Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A educação como direito fundamental do ser humano no Brasil (Publicado no Datadez) Eduardo Martines Júnior Promotor de Justiça em São Paulo Professor da PUC/SP, UNISO e da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo Mestre e Doutorando em Direito pela PUC/SP _____________________________________________________________________________ INTRODUÇÃO Renova-te. Renasce em ti mesmo. Multiplica os teus olhos, para verem mais. Multiplica os teus braços para semeares tudo. Destrói os olhos que tiverem visto. Cria outros, para as visões novas. Destrói os braços que tiverem semeado, para se esquecerem de colher. Sê sempre o mesmo. Sempre outro. Mas sempre alto. Sempre longe. E dentro de tudo. (Cecília Meireles - Cânticos - XIII.) A educação vem deixando a seara da Pedagogia e das Letras para chegar com muito vigor aos domínios do Direito. Avançamos firmemente para um direito da educação. Mas a educação é assim tão importante? Deixamos de aprender por experiência própria e passamos a utilizar o conhecimento alheio para direcionar nossas atividades. Tornamo-nos capazes de juntar as experiências de muitos outros homens e as arquivamos em nosso cérebro, para utilizarmos no momento necessário ou, até mesmo, nunca as utilizarmos. Não nos limitamos a isso. Aprendemos e aprimoramos as experiências cada vez que a transmitimos. Temos, pois, não só a capacidade de amealhar conhecimentos com os demais indivíduos, como aprimoramos, elevamos e acrescentamos nossa própria experiência, por tudo levando à construção do conhecimento. Isso é educação: é aprender, aprimorar e, num momento seguinte, transmitir as experiências na forma de conhecimento. E conhecer para quê? Para desenvolver a sociedade que hoje está solidamente fundada no conhecimento. A informação produz desenvolvimento e este traz uma vida melhor, não só para aqueles que detêm o conhecimento, a informação, mas, sobretudo para os menos afortunados, para quem a educação significa libertação da ignorância, da opressão, da pobreza. O atual estágio de desenvolvimento da tecnologia impõe formar indivíduos qualificados para dominá-la e colocá-la a serviço da sociedade. A educação não se circunscreve à relação professor/aluno/escola, mas igualmente não prescinde de professores cada vez mais capacitados. Essa capacitação passa pelo ensinar a aprender. Educação tem o significado de transmissão de conhecimento, de valores. Todavia, a velocidade de um mundo sem fronteiras e que vive em tempo real nos quatro cantos torna a simples transmissão do conhecimento inadequada e insuficiente. Mister ensinar a aprender. O desafio está em conseguir isso fazer. Esta monografia pretende trazer uma contribuição ao estudo do tema educação, mesmo considerando o tradicionalismo constitucionalista, ressaltando a natureza do direito à educação como direito fundamental individual ou coletivo, não deixando de ser, todavia, um direito social como quer a doutrina e a própria letra da Carta Política no artigo 6º. Essa visão traz conseqüências relevantes na aplicação e defesa do direito à educação, porquanto a norma deixa de ser apenas um vetor para o legislador ou administrador, para transmudar-se em direito fundamental de aplicabilidade e eficácia imediatas. Pela mesma razão, há de se pensar no direito à educação como cláusula pétrea, insuscetível, portanto, de alteração que tenda a aboli-lo, ou mesmo restringi-lo. A Constituição Federal de 1988 dedicou considerável espaço à educação, à evidência representando a necessidade de educar nosso povo, para conseguirmos atingir o pleno desenvolvimento. Só a educação será capaz de permitir o exercício da cidadania, e só ela fará com que os brasileiros eliminem as gritantes desigualdades, das mais variadas ordens, que insistem em nos atingir. As desigualdades econômicas, sociais, intelectuais, raciais, entre sexos, enfim, qualquer delas, poderão ser enfrentadas e vencidas, se conseguirmos levar a educação a todos os brasileiros. A ignorância aprisiona o ser humano nas trevas da pobreza e do preconceito. A educação, ao contrário, liberta. Leva o ser humano a não só viver, mas fazê-lo com dignidade. A estrutura do Estado brasileiro é complexa. Um emaranhado de normas constitucionais e infraconstitucionais rege nossas ações neste território, confundindo- se em leis federais, estaduais e municipais, normas