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Homem, natureza e cultura Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 2 Homem, natureza e cultura Por Sydney Cincotto Junior Objetivo de estudo: A cultura, por sua vez, é vista como produto da ação criativa do homem e não como algo inerente a natureza dele. Ela deve ser compreendida resultado de um desenvolvimento histórico/social e respeitada na sua diversidade. Sendo assim, ao final do estudo deste módulo esperamos que você seja capaz de apresentar a antropologia como uma ciência que tem como objeto de estudo a cultura. Antropologia, ciência do homem e da cultura É possível afirmar que as primeiras questões que deram origem ao saber sobre o homem têm origem com a própria humanidade, pois o homem sempre se interrogou sobre sua origem, sua condição e seu destino (Laplantine, 2005). No entanto, somente no século XIX é que se consolidou, no campo científico europeu, uma disciplina que toma o homem como objeto de estudo: a Antropologia. Até aquele momento, o pensamento sobre o homem tinha sido mitológico, artístico, teológico, filosófico, mas não científico. Tratou-se de transformar o sujeito do conhecimento – o homem –, no próprio objeto de pesquisa. O fato de a Antropologia ter surgido na Europa contribuiu para a cons- trução do objeto antropológico a partir de uma diferenciação dualista entre as sociedades europeias e as não-europeias. A proposta inicial da Antropologia era uma tentativa de análise das populações consideradas “simples” ou “primitivas” porque não pertenciam ao restrito espaço das sociedades europeias consideradas “complexas” ou “civilizadas”. No início do século XX, no entanto, a Antro- pologia passou a se preocupar também com o estudo da cultura nas sociedades ditas “complexas” – urbanas e industrializadas. Foi nesse contexto que a ciência do homem passou a ser o estudo da cultura de todos os povos e sociedades. Para a Antropologia, o homem e a cultura constituem-se como conceitos básicos, e estabeleceu-se como tarefa aos antropólogos responder a difíceis questões: “o que é o homem?” e “o que é a cultura?”. Convencionou-se, a partir do século XVII, que o homem destacou-se da natureza por ser ele o único animal dotado de razão, convincente explicação filosófica demonstrada por René Descartes, que afirmou a separação existente entre res extensa – corpo, e res cogitans – espírito. De acordo com Descartes, os corpos de todos os animais se assemelhavam ao funcio- namento de máquinas biológicas, mas no corpo-máquina humano havia um espírito, responsável por fazer do homem um animal racional. Posteriormente, a ciência, através dos estudos da Paleontologia humana revelou que a transição da animalidade para a humanidade deu-se de forma processual, em decorrência da evolução da espécie, principalmente com o desenvolvimento do bipedismo, da hipercomplexidade cerebral e da simbolização (uso da linguagem). Eis que surgiu dessa condição a espécie homo sapiens sapiens, nosso ancestral direto. Segundo Morin, homem e cultura nascem juntos, e o que ocorre é uma retroação entre mutação genética cerebralizante e complexificação cultural. 3 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos “Enquanto, por um lado, foi a evolução ‘natural’ do cérebro hominídeo que produziu e desenvolveu a cultura, foi a evolução cultural que, por outro lado, depois, impeliu ou estimulou o hominídeo a desenvolver seu cérebro, isto é, a transformar-se em homem. Assim, o cérebro passou de 500cm³ (antropoide) para 600 e 800cm³ (primeiros hominídeos) e, em seguida, para 1.100 cm³ (homo erectus), antes de atingir 1.500 cm³ (homo sapiens neanderthalensis e homo sapiens sapiens)” (Morin, 1975, p. 87). É nesse sentido que o projeto antropológico consiste no estudo da unidade do homem e no estudo do homem em todas as sociedades, em todas as culturas, como afirmou Laplantine. Estudar o homem na sua existência fisico-bio-psíquica implica também conhecê-lo na sua vivência sociocultural, ou seja, devemos compreender a unidade biológica e a diversidade cultural da espécie humana. Por isso os estudos antropológicos passaram a ser sinônimo de estudos da cultura e acatou-se como verdade inabalável a equação de que o homem é humano por ser produtor de cultura. Atualmente, a tradicional fronteira entre humanos e não-humanos, definida pela cultura, vem sendo questionada, especialmente pelos estudos da Pri- matologia, que acumula exemplos de como nós nos assemelhamos a outros macacos, principalmente aos chimpanzés. “É difícil encontrar hoje em dia qualquer capacidade supostamente racional que os primatólogos não digam que está replicada em outros macacos: uso da linguagem, fabricação de ferramentas, imaginação simbólica, autoconsciência – imagine qualquer uma, sempre haverá macacos não humanos que a exercem” (Fernández-Armesto, 2007, p. 9). Diante desse novo dilema, devemos recolocar as questões “o que é o homem?” e “o que é a cultura?”