
dental do método, que fecha a Critica da razão pura Kant define aí o conceito
de inter esse da r azão, isto é, as questões às quais a razão está condenada a
responder por seu próprio interesse A passagem é das mais célebres:
Todo interesse de minha razão (tan to especulativo como prático) concentra-se
nas três questões seguintes:
1ª Que posso conhecer?
2ª Que devo fazer?
3ª Que posso esperar'? 1
O segundo texto em que uma mesma tentativa de definição aparece é o 
da Lógica. Não se trata aqui propriamente de um texto de Kant, mas de ano 
tações feitas por ocasião do cutso de lógica que ele deu ao longo de sua vida 
de professor Kant r epete aí as três perguntas citadas, explicando que se trata 
não somente de determinar os fins da razão, mas também de delimitar o cam 
po da filosofia' Dito de outro modo: a Filosofia é um pensamento que tenta 
responder às questões que a razão se põe, ou antes, que ela é obrigada a se pôr 
Essa divisão tripartida do tr abalho da filosofia é cômoda, e Kant esforça-se por 
r espeitá-la cada vez que apresenta sua obra O que ela nos ensina?
As três perguntas não nos dizem o que é a filoso fia , mas aquilo de que ela
se ocupa Seu primeiro objeto, a resposta à per gun ta "Que posso conhecer?",
corr esponde, diz Kan t na Lógica , à metafisica Esta observação de Kant traz,
na verdade, pouco esclar ecimen to sobre a natureza exata do trabalho reque
rido. Pode-se, contudo, compr eender esta afirmação com base no que ele es
creve em outra parte sobre a metafísica, por exemplo nos Prolegômenos a toda
meta fisica futura: "a critica, e só ela, contém em si o plano total bem
examinado e provado, e mesmo todos os meios de execução que permitem
realizar a me tafisica como ciência"3 Em outros termos: a metafisica é a forma
exaustiva e detalhada da critica, considerada como a exposição das condições
de possibi lidade a prio1i e dos limites do conhecimento humano A Critica da
razão pura ,
1 CRP, A 805/B 833
2 Cf Lôgica. AK [X, 25; trad Guillermit, Paris, Vr in, 1969_ p 25
3 Prolegórnenos AK IV, 365; P li, p 152
16
A definição kantiana da filosofia
que faz o inven tário dessas condições, forma o esqueleto da metafísica, se
pelo menos nos con tentarmos com esta definição puramente teórica do
termo A separação entre um saber legítimo e uma pretensão ilegítima de
saber é a pri meira função da filosofia Essa separação torna necessária a
elaboração do que Kan t chama de transcenden tal, isto é, o conjunto das
condições de possibilida de do conhecimento, concei to em torno do qual se
organiza a primeira Critica.
Vol taremos a este ponto
A primeira questão concerne ao saber, à ciência, em suma, a tudo o que
Kant chama de teoria. A segunda é, por sua vez, exclusivamen te prática. O
que significa simplesmen te que se tra ta, para Kan t, de refletir sobr e a ação
e sobre a maneir a de conduzi-la Elaborar a ques tão "Que devo fazer?"
consis te, pois, em explici tar aquilo que se apresen ta à consciência como
obrigação moral A filosofia absolu tamen te não delibera mais aqui a respei
to da nat u reza de nosso saber; ela não é mais, nesse sentido, transcenden
tal, mas trata do que a razão prática deve ser enquan to faculdade moral Os
Fundamentos da metafisica dos costumes e a Crítica da razão prática
aplicam-se em responder a esta questão, que é, para Kant, a mais importan te
A última questão é muito mais difícil de compreender Retenhamos pro
visoriamente que Kan t, ao respondê-la, determina o que o homem pode es
perar de uma vida conduzida segundo o respeito à lei moral Essa questão
vem, pois, logicamente na seqüência da segunda e concerne, muito direta
men te, como diz a Lógica , à religião Isso não significa que os textos que
I<ant consagra à religião - principalmen te A religião nos limites da
simples razão
-respondam à questão Pode-se até dizer que é bastan te delicado atribuir
a uma única obra a tarefa de respondê-la Digamos simplesmente, e ainda 
provisoriamen te, que a cada vez que Kan t se in terroga sobre a finalidade 
do homem como ser moral e ten ta estabelecer que gênero de felicidade 
um ho mem virtuoso tem o direito de esperar ele responde a essa terceira 
questão E é a este titulo que a Critica da faculdade de julgar , mas também 
numerosas passagens da Critica da razão prática corr espondem a esse 
objetivo
A filosofia kantiana -e 2 filosofia em geral -deve abordar sucessiva
mente o problema dos limites do conhecimen to, o do dever e, enfim, o das
esperanças legítimas de todo homem Tal programa de trabalho pode fazer
pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um conjunto sistemático de conhe
cimentos que um estudan te consciencioso poderia assimilar progressivamen
te Kant não se atém naturalmente a esta concepção escolar da filosofia, que
ele qualifica até mesmo de escolástica Acrescenta, pois, um pouco adiante,
17
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os objetos da filosofia que faz o inventário dessas condições, forma o esqueleto da metafisica, se 
pelo menos nos con tentarmos com esta definição puramente teórica do 
termo A
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro é tirado da Teoria transcen
dental do método, que fecha a Critica da razão pura. Kant define ai o
conceito de in teresse da razão, isto é, as questões às quais a razão está
condenada a responder por seu próprio in teresse A passagem é das mais
célebres:
Iodo in teresse de minha razão (tanto especulativo con10 prático) concentra se
nas três questões seguin tes:
1ª l1ue posso conhecer?
2ª Que devo fazer'?
3ª Que posso esperar'?1
O segundo texto em que uma mesma tentativa de definição aparece é o
da Lógica Não se trata aqui propriamente de um texto de Kant, mas de ano
tações feitas por ocasião do curso de lógica que ele deu ao longo de sua vida
de professor Kant repete ai as três pergun tas citadas, explicando que se trata
não somente de determi nar os fins da razão, mas também de delimitar o cam
po da filosofia' Dito de outro modo: a Filosofia é um pensamen to que ten ta
responder às questões que a razão se põe, ou an tes, que ela é obrigada a se pôr
Essa divisão tripartida do trabalho da filosofia é cômoda, e Kan t esforça-se
pm respeitá-la cada vez que apresenta sua obra. O que ela nos ensina?
As três pergun tas não nos dizem o que é a filoso fia , mas aquilo de que
ela se ocupa. Seu primeiro objeto, a resposta à pergun ta "Que posso
conhecer?", corresponde, diz Kant na Lógica , à metafísica Esta observação
de Kant traz, na verdade, pouco esclarecimen to sobre a natureza exata do
trabalho reque rido Pode-se, contudo, compr eender esta afirmação com base
no que ele es creve em outra parte sobre a metafisica, por exemplo nos
Prolegômenos a toda metafisica fiitura: "a cri tica, e só ela, contém em si o
plano total bem examinado e provado, e mesmo todos os meios de execução
que permitem realizar a me tafísica como ciência"3 Em outros termos: a
metafísica é a forma exaustiva e detalhada da critica, considerada como a
exposição das condições de possibi lidade a priori e dos limites do
conhecimento humano A Critica da razão pura ,
1 CRP. A 805/B 833
2 (f Lógica. AK IX. 25; trad Guillei mit, Paris, Vrin. 1969.p 25
3 Prolegôrnenos, AK !V 365; P II_ p 152
separação entre um saber legitimo e uma pretensão ilegítima de saber é a pri
meira função da filosofia Essa separação torna necessária a elaboração do que
Kan t chama de transcenden tal, isto é, o conjun to das condições de
possibilida de do conhecimento, concei to em torno do qual se organiza a
primeira Critica. Voltaremos a este pon to
A primeira questão concerne ao saber, à ciência, em suma, a tudo o que
Kan t chama de teoria A segunda é, por sua vez , exclusivamen te pr ática. O
que significa simplesmen te que se trata, para Kan t, de refletir sobr e a ação
e sobre a maneira de conduzi-la Elaborar a questão "Que devo fazer?"