gerais e específicas, portarias e resoluções administrativas, pedindo o entendimento de todo o sistema com vantagem para a aplicação e exigência dos direitos. O estudo da forma federativa de Estado é imprescindível nesse contexto, levando à compreensão sobre quais normas pode ou não o Governo Federal expedir; e se elas estão baseadas nas normas gerais autorizadas pela Constituição. E quanto aos Estados, podem expedir normas que obrigam a quem? 1 - CONSTITUIÇÃO E EDUCAÇÃO 1.1 O QUE É A EDUCAÇÃO? Ao compararmos recém nascidos de espécies diferentes, notaremos que a maioria dos animais, pouco mais ou pouco menos, consegue sobreviver com muito menor ajuda dos pais que os humanos. A impressão primeira nos leva a creditar certa fragilidade do ser humano despreparado para a sobrevivência num mundo carregado de perigos, algo que não deixa de ser verdadeiro. Com efeito, a natureza foi econômica para o homem em relação aos instintos, sendo pródiga para os animais. Todavia, aquilo que parece ser fator de dificuldade para o ser humano, foi transformado, com o passar dos tempos, em necessidade de aprendizado e transferência dele, geração após geração, chegando mesmo a ser o mais relevante fator de sobrevivência da nossa espécie. Os seres humanos têm a característica fundamental de transmitir seus conhecimentos aos mais novos, quer enquanto pessoa para pessoa, quer como geração para geração. Essa transmissão traduz-se em instrumento fundamental para a transmissão da cultura e das próprias civilizações, permitindo que as agruras do meio ambiente sejam paulatinamente vencidas, com conquistas demoradas, mas seguras, transmitidas aos mais jovens. Ensina Emile Durkheim que a educação possui características básicas, a saber: necessidade da existência de uma geração adulta e outra geração de indivíduos jovens; que a geração adulta deve exercer uma ação em relação à geração mais jovem. Essa ação sendo exercida de modo a buscar certa homogeneidade entre seus membros, de modo a permitir a vida em sociedade. É com a ação educativa que nossos jovens recebem os conteúdos exigidos pela vida coletiva. Não voltamos este estudo para o tema educação como um todo, mas dirigindo-o aos aspectos jurídicos ligados ao tema. Bem por isso entendemos suficientes essas reduzidas considerações sobre a educação, finalizando com o conceito de Durkheim. 1.2 CONSTITUIÇÃO E DIREITO À EDUCAÇÃO Ao falar-se em sociedade, obrigatoriamente, aduz-se à juridicidade de sua organização. Sempre encontraremos uma estrutura mais ou menos complexa a dar forma à sociedade, e quando o foco é a sociedade política, a conjugação dos fins a que aspira com sua organização jurídica é o que dá forma ao Estado. Necessário um elemento para corporificar a vontade da sociedade e é esse que se chama Constituição, segundo Michel Temer, na qual se instalam os preceitos normativos que dão forma e identificam o Estado, a exemplo da sociedade cujos fins são comerciais, e a corporificação se dá pelo contrato social ou pelos estatutos. Para o estadista o poder constituinte é "a manifestação soberana de vontade de um ou alguns indivíduos capaz de fazer nascer um núcleo social". O poder constituinte, define os contornos e o particular modo de existência do próprio Estado que faz nascer, delineando, ainda, como serão produzidas outras normas, de escalão inferior, além dos direitos fundamentais do homem. E dentre esses direitosfundamentais estão os direitos sociais, incluindo o direito à educação. Erigida a patamar notável a educação em nosso sistema jurídico é dever do Estado em ofertá-la. Enfatizamos que não se trata de mera faculdade do Estado, mas obrigação imposta por aquele que tinha o poder de elaborar a Constituição Federal, é dizer, aquele que podia e traçou as linhas mestras do nosso ordenamento jurídico. 