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1 Publicado em: Maria Beatriz Rocha-Trindade (org.), Migrações, Permanências e Diversidades, Porto, Edições Afrontamento, 2009, pp. 269-279. O Espontâneo e o Construído nas Memórias dos Migrantes Maria Isabel João (Universidade Aberta/CEMRI) O conceito de migrantes envolve um vasto leque de situações. Na sua origem latina, o termo migratio está ligado à deslocação de indivíduos e de grupos humanos de um lugar para outro e implica a mudança de residência. A transferência dos seres no espaço faz parte integrante da ideia de migração, mas esta pode ser interna ou externo. São conhecidas múltiplas formas de migrações internas, de carácter permanente ou sazonal. Todavia, as que estão melhor estudadas são as migrações do meio rural para o meio urbano. Por um lado, trata-se de uma ruptura importante na vida das pessoas que acarreta transformações na forma de ser e de estar, com consequências marcantes nas identidades colectivas; por outro lado, é um fenómeno que, desde épocas recuadas, sempre despertou a imaginação humana e que está associado à ideia da construção do cidadão e do exercício da cidadania. Não esqueçamos o provérbio medieval alemão que afirmava que “o ar da cidade liberta o homem”. Nem sempre libertará, na verdade, mas pelo menos contribui decisivamente para a recomposição das memórias e das identidades. O mesmo acontece quando os indivíduos mudam de país, assumindo a dupla condição de emigrante, em relação ao local de proveniência, e de imigrante, no lugar de acolhimento. Essas duas designações, só por si, já são indicadoras da dupla condição daqueles que partiram das suas terras natais, dos seus países, para outros lugares onde vão ter de se adaptar e de viver. A sua condição humana será marcada, a partir daí, por uma dualidade que lhes molda as vivências, os sentimentos, as memórias e os imaginários. Agradeço à Professora Maria Beatriz Rocha-Trindade a sugestão para reflectir sobre os problemas das memórias e migrações, dedicando-lhe esta comunicação que muito deve aos seus ensinamentos. 2 A memória autobiográfica É sabido que a memória se apoia no espaço. Basta recordar que a arte da oratória, desde o período medieval, recorria a um quadro de referências em que a casa desempenhava um papel importante no processo mnemónico. A casa é o lugar de acolhimento do ser humano, o espaço do refúgio e da segurança. Podemos entendê-la no sentido estrito, do edifício, do património e do espaço da família, do lar, como se diria com mais propriedade, mas a casa tem sido também utilizada como uma metáfora para significar tudo aquilo que nos prende a determinados lugares, sejam eles a terra de Fig. 1 Família de emigrantes portugueses, de origem terceirense, no Rio de Janeiro 1 . origem ou a nação. Aliás, já tinha sido feita a associação entre a ideia da nação e da fratria, que irmanaria todos os seus membros numa comunidade com um sentimento colectivo de unidade e de identidade, mas José Manuel Sobral notou a relação que é possível estabelecer com a casa que funciona como uma das fontes que permite 1 As figuras de 1 a 4 pertencem à colecção de Carlos Enes que gentilmente as cedeu para ilustração. 3 imaginar a nação2. A dualidade da condição do migrante que, por vezes, se torna ainda mais plural, quando as ligações se estabelecem com múltiplos lugares, conduz a que para sempre o seu espaço fique espartilhado por vários sítios e a sua memória tenha de ser (re)construída ancorando-se em diversos pontos de referência. Um dos pontos, geralmente, fundamental é o da terra de origem que, no caso português, se prende com a pequena aldeia donde muitos emigrantes partiram, com a ilha, tratando-se dos arquipélagos, e com Portugal. O lugar donde um dia, por circunstâncias sócio-económicas ou políticas, foram obrigados a emigrar fica associado a um tempo de miséria e de sofrimento, mas também ao tempo dos verdes anos em que a esperança era dominante e os sonhos ainda faziam sorrir a alma. Por isso, esse sítio