. Podemos ainda introduzir uma nova questão: “ser humano significa ser unicamente produtor de cultura?”. A busca incansável para essas respostas faz do estudo do homem e da cultura um campo fértil para o conhecimento de nós mesmos, e, consequentemente, para o conhecimento das relações natureza/cultura, cultura/ sociedade e espécie/indivíduo/sociedade. O homem como produtor de cultura Continuando... O termo cultura é comumente utilizado para designar acúmulo de saberes. Ter cultura, para o senso comum, passa a ser empregado para indicar um indivíduo de boa educação, culto, que adquiriu boa instrução no campo intelectual, que acumulou conhecimentos. Da mesma forma, os incultos são considerados pessoas sem cultura. Outra maneira de usar o termo cultura é no sentido de indicar que determinada sociedade tem mais cultura ou que possui cultura mais evoluída do que outra. No caso do Brasil, habituamo-nos a ouvir que os povos indígenas possuem cultura inferior ou atrasada em relação à nossa, mas isso não é verdade. Cientificamente, todos os seres humanos possuem cultura; o Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 4 surgimento da cultura está intimamente relacionado ao surgimento do homem, e não há cultura melhor ou pior, superior ou inferior, o que há são culturas diferentes. Há aproximadamente quatro milhões de anos, entre os grupos de primatas africanos, surgiram os australopithecus, nossos antepassados mais distantes – os primeiros primatas a caminho da hominização. Ao longo da evolução emergiram sucessivamente o homo habilis, o homo erectus e o homo sapiens; esse processo não foi marcado só por mudanças fisico-biológicas, como bipedismo e aumento da caixa craniana, mas também pelo aumento da capacidade dos nossos antepassados de intervir na natureza, transformando-a e adaptando-a para atender às suas necessidades. Nesse sentido é que a cultura emerge e vai se tornando cada vez mais complexa. “Há milhares de anos, a espécie humana não se diferenciava dos outros animais. Não utilizava instrumentos nem agasalhos e não apresentava formas de organização além das que sua condição biológica exigia. Podia, por exemplo, reunir-se com outros de sua espécie para caçar ou defender-se de animais maiores. Agia por instinto, e suas necessidades se restringiam àquelas determinadas pela sua biologia, como neces- sidade de comer, de se reproduzir, de se defender, de se proteger do tempo etc. No entanto, com o passar dos anos, o animal humano foi se diferenciando profundamente dos outros animais: embora menor e pouco dotado em tamanho e força, ia se transformando, gradativamente, num dos maiores predadores de outros seres. Aprendeu a utilizar roupas e instrumentos e a criar inovações que o tornavam capaz de enfrentar qualquer animal” (Dias, 2005, p. 49). Essas criações do homem que ultrapassam a sua condiçãobiológica é que chamamos de cultura. Para além do ambiente natural primeiro – a natureza –, nossa espécie criou um segundo ambiente, que não é natural, ao qual denominamos ambiente cultural – as sociedades humanas. A cultura compreende tudo aquilo que criamos, material e imaterialmente, a partir da nossa interação com o meio em que vivemos. Instrumentos e objetos de uso cotidiano, hábitos alimentares, vestimentas, relaciona- mentos interpessoais, religiões, idiomas, tecnologias, cidades etc. são invenções humanas ou simplesmente produtos da cultura. A cultura varia de um local para outro; por isso podemos afirmar que existem várias culturas e que cada localidade possui uma determinada cultura, cada qual com suas singularidades. Essas variações entre as culturas podem ser: • Entre diferentes países, por exemplo: a cultura francesa é diferente da cultura chinesa; • Entre uma região e outra no mesmo país, por exemplo: no Brasil a cultura mineira é diferente da cultura baiana; • Entre diferentes grupos étnicos em um mesmo território, por exemplo: a cultura dos índios yanomâmi é diferente das dos kayapó, e ambos vivem na Amazônia; • Entre diferentes grupos ou comunidades na mesma cidade: grupos de jovens punks diferem culturalmente dos funkeiros; ou mesmo entre comunidades religiosas distintas, como a cristã e a islâmica. 