1.3 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 O constituinte de 1988 assumiu a importância que a Educação exerce na vida individual e coletiva, no desenvolvimento de uma sociedade. Podemos isso afirmar com base nas disposições constitucionais relativas ao tema, sobretudo, é claro, a Seção I do Capítulo III do Título VIII - Da Ordem Social. Começando no artigo 205 e chegando ao 214, a Educação é tratada de forma detalhada, cabendo ressaltar, todavia, que o tema não se exaure em tais disposições. Com efeito, desde o artigo 1º, particularmente com o inciso II - cidadania -, encontraremos uma relação direta com a educação, na medida em que ela visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania, além da qualificação para o trabalho. Depois, na leitura do artigo 6º verificamos que a educação é o primeiro dos direitos sociais elencados, juntamente com saúde, trabalho, segurança e outros, constituindo parte integrante dos direitos fundamentais do ser humano no Brasil. Segundo a doutrina constitucional, direitos sociais são verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória pelo Estado, cuja finalidade está na melhoria das condições de vida dos cidadãos, especialmente assegurando-lhes a igualdade social. José Afonso não destoa, acrescentando que os direitos sociais são dimensão dos direitos fundamentais do homem, acrescentando que as prestações positivas são proporcionadas pelo Estado - direta ou indiretamente - sempre visando a melhorar as condições de vida dos mais necessitados, com tendência a realizar a equalização de situações sociais desiguais. Ressaltando a característica de ser um dever do Estado, Celso Bastos anota que enquanto os direitos individuais impõem um não fazer ou um dever de abstenção, os direitos sociais, ao contrário, correspondem a uma imposição de deveres ao Poder Público, objetivando o desenvolvimento do ser humano, sobretudo os mais carentes. Neste passo, importante anotar que os direitos sociais ganharam relevância constitucional a partir da Constituição mexicana de 1917 e na Constituição alemã de Weimar, sem esquecer da Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (aprovada em 1918 pelo Congresso Panrusso dos Soviets), fundada nas teses socialistas de Marx, Engels e Lenin. Sabido que as constituições ou declarações de direitos anteriores (americana ou francesa, p. ex.) nasceram da necessidade de proteção do indivíduo contra o Estado. Esses direitos são chamados de 1ª geração, justamente pela condição de primeiro se colocarem na proteção do indivíduo. Todavia, percebeu-se logo depois que a proteção só alcançava aqueles que já estavam estabelecidos em categorias sociais ou econômicas mais elevadas. Aos trabalhadores e, de maneira geral, aos mais humildes, importava pouco a tal proteção contra o Estado, em favor de suas liberdades, porque sua condição econômica já os colocava em situação de absoluta desproteção, carecendo de meios para usufruir o direito de liberdade, v.g., pois seu tempo era totalmente preenchido com a atividade na indústria ou na agricultura, nas quais era usada a mão-de-obra barata e abundante. Constitui-se a partir de então, a segunda geração de direitos fundamentais. O Estado deixa de exercer apenas suas funções básicas de administração, para praticar políticas de atuação positiva, visando a diminuir a distância entre as classes sociais. No Brasil, a Constituição Federal de 1934 inaugurou a inscrição de um título específico da ordem econômica, ali alocando os direitos sociais. Na Constituição de 1988, os direitos sociais estão elencados em capítulo próprio, cotejando, sobretudo, os direitos dos trabalhadores, mas sem esquecer o direito à educação, à saúde, ao lazer, segurança e previdência, chegando à moradia, por força da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000. Em suma, disse o constituinte que o Estado brasileiro deve atuar positivamente para garantir aos brasileiros os direitos ali dispostos. Não passa despercebido que os direitos sociais se constituem em capítulo do Título II da Carta, justamente o que assenta os direitos e garantias fundamentais, juntamente com os direitos e deveres individuais (correspondendo aos direitos fundamentais de 1ª geração), a nacionalidade, os direitos políticos e os partidos, merecendo, bem por isso, maior atenção. Nesse passo, o direito à educação previsto no artigo 6º é norma constitucional de princípio programático. Todavia, há peculiaridades que tornam esse direito distinto dos demais. Senão vejamos: O § 2º do artigo 5º da Carta traz regra geral sobre a abrangência dos direitos e garantias, de forma expressa fazendo-os ultrapassar os estreitos limites do próprio artigo 5º. Com efeito, diz a norma, in verbis: os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Pois bem, o direito à educação não só está previsto na Constituição Federal como é parte integrante da Declaração Universal dos Direitos Humanos, igualmente como já citado. Tratamos do artigo XXVI que