consis te, pois, em explici tar aquilo que se apresen ta à consciência como
obrigação moral. A filosofia absolu tamen te não delibera mais aqui a respei
to da natu reza de nosso saber; ela não é mais, nesse sentido, transcenden
tal, mas trata do que a razão prática deve ser enquan to faculdade moral Os
Fund amentos da meta fisica dos costumes e a Critica da razão prática
aplicam-se em responder a esta questão, que é, para Kant, a mais importan
te
A última questão é muito mais difícil de compreender Retenhamos pro
visoriamen te que Kan t, ao respondê-la, deter mina o que o homem pode es
perar de uma vida conduzida segundo o respeito à lei moral Essa questão
vem, pois, logicamente na seqüência da segunda e concerne, muito direta
mente, como diz a Lógica , à religião Isso não significa que os textos que
Kant consagra à religião - principalmen te A religião nos limites da
simples razão
- respondam à questão Pode-se até dizer que é bastante delicado
atribuir a uma única obra a tarefa de respondê-la Digamos simplesmente, e
ainda provisoriamente, que a cada vez que Kan t se i n terroga sobre a
finalidade do homem como ser moral e tenta estabelecer que gênero de
felicidade um ho mem virtuoso tem o direi to de esperar ele responde a essa
terceira questão. E é a este titulo que a Crítica da (acuidade de julgar, mas
também numerosas passagens da Critica da razão prática correspondem a
esse objetivo
A filosofia kan tiana -e a filosofia em geral -deve abordar
sucessiva men te o problema dos limi tes do conhecimento, o do dever e,
enfim, o das esperanças legi timas de todo homem Tal programa de
trabalho pode fazer pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um
conjunto sistemático de conhe cimentos que um estudan te consciencioso
poderia assirnilar progressivamen te Kant não se atém naturalmen te a esta
concepção escolar da filosofia, que ele qualifica até mesmo de escolástica
Acr escen ta, pois, um pouco adiante,
16 17
Compreender A definição kantiana da filosofia
na teoria transcenden tal do método, que a filosofia não é uma disciplina que 
se domine ou que se possua, mas urn exercício, sempre iecon1eçado, o exer 
cício de uma razão crítica, desconfiada de tudo, principalmen te de si mesma 
(2.ue ensinamen to ex trai r disso para o nosso propósito? Simplesmen te 
que a esséncia da filosofia está em uma aplicação, mais que em seus 
objetos, e que defini tivamen te a elaboração das condições de possibilidade 
do trabalho filosófico consti tui u n1a defin ição ben1 rnelhor de sua na tureza
que o enu n
ciado de seus campos de aplicação Isso significa concretamen te também que
a partilha cri tica que fu nda a divisão ele filosofia em trés questões repousa
numa experiência da filosofia mais original, aquela que a Crítica da faculdade
de )1iiga1 " desenvolve longamen te
A filosofia como antropologia
O tex to da Lógica con tém urna quarta questão, ausen te da Crítica da
razão pura: "O que é o homem?" I(ant não se contenta em acrescen tar um
objeto de estudo ao catálogo dos ternas possiveis de reflexão Sublinha logo, em
uma observação cheia de conseqüências: "no fundo, poder-se-ia pôr tudo isso
na con ta da an tropologia, porque as trés questões se repor tam à última"' A
filo sofia não seria, no fundo, senão uma forma de an tropologia An tes de
tentar compreende, por que Kan t afirma isso, observemos simplesmen te que
esta tese só faz formular claramen te o que havíamos assinalado desde a
introdu ção: a filosofia kan tiana como defesa da na tureza metafisica do
homem é ne cessariamente, ao mesmo tempo, uma filosofia da filosofia e uma
filosofia do homern, indlssociáveis entre si Dizer o que é o homem e definir a
filosofia procedem de um só e único esforço de concei tuação do desejo de
metafísica que anima u:n e ou t10
A relação entre filosofia e antropologia não é simples de estabelecer no
tex to kan tiano Kan t não diz somen te que a reflexão sobre o homem unifica
e resume a metafísica, a moral e a religião Afirma, precisa1nen te, que há no
homem uma certa disposição par a a finalidade que preside à própria filosofia,
4 Isto será objeto de de1nonstração no capít ulo seguinte A respeito desse pon to, subs ctevemos
as análises de Aléxis PH!LONENKO em sua introdução da Critica da faculdade de julgar Paris. 
Vrin. 1993, p 11
5 L ôgica , AK IX, 24; trad Gui!!ern1i t, p 25
defi nida como a "ciéncia da relação de todo con hecimen to e de todo uso da
razão para o fi m últi mo da razào h u mana"' Responder à questão do homem
consiste em elucidar, em seu fundarnen to, essa disposição particular do seI
humano, explici tando o princí pio das três primeiras questões, organizando-se
o conjun to em torno do conceito de fim A na tureza filosófica é a condição de
possibilidade da filosofia sob todas as suas formas: descrever o homem resul
ta , pois, em mostrar por q ue e como há filosofia
Para designar essa aptidão par ticular do hornem e1n relação ao que o
transcende, Kan t emprega o belo termo "cultura"7 Essa qualidade propria
men te humana confere ao homem toda a sua dignidade e o torna digno de
respei to Ela é o que permi te a todo sujei to dar-se fins, objetivos, pri ncipies
e obrigações; mas é também, em Kan t, sinônimo de uma certa receptividade
às Idéias ou, de modo mais geral, ao que transcende a experiência sensivel
Reten hamos simplesmen te aqui alguns índices da presença da cultura
nas descrições que Kan t nos dá do homem No campo teórico, vi mos que o
homem tende na turalmen te ao absoluto: é, literalmen te, mais forte que ele
No campo moral. as coisas se apresen tam um pouco diversamente: mas I<an t
fala de novo de uma "cultura da razão' º para designar a aptidão para escutar a
exigéncia da lei moral, malgrado sua severidade e a i nfelicidade a que parece
condenar o individuo Dá-se o mesmo no ca1npo estético: não é possível, diz
I(an t, sentir alguma coisa como o sublime, na arte ou na nat ureza, sem ser a
1ni11ilna receptivo ao que ultrapassa a nat uieza O homem kan tiano, nessas
diferen tes figuras, manifesta, pois, uma racionalidade 1narcada por uma forrna
de passividade, de abertura ao infi ni to Se a filosofia kan tiana é uma antro
pologia, e se toda filosofia deve sê-lo, seria, pois, por esta única razão: há no
coração do homen1, como no coração do pensamen to, um só e inesmo desejo
das Idéias Resta com preender agora aquilo a que conjun tamen te tendem o
homem e a filosofia A junção ou a quase iden tificação en tre a cultura, a filo
sofia, a metafisica e a humanidade poderá então ser feita, e nosso percurso do
pensamen to kan tiano se desen rolar, sem que percamos de vista essa singular
conf usão de in teresses en tre o homem e sua razão
6 lbid
7 Cf C ritica da faculdade de ;ulgar (doravan te CFJ). AK V, 265; P li, p 
1036 3 F undanientos da met afísica dos costumes. AI< IV .396; P li. p 
254
18 19
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os fins do homem Locke Para sim plificar, pode-se dizer que a fundação da ciência obtida por sua
definição como unidade entre a sensibilidade e os conceitos do entendimento é
Num texto curto, publicado no outono de 1786 - Que é orientar-se no
pensalnento? -, Kan t formula, ainda mais claramen te que na c·ritica da razão pura ,
o principio que fundamenta sua concepção do homem e da metafisica Escreve
que o espírito tem o direito de ultrapassar os estritos limites do conhecimento
teórico, ou seja, os da experiência sensível, para se aventurar no espaço imenso