cristaliza-se na memória num tempo de saudade, cujos contornos são recriados em narrativas quase míticas onde os momentos mais felizes, do convívio, do namoro, das festas e das romarias, ficam como sinais luminosos de uma existência e de um lugar ao qual se deseja regressar. Na mente de Manuel da Bouça, personagem central do romance Emigrantes, de Ferreira de Castro, recorta-se nítida a sua aldeia: “(…) em cada curva uma recordação da infância, uma saudade da adolescência: o primeiro diálogo de um namoro, o assalto ao pomar do Serrado, o jogo do botão com o filho do Pisco…”Que seria feito dele?” Desenhava-se todo o vale, a freguesia inteira, as casas àquela hora empenachadas de fumo, para arranjo do caldo, e, lá em baixo, a igreja velha, com o passal ao lado, onde já não residia o senhor abade. E nascia-lhe uma tristeza, desejo profundo de regressar, saudade nunca sentida tão intensamente. O sol de Portugal parecia-lhe, agora, mais branco e evocava-o a entrar-lhe pelas portas e janelas, a espairecer no quintal, a cobrir a aldeia inteira.“Naquele dia em que a Amélia punha maçãs em redor do forro, entrava tanto sol em casa!”3 Estas memórias do passado distante são uma garantia da continuidade, da permanência de um ser que se foi transformando, mas que se conserva nos registos esparsos que formam as recordações. A necessidade da conservação é inerente a toda a memória humana, mas ganha uma particular acutilância na situação dos emigrantes. Por isso, cada retorno ao país de origem é, normalmente, sentido como um regresso a casa, a 2 José Manuel Sobral, “Da casa à nação: passado, memória, identidade” in Etnográfica, vol. VII (1), 1999. 3 Ferreira de Castro, Emigrantes, s. l., Guimarães & Cª, s. d., p. 197. 4 qual se procura reencontrar como quando se partiu, intacta na imaginada pureza, luzente, coalhada no rosto da sua gente e no modo do viver. Porém, as sociedades mudam e os próprios indivíduos não ficam incólumes à passagem dos anos. Além disso, ficam para sempre divididos entre cá e lá. É o que acontece ao João Caracol, personagem do romance de Carlos Enes, Terra do Bravo, emigrante na América, quando volta à ilha: “Nos primeiros dias, João Caracol andava eufórico. “Até parece meio aloicado”, comentou tia Luísa. Correu as canadas todas, guindou paredes dos cerrados para sentir o cheiro da bosta da rês e do marrôlho, encheu o peito de ar em cima da rocha, abraçou os respingos da maresia, comeu lapas com pão de milho, bebeu vinho de cheiro e leite fresco das vacas. Depois de matar as saudades, voltou a ficar impaciente. Era um estar e não estar, sem solução à vista.” 4 Também o Manuel da Bouça, já mencionado, se entristece na hora do regresso: “Evolara-se totalmente a satisfação que ele havia imaginado ao previver a hora da partida. Agora que ia abandoná-la, a terra de exílio ligava-se-lhe por uma suave melancolia, como por uma saudade que ele viria a sofrer – uma saudade da terra e de quem nela vivia (…)” 5. O reencontro com a aldeia donde partira é uma surpresa, e para si pensa: “Como tudo estava mudado! Ir ao Brasil era como se um homem morresse e ressuscitasse muito tempo depois”6. 4 Carlos Enes, Terra do Bravo, s. l., InstitutoAçoriano de Cultura, 2005, p. 66. 5 Ferreira de Castro, Idem, p. 253. 6 Ibidem, p. 262. 5 Fig. 2 - Emigrantes açorianos na Califórnia nos anos 20, do século XX. Estas memórias íntimas dos lugares, das pessoas passam a fazer parte da totalidade complexa que constitui o ser migrante. Formam uma memória autobiográfica em que os momentos mais fortes estão associados à partida, ao primeiro encontro com a terra de acolhimento, ao hotel dos imigrantes por onde muitos passaram e que, hoje, na cidade de Buenos Aires, por exemplo, deu lugar ao Museu da Imigração, ao trabalho, aos factos mais privados da vida dos indivíduos e das famílias. A memória tricota todos esses momentos da vida dos seres humanos numa malha narrativa que se vai fazendo e refazendo ao longo da existência. Muitas vezes, passa mesmo para as outras gerações e