explicitamente fala no direito à instrução, mas outra disposição da Declaração, a vazada no artigo XXVIII merece atenção, in verbis: Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados. Essas disposições estão plenamente incorporadas ao nosso Direito por força da norma do § 2º do artigo 5º da Carta Política, cumprindo ressaltar que não é por outra razão que o constituinte colocou essa regra justamente no artigo que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos. Estes, por sua vez, estão sujeitos a outra regra de igual importância, aquela expressada no § 1º do mesmo artigo, in verbis: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Ora, se o direito à educação, ou à instrução como quer o tratado, está incorporado ao nosso Direito, e particularmente ao artigo 5º, por força da disposição prevista no seu § 2º, constitui-se, sem sombra de dúvida, direito individual também aplicável de imediato, tal como todas as normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata. É ainda o direito à educação, cláusula pétrea porque incluído dentre aqueles mencionados no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal, tudo isso sem prejuízo de poder-se afirmar que ele também se revela como direito social como reconhece a doutrina tradicional, pois pode ser reconhecido como integrante das duas categorias. Essa posição é defendida por Flávia Piovesan. Todavia, o reconhecimento do direito à educação como direito individual tem repercussão jurídica quanto à eficácia e aplicabilidade da norma constitucional por incorporação, inclusive em relação à titularidade subjetiva. Assim é que sendo um direito incorporado ao nosso ordenamento, com os mesmos atributos daqueles estampados no artigo 5º da Constituição Federal, possível até mesmo ao indivíduo buscar a satisfação desse seu interesse, de imediato, nos termos em que figura na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, sem precisar esperar que o Estado implemente o programa estabelecido nos artigos 6º ou 205 e seguintes da Carta Política, é dizer, sem ao menos a existência de lei ordinária sobreo assunto. Nesse sentido, o direito à educação está em igualdade de condições com o direito à vida, ao direito de liberdade, legalidade e todos os demais que figuram no rol aberto do artigo 5º. Podem atuar, ainda, os grupos ou categorias, as associações ou entes estatais personalizados, como o Ministério Público, na forma já vista, se utilizando para isso dos mecanismos colocados à disposição pela Constituição, como a ação civil pública, mandado de segurança - individual ou coletivo -, mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou a ainda incipiente argüição de descumprimento de preceito fundamental, dentre outros possíveis, tudo isso, repetimos, independentemente de lei ordinária introdutora de programa relacionado ao direito à educação. Nem se diga que ou o direito à educação está dentre aqueles classificados como sociais do artigo 6º, ou dentre os individuais elencados no artigo 5º, ambos da Constituição Federal. Isso porque não há impedimento de esse direito poder figurar tanto numa quanto noutra categoria, a exemplo da segurança que figura no caput de ambos os artigos de forma expressa. 2 - FEDERAÇÃO E DIREITO À EDUCAÇÃO 2.1 FEDERAÇÃO E UNIDADES FEDERATIVAS Antes de avançar nesse item, convém alertar que a federação possui estreita ligação com o direito à educação, muito embora possa parecer o contrário. É que a adoção dessa forma de Estado leva a conseqüências importantes como, v.g., a autonomia dos Estados-membros para ditar suas próprias Constituições locais, nas quais o tema educação aparece com elevado destaque. Depois, a organização dos sistemas de ensino na Constituição Federal revela que às unidades federadas foi fixada a competência para legislar sobre educação, respeitados certos limites estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, devendo ainda administrá-la, igualmente obedecida a autonomia municipal. A autonomia para elaborar suas Constituições e a repartição de competências aproxima o direito à educação da federação, razão de decidirmos incursionar, ainda que rapidamente, pelo tema. 2.2 BREVES LINHAS SOBRE A FEDERAçãO Pela simples leitura do artigo 1º da Constituição Federal é possível notar a importância dada pelo constituinte à Federação, ficando mantida uma tradição que vem desde a Proclamação da República, quando