do supra-sensivel A crí tica, nesse sentido, deve preservar "o direito da neces
sidade da razão, corno principio subjetivo"!l A razão kan tiana não é razoável,
tende sempre a ultrapassar os limites de seu uso teórico legítimo Ao mesmo
teinpo, como é justamente no espaço do supra-sensivel que se acha seu in ter es
se fundamental, quer dizer, aqui a lei moral, convém consolidar essa tendência
orien tando-a corretamen te A filosofia crí tica pode então ser definida como
uma jurisdição do direito da necessidade da razão, que o con trola e o r eafirma,
ao mesmo tempo T rata-se simplesmen te de preservar os in teresses da razão,
que seu mau uso ou um ceticismo muito vi rulen to poderiam pôr em perigo
Esses interesses, dissemos, são de três tipos. A preocu pação epistemoló 
gica, a preocupação moral e a questão da finalidade do individuo e da humani 
dade são os três ca1npos em que a razão vai buscar seu in teresse Este é, a cada 
vez, diferen te É do interesse da razão não pretender conhecera supra-sensível 
no campo teórico: é de seu in teresse, ao contrário, não u tilizar a sensibilidade 
na elaboração do dever moral Mas o pensamento kan tiano, como filosofia 
sistemática, não pode se con ten tar em enumerar esses diversos in teresses 
Irá esforçar-se para organizar sua arqui tetura, distinguindo o que é essencial 
à razão do que, e1n defini tivo, é só um meio a serviço de u1n fim mais elevado 
É talvez nesta singular hierarquia das diferen tes facetas de racionalidade que 
reside a originalidade do kan tismo
Salvar a liberdade
A celebridade bem compreensível da Crítica da mzão pura e uma longa tradição
da i n terpretação fizeram do pensamento critico uma filosofia do conhecimento,
preocu pada, antes de mais nada, ein fundar a ciência, como tentara1n fazê-lo,
antes dela, os racionalismos do século XVII ou as teorias empiristas nascidas d e
9 Que é orientar-<;e no pensamenro?_ AK Vl!l. 137; P II, p 534
um efeito secundário do empreendimento kan tiano. Kant salva os fenômenos,
determina precisamente a condição de seu saber, elabora os limites insuperáveis
de todo conhecimen to cien tifico ludo isso é verdade Con tudo, não é esse o ob
jetivo primeiro da tarefa da crítica Salvar a ciência só tem significado, para Kant,
se esse procedimen to permite salvar a liberdade e a metafísica como disposição
na tural do homem Os tex tos são, quan to a esse pon to, ele grande clareza, mais
ainda, talvez, na segunda edição da Crítica da razão pura que na primeira
O pr efácio da segunda edição esforça-se para esclarecer o estatuto do tex
to que apresen ta I(an t escreve aí, especialmen te, e esta frase é da mais alta
i111portância:
U nia crítica que restringe a razão especulativa é segu ra1nen te negat iva nisso,
mas ao suprimi r, assim, ao n1esmo tempo. utn obstáculo gue restringe o uso
prático, ou ameaça mesmo aniquilá-lo_ ela ê, de fato, de urna uti lidade positiva
e muito i mportan te, desde que se esteja convencido de que há um uso prá tico
absoluta men te necessário da razão pura (o uso moral)lll
Este trecho exige duas observações. Primeiro, a cri tica supõe como um
fato indubi tável a existência de um in teresse prátic:n da razão l(an t não de
monstra por que a moral é vital; ele o afirma como um dado incon testável E m
segundo l ugar, o obstáculo que se trata de destruir é a negação da liberdade,
que resultaria da extensão ao supra-sensível das leis da causalidade que con
vêm aos fenômenos sensiveis Quebrando o impulso da Iazão teórica em suas
pretensões de con hecer o supra-sensivel, a cri tica abre um espaço para a razão
prática, que não é mais um espaço de conhecimen to cientifico, mas um espaço
de pensamen to e de ação Tal delimitação não é, em nenhum caso, uma mar
ca de ceticismo ou um procedimen to repressivo Kan t precisa: é tão absurdo
considerar que a crítica não traz nada de positivo quan to dizer que a polícia é
inútil sob o pretexto de que ela restringe a violência individual"
A lógica do argumen to kan tiano pode facilmen te ser reconstruida a partir
do segundo prefácio Interessa à razão reconstruir uma moral; ora, toda moral
supõe que a liberdade seja possível; é preciso, pois, que a critica da razão es-
10 CRP. B XXV
11 lbid
20 21
Compreender A definição kantiana da filosofia
pecula tiva não torne con tradi tório o conceito de liberdade Mostrando que as
leis da física, principalmen te a lei da causalidade necessária, só se aplicarn
aos fenómenos sensíveis, Kan t torna pelo menos pensável uma liberdade,
delas escapando Ele não pretende ter uma in tuição dessa liberdade; menos
ainda um conhecimen to cien tífico; con tenta-se em afirmar que a idéia da
liberdade é compatível com a de um m u ndo. Em outros termos: a crítica da
razão pura per m ite à disposição metafísica que constitui o ser h umano
manifestar-se legi ti mamen te num campo de pensamen to não submetido
às condições do saber cien tifico Com o estabelecimento dos limi tes deste,
abre-se um universo, um espaço de liberdade, de dever, um lugar também
para que a idéia de Deus não seja mais uma quimera ou conceito vazio de
uma teologia pretensiosa
O problema prático da filosofia
A função da primeira crítica é, antes de mais nada, propedêu tica Além do in
teresse próprio das teses propostas, essa obra deve, pois, ser avaliada em vista
do que pretende realizar Kan t é muito claro nesse pon to:
rodos os preparativos da razão, no tra balho que se pode chamar de filosofia pura,
são, pois, na realidade, dirigidos aos três problemas em questão Mas estes têm,
por sua vez, um fim mais distan te: saber o que é preci so fazer, se a von tade é
livre, se Deus existe e se existe un1a vida futura 12
A critica teórica assegura os direitos da necessidade da razão -a que
põe a questão de Deus, da liberdade e da imor talidade da alma -para que o
fim moral da filosofia possa ser considerado O kan tismo, antes mesmo que
entre rnos no imenso edifício da pri1neira c·rítica, deve sempre ser i n
terpretado à luz desses objetivos reivindicados Kan t, aliás, esforça-se, no
fim do tex to, para esclarecer seu propósito, in troduzindo considerações de
inoral cuja função ini ciahnen te n2o pode ser vista, n urna reflexão sobre os
limi tes do saber13 ·Trata se antes de inspirar o texto da obra, reorien tando
seu leitor para o verdadeiro in teresse de Kan t, que é o de todo homem: estar
certo de ser livre, para que a própria idéia do dever tenha um sentido
É nesse espiri ta que é preciso compreender as palavras famosas do se
gundo prefácio: "Devia, pois, suprimi r o saber, para encon trar um lugar para a
f( 14 Suprimir o saber consiste em demonstrar a ilegitimidade de um conheci
men to que pre tendesse ul trapassar a experiência; encontrar u1n lugar para a fé
significa resti tuir à moral o espaço deixado vazio pelo dogmatismo moribundo
dos racionalisrnos não-criticas Niais concretamen te ainda: a crítica da r azão
pura penni te suprimir as ilusões e os erros do espí ri to que pudessem levar
toda 1netafisica à mesma depreciação
A prilnazia concedida à prática não é o fato de u ma simples hierarquiza
ção dos problemas da filosofia Ela apóia-se em uma determ inação da razão
como faculdade capaz de tudo, do melhor como do pior: a crí tica é só a
sepa ração entre uma metafísica legítima, quer dizer, a inoral, e uma
metafísica da ilusão, que pre tende conhecer, quando se tra ta só de pensar
Crítica e metafísica
Retomemos O pensamen to kantiano é uma filosofia ela filosofia, na medida 