deixa uma marca indelével no imaginário dos descendentes. Não me esqueço de uma visita ao Brasil, em que uma colega, jovem professora de História, não descansou enquanto não conseguiu ir visitar os lugares onde o avô tinha vivido. Reconheceu as ruas, pelos nomes, pelas histórias que tinha ouvido contar, e conseguiu identificar, já arruinada, a casa onde o seu antepassado tinha tido uma loja comercial. Deste modo, os relatos de vida são partilhados e integram-se na história das famílias e mesmo das comunidades. A memória autobiográfica não se constrói sem a colaboração dos círculos de sociabilidade em que o indivíduo está integrado e com os quais partilha experiências, afectos, vivências. A memória é eminentemente social e precisa de âncoras, de pontos de apoio para se organizar e manter activa. Sem isso, como demonstraram os trabalhos 6 sociológicos de Maurice Halbwachs 7 , nos anos 20 e 30, do século XX, os indivíduos têm dificuldade em recordar e as suas memórias vão sendo cada vez mais diluídas pelo decurso do tempo, tornando-se na maioria evanescentes. Os trabalhos mais recentes, na linha do filósofo Paul Ricoeur 8 , têm demonstrado a importância da função narrativa na manutenção da memória. As histórias que aquele avô emigrante contou à neta permitiram-lhe manter vivas as lembranças de uma cidade, o Rio de Janeiro, onde residira durante várias décadas e de um tempo que talvez tenha sido feliz para ele. Recordam-se menos os períodos tristes e ainda é menor a vontade de contá-los aos outros. Estas memórias ligadas ao percurso da vida de cada um são geralmente espontâneas, isto é, ocorrem de forma voluntária e por impulso próprio. Porém, a necessidade de contar aos outros e as solicitações dos que estão próximos contribuem, de forma decisiva, para o exercício da memória que é indispensável para manter as recordações. Estas, por sua vez, vão mesclando factos vividos com situações imaginadas ou reconstruídas em confronto com novas experiências dos indivíduos. A distância temporal e espacial contribui, como é natural, para reinventar o passado e a sociedade de origem ou de acolhimento. A memória autobiográfica circunscreve-se ao universo da vida pessoal e é essencial para definir a pertença do indivíduo aos lugares e aos meios sociais, nos quais se vai inserindo ao longo da sua existência. É uma memória de si, que não pode ser dissociada dos múltiplos lugares de pertença e de identificação que conferem espessura e complexidade aos indivíduos. Os seres humanos são plurais e formam, para utilizar uma expressão de Edgar Morin, uma unitas multiplex 9 que reúne, num equilíbrio que se renova ao longo da vida, várias condições: a do género, masculino ou feminino, a civil, de solteiro, casado, divorciado ou viúvo, a da classe social, a do grupo profissional, a dos lugares que habita, a da religião que professa, a da ideologia que partilha com outros, a da nacionalidade ou, no plural, das nacionalidades a que pertence, entre outras condições que poderíamos ainda enumerar. A condição de migrante confere-lhe uma identificação própria e memórias que passam a fazer parte do seu ser e da sua forma de estar. Não só a língua materna se mescla de vocábulos e de expressões estrangeiras, mas também os comportamentos e atitudes se transformam em contacto com outras 7 Vide Maurice Halbwachs, La Mémoire Collective, 2ª éd. revue et augmenté, Paris, PUF, 1968, entre outros trabalhos igualmente importantes para mostrar a dimensão social das memórias. 8 Vide Paul Ricoeur, La mémoire, l´histoire et l’oubli, Paris, Éditions du Seuil, 2000. 9 Cf. Edgar Morin, Penser l’Europe, Paris, Gallimard, 1987. 