5 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos Assim, podemos entender que a cultura da humanidade pressupõe ao mesmo tempo a existência de várias culturas, que a humanidade é uma só, constituída da mesma espécie e que a sua maior aptidão está em criar modos e estilos de vida diferenciados; isso é o que caracteriza a diversidade cultural. Em outras palavras, a cultura humana é composta por várias subculturas, e cada subcultura é composta por outras várias subculturas. Podemos, assim, dizer que a cultura brasileira abriga um conjunto de subculturas, como a caipira, a católica e a nordestina, subculturas dentro da cultura brasileira. O estudo da Antropologia, ou seja, o estudo do homem e da cultura “consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, juntamente com a compreensão de uma humanidade plural” (Laplantine, 2005, p. 22). Compreender que agimos e pensamos de formas diferenciadas porque temos culturas diferentes é o caminho que pode levar o ser humano a ser mais tolerante e a combater os preconceitos. Isso também implica nos Não existem raças na espécie humana Uma equipe de cinco cientistas estudou e comparou mais de oito mil amostras genéticas colhidas aleatoriamente de pessoas de todo o mundo. Segundo Alan Templeton, biólogo americano que dirigiu a pesquisa, diferentemente de todas as outras espécies de mamíferos, não há raças entre os humanos porque “as diferenças genéticas entre grupos das mais distintas etnias são insignificantes”. Para que o conceito de raça tivesse validade científica, “essas diferenças teriam de ser muito maiores”. Ou seja, não importa a cor da pele, as feições do rosto, a estatura ou mesmo a origem geográfica de qualquer ser humano (traços que distinguem culturalmente as etnias): geneticamente, somos todos muito semelhantes. (...) Os resultados mostraram que, quando há diferença genética significativa, pelo menos 85% dela acontecem entre indivíduos dentro de um mesmo grupo étnico (como os asiáticos, por exemplo). As diferenças entre etnias (brancos europeus e negros africanos, por exemplo), que seriam a base para haver raças distintas, são de apenas 15% ou menos que isso. “Um índice muito abaixo do nível usado para diferenciar raças dentro de qualquer espécie animal”, explica Templeton. Isso quer dizer que dois brancos europeus diferem mais entre si do que em conjunto diferem de um africano. “Portanto, os humanos são a mais homogênea espécie que conhecemos”, diz ele. SOMOS todos um só. Pesquisa genética internacional mostra que não existem raças na espécie humana, derrubando qualquer base científica para a discri- minação. Revista IstoÉ, 18 nov. 1998. Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 6 reconhecermos como pertencentes à mesma espécie homo sapiens sapiens. Afinal, somos uma só humanidade diferenciada pela cultura e não pela genética; isso quer dizer que a ideia de raça é mais uma construção ideológica do que uma verdade científica. Insistir na diferenciação/identificação dos grupos humanos através da raça apenas reforça o sentimento de racismo, cria preconceito e discriminação. Conceito de cultura: características, elementos e estrutura O trabalho dos antropólogos em pensar o conceito de cultura nem sempre produziu resul- tados de consenso; em verdade, levou à elaboração de definições distintas. Entre essas definições, foi Edward B. Tylor, em 1871, o primeiro a criar um conceito de cultura que se tornou clássico: “cultura é aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (in Kahn, 1975, p. 29). Poderíamos aqui elaborar um rol de contribuições acerca do conceito de cultura, mas em vez disso priorizaremos os aspectos essenciais que perpassam essas definições. Definições • A cultura é transmitida pela herança social e não pela hereditariedade genética. Adquirimos cultura na convivência com outros indivíduos em sociedade, em especial com o grupo familiar com o qual travamos nossas primeiras experiências. A essas interações sociais com vários grupos denominamos processo de sociali- zação. A transmissão cultural pelos principais agentes de socialização – que são a família, os grupos de amigos, a escola, os meios de comunicação de massa, os ídolos etc. – nos ensina a viver em sociedade e nos transforma num ser humano culturalmente definido. • A cultura age como um mecanismo de adaptação do indivíduo ao meio. Da mesma forma que o homem transforma a natureza modificando-a para sobreviver, criando assim um ambiente cultural, é também capaz de transformar o meio cultural já existente com a finalidade de atender às suas novas necessidades. Isso quer dizer que tanto o meio natural como o meio social são modificados pelos homens para neles melhor viver. • A cultura compreende a totalidade das criações humanas. Essas criações são materiais e imateriais. As materiais compreendem instrumentos de trabalho, construções, vestuário, objetos e artefatos de uso cotidiano, obras de arte, alimentos, enfim tudo que é tangível, palpável. As imateriais são ideias, valores, crenças, conhecimentos, ideologias, mitos; são elementos intangíveis, sem substância material. • A cultura condiciona a visão de mundo do homem. Uma vez que a cultura é uma herança social, transmitida pelo grupo através do processo de socialização, os indivíduos acabam por assimilar ideias, valores, comportamentos, hábitos, crenças da sua sociedade que interferem na interpretação que fazem do mundo. Podemos dizer que vemos através da cultura na qual fomos socializados. Como nossas ideias, valores, comportamentos, hábitos, crenças são passíveis de mu- danças ao longo do tempo, nossa interpretação de uma dada realidade também está sujeita a mudanças. 