em que elucida e explicitaa disposição metafísica que fundamen ta e provoca 
toda investigação filosófica É, ao mesmo tempo, uma filosofia cio homem, 
pois esta mesma disposição é constitutiva da humanidade Kan t chama de 
necessidade da razão tal tendência do espírito humano a pensar além do que os
sen tidos nos permi tem conhecer O projeto kan tiano pode, então, ser 
compreendido como uma jurisdição da necessidade da razão: trata-se de 
afirmar o direito da razão estabelecendo os li1ni tes de seu uso legítiino no 
carnpo teórico, para melhor as segurar seu direi to no campo prático A 
separação crí tica consiste en1distinguir uma utilização repreensível da razão, 
a que pretende conhecer objetos não sus cetíveis de ser e;.,,-. peri!nen tados 
pelos sentidos, de sua utilização necessária, a que põe os fundamentos da 
moral sem recorrer aos dados da sensibilidade
O itinerário argumen tativo da primeira Crítica pode igualmen te ser re
construído a partir cio próprio concei to ele metafisica Kan t parece, com efeito,
fazer um uso imoderado desse termo, concedendo-lhe uma espan tosa pluri
vociclade Para dizer de modo mais simples: a filosofia kan tiana quer reconhe
cer a importância da rnetafisica con10 disposição natural da razão; para tanto,
deve mostrar por que a 111etafisica con10 conhecilnento teórico do supra-sens
fvel é
12 A 800/B 828
13 Cf A 806/B 8:34 14 B XXX
22 23
Compreender A definição kantiana da filosofia
i mpossível; deve, em seguida, indicar e1n que consiste a 1netafísica co1no ciên
cia , quer dizei; como conjunto sistemático das condições de possibilidade do
conhe cimento; ela pode, enfim, em toda a sua necessidade e em todo o seu
valor, pensar a metafísica como doutrina da liberdade. É verdadeiramen te
impossível compreender a crí tica sem esclarecer uma terminologia que Kant
emprega de modo muito desordenado e fr eqüen temen te surpreendente
Convém estudar em detalhe cada um dos sentidos possíveis do termo
A metafísica como d1spos1ção natural da razão
Desde Os sonhos de um visionário , Kan t declara-se um apaixonado pela
metafi sica, mesmo se ela mui tas vezes não lhe manifesta estima15 A Critica da
razão pura diz isso de maneir a mui to mais explicita: a metafisica é, antes de
mais nada, uma tendência ineren te ao espírito humano, que não pode se
satisfazer só com a experiência sensível e inevitavelmen te afirma no mundo
supra-sen sível os conceitos de que a razão tem necessidade, em virtude de
sua própria
natureza Na determinação desta disposição, Kant oscila entre o elogio e o
opróbrio: ora ela é a filha querida da razão, um "germe originário sabiamen te
organizado em vista de grandes fins"16; ora ela é essa dialética inevi tável da
razão que finalmen te a conduz a se enganar Mas, em todos os casos, a metafí
sica deve ser protegida, n1ais que destruida O ho1nem nunca renunciará a ela,
como não renuncia a respirar17 mais ainda, ela tem como vocação completar a
cultur a da razão, conduzindo-a a seu verdadeiro destino
A metafísica como conhecimento teónco do supra-
sensível
Essa 1netafisica é, inicialmente, caracterizada como transcendental e raciocinan
te Ela é o fato dos pensadores que não souberam perceber os limites reais do co
nhecimento humano, e que pretendem poder conhecer teoricamen te o que não
corresponde a nenhuma experiência sensível É o efeito perverso da metafisica
como disposição natural, que contribui para desacreditá-la pelos absurdos aos
quais inevitavelmente conduz Nesse sentido, é uma "pseudociência
sofistica"rn, uma tagarelice dogmática insuportável que não repousa em
nada de sólido Kant desqualifica aqui a quase totalidade de seus
predecessores, ao menos no campo da filosofia alemã, ao menos aquela que
acreditou poder abster -se de uma reflexão sobre os limites de nosso saber
Pode-se e deve-se pensar Deus, a alma, a liberdade: mas pretender conhecê-
los esbarra na impostura
A metafísica como ciência
No primeiro sentido, a metafisica é uma disposição; no segundo, é um erro
Kan t não exclui que ela possa ser qualificada de ciência, mas é obrigado, para
demonstrá-lo, a adaptar sensivelmen te sua própria definição inicial da me
tafisica Não se trata mais aqui de uma tendência ao supra-sensivel; não se
trata tampouco de ir além da experiência, mas de compreender o que a torna
possível A metafísica como ciência conserva o gosto do universal e da neces
sidade, que justifica que se persista em chamá-la assim Mas a universalidade
em questão é interpretada como o índice do caráter a priori das condições de
experiência. Um conhecimento teórico absolu tamen te certo e universal é
pas sivei desde que se conten te em estabelecer o sistema completo das
condições de possibilidade do conhecimento teórico. A metafisica é então
uma ciência
dos limites da razão humana e contém todos os princípios puros da razão 19
No fundo, é idên tica à filosofia transcendental em seu conjunto
A metafísica como doutrma da liberdade
Esta quar ta acepção do termo não é incompatível com a terceira
Corresponde, antes, a uma especialização da metafisica como ciência Esta,
com efeito, pode conter todos os princípios puros da razão, que se referem
ao conhecimen to
teórico das coisas; mas pode também con ter "os princípios que determinam
a priori e tornam necessário o fazer e o não fazer" 2º Kant chama este ramo de
metafisica de metafisica dos costumes Pode-se considerar, con tudo, que ele
15 Sonhos de um visionârio. AK II. 36 7; P l. p 585
16 Prolegômenos a toda rnetafí-sica futura, AK l i, 353; P l i, p 
137
17 lbid . AK 367: P II. p 154
16 lbid , AI(. 366: P li, p 152
19 Cf CRP. A 841/B 870: P !, p 1391
20 lbid
24 25
;
Com preender A definição kantiana da filosofia
consti tui um campo em si, pois sua possibilidade só é estabelecida urna vez 
posto o sistema da filosofia transcenden tal. Sem crí tica da razão teórica -
propedêutica à 1netafísica como ciência -, a liberdade não é sequer conside 
rável, e o conceito de dever é destituído de significação Parece en tão que este
último sentido do termo seja o mais impor tante, se recordamos que para Kan t 
a filosofia afinal é uma doutrina da liberdade
O dispositivo a rq uitetônico
do pensamento kantiano
A disposição metafísica na qual reside a essência da filosofia, bem como a da 
hu manidade, só está salva e confirmada em seus direitos pela divisão crí tica 
A Crítica da razão pura dela participa, evidentemen te, estabelecendo explici 
ta mente limi tes ao uso teórico da razão, liberando um espaço novo por seu 
uso prá tico Mas a Crítica da faculdade de 1ulgar elabora de modo mais 
completo ainda o modus operandi dessa divisão do campo filosófico: de um 
lado, deter minando as fron teiras de cada campo da razão, de outro definindo o
agen te de tal recorte terri torial, a reflexão O kan tismo é uma filosofia da 
filosofia como jurisdição do desejo metafísico; mas o é também como 
filosofia da reflexão, instrumen to originário de toda construção sistemática e 
de todo pensamen to preocu pado em respeitar a geografia d a realid ade
Cartografia filosófica
O percurso gue nos propusemos aqui - uma leitura das duas i n
troduções da Crítica da faculdade de julgar -só terá como objeto
compreender melhor o princípio arquitetônico do pensamen to kan tiano A
análise das duas primeiras Críticas , que descrevem a população concei tua! do
campo teórico e do campo prá tico, será assim preparada pela elucidação da