7 culturas 10 . Quando voltam, trazem consigo, por um misto de ostentação e de novas necessidades criadas em contacto com outras comodidades, mobílias e objectos de uso quotidiano ou de decoração, que vão rechear casas que imitam arquitecturas estranhas. A memória colectiva Diferente da memória autobiográfica é aquela que se prende com símbolos, tradições, ideias e valores que são acalentados por uma comunidade como elementos da sua identidade. Esta memória colectiva precisa de lugares de memória, na acepção definida por Pierre Nora 11 , para se perpetuar, para se reinventar e, deste modo, continuar viva e actuante nas sociedades. Na situação dos migrantes, deslocados da terra de origem e, muitas vezes, com dificuldade de integração nos países de acolhimento, a necessidade de manter laços com os patrícios e de encontrar formas de recriação das suas tradições é ainda mais forte. A tradição, como mostrou Eric Hobsbawm, é uma invenção, nalguns casos até recente 12 , que funciona como uma forma de materialização da memória em gestos, práticas, rituais colectivos que transmitem uma noção de perpetuidade, de proximidade e são sinais de identificação da comunidade. A mais importante das tradições é a própria língua, veículo de comunicação e símbolo poderoso de identificação etnocultural, a sua preservação no seio das famílias e das comunidades de imigrantes requer um esforço deliberado para se manter viva, sobretudo nas segundas gerações. As mulheres desempenham, nesse processo, um papel importante no seio das famílias, mas as associações, os locais de encontro e de convívio, bem como a expansão dos meios de comunicação social, a imprensa, a rádio, os canais de televisão e, hoje em dia, a Internet têm um papel importante na manutenção da língua de origem. O Estado também contribui para esse esforço, mantendo o ensino da língua nacional nalguns países onde o número de concidadãos justifica o investimento. Porém, os países americanos que foram forjados pela emigração maciça de populações do mundo inteiro mostram como há uma tendência para que se perca a capacidade de 10 Ver Maria Beatriz Rocha Trindade, « Sobrevivência e progresso de uma aldeia despovoada» in Geographica, Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, nº 35, Ano IX, Julho de 1973, pp. 3-23; Idem, “Queiriga revisitada” in Emigração e Retorno na Região Centro, Coimbra, Comissão de Coordenação da Região Centro, 1984, pp. 149-167. 11 O conceito de lugar de memória foi definido por Pierre Nora: “unité significative, d’ordre matériel ou idéal, dont la volonté des hommes ou le travail du temps a fait un élément symbolique d’une quelconque communauté” - Pierre Nora, (dir.), Les Lieux de la Mémoire, Tomo III, Paris, Gallimard, 1992, p. 1104. 12 Eric Hobsbawm and Terence Ranger, The Invention of Tradition, Cambridge, University Press, 1993. 8 comunicar na língua original da família, depois de várias gerações. O cruzamento dosindivíduos e das famílias, a sua integração na nova sociedade, a natural necessidade de se identificarem com o meio em que vivem e mesmo de ascensão social, em que o domínio perfeito da língua do país de acolhimento é indispensável, concorrem para que a língua deixe de ser falada por muitos membros das gerações mais jovens. A língua é algo vivo que se cria e recria no dia-a-dia das comunidades, por isso a expressão linguística dos migrantes mescla-se de hibridações semânticas e sintácticas, ao mesmo tempo que mantém formas de dizer que, entretanto, já não estão em uso no próprio país de origem ou ignora outras que entraram na linguagem corrente dos seus compatriotas. Apesar desta permanente transformação que sofrem as comunidades migrantes, os sujeitos sentem uma real necessidade de manter as raízes e os discursos sobre a identidade acentuam as origens, as tradições, o passado colectivo. Eles são as âncoras que conferem um sentimento de unidade e de identificação da comunidade que se afirma, perante os outros, através das associações ou das casas. E, mais uma vez, nos reencontramos com a metáfora da casa como lugar de memória e de identificação colectiva: a Casa de Portugal, a Casa Regional ou a Casa do Concelho são as mais comuns e expressam bem as várias dimensões da identificação territorial que, numa escala micro, se reduz à própria aldeia. Num plano geral, as associações são espaços de sociabilidade, eventualmente de solidariedade activa