7 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos • A cultura é uma característica exclusiva das sociedades humanas. Crê-se que animais não dotados de razão são incapazes de produzir cultura, que dentre os animais terrestres o homem é o portador exclusivo dessa condição, que, como vimos, nos fez seres humanos. Essa afirmativa é constitutiva do pensamento antropológico e balizadora da nossa compreensão do que é ser humano. Mas a fronteira entre primatas humanos e não-humanos vem sendo questionada e problematizada frente às evidências já comprovadas de que macacos não-humanos são produtores de cultura.Mesmo que continuemos com a afirmativa clássica de que a cultura é uma especificidade humana, não podemos mais ignorar que bonobos, chimpanzés, gorilas e orangotangos são capazes de produzi-la. Os defensores dessa rígida fronteira preferem afirmar que não se trata de cultura, mas de protocultura ou da capacidade rudimentar de transmiti-la. Frente a essas características da cultura, evidencia-se que todos os grupos humanos a possuem, que se expressam nela e através dela com seus símbolos, idiomas, conhecimen- tos, crenças, valores e normas identificados como elementos básicos na sua conformação. Esses elementos comuns a todas as culturas são os responsáveis por fazer delas um mosaico de diversidades. Diversidades • A simbolização permite às sociedades humanas transmitir sua herança cultural às futuras gerações. Podemos dizer que um símbolo é portador de um significado específico atribuído por uma determinada cultura. Assim, a cultura pode ser simplesmente entendida por meio de suas relações simbólicas, uma vez que ao falar, escrever, agir, pensar, gesticular etc. estamos nos comunicando por simbolização. Os símbolos têm significados diferenciados de acordo com cada cultura. Por exemplo, a cor preta é símbolo de luto no Brasil, enquanto a cor branca é que sinaliza luto na China. • Todas as sociedades têm seu próprio idioma, ele é um sistema simbólico que permite a comunicação entre os seus indivíduos. A variação de uma língua para outra nas diferentes sociedades é indicativa de que o idioma é uma construção cultural, pois um dos elementos-chave constitutivos da condição humana foi o uso da linguagem, em especial a fala articulada, característica essencial aos homens. • Todas as culturas possuem grande número de conhecimentos, que são trans- mitidos, através do processo de socialização, aos membros de uma determinada sociedade; eles referem-se às técnicas de trabalho, à organização social, aos costumes e hábitos, ao sistema educacional, às formas de habitação e moradia etc. Não há sociedade sem conhecimento; por exemplo: os esquimós detêm tecnologia de construção de casas no gelo, enquanto os povos indígenas da Amazônia detêm outra tecnologia, de construção de moradias na floresta tropical; são conhecimentos distintos. • As crenças também são elementos da cultura, e todas as culturas são cons- tituídas por um conjunto de crenças. Entre os fiéis das religiões que acreditam na reencarnação, a visão sobre o destino da alma após a morte não é a mesma compartilhada entre os fiéis de religiões que pregam a vida eterna. Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 8 • Os valores também são constitutivos da cultura; eles indicam o que é bom, desejável, apropriado, importante, certo e belo; ou o que é ruim, indesejável, impróprio, sem importância, errado e feio em uma sociedade. Os valores variam de acordo com a importância que lhes é atribuída pelos indivíduos, e quando ocorrem mudanças comportamentais numa sociedade os valores também se modificam. • As normas são regras que determinam o nosso comportamento em sociedade; podem ser formais, como leis, estatutos, códigos de ética profissional; ou informais, como sentar-se na cadeira e não na mesa ou no chão. Como podemos ver, há elementos invariantes constitutivos da cultura. Essas invariantes são as responsáveis diretas pela diferenciação cultural entre os povos, que permite sempre que pensemos em “culturas”, no plural. Para melhor compreender a cultura, a ciência antropológica armou-se de conceitos explicativos das suas formas de organização estrutural; os mais importantes são os traços culturais, os complexos culturais, os padrões culturais e as subculturas. • Traços culturais – são dados simples, geralmente unitários, que permitem identificar uma cultura. Eles podem ser identificados e descritos isoladamente, mas um traço cultural está sempre relacionado a outro ou a outros traços que juntos constituem um complexo cultural. Exemplos de traços culturais: a batina identifica um padre, a burca identifica uma mulher muçulmana, o chimarrão identifica os hábitos dos gaúchos, o uso de hashi (palitos) como talheres para alimentar-se é hábito de alguns povos orientais. • Complexo cultural – é um conjunto de traços culturais que constituem um com- plexo cultural. É possível substituir alguns traços culturais por outros tornando o complexo cultural identificável com outra cultura. Exemplo de complexo cultural: o carnaval carioca reúne um grupo de traços culturais como fantasia, serpentina, confete, desfile de blocos de rua, samba. Se substituirmos o samba por maracatu ou frevo identificaremos esse carnaval como sendo pernambucano. Ao invés de samba, frevo ou maracatu; se a música for axé diremos que é carnaval baiano. Outro exemplo de complexo cultural são os eventos sociais como aniversários, casamentos e funerais. As organizações, como universidades, hospitais, igrejas e empresas, também são complexos culturais. • Padrões culturais – são modelos comportamentais generalizados, regularizados, aceitos como normais pelos membros de uma cultura. Esses padrões são esta- belecidos consensualmente por todos. Por exemplo, no Brasil é padrão homens usarem calças em vez de saias. Os padrões formam-se pela repetição contínua de um comportamento por um largo período de tempo, quando então são incorporados pela sociedade como modelos a serem seguidos. • Subculturas – uma subcultura é a caracterização de um determinado grupo com hábitos, costumes, normas e valores particulares que acabam distinguindo-se da cultura predominante em uma sociedade na qual está inserida. Por exemplo: a cultura brasileira é constituída por várias subculturas regionais, como a nordestina, a mineira e a paraense, que apresentam culinárias típicas e termos 9 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos linguísticos próprios identificadores de suas subculturas, mas também são ao mesmo tempo identificados com a cultura brasileira. “Em resumo, podemos afirmar que uma subcultura constitui-se num padrão de vida que apresenta aspectos importantes, distintos da cultura principal, mas que tem continuidades fundamentais com essa mesma cultura dominante” (Dias, 2005, p. 59). A cultura assim apresentada serve para nos fazer compreender que, do ponto de vista antropológico, ela não deve ser entendida como acúmulo de conhecimento por determinados indivíduos ou grupos, o que os faz cultos ou detentores de uma cultura superior. Ao contrário, a cultura deve ser entendida como um patrimônio da humanidade, constituinte e constituidora de todas as sociedades humanas, sem exceção. Presente em todos os povos, sejam esses povos habitantes das florestas em pequenas aldeias, sejam eles nômades viventes na tundra siberiana ou moradores das grandes metrópoles contemporâneas. O que faz esses inúmeros povos e sociedades diferenciarem-se não é a sua condição biológica ou “racial”, mas sim a capacidade criadora e criativa das manifestações da cultura da espécie humana. Referências ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Adaptações do quadro Correntes Antropológicas, organizado pelo prof. dr. Vagner Gonçalves da Silva, Departamento de Antropologia da USP. Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 10 Diversidade sociocultural: etnocentrismo e relativismo Ana Lúcia Guimarães Para entendermos o que significam os conceitos de etnocentrismo e relativismo cultural precisamos nos ater um pouco mais ao conceito de cultura aqui apresentado. Se estamos compreendendo cultura como toda produção humana, portanto podemos identificar que todos os grupos e povos possuem cultura, como já visto aqui. A Antropologia desenvolveu-seno período de expansão colonial das sociedades europeias, quando estas desejavam saber sobre as culturas existentes nas sociedades tidas como “não-europeias” que haviam sido descobertas, para estabelecer estratégias de dominação. Portanto, a Antropologia, ao estudar o conceito de cultura, vem contribuindo cada vez mais para o entendimento do conceito de etnocentrismo, já que ao estudar a cultura podemos fazer uma tradução melhor da diferença entre