distinção en tre teoria e prá tica A cronologia das obras, que vê a Crítica da
faculdade de julgar concluir em parte o empreendimen to kan tiano, deve, pois,
ser derrubada em favor de uma ordem lógica: compr eender primeiro como
Kant estabelece a cartografia do pensamen to; refletir em seguida sobre as
características e os limi tes do ca1n po teórico; analisar, enfim, os fundamentos
morais do campo prático, aquele para o qual tudo é defini tivamente
empreendidoA estética, a história e a polí tica
se inscreverão em último lugar nos espaços deixados vazios, ou na relação pro 
blemática dos dois primeiros campos
As duas in troduções à terceira Critica têm como objetivo determinar as
diferen tes legislações que organ izam o espaço da filosofia. O objeto de tal
car tografia é estabelecer o mais firmemen te possível dois campos distintos,
em função dos conceitos que são, num e nou tro caso, determinan tes, a fim de
tor nar desejável a existência do juizo como termo mediador O texto
essencial a respeito disso acha-se na segunda in trodução, na sessão in ti tulada
justamente "Do campo da filosofia em gerar Kan t propõe ai um léxico mui to
útil para a cornpreensão geral de seu pensamen to: seu principio consiste em
distinguir diferen tes maneiras, para um concei to, de estar em relação com
uma faculdade do espiri ta: ou seja, sucessivamen te:
1 "Concei tos, na rnedida em que são reportados a objetos, sem considerar se
uni conheci n1ento deles é possível ou não, possuem seu campo ··210 campo
cobre assin1 a totalidade do inundo sensível, mas tan1bém o supra-sensível,
onde nenhum conheci mento é possível
2 "A parte desse can1po na qual é passivei, para nós, u1n conhecimento é um
terreno para os conceitos e para a faculdade de conhecer requerida para
tan to '·21 O ter reno corresponde ao conjun to dos fenômenos suscetiveis de
ser experin1en tados, pois, para Ka n t, nenh u m conhecirnen to além
deles
pode ser considerado
3 '·A parte do terreno na qual esses concei tos legislam é o can1po ,,,'., I\.ant passa
aqui do conhecimento à legislação Concre tamen te, isso significa que, no ter
reno da experiência, dois tipos de legislação coabitam: o do en tendimento que
consti tui as leis da na tu reza e o da r azão que elabora as leis da liberdade
O entendimento e a razão são duas faculdades inteiramen te distin tas,
con tudo igualmen te legisladoras no terreno da experiência Quando o enten
dimen to está no poder, estamos no campo da nat ureza e do conhecimento
teórico; quando a razão tem força de lei, estamos no campo da liber dade e,
pois, da prática Dito de outro modo: a Critica da razão pura é o código jurídico
do en tendimento cognoscen te; a Crítica da razão prática é o da razão agente
21 C rttica da faculdade de julgar, 1-\K V 174; P li. p 92 7
22 l bid
23 lbid
26 27
Compreender A definição kantiana da filosofia
Essas duas legislações coexistem no terreno da experiência Con tudo -e
é dai que Kan t tira o sentido da palavra "campo" -, "existe um abismo imen
so en tre o carnpo do conceito da natureza, enquanto sensivel, e o campo do
conceito de liberdade, enquanto supra-sensivel"24 A legislação do en tendimento
concerne à experiência e repousa sobre a experiência A legislação da razão con
cerne també1n à experiência -trata-se do agir concretamente -mas repousa
por definição no além da experiência, não sendo concebivel em outra par te a
liberdade A terceira Crítica tem, pois, como único objeto preencher esse abismo,
não por simples preocupação com a unidade sistemática, mas an tes porque "o
concei to de liberdade tem o dever de tornar efetivo, no mundo sensível, o fim
imposto pot suas leis"" Desse dever de influência Kant conclui pela necessi
dade de pensar a natureza de tal sorte que ela concorde com a possibilidade dos
fins postos pela liberdade Não se pode afirmar mais claramente o primado da
prática, que já evocamos acima Se se reconstitui o conjunto do procedimento:
nhuma contradição no procedimento de Kant: assinala somente que é preciso
talve buscar em outra parte o verdadeiro pon to de passagem entre os campos
da ctenoa e da moral, da natureza e da liberdade, um lugar que se encontraria
no fundamen to da teleologia como da estética A reflexão, que é a base co
mum das duas manifestações possíveis da faculdade de julgar, é sem dúvida
o principal ator da organização do espaço filosófico É ela quem estabelece os
limi tes dos diferentes campos; é ela quem assinala a cada conceito o espaço de
seu uso legítimo; é ela quem ten ta organizar as pon tes e as passar elas entre as
diversas zonas de influência do en tendimento e da razão. Retornaremos, bem
en tendido, a esse problema quando lermos em detalhes os desenvolvimentos
de Crítica da faculdade de julgar Lembremos aqui apenas aquilo que, no texto
das introduções, pode ajudar-nos a compreender o conjun to da obra de Kant: 0
papel primordial da reflexão na organização do espaço filosófico
1 A Filosofia como cartografia delimi ta dois campos. de tal sorte que toda pas 
sagem parece excluída
2 O primado da prática impõe, con tudo, que a moral tenha uma in íluência 
real
no n1undo da experiência sensível
3 Esse mundo deve, pois, ser concebido para se acei tar em si o exercido da
liberdade
A faculdade de julgar é precisamen te a insistência de tal unidade final dos
campos e dos poderes do espiri ta E a terceira Crítica, a simples descrição dos
diferen tes meios utilizados par a alcançar esse objetivo
A filosofia critica pode ser concebida como um vasto trabalho de organi
zação do terri tório Importa, pois, saber um pouco mais precisamente o que o
texto que acabamos de comen tar nos permi te entender -a quem
efetivamen te cabe tal missão As duas i n troduções não são sempre claras
quan to a esse pon to Ora Kant parece atribuir ao juízo teleológico -
aquele que postula a organização finalizada da natureza -a tarefa de
unificação dos campos, ora o juizo estético -que estatui sobre a beleza e a
feiúra da arte ou da natureza -é considerado o verdadeiro tema da passagem,
dado que exprime a livre relação en tre as diferentes faculdades do espíri to
Essa dupla tendência não indica ne-
Geofilosofia
Posição da disposição metafísica no fundamento do homem e da filosofia; ne
cessidade de consolidá-la, em virt ude da destinação moral elo homem; insti
tuição de uma divisão crítica como melhor meio de preservar os direitos da
necessidade da razão; invenção de uma técnica territorial conduzida pela r e
flexão para levar a bom termo essa divisão. Essas diferentes etapas nos condu
zem na turalmen te ao in teresse por esse dispositivo reflexivo
Que é a reflexão? Ela é, diz Kan t, "o estado de espírito no qual nos dis
pomos, primeiro, a descobrir as condições subjetivas sob as quais podemos
chegar a conceitos"20 'Trata-se somente, num primeiro momen to, de nos
in teressarmos pela relação entre nossas representações -in tuições,
conceitos,
idéias - e as diferentes fontes de conhecímen to Mais exatamen te -
e ela pode então ser qualificada de transcendental -, a reflexão conf ronta
os di ferentes tipos de relações possíveis entre represen tações para
determinar a faculdade de conhecímento onde esta relação se dá Pode,
assim, se pronun ciar sobre a relação entr e dois dados sensíveis e decídir
sob qual conceito esses dados seriam convenien temente colocados para
produzir um conhecimento
Tomado em sua maior simplicidade, o trabalho de r eflexão é uma desig 
nação de residência Não tem outra função senão designar o lugar próprio de