com os conterrâneos, e, sobretudo, lugares onde se recriam as tradições, através dos encontros gastronómicos, do folclore, dos espectáculos, dos jogos, dos desportos. A sua função primordial liga-se, portanto, com a memória, mas naturalmente não se pode parar no tempo e através das suas actividades reinventam-se tradições, reformulam-se ideias e acabam por se aceitar novos valores. O carácter conservador que muitas vezes assumem as associações de migrantes não significa que os seus membros e as próprias organizações não estejam sujeitos a mudanças que se traduzem em renovadas atitudes, comportamentos e práticas. A gastronomia desempenha, como se sabe, um papel muito importante na memória e nos processos de identificação colectiva. Por um lado, comer é um acto essencial para a vida, mobiliza quase todos os sentidos e, por outro lado, tem uma forte carga histórico-cultural. O chamado “mercado da saudade” tem uma considerável expansão em vários países e, se no passado, nos habituámos a exportar para os nossos emigrantes os produtos a que estavam habituados, hoje em dia abre-se outra oportunidade de negócio que é a importação dos géneros dos imigrantes que vivem em 9 Portugal. A gastronomia original conserva-se no seio das famílias, mas é também um pretexto para muitos encontros dos migrantes e uma componente imprescindível das festas. Porém, como tudo o resto, está sujeita a hibridações e a transformações que recriam os pratos originais ou introduzem novos hábitos de consumo alimentar, o que actualmente é um fenómeno de âmbito mundial. Fig. 3 Festas do Espírito Santo, São José, Califórnia, nos anos 20, do século XX. Os dias festivos são outro factor importante de socialização e de afirmação dos valores da comunidade. As festas assumem um misto de carácter religioso e profano, como nas Festas do Espírito Santo recriadas pelas comunidades açorianas na América. O dia 10 de Junho apresenta, no contexto dos festejos laicos, um lugar especial pela importância que lhe tem sido atribuída pelo próprio Estado que passou a designá-lo como o Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, em 1977 13 . Muitas cerimónias são oficiais e decorrem nas embaixadas e consulados, mas as associações também costumam recordar a data com celebrações especiais. A evocação da história do país e, em particular, da gesta dos descobrimentos e da expansão mobiliza as atenções nesse dia, repercutindo nos meios de comunicação social. A idade de ouro da nação está associada à obra épica de Luís de Camões e a ritualização da sua memória remonta ao século XIX, ao tricentenário da sua morte celebrado em 1880. Daí a 13 Maria Beatriz Rocha-Trindade, “O diálogo instituído” in Nova Renascença, Julho-Setembro de 1984, pp. 229-245. 10 longevidade desta comemoração, a sua continuidade ao longo de vários regimes políticos e, na era pós-colonial, a reconfiguração dos discursos comemorativos para a diáspora dos portugueses pelo mundo. Os Lusíadas, ensinados nas escolas, tornaram-se num lugar de memória da nação, bem como a celebração do 10 de Junho que, naturalmente, repercute nas comunidades dos emigrantes portugueses. Fig. 4 - Comemorações do 10 de Junho, em Providence, e recolha de fundos para os sinistrados do sismo de 1926, no Faial e Pico. No caso português, as festas dos emigrantes também se realizam no país, em diversas zonas, sobretudo durante o mês de Agosto 14 . Aliás, várias festas tradicionais ligadas aos feriados municipais foram transferidas para este mês, de modo a captarem os emigrantes. As razões de ordem comercial e turísticas marcam estas decisões das vereações camarárias, mas representam também o reconhecimento da importância dos emigrantes em muitas regiões do país. Surge mesmo a Nossa Senhora dos Emigrantes ao lado de outros santos populares, como Santo António. As festas estão ligadas a memórias da juventude, a momentos geralmente alegres e são um atractivo para os emigrantes que vêm de férias. Através delas convive-se, reencontram-se amigos e 14 Maria Beatriz Rocha-Trindade, “A presença dos ausentes” in Sociedade e Teritório, Revista de Estudos Urbanos e Regionais, nº 8, Ano 3, Fevereiro 1989, p. 10-12. 