nós e os outros.e assim, resgatar nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos. A evolução dos estudos sobre cultura foi possível através das críticas ao conceito de etnocentrismo. O que significa etnocentrismo? O que significa etnocentrismo? O etnocentrismo é concebido como uma ideologia que prega a superioridade ou inferio- ridade de um grupo em relação a outro. O etnocentrismo existe em todos os grupos e se constitui a partir de um choque cultural, ou seja, de um lado existe um grupo no qual os seus membros procedem de forma comum e possuem mais ou menos as mesmas maneiras de encarar a vida; tudo vai bem até o dia em que esse grupo se depara com a possibilidade de existência cultural de outro grupo, que sobrevive à sua maneira e que gosta dela, ainda que para outros grupos seja percebida como desviante, destoante ou simplesmente diferente. O etnocentrismo acontece quando, por conta desse contato cultural, um grupo ao olhar para o outro interpretar esse outro como sendo inferior, atrasado, marginalizado culturalmente, tomando como referência seus próprios valores e comportamentos sociais, como se estes fossem a referência universal para analisar e conhecer qualquer outro grupo. O etnocentrismo pode ser observado desde os séculos XV e XVI, quando ocorreram as Grandes Navegações, que partiam do território europeu e se destinavam a conhecer para melhor dominar outros povos do planeta; assim o foi o contato entre a cultura europeia e os povos do “mundo novo”, assim chamadas as terras que não fossem geograficamente situadas no espaço europeu, como as Américas. O conceito de relativismo cultural se contrapõe ao conceito de etnocentrismo. Como podemos entender essa diferença conceitual? Analisar uma cultura sob um olhar rela- tivista significa entender a lógica de funcionamento dela à luz de seu próprio contexto de existência, ou seja, significa considerar que aquela cultura existe com seus próprios valores, hábitos, costumes, sentimentos, tradições, comportamentos, porque tem um sentido para os indivíduos que fazem parte dela. Segundo Rocha (1999) , relativizar não é 11 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferente. É o respeito à diversidade cultural. A Antropologia, nos dias atuais, tem consciência de que as ideias divulgadas nos grupos são apriorísticas e de que é preciso conviver com o discriminado para saber se as pré- concepções são reais ou não. Precisamos aqui também marcar muito bem em que momentos de organização dos estudos da Antropologia nascem esses dois conceitos fundamentais, etnocentrismo e relativismo cultural. (imagem extraída do google imagens etnocentrismo -pag-6 ) Podemos dizer que o primeiro olhar sobre as culturas humanas que fundamenta os estudos da Antropologia foi o de evolucionismo social, corrente antropológica que organizou-se no início do século XIX e que foi marcada fundamentalmente por uma tentativa de sistematização do conhecimento acumulado sobre os chamados povos primitivos. Como método de trabalho, os primeiros pesquisadores realizavam o trabalho de gabinete, ou seja, produziam suas análises e reflexões em seus gabinetes a partir de relatos de viagens (cartas, diários, relatórios etc.) feitos por missionários, viajantes, comerciantes, exploradores, militares, administradores coloniais. Eles defendiam que as civilizações partem do zero e evoluem gradativamente até a civilização, isto é, as sociedades avançadas já estiveram em algum momento de maneira primitiva e depois evoluíram. Convém destacar o caráter etnocêntrico dessa análise, pois considera que todas as sociedades devem tomar como referência de civilização a sociedade europeia para alcançar o progresso e a evolução social. O próprio fato de utilizarem conceitos como “atrasados”, “selvagens”, “inferiores”, “primitivos”, já enfatiza o etnocentrismo presente nesse pensamento. Observe um quadro-síntese dessa escola antropológica. Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 12 Evolucionismo social Período Séc. XIX Características Busca apreender as origens da humanidade e apresenta o desenvolvimento cultural a partir de estágios sequenciais de evolução, do mais primitivo ao mais civilizado. Método Trabalho de gabinete Conceitos Visão etnocêntrica da realidade cultural. Alguns representantes e obras de referência E. Tylor (A cultura primitiva, 1871); L. Morgan (A Sociedade Antiga, 1877); James Frazer (O Ramo de Ouro, 1890). Com a discussão apresentada verificamos que os pesquisadores evolucionistas rece- biam de forma secundária suas fontes de dados para a análise da cultura dos vários povos encontrados naquele contexto, ou seja, não eram eles que iam até os grupos e povos e recolhiam esse