2'- lbid . AK V 176; P II, p 929
25 lbid 26 CRP, A 260/B 316; P !. p 988
28 29
Compreender A definição kantiana da filosofia
uma represen tação, isto é, detern1inar sua fon te: é, pois, uma generalid ade,
a mesma que preside ao vasto recorte territorial da i n trodução à Critica da
faculdade de 1ulga1: A filosofia reflexiva é u m pensamen to vagabundo, gue 
per corre o espaço d as represen tações para determinar suas linhas de força e 
decidir o lugar na tural de cada uma delas Sem efetuar esse trabalho de 
reflexão, a filosofia corre o risco de tombar nos extremos do racionalismo ou 
do sensua lismo, duas tendências represen tadas por Leibniz e Locke, 
segundo Kan t A origi nalid ad e do modo de pensar kan tiano, sua potência 
ele ruptura em rela ção às duas maiores corren tes da filosofia do séculoXVIII 
provêm da reflexão, pois é ela guem julga a origem das represen tações e 
consta ta gue não é única Leibn iz, diz Kan t, considerava q ue todos os 
fenômenos são, em defin i tivo, cognoscíveis unicamen te pelo en tendimen to; 
Locke afirrnava, ao con trário, que os concei tos desse mesmo en tendiinen 
to eram apenas u ma elaboração sofisticada dos dados sensoriais
A filosofia crítica, graças a seu procedi men to tópico, estabelece que o
en tendi mento e a sensibilidade são "duas fon tes i n tei ramen te diversas
de re presen tações, mas gue não (podem) julgar as coisas de modo
objetivamen te válido senão quando estão em relação"" Vê-se que a reflexão
não in tervém somen te na divisão critica ou na tópica; ela é parte in tegran te
das teses mais impor tan te de cada uma das Criticas, aqui a da necessária
colaboração entre o en tendimento e a sensibilidade na constituição dos
conheci men tos objetivos
Ouid;uns. qU1d fact1
U ma última observação sobre a reflexão Instrumen to de comparação, ele re
corte e de passagem, ela parece dispor de uma flexibilidade ausen te nas fa
culdades norma tizan tes que são o en tendimento, no campo da natureza, e
a razão, no da liberdade Podemos nos pergun tar se ela não está, também,
no princípio da oscilação, característico do pensamen to kan tiano, entre fato
e direito Consideremos a Critica da razão pura Seu pon to de partida é mui to
claro, como veremos: aí temos ciência, matemáticas e física, e o fato é que elas
são coroadas dé sucesso, ao con trário d a metafisica Mas Kan t só se in teressa
pelo fato cien tífico para dizer o direito de toda ciência, independen temen te de
sua existência real Iviesmo se a ciência não existir, ela deve respei tar os lin1ites
da experiência A filosofia crí tica apóia-se n u m fato para desembaraçar-se logo
dele, em favor da questão do direi to, única que verdadeiramen te in teressa a
Kant Dá-se o mesmo no campo prá tico. Kan t considera -veremos isso tam 
bém -que a consciência moral é um fato, gue ademais é um fato da Iazão 
Esse fato é indubitável, e a moral não pode explicá-lo, só pode explicitá-lo 
A partir d ai, tratar-se-á, para Kan t, de determi nar o que a moral é de 
direito, mesmo que nen hum ato moral jamais tenha sido realizado Na 
configuração teórica, assim como na situação prá tica, a filosofia vai e vem 
entre fato e di rei to, da mesma manei ra que oscila en tre os diferen tes 
campos de legislação E sse cará ter par ticular do procedimen to kan tiano é, 
talvez , a marca de sua reflexividade constitu tiva Vol taremos a este pon to
Crítica e filosofia
An tes de entrar no texto da Critica da razão pura , convém dizer algumas pala 
vras sobre o termo "critica" Kan t é muito eloqüen te sobre esse pon to, sem que 
contudo se possa fixar as diferen tes abordagens que ele propõe n uma única 
defin ição Digamos, a tí tulo preliminar, que a crí tica está pt esen te em cada
uma das etapas que até agora atravessamos: ela é aquilo que toma como objeto 
a disposição metafísica; é aquilo pelo que o bom e o mau uso dessa metafísica 
são separados; é, enfim, aquilo que produz o exercício da reflexão Mesmo se 
parece ativa na totalidade do trabalho filosófico, não se confu nd e com ela 
Sua relação com a filosofia em geral é talvez, aliás, o que melhor a determina 
Kant é muito preciso em relação a isso, logo no início da Primeira introdução 
à Crítica da faculdade de 1ulgar:
Se é verdade que a filosofia é o sistema do conhecimen to racional por concei tos,
ela já se acha suficientemen te assim diferenciada de uma cri tica da r azão pura;
esta con tém sem dúvida uma investigação filosófica que contempla a possibili
dade de tal conhecimento, mas não per tence, como par te, a tal sistema: é ela, ao
con trário, que esboça e1n primeiro lugar a idêia desse sistema e o põe à prova 20
Os dois verbos que concluem esta citação são essenciais: a crítica é, ao 
mesmo tem po, o esboço da filosofia como sistema e seu pôr à prova Precede,
27 lbid , A 271/B 327; P 1 p 996 2D CFJ, AK XX, 195; P 11. p 848
JÜ 31
Compreender
pois, à filosofia, como a planta do arquiteto precede a construção do edifício;
mas continua a agir ao longo do trabalho do pensamento, enquan to má cons
ciência deste pensamento, tão pron ta a ir além de sua esfera de legi timidade
A critica não é um empreendimento de destruição Ela, antes, se
pergun ta como transformar em ciência o que é dado como uma disposição
natural do espírito humano Procede de uma ten tativa de reorientação
dessa dispo sição, de consolidação de sua tendência geral, da qual vimos o
valor, acom panhada de uma estrita limitação de suas pretensões teóricas
Uma segunda definição de crítica merece ser aqui lembrada:
Capitulo li
A invenção do
transcendental
Ela é um tratado do método, não sistetna da própria ciência; mas estabelece todo
o tl'açado desta, tanto no que diz respei to a seus limites co1no a toda a sua estru
tura inter na29
Esboço, experimen tação, estabelecimen to dos limites e do conteúdo: a
critica diz o essencial dos dois campos da razão, a teoria e a prática Enquan to
se atém a essas quatro missões, a critica pode ser considerada como uma
sólida pr eparação para a metafisica enquan to ciência -isto é, finalmente
enquanto apresentação exaustiva das condições de possibilidade do
conhecimen to teó rico -e enquanto moral
A critica compor ta inegavelmen te -principalmente na primeira Critica 
- urna dimensão fortemente negativa Mas Kant esclarece que na.o se 
trata de censurar a razão, como os céticos o fazem. Estes se contentam em 
estipular os limites da razão, o que a dúvida e um pouco de prudência 
conduzem natural mente a fazer Kant interessa-se, por sua vez, pelos 
limites da razão, isto é, pela fron teira entre o que lhe é permi tido conhecer 
e o que ela pode apenas pensar A originalidade do gesto kantiano em 
relação aos inúmeros textos de teoria do conhecimento que tratam de 
definir os seus contornos é que ele se atém tanto ao interior da esfera 
científica cpmo ao que a circunda , certamente uma zona de sombras, mas 
onde se situam os inter esses mais elevados da razão humana 30 A critica, 
assim definida, não tem outros objetivos senão os da filosofia em geral: dar 
voz ao desejo metafisico e vida ao animal filosófico que é o homem
29 CRP, B XII; P 1. p 743
30 Cf ibid , A 761/B 789; P l. p 1333: ''Não existe mais aqui a censura. mas a crítica da
razão; graças a esta ct ítica, não nos contentamos em presuinir limites da razão. inas dernons
tramos, por principias, os limites determinados··
A Crítica da razão pura virou de pon ta-ca beça a paisagem da filosofia