também assumimos essa forma de Estado. A Federação, como ensina Michel Temer, "(...) de foedus, foederis, significa aliança, pacto, união. Pois é da união, da aliança, do pacto entre Estados que ela nasce". Essa aliança, ao menos na forma como a conhecemos hodiernamente, leva-nos ao processo de desenvolvimento ocorrido nos Estados Unidos da América, vez que lá se desenvolveu e se aperfeiçoou, terminando por constituir-se no maior avanço em termos de teoria do Estado dos últimos tempos. No Brasil, o federalismo tomou direção oposta àquela adotada nos Estados Unidos da América, num movimento chamado centrífugo, no dizer de Michel Temer, ressaltando ainda que "a república não era o que mais almejavam alguns teóricos da revolução. A federação, esta sim, era o grande sonho daqueles que, conhecendo o sistema norte- americano, inspiravam-se nele para se insurgirem contra o unitarismo centralizador, fórmula que não atendia às necessidades da grande extensão geográfica brasileira". De fato, as condições geográficas do Brasil, aí incluídas as dimensões continentais e a dificuldade de penetração na Mata Atlântica, revelaram-se obstáculos às comunicações e transportes entre as regiões e o centro. Nota-se que a Federação brasileira, na gênese, é bastante distinta do modelo dito clássico - o norte-americano. Sabe-se que a instituição dos Estados Unidos da América decorreu da união de 13 colônias independentes na sua formação e desenvolvimento, até mesmo no trato das relações internacionais, permanecendo autônomas, uma vez firmada a Federação. Efetivamente, como já se disse, aqui não havia Estados soberanos que se uniram, mas sim um Estado Unitário que foi fragmentado sob o ponto de vista do poder político, carreando aos Estados-membros ou províncias autonomia e um feixe de competências próprias. Sem embargo, os artigos 1º, 2º e 3º do Decreto nº 1 diziam, in verbis: "Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira a República Federativa". O artigo seguinte dizia que as províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficavam constituindo os Estados Unidos do Brasil, acrescendo o art. 3º que "cada um desses Estados, no exercício da sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais". Como sabido, na Federação há a incidência de duas ordens jurídicas distintas sobre o mesmo povo e território, em contraposição ao Estado Unitário, onde uma só ordem jurídica se impõe. Efetivamente, só mesmo a existência de uma Constituição, instrumento formalizador do pacto ao qual aderiram os entes federativos, estabelecendo uma rígida divisão de competências, é que permite a coexistência dessas ordens jurídicas distintas, deitando efeitos sobre o mesmo povo; isso porque cada esfera de governo possuiu um leque de competências - legislativas e materiais - prévia e rigidamente fixadas no texto constitucional, evitando o conflito entre a União, os Estados-membros e os Municípios que, ocorrendo, deve ser dirimido por um órgão judiciário com assento na mesma Constituição (Supremo Tribunal Federal, no nosso caso). Desse modo, pode-se dizer que tanto a União como os Estados-membros e os Municípios retiram sua competência da própria Constituição e, rigorosamente, dentro daquilo que foi estabelecido, sendo-lhes vedado alterar tais regras, não existindo, portanto, nenhuma hierarquia entre eles. Por isso, é incorreto dizer que a lei federal sobrepõe-se à lei estadual ou à lei municipal. Isso, de fato, pode acontecer, mas nem sempre é verdadeiro, dado que a competência estabelecida na Constituição é que determinará qual delas é a válida, ou se ambas ou todas o são. Burdeau assevera que a federação está calcada em dois princípios que chamou de la loi de participation e la loi d'autonomie, referindo-se à participação dos Estados-membros na formação da vontade da União e a conservação de uma certa independência dos entes federados na gestão de seus negócios. 