material; portanto, seu olhar apresentava muitas distorções da realidade concreta de experiência e vivência dos vários povos. Assim, podemos dizer que somente no século XX, com os trabalhos e estudos da escola funcionalista é que foi possível configurar uma nova percepção sobre a cultura dos povos. O funcionalismo, então, traz ênfase muito forte ao trabalho de campo como fun- damento da retirada de material para o conhecimento da cultura dos vários povos. Funda-se, assim, a Etnografia Clássica, ou seja, a análise de uma cultura a partir das informações e observações feitas pelo pesquisador em sua vivência no campo, no grupo a ser compreendido. Essa prática constituída como trabalho de campo e observação participante ofereceu aos estudos da Antropologia a possibilidade de compreender o “outro” de forma mais “próxima” de sua realidade existencial. Uma percepção extre- mamente Relativista. Observe o quadro-síntese dessa escola antropológica. Funcionalismo Período Séc. XX - anos 20 Características Modelo de Etnografia clássica (Monografia). Ênfase no trabalho de campo (observação participante). Sistematização do conhecimento acumulado sobre uma cultura. Método Trabalho de campo e observação participante. Conceitos Visão relativista da realidade cultural. Alguns representantes e obras de referência Bronislaw Malinowski (Argonautas do Pacífico Ocidental, 1922); Radcliffe Brown (Estrutura e Função na sociedade primitiva, 1952); e Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento, (org. c/ Daryll Forde, 1950). Da análise dos quadros extraímos que: Quando olhamos ou julgamos um grupo social de forma tendenciosa ou levando em consideração os valores de nossa própria cultura como referência para entender um 13 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos outro grupo social e passamos a perceber esse grupo como sendo inferior, pior, atrasado, errado estamos sendo etnocêntricos; no entanto, quando nos colocamos em posição de olhar o outro grupo diferente do nosso, que possui valores e cultura díspares do nosso e procuramos entendê-lo e explicá-lo respeitando suas características e suas propriedades culturais, estamos sendo relativistas. Segue uma mensagem para essa reflexão Lençol Sujo Um casal recém-casados mudou-se para um bairro muito tranquilo. Na primeira manhã que passavam na casa, enquanto tomavam café, a mulher reparou, através da janela, uma vizinha que pendurava lençóis no varal e comentoucom o marido: - Que lençóis sujos ela está pendurando no varal! Provavelmente está precisando de um sabão novo. Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas! O marido observou calado. Alguns dias depois, novamente, durante o café da manhã, a vizinha pendurava lençóis no varal e a mulher comentou com o marido: - Nossa vizinha continua pendurando os lençóis sujos! Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas! E assim, a cada dois ou três dias, a mulher repetia seu discurso, enquanto a vizinha pendurava suas roupas no varal. Passado um mês a mulher se surpreendeu ao ver os lençóis brancos, alvissimamente brancos, sendo estendidos, e empolgada foi dizer ao marido: - Veja! Ela aprendeu a lavar as roupas; será que outra vizinha ensinou!? Porque não fui eu que ensinei. O marido calmamente respondeu: - Não, é que hoje eu levantei mais cedo e lavei os vidros da nossa janela! E assim é. Tudo depende da janela através da qual observamos os fatos. Antes de criticar, verifique se você fez alguma coisa para contribuir; verifique seus próprios defeitos e limitações. Devemos olhar, antes de tudo, para nossa própria casa, para dentro de nós mesmos. Só assim poderemos ter real noção do real valor de nossos amigos. Lave sua vidraça. Abra sua janela. Essa mensagem traz uma reflexão sobre os vários olhares distanciados da reali- dade que no nosso dia a dia colocamos em prática. Qual a sua reflexão sobre ela? Como, nesse caso, poderíamos apresentar uma visão relativista? Reflita e continue a leitura a seguir. Para Rocha (1999), o relativismo possui três concepções diferentes: 1 - A existência de relativismo onde as culturas formam entidades separadas, com limites facilmente identificáveis; 2 - Relativismo ético: A - Exigência de respeito absoluto de cada cultura em particular; B - Um relativismo que pode servir de garantia a uma posição ideológica oposta a qualquer definição universal de direitos humanos. A exaltação da diferença leva-nos até, em sua forma mais perigosa, à justificação de regimes segregacionistas. O direito à diferença é então transformado em obrigação. Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 14 3 - Relativismo como princípio metodológico: “todo o conjunto cultural tem tendência para a coerência e umas certas autonomias simbólicas que lhe conferem seu caráter original singular; não se pode analisar um traço cultural independente do sistema cultural ao qual ele pertence e que lhe dá sentido. É preciso saber considerar a dependência ou a independência no que se refere a esses sistemas culturais”. Ainda para Rocha (1999), repensar a cultura como conceito significa reexaminar a noção de etnocentrismo. Para ele, etnocentrismo é uma palavra que caiu no uso comum. Pelo abuso do senso comum, etnocentrismo torna-se sinônimo de racismo e passa a ser condenado com o mesmo vigor que este último. Em suas reflexões, aponta que racismo é mais do que uma atitude. É ideológico, baseado em pressupostos pseudocientíficos cuja origem é datada do final do século XIX e está longe de ser universal. O etnocentrismo pode ser encontrado em todas as sociedades – das mais simples às mais complexas. Pelo que podemos apreender sobre esses conceitos, podemos agora compreender o quanto temos dificuldade de pensar a diferença. Essa dificuldade está diretamente ligada à cultura e às formas e valores de socialização que recebemos dos grupos dos quais fazemos parte. Assim, será que é possível pensar que estamos sendo etnocêntricos quando julgamos de forma precipitada os vários grupos sociais presentes em nossa realidade e que se apresentam contrários ou diferentes de nossa realidade cultural? Somos capazes de entender e respeitar a lógica e o sentido de existência desses grupos, como as prostitutas, os usuários de drogas, os skin-heads, as populações de rua, os vários grupos que se encontram à margem da sociedade? Uma coisa é certa: quando estamos direcionados por um olhar etnocêntrico, podemos fazer julgamentos e avaliações que podem não corresponder à realidade empírica. Nesse caminho também cometemos injustiças e perdemos em conhecimento e riqueza cultural. O etnocentrismo leva, sim, a uma visão deformada da realidade cultural. O conhecimento do outro e da diferença faz com que passemos a praticar a tolerância social. Conhecer para melhor conviver não significa converter-se, mas sim entender que as culturas se complementam e dão um sentido vivo à realidade social. Lembro-me agora da história do Lenhador e da Raposa; gostaria de encerrar essa discussão com ela e deixá-la para vossa reflexão: 15 Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos O lenhador e a raposa Existiu um lenhador que acordava às 6 da manhã e trabalhava o dia inteiro cortando lenha; só parava tarde da noite. Esse lenhador tinha um filho, lindo, de poucos meses, e uma raposa, sua amiga, tratada como bicho de estimação e de sua total confiança. Todos os dias o lenhador ia trabalhar e deixava a raposa cuidando de seu filho. Todas as noites, ao retornar do trabalho, a raposa ficava feliz com sua chegada. Os vizinhos do lenhador alertavam que a raposa era um bicho, um animal selvagem; portanto, não era confiável. Quando ela sentisse fome comeria a criança. O Lenhador sempre retrucava com os vizinhos, falava que isso era uma grande bobagem. A raposa era sua amiga e jamais faria isso. Os vizinhos insistiam: - Lenhador, abra os olhos! A raposa vai comer seu filho. - Quando sentir fome, comerá seu filho! Um dia, o lenhador, muito exausto do trabalho e muito cansado desses comentários, ao chegar a casa viu a raposa sorrindo como sempre e sua boca totalmente ensanguentada... O lenhador suou frio e sem pensar duas vezes acertou o machado na cabeça da raposa... Ao entrar no quarto desesperado, encontrou seu filho no berço dormindo tranquilamente e ao lado do berço uma cobra morta... O lenhador enterrou o machado e a raposa juntos. Como você analisa a mensagem a partir da reflexão dos conceitos de etnocentrismo e relativismo aqui apresentados? Vamos discutir sobre essa questão no Fórum? Fórum Homem, natureza e cultura - Módulo 2 Estudos Sócio-Antropológicos 16 Referências BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível, vol. I: hospitalidade: direito e dever de todos. Petrópolis: Vozes, 2005. DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005. FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano?: uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. KAHN, J. S. El concepto de cultura: textos fundamentales. Barcelona: Anagrama, 1975. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2005. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. MARCONI, Marina de Andrade. Antropologia: uma introdução. São Paulo: Atlas, 2001. MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. Anexo - Atividades Estudos Sócio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. Anexo - Atividades Estudos Sócio-Antropológicos
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