ociden tal do fim do século XVIII; não é uma estrela caden te do pensamen
to, vinda do nada pa1a logo desaparecer Excepcional por suas qualidades,
111as não, verda deiramente, pelas questões levan tadas A preocupação que
reflete, a do estabe lecimen to das condições do conhecimen to, não é totalmen
te nova para o pró prio Kan t, menos ainda estranha à filosofia alemã e
européia de seu tempo
O sentido de uma
revolução na teoria do
conhecimento
Corno amadureceu tal projeto em Kan t? Como se dá que ele pr ecise atingir o
outono de sua vida para ver aparecer uma obra que se reivindica como prelú
dio e prolegômeno a propósi tos mais vastos? Não se trata aqui de seguir passo
a passo a evolução intelectual de Kant, de seus primeiros escritos à Critica'
Só
1 A obra clássica de Alexis PH!lOM E N KO. L'oeuvre de f{ anr. Paris, Vrin. 1969. con tém ern
seu pr imeiro volume todas as infor inações desejáveis
32 33
Compreender A 'ir1venção do transcendental
reteremos o que visivelmente faz pressagiar a descoberta do transcendental,
no que reside, sem dúvida, a autên tica novidade do kan tismo
A apreciação do problema critico
O primeiro texto verdadei ramen te significativode Kan t é sua História geral
da natureza e teoria do céu (1755) Kan t mostra-se ai extremamen te
preocupado em respeitar, em suas grandes linhas, a metafísica sistemática
dos mestres da Escola, Leibniz e Wolff Ao mesmo tempo desenvolve, no
que concerne à ex plicação dos fenômenos, um mecanismo estrito que nunca
desapa1ecerá in tei ramen te de sua obra Já nessa obra afirma, igualmen te,
que esse mecanismo não pode fornecer prova demonstrativa da não-existência
de Deus No mesmo ano, Kan t publica sua Nova explicação dos princípios do
conhewnento metafisico, onde opõe a incer teza da metafisica aos sucessos da
ciência, apreciação que reencontramos no principio da Critica da razão pura
A Monadologia física , que aparece no ano seguinte, acen tua a ru ptura com
Leibniz, apesar da origem do titulo, que a ele se reporta É também Leibniz
que ele toma como alvo no tex to de 1759: Ensaio de algumas considerações
sobre o otimismo
O ano de 1763 é mais rico, sob muitos aspec tos O Ensaio para
introduzir na filoso fia o conceito de grandezas negati vas estabelece, com
efeito, pela pri meira vez a distinção entre a lógica e a existência, esta
devendo ser dada na experiência No mesmo ano, o Único funda111ento possível
de urna dernonstração da existência de Deus trata das provas mais correntes
de existência de Deus de maneira muito similar ao que Kant dirá na Dialética
transcendental da Critica ela razão pura Em 1766, Kan t publica os Sonhos
ele um visionário explicados por sonhos n1etafísicos , onde já esboça duas
características de seu racionalis1no: u1n grande respei to pela tendência ao
incondicionado do espírito humano e uma desconfiança também grande em
relação às ten tações místicas
A disposição do texto de 1770 Da forma e cios princípios do mundo
sensível e cio mundo inteligível -comumen te chamado de Dissertação ele
1770 -é um pouco diferente Parece, desta vez, que Kan t entra em cheio na
questão teórica que é a da critica Com efeito, ai encontramos o esboço da par
tilha entre a ex periência e a razão, a teoria e a prática, que estrutura a obra de
1781 Con tudo, Kan t permanece aqui relativamen te dogmático, pois persiste
em afirmar a exis tência de um conhecimento não-sensível que atingiria a
essência das coisas O que ele diz da sensibilidade é bem mais in teressante;
descobre que esta fonte de
conhecimen to tem sua dignid ade e sua clareza próprias, e utiliza
representações específicas, o espaço e o tempo, sem as quais nenh uma
experiência é passivei Esse rápido percurso mostra bem que a Critica da
razão pura está muito longe de se reduzir a uma simples compilação
sistemática das descobertas anteriores Kan t colocou bem algumas das balizas
necessárias à completa formulação do projeto crí tico; mas o essencial não
está ainda explicitado e é preciso esperar até 1781 para que, enfim, seja
evidente a originalidade desse projeto
Psicologia e crítica
Kant não é o único filósofo ele seu tempo a se interessar pelo funcionamento
das faculdades de conhecimen to e pela construção do saber humano Se
existe uma especificidade do procedimento crí tico, não está na natureza de
seu objeto, mas, antes, no método empregado Desde Descartes, os filósofos
quiseram construir o quadro do conhecimen to, mostrando igualmente a partir
de quais fontes este está constituido Cassirer o diz muito justamen te, em sua
Filosofia das Luzes:
A psicologia está ( ) colocada explici ta1nen te na base da teoria do conheci1nen to
e até a Crítica da razão pura de Kant reivindicará esse papel mais ou menos sem
contestação 2
Dito de ou tro modo: a filosofia do conhecimen to pode se red uzir à
des crição dos diferen tes procedimen tos psicológicos utilizados em sua
aquisi ção A epistemologia não é uma tópica, que situa cada represen tação
em seu lugar da realidade; ela é uma história dessas mesmas represen tações,
ele sua origem sensível à sua forma conceituai Tal maneira de proceder não
é fato exclusivo do empirismo inglês ou francês Os grandes sistemas
racionalistas procedem da mesma maneira, a tribuindo a certas idéias par
ticulares uma origem divina ou um caráter de ina tismo E m todos os casos,
a determinação da fon te é o problema principal
Kant não tem gosto nenhum pela psicologia Passa, aliás, muito tempo
a evitar sua intervenção em seu próprio trabalho, não sem que ela apareça às
vezes no coração de certas teses suas O verdadeiro pon to de ruptura entre o
criticismo e as teorias do conhecimen to que o precederam é, sem dúvida,
essa
2 E CASS!RE R. La philosophie des LumiCres. Paris. Agora, 1993, p 146
34 35
Compreender A invenção do transcendental
distinção essencial en tre a descrição psicológica da construção de um saber
e sua análise transcenden tal E nquan to a primeira segue a gênese de um co
nhecimen to, a segunda estabelece sua legi timidade Não se trata mais de u ma
questão de fato, mas de direito: sob que condição a experiência é possível e em
guais limites um conhecilnen to é confiável'?
I-Iá sem dúvida ou tros elemen tos suscetíveis de ser postos no processo de
especificidade do projeto kan tiano Este tem a van tagem de não fazer de Kan t
um filósofo estra nho à sua época, mas sim o ator principal de uma reviravol ta
filosófica capital para a sequência da história da epistemologia É, aliás, signifi
ca tivo que Kan t abra a i n trodução da Crítica da razão pura com essas
palavras:
E rnbora todo nosso con heci1nen to comece co1n a experiéncia, não resu l ta in 
tei ran1ente da experiência3
O que significa esta fórmula tão freqüen temen te ci tada? Simplesmen te
que a questão genética não é a questão cen tral, e que seria preciso, afinal, que
nos in teressásse1nos pela origem de nossas represen tações, não so1nen te pela
história de seu nascimen to A reviravolta transcenden tal pode ser compreen
dida como a transformação de um problema histórico em um problema geográ
fico: deter1ninar cronologica1nen te a aparição de um conceito é mui to útil, mas
para afir1ná-lo claramen te é necessário estabelecer seu rnapa e localizar suas
diferen tes fon tes O transcenden talismo kan tiano será muito mal recebido,
tanto na Alemanha como na França, por causa justamen te dessa inflexão, que
ro1npe com hábi tos de pensamen to muito tenazes
O que é o transcendental?