2.3. CONSTITUIçõES ESTADUAIS A auto-organização é uma das faces da autonomia dos entes federativos. Essa capacidade leva, necessariamente, a uma Constituição própria, já que é ela quem dá forma e organicidade interna aos entes federativos e seus órgãos públicos. Realmente, é para isso que se propõe inaugurar um corpo, dar-lhe organização, atribuir-lhe formas definidas e prever a elaboração de leis que disciplinarão o cumprimento de seus objetivos. O artigo 25 da CF determina que os estados devem organizar-se e reger-se pelas Constituições e leis que adotarem, desde que, por óbvio, observem os princípios da Carta Maior. Além disso, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta Política de 1988, dando forma à vontade do legislador constituinte federal, estabeleceu em seu artigo 11, in verbis: "Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos aos princípios desta". Portanto, devem as Constituições estaduais obedecer rigidamente aos princípios emanados da Carta Maior206, considerando-se estes os definidos de forma geral (v.g.: art. 1º, art. 5º, art. 150, etc. da CF), bem assim aqueles expressamente enumerados no artigo 34. 2.3.1 COMPETêNCIAS EM MATéRIA DE DIREITO DA EDUCAçãO À União é reservada a competência legislativa para matérias relativas as diretrizes e basesda educação nacional. Não obstante, essa competência material é partilhada com os demais entes federativos, devendo todos observar o comando constitucional. Assim é aquela definida no artigo 23 e seus incisos, dado que tanto a União como Estados, Distrito Federal e Municípios devem zelar pela guarda da Carta Política; ou proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência. De notar-se que a atuação de um dos entes não exclui ou impede a atuação do outro. Deve ser mencionada ainda, conforme ensina José Afonso, a existência da competência legislativa suplementar, conferida aos Estados e aos Municípios. No dizer do constitucionalista "... é correlativa da competência concorrente, e significa o poder de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou normas gerais ou que supram a ausência ou omissão destas (artigo 24, §§ 1º a 4º)"226. Também é exemplo da competência legislativa suplementar o artigo 30, inciso II, da Constituição Federal, in verbis: "Compete aos Municípios: suplementar a legislação federal e a estadual no que couber". Exemplarmente, a alimentação servida em escolas públicas segue a produção local de alimentos, ou dietiza problemas de saúde pública na sua circunscrição. É preciso dizer que à União compete legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao Distrito Federal não cabe legislar fora dos princípios da Constituição Federal. 3. EDUCAçãO NA CONSTITUIçãO DE 1988 Inicia o artigo 205 proclamando que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, distribuindo a responsabilidade do encargo e afirmando que nem só nas escolas (formais) se educa, mas também no lar. Esse tipo de educação, como ensina Celso de Mello, "é mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando". Esse conceito jurídico da educação está totalmente agasalhado na norma, ao declarar que ela visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Demais disso, a Constituição Federal exige que a educação seja promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, desnudando como o Constituinte viu a educação - é dizer - para ele não se trata de mera escolarização, mas de algo maior, mais abrangente e que leve aos objetivos propostos. Portanto, desde logo se afirma: educação não se faz exclusivamente em escola, mas em casa e no seio da própria sociedade. Ademais, qualificar o ser humano para o trabalho é, sem dúvida, uma finalidade da educação, pois vem se notando que o setor produtivo está passando por radicais mudanças, extinguindo um elevado número de empregos (ou funções), criando poucos em seu lugar. A modernização da agricultura, da indústria, do comércio e dos serviços está levando à automatização dos meios de produção, em detrimento da mão-de-obra, impondo um redirecionamento de atividades. Esse processo exige treinamento dos anteriores empregados e educação dirigida para os jovens. Aí a estrita colaboração da sociedade que pode destinar recursos para essa finalidade, a exemplo do chamado sistema "S" (SENAI, SENAC, SESC, e outros). Não ficam atrás outras entidades de caráter filantrópico que mantêm inúmeras atividades educacionais não formais. Assim é que o efetivo exercício da cidadania, que se busca pela educação ampla, leva o indivíduo a exigir do Estado respeito à dignidade da pessoa humana, elevando os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, permitindo além de tudo e com isso o pluralismo político. Daí podermos chegar aos objetivos da República Federativa do Brasil determinados pelo Constituinte, ou seja, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No