11 conhecidos de outros tempos e, sobretudo, mantém-se viva a ligação à terra de origem e a algumas das suas tradições. Apesar de essas tradições poderem ser relativamente recentes, nalguns casos, e de terem de ser reajustadas as datas dos festejos para integrarem todos os conterrâneos. Fig. 5 Festas em Honra de Santo António e de Nossa Senhora dos Emigrantes, Portela Susã – Viana do Castelo, Agosto de 2005 15 . Outra manifestação simbólica que vem assumindo, sobretudo desde os anos 80, do século XX, uma importância significativa é a realização dos monumentos aos emigrantes. Não possuímos um levantamento exaustivo, difícil de realizar individualmente, mas mesmo assim temos notícia de diversos monumentos deste género: em Terras do Bouro, no Gerês, no concelho do Sabugal, no alto do monte de São Félix, no concelho da Póvoa do Varzim, na Murtosa, numa freguesia de Cantanhede, noutra de Oliveira de Azeméis, na vila da Batalha, na Erada, no Sul da serra da Estrela, em Cabeceiras de Basto, em Tondela, no parque José Afonso, na Baixa da Banheira, na cidade de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, junto da estação de Monumentos aos Emigrantes Portugueses 16 15 Sítio da Internet: http://portelasusaonline.no.sapo.pt/extras/capa_05.jpg, capturada a 10 de Julho de 2007. 16 Sítios da Internet: http://www.ocomboio.net/NewFiles/lx-emigrante-1.JPG; http://www.bragancanet.pt/acdzedes/zedes1.htm; http://www.monumentoaoemigrante.com.br/, capturados a 10 de Julho de 2007. 12 Fig. 6 - Santa Apolónia, Lisboa Fig. 7 - Zedes,Carrazeda de Ansiães Fig. 8 - Laundos, Póvoa do Varzim Santa Apolónia, em Lisboa, donde tantos partiram no Sud Express rumo ao Norte da Europa. Através destes monumentos, as comunidades prestam homenagem aos emigrantes e recordam o sofrimento e, sobretudo, a coragem dos que um dia partiram. Há um certo tom épico em muitas destas estátuas que representam homens, porque eram eles os primeiros a partir, ou famílias inteiras, com as suas trouxas e malas de cartão. Na singeleza de uma pedra gravada, a freguesia de Zedes, no concelho de Carrazeda de Ansiães, afirma: “O Emigrante – O Maior Tesouro Português”. E no monumento da freguesia de Laundos, no concelho da Póvoa do Varzim, faz-se uma associação entre a emigração e a epopeia nacional das navegações e conquistas através da esfera armilar e da Cruz de Cristo que encima o monumento. A memória das migrações está presente, de forma difusa, em múltiplas manifestações culturais da sociedade portuguesa. Nas artes, na literatura, na música e, recentemente, numa série documental de qualidade que foi realizada pelos jornalistas Jacinto Godinho, Fernanda Bizarro e Paulo Costa com o título: Ei-los que Partem – História da Emigração Portuguesa. As narrativas literárias ou historiográficas não se pode afirmar que sejam muito abundantes, mas existem em número suficiente para ter impacte na forma como uma parte dos portugueses imagina a saga das migrações. Neste aspecto, a sociedade alimenta-se das narrações e das memórias dos migrantes e, ao mesmo tempo, contribui para reconfigurá-las e valorizá-las, depois da ditadura ter procurado, através do silêncio, escamotear uma realidade que chegou a atingir proporções alarmantes. Somente após a implantação da democracia houve condições 13 para se realizar um Museu da Emigração em Portugal que, em boa hora, foi apadrinhado pela Câmara Municipal de Fafe. Um museu deste tipo tem de se abrir ao exterior do concelho e adquirir um gabarito nacional e mesmo internacional, porque ele é o testemunho e a memória de uma parte fundamental da história da nação. O caminho que está a ser trilhado aponta nessa direcção e esperamos que os descendentes dos emigrantes e os portugueses, em geral, possam encontrar, no espaço físico e virtual do museu, atractivos suficientes para que não se percam as memórias. Estas só são verdadeiras