O procedimento epistemológico kantiano, mesmo distingui ndo-se prof un
damen te quan to aos concei tos empregados da genética dos conhecimen tos,
tão comuns na época das L uzes, tem um pon to de partida similar Critica e
gênese do saber apóiam-se ambas, com efeito, na existência de fato de uma
ciência triunfan te, cujo sucesso irão ten tar explicar Para as corr en tes empi
ristas f rancesas ou inglesas, tra ta-se de mostrar como o método experimen tal
pode transformar as sensações em dados cientificas, servindo a simples des-
crição dessa mu tação de explicação para o sucesso de ciência em geral Kant
procede de modo mui to diferen te A elaboração das cond ições do sucesso
das ciências tem para ele um valor paradigmá tico Di to de ou tro modo:
indicando o que permite às ciências funcionar tão bem, a crítica vai ten tar
esboçar os principias do sucesso da ú nica ciência que verdadeiramen te im
porta paia ele, a metafísica Esses dois empreendimen tos filosóficos são, vê-
se, de essência e de alcance distin tos: de um lado, uma epistemologia
concreta da ciência, tal como ela existe; de ou tro, uma ten ta tiva de r esga te
da metafisica fundada numa epistemologia m i n1ética, devendo-se transpor
as condições de cer teza das ciências para o campo da metafísica
O prefacio da primei ra edição da Crítica da razão pura ti n ha claramen te
formulado o objetivo da obra e a pr imazia da metafísica como necessidade da
razão sobre todas as outras disciplinas O prefácio da segunda edição insiste
mui to mais que em 1781 na relação en tre a ciência e a metafisica Kan t se
pergun ta de uma vez por que certas ciênciasn unca sofreram recuos ou fracas
sos, enquan to a filha querida da razão, a metafisica, está no cen tro de polêmi
cas i numeráveis e estéreis A primeira razão que ele invoca, com referência ao
exemplo da lógica, é mui to significa tiva:
Se a lógica foi tão feliz, deve esta van tagem só à delimitação que a a utoriza e
mesmo a obriga a fazer abst1aç.30 de todos os objetos do conhecimen to e de sua
diferença, se bem que nela o en ten<li1nen to só trata de si rnesn10 e sua forma·1
O sucesso da lógica pode assim ser en tendido como uma consequência 
natural de seu cará ter formal Mais ainda: a lógica , fazendo abstração de con 
teúdos empíricos determinados, acha-se, na realidade, confron tada consigo 
mesma É, pois, uma ciência reflexiva do en tedimen to, descrevendo seu pró 
prio funcionamen to, ou ainda uma critica formal do trabalho do pensamento 
teórico Mesmo se esses três elemen tos -formalismo, reflexividade e dimen 
são crítica -irão se reencon trar mais ou menos em uma metafísica que con 
quistou seu título de ciência, não podemos nos con ten tar com isso. A razão, 
com efeito, tende ao conhecimen to de objetos com os quais não se confunde 
A ciência, sob pena de ser vazia, não pode ser uma disciplina formal Ao mes 
mo tempo, se se quer que ela con tenha uma parte de certeza, é preciso que, 
im itando a lógica, trate apenas de si mesma É, pois, indispensável que deter-
3 CRP, B 1 4 B IX
36 37
Compreender
mine em parte a priori seu objeto, além de fazer dele experiência Kan t chama
de "conhecimento teórico puro" a descrição do a priori das ciências Dá dois
exemplos disso: a matemática e a fisica A primei ra é in teiramen te pura, já que
seus objetos não lhe são dados pelos sentidos; a ciência só o é parcialmente, já
que uma física se1n objetos materiais seria um absurdo
A que se deve o sucesso dessas duas ciências? Quanto à matemática,
1
compreende-se facilmente que uma disciplina que produz por si mesma seus
concei tos r.ão pode cair no erro; aqui o conhecimen to a priori é a descrição do
que a própria ciência colocou no objeto que analisa A fisica apresen ta uma
configuração mais complexa, e é preciso dessa vez estudar o rnodo operatório
dessa ciência para compreender seu sucesso Tomemos Galileu: ele faz descer
num plano inclinado bolas de peso determinado a priori , portan to, antes da
experiência Que faz ele, na verdade? Antecipa a experiência, submete-a ao que
ele 1nesmo postulou, ao confron to entre o a priori de sua decisão e o a
posteriori da experimen tação produzida pelo conhecimento A física só tem
sucesso sob a condição de "forçar a natureza a responder às suas questões, em
vez de se deixar conduzir por ela à vontade"5 Ela só tomou o caminho seguro
da ciência depois de ter compreendido que não se pode apreender a natureza
sem ter pos
tulado sua racionalidade O problema fundamental da metafísica permanece 
Esta, por definição, supõe conhecer objetos que ultrapassam o território da 
experiência: o que é preciso fazer para que ela obtenha um sucesso comparável 
ao da física, mesmo que seus objetos estejam além de todo conhecimento expe 
rimen tal? Como escapar de uma vez por todas dessa situação escandalosa, até 
mesmo vergonhosa, que vê a rainha das ciências se comprometer em combates 
duvidosos e ser reduzida a um jogo retórico, onde os adversários manobram 
sem avançar nada de sólido? Como, enfim, conceber que nossa mais alta fa 
culdade possa exercer sua verdadeira função, conforme à disposição metafísica 
que constitui a humanidade? A consequência se impõe:
Devia pensar que o exemplo da matemática e da física -que se tornaram, pelo
efei to de uma revolução produzida de um só golpe, o que elas são agora -foi
no tável o bastan te para refletir no pon to essencial da mudança no modo pensar
que lhes foi tão van tajoso, e para imitá-las aqui, ao 1nenos a titulo de tentativa,
tanto quanto o permite sua analogia, co1no conhecimentos racionais, com a
n1etafisica6
5 B XIE
6 B1''V-XV!
38
A invenção do transcendental
A revolução copernicana
O principio mimético do prefácio não significa que a metafisica irá repetir,
sem modificações, o trabalho da física, con ten tando-se em m udar o objeto
É preciso, simplesmente, tr anspor a razão pri ncipal do sucesso da física para
a metafisica, isto é, perguntarmo-nos se não se poderia admi tir que os
objetos devem se regular por nossa faculdade de conhecimen to, e isso a
priori In ter vérn, então, a famosíssima referência a Copérnico: ele
consegue explicar os movimentos do céu modificando o estado do espectador
e fazendo-o girar em torno dos astros em repouso, em vez de um ponto fixo e
imóvel. A revolução copernicana do pensa1nen to crítico pode, então, ser
assim formulada:
Se a in tuição devesse se guiar pela natureza dos objetos, não vejo co1no se
pode ria saber alguma coisa a priori; e. ao con trário, se o objeto (como objeto
dos sen tidos) se guia pela nat ureza de nossa faculdade de in tuição, en tão
posso mui to bem supor essa possibilidade 7
A metafisica torna-se uma ciência a partit' do momen to em que contém
os conceitos a priori que o en tendimen to impõe aos dados sensoriais, para
que jun tos consti tuam uma experiência Nas palavras de Kan t: "Das coisas, só
conhecemos a priori o que nelas colocamos"ª A lógica triunfava porque dizia
respeito só a si mesma; a física era coroada de sucesso porque ia ao cncon tl'o
da natureza; a metafísica terá uma sorte igualmen te invejável no dia em que
compreender que seu único objeto de conhecimen to seguro reside no que o
entendimen to introduz por si rnesmo na experiência, ou pelo menos indepen
den temen te de seu con teúdo sensível
A própria idéia da revolução copernicana apóia-se ein uma determinação
original e complexa do concei to de a priori Este nunca significa apenas, em
Kant, o que significa na linguagem corren te: o caráter daquilo que precede a
experiência A relação en tre um concei to a priori e a experiência é mui to mais
complicada e diversificada do que uma simples an terioridade temporal Pode
mos atribuir-lhe duas qualidades específicas: primeiro, o a priori torna passive]
a experiência; em seguida, ele a estru tura Isso quer dizer, no que concerne ao
menos à razão teórica, que os concei tos a priori constitutivos da metafisica da
nat ureza são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade de uma expe-
7 B XVll
B B XVlll
39
Compreender
riência do m u ndo e as próprias leis desse mundo, en tendido como conjunto
de fenômenos experimen táveis E ssa iden tificação está longe de ser anód ina,
pois significa que uma car acterística essencial de nossa faculdade de conhecer
torna-se a lei estru turan te de seu objeto: o mundo As leis do en tendi men to
são as leis da natureza; sua distinção é só de ponto de vista, segundo nos ate
nl1amos à dimensão subjetiva do conceito ou à sua potência de objetivação
A in trodução da Crítica da razão pura traz a esse respeito preciosos esclare
cimen tos Kant deixa claro -e esta observação se faz no sentido que acabamos
de indicar -que ele en tende por conhecimentos a priori "não aqueles que têm
lugar independentemen te de tal ou tal experiência, mas aqueles que são absolu
tamen te independentes de toda experiência"' Tal independência em relação a
esse fator de incerteza que é a experiência sensível confere aos conceitos a prio
ri duas qualidades especificas que não podemos encon trar em nenhuma ou tra
parte A pon to de Kant considerar que a busca dessas duas qualidade em todo
conhecilnen to permite-nos decidir corn uma certeza absoluta se o conhecimen to
em questão é a priori ou a posteriori O prirneiro desses traços próprios do a
priori é sua necessidade; o segundo, sua universalidade Por quê? Simplesmente
porque a experiência sensível não pode ir além do fato Pode muito bem mostrar nos
que um fenómeno

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