caput do artigo 205 o Estado chamou para si o dever de propiciar a educação, exercido também pela família e com a colaboração e incentivo da sociedade. Os princípios segundo os quais o ensino será ministrado estão descritos em sete incisos, não ficando adstritos a esses, contudo. A igualdade de condições para o acesso e permanência na escola significa a universalização do ensino, permitindo a todos, de igual modo, matricular-se com o oferecimento de todas as condições necessárias para o aprendiz chegar ao final do programa. Se o Estado chamou para si o dever, o fará em estabelecimentos oficiais e na forma determinada no inciso IV do artigo 206: gratuitamente. Apenas subsidiariamente a iniciativa privada atuará nesse campo, já que a opção do Constituinte foi pela educação como dever do Estado. A liberdade de cátedra vem assegurada no inciso II do artigo 206, dada a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Moraes afirma que "... a liberdade de cátedra é um direito do professor, que poderá livremente exteriorizar seus ensinamentos aos alunos, sem qualquer ingerência administrativa, ressalvada, porém, a possibilidade da fixação do currículo escolar pelo órgão competente". De fato, o professor não pode pretender ensinar aquilo que entende pertinente, ao seu exclusivo talante. A liberdade é de ensinar, de transmitir, de exteriorizar seus pensamentos aos alunos, não de fixar conteúdos. Até como decorrência das liberdades declaradas atrás, está o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, fixada no inciso III, ao lado de princípio segundo o qual devem coexistir as instituições públicas e privadas de ensino, impossibilitando o monopólio de qualquer delas. Quanto ao primado da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, não há discriminação quanto a ensino fundamental, médio ou superior ou outro, existindo, contudo, expressa exceção na norma do artigo 242 da Carta, permitindo o ensino pago para as instituições de ensino, estaduais ou municipais (portanto, de ensino fundamental, médio ou superior), criadas por lei até a data da promulgação da Constituição e que não sejam, total ou preponderantemente, mantidas com recursos públicos. É muito relevante esse princípio, segundo entendemos, porque vez por outra se ouve aqui e ali, de uma ou outra autoridade governamental, a "necessidade" de introduzir a cobrança no ensino público. Por defendermos o entendimento segundo o qual o direito à educação - como um todo - é direito fundamental individual, como já nos referimos pouco atrás, pensamos que inviável a alteração constitucional necessária, cláusula pétrea que é todo o capítulo relativo à educação. Esse mesmo artigo traz outras disposições relativas ao ensino, referindo-se ao ensino da História do Brasil, por exemplo. Por seu turno, à iniciativa privada foi conferida liberdade para atuar no ensino, condicionado, contudo, ao cumprimento das normas gerais da educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. O dever do Estado em relação à educação deve ser efetivado obedecendo às garantias oferecidas aos indivíduos, consubstanciadas em ensino fundamental obrigatório e gratuito a todos, inclusive para aqueles que não tiveram tal oferecimento na idade própria; em língua portuguesa, salvo em relação às comunidades indígenas, que poderão utilizar, também, suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem; bem como o ensino religioso, de matrícula facultativa (art. 210, §§ 1º e 2º), oferecendo-lhe programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (inciso VII), dado que não basta disponibilizar a sala de aula, mas necessário dar condições efetivas para se promover o ensinofundamental. É a universalização do ensino fundamental combinada com a progressiva universalização do ensino médio (inciso III do artigo 208). Previu o Texto a responsabilização da autoridade competente no caso de descumprimento da obrigatoriedade de oferecimento de ensino fundamental, na forma disposta na Constituição Federal, bem assim o dever de incentivar e acompanhar a freqüência, zelando para isso com os pais. Nesse particular, recentemente foi editada a Lei nº 10.287, de 20 de setembro de 2001, que altera o inciso VII do art. 12 da Lei nº 9.394/96 (LDB). Determina a lei modificadora que o inciso terá a seguinte redação, in verbis: "Notificar ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem quantidade