memórias na medida em que os seres humanos as interiorizam, as transmitem e as partilham entre si. Bibliografia citada: ENES, Carlos, Terra do Bravo, s. l., Instituto Açoriano de Cultura, 2005. FERREIRA DE CASTRO, Emigrantes, s. l., Guimarães & Cª, s. d. HALBWACHS, Maurice, La Mémoire Collective, 2ª éd. revue et augmenté, Paris, PUF, 1968. HOBSBAWM, Eric and RANGER, Terence, The Invention of Tradition, Cambridge, University Press, 1993. MORIN, Edgar, Penser l’Europe, Paris, Gallimard, 1987. NORA, Pierre, (dir.), Les Lieux de la Mémoire, Tomo III, Paris, Gallimard, 1992. RICOEUR, Paul, La mémoire, l´histoire et l’oubli, Paris, Éditions du Seuil, 2000. ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz, “O diálogo instituído” in Nova Renascença, Julho-Setembro de 1984, pp. 229-245. IDEM, «Sobrevivência e progresso de uma aldeia despovoada» in Geographica, Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, nº 35, Ano IX, Julho de 1973, pp. 3-23. IDEM, “Queiriga revisitada” in Emigração e Retorno na Região Centro, Coimbra, Comissão de Coordenação da Região Centro, 1984, pp. 149-167. IDEM, “A presença dos ausentes” in Sociedade e Teritório, Revista de Estudos Urbanos e Regionais, nº 8, Ano 3, Fevereiro 1989, pp. 8-16. SOBRAL, José Manuel, “Da casa à nação: passado, memória, identidade” in Etnográfica, vol. VII (1), 1999, pp. 71-86. 14 Sinopse Nesta comunicação pretendemos reflectir sobre o papel do espontâneo e do construído na constituição do acervo de memórias dos migrantes que lhes permitem identificar-se com uma comunidade de origem imaginada e, ao mesmo tempo, como grupo social com características próprias. Diz-se que é espontâneo o que ocorre de forma voluntária e por impulso próprio, sem que haja aparentemente uma intervenção do exterior. Ora, as memórias espontâneas estão geralmente associadas às vivências pessoais e directas, prendendo-se com o percurso de cada indivíduo. São memórias que se circunscrevem ao universo da vida pessoal e definem a pertença aos lugares concretos da existência: a família, os círculos de vizinhança e amizade, os locais de trabalho e de residência. Afinal, os lugares dos afectos e da existência que marcam, indelevelmente, a forma dos seres humanos perceberem a sua individualidade como parte de uma sociedade, de um mundo, no qual se vão inserindo ao longo da vida. De um tipo distinto são as memórias que decorrem da identificação com símbolos, tradições, ideias e valores que fazem parte daquilo que uma comunidade quer manter vivo e, constantemente, cria e recria com o objectivo de conservar a unidade e a identidade. Estas memórias não são espontâneas e precisam de marcos, de objectos, de lugares de encontro e de revivescência: os monumentos, os museus, as associações, os dias festivos, os encontros gastronómicos, os espaços de convívio, de sociabilidade e de comunicação, os quais com a Internet se abrem para o mundo virtual. Nota curricular Maria Isabel João, Professora Auxiliar da Universidade Aberta e investigadora do CEMRI. Doutorada em História Contemporânea, a sua área de investigação tem sido a História Contemporânea de Portugal, com trabalhos publicados no âmbito da História Regional (Açores) e da História Política e Cultural. A problemática da construção das memórias colectivas e das identidades é, no momento, o seu principal foco de interesse, no quadro do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI). Publicações principais: Os Açores no Século XIX. Economia, Sociedade e Movimentos Autonomistas, Lisboa, Edições Cosmos, 1991, pp. 327; “A Organização da Memória” e “Comemorações e Mitos da Expansão” in História da Expansão Portuguesa no Mundo, Do Brasil para África (1808-1930), Vol. IV, Parte V, Cap. I e II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, pp. 376-402 e pp. 403-424; Memória e Império. Comemorações em Portugal (1880-1960), Lisboa, FCG/FCT, 2002, pp. 774; Mito e Memória do Infante D. Henrique, Lagos, CML/CMD, 2004, pp. 121.
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