de faltas acima de cinqüenta por cento do percentual permitido em lei". Na redação original, os estabelecimentos de ensino tinham a obrigação de informar apenas os pais ou responsáveis. Agora, com a notificação dos órgãos mencionados, certamente estará mais bem atendido o espírito da Constituição Federal. Previu-se ainda a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiências, afirmando-se claramente a opção constitucional pela educação inclusiva. Também se cuidou do atendimento às crianças de zero a seis anos, em creches e pré-escolas, mais uma vez apontando na direção segundo a qual educação como dever do Estado é mais abrangente que o mero ensino, porque ninguém dirá que creche é escola, ao menos no sentido formal. A progressão aos níveis mais elevados se dará segundo a capacidade de cada um, e será ofertado ensino noturno, regular, adequado às condições do educando, é dizer, respeitando-se a diferença entre aquele que recebe a educação após um dia de serviço. No que tange à autonomia universitária, agora elevada ao status constitucional por força do artigo 207, nota-se que gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, devendo, todavia, obedecer ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Com efeito, a universidade deve não só transmitir o saber como ir à busca dele, pesquisando. Deve ainda devolver à sociedade e à comunidade externa, na forma de atividades de extensão, parcela daquilo que adquiriu como conhecimento. Depois de discorrer sobre esse tema, Nina Ranieri conceitua: "A autonomia universitária consiste em poder derivado funcional, circunscrito ao que é próprio à entidade que o detém e limitado pelo ordenamento geral em que se insere, sem o qual, ou fora do qual, não existiria". Convém ressaltar que o Constituinte derivado solucionou antiga dúvida sobre a possibilidade ou não de contratação de professores, técnicos e cientistas estrangeiros, estando agora, por força dos §§ 1º e 2º acrescentados ao art. 207 pela Emenda Constitucional nº 11, autorizada também para as instituições de pesquisa científica e tecnológica. 3.1 PROVISÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA Disposições de inegável conteúdo prático revelam-se os incisos trazidos pela Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, permitindo a intervenção da União nos Estados e Distrito Federal, e dos Estados em relação aos Municípios caso deixem de aplicar o mínimo exigido da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Essas disposições encontram estreita relação com a norma do artigo 212 da Carta Política, que determina à União a aplicação de não menos de 18% e aos Estados, Distrito Federal e Municípios, nada inferior a 25% da receita resultante de impostos, inclusive transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Essa disposição é exceção à regra do artigo 167, inciso IV, da Constituição Federal, que veda vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvada, dentre outros, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino. Finalmente uma palavra sobre o artigo 214 da Constituição Federal, referindo-se à determinação de edição de lei a estabelecer o plano nacional de educação, com duração plurianual e que vise à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público, devendo conduzir à erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento escolar, melhoria da qualidade de ensino, formação para o trabalho e promoção humanística, científica e tecnológica do País. O plano nasce com a Lei nº 10.172, de 10 de janeiro de 2001, consistindo num complexo diploma normativo com apenas sete artigos e poucos parágrafos, mas com volumoso anexo no qual são detalhados os pontos mencionados no corpo da lei. Esse anexo contém uma introdução, incluindo histórico, objetivos e prioridades. Depois trata dos diversos níveis de ensino - educação básica, fundamental, média e educação superior. Cuida das modalidades de ensino, como a educação de jovens e adultos, educação a distância e tecnologias educacionais, educação tecnológica e formação profissional, educação especial e indígena. Fala ainda do magistério da educação básica, inclusive formação dos professores e valorização do magistério; cuida do financiamento e da gestão e, finalmente, do acompanhamento e avaliação do plano. O anexo traz um elenco de 26 tabelas que ajudam a compreender a educação no Brasil.
Compartilhar