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1 ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: ENTRE SEMÂNTICA, HISTÓRIA E EPISTEMOLOGIA “Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu saber em tomo do homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão rápido e fácil. E também verdade, porém, que nenhuma época soube menos que a nossa que coisa seja o ho mem. Jamais o homem assumiu um aspecto tão problemático como em nossos dias” (M. Heidegger’). 1.1. “Antropologia”: gênese e história de um termo polissêmico O termo “antropologia” foi, ao longo dos séculos, objeto de ar bítrio lingüístico; é um dado de fato: não obstante a evidente unicidade de objeto, encontramo-nos, hoje, fazendo as contas com uma multiplicidade de significados que, de vez em quando, são acom panhados do tema em exame. Todos concordam em reconhecer o homem como objeto próprio da antropologia, mas, dada a possibilidade de abordá-lo de muitas pers pectivas (física, filosófica, teológica, econômica, cultural etc.), quan do não se decide explícita e preventivamente a abordagem escolhida para estudar ou falar do homem, encontramo-nos inevitavelmente diante de um uso diversificado do termo “antropologia”. Tanto que “antropologia” pode ser a “ciência das sociedades primitivas”, mas com o mesmo termo pode-se e de fato se quis entender, entre outros e ‘M. HEIDEGOER. Kanr e ii problema delia metafísica. Milano: Silva, 1962, p. 275s. lo DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 11 conformemente os contextos históricos e culturais, “o estudo referen te à vida social dos homens”, “o estudo das características físicas do homem”, “o estudo científico do homem como parte do reino animal” ou “a pesquisa sobre os fenômenos gerais da cultura”. Não há dificuldade em reconhecer neste breve elenco de signi ficados atribuídos ao termo “antropologia” uma diversidade de abor dagem e, conseqüentemente, uma extrema diversificação dos instru mentos adotados para perseguir os objetivos cognoscitivos, de quando em vez, identificados e por atingir. Talvez o caminho que melhor conduz a um conhecimento sufi cientemente correto do termo em exame e de seus conteúdos é o que passa através da história do termo e inevitavelmente através da his tória da disciplina que leva este nome2. No terceiro capítulo do quarto livro da sua Ética nicomaquéia, dedicado por Aristóteles à descrição do “magnânimo” e ao exercício da magnanimidade, é introduzido o termo anthropologos. “[O magnâ nimo— lê-se aí] não é fácil à admiração, porque para ele nada é gran de. Nem é propenso ao rancor: não é do magnânimo reter na mente, de modo especial, as injustiças sofridas, mas, sem dúvida, procura an tes superá-las. E não é mexeriqueiro (oud’anthropologos): não falará nem de si mesmo nem dos outros, já que não lhe importa ser louvado nem que os outros sejam censurados...”3. Como se vê, os preâmbulos do termo “antropologia”, ou melhor, “antropólogo”, não podem ser con siderados positivos se ele está indicando quem é “mexeriqueiro”. É difícil seguir todas as etapas por meio das quais, depois de Aristóteles, se desenvolveu o recurso ao termo que estamos exami nando. 2É bom recordar que a antropologia como pesquisa sobre o homem não nasceu com o aparecimento explícito da disciplina que leva este nome. Veremos, em outra parte do volume, como esta atenção, sob formas diversas, nasceu com o próprio homem. ~ARISTÓTELES. Etica a Nicômaco lV,3, 11 25.a 5. Na época patrística, o verbo anthropologein equivale a “expri mir-se antropomorficamente sobre Deus”; significado que, como ve remos, se encontrará ainda em Leibniz e em Malebranche. Por um relevante decurso de tempo, o termo “antropologia” não aparece ou aparece só em algum dicionário. Recomeça-se a fa lar de “antropologia”, de maneira articulada, no século XVI e parti cularmente no interior do humanismo militante. O clima que caracteriza este movimento cultural contribuiu para fazer desaparecer o que de negativo leva ainda consigo o termo “an tropologia”. Ela começa a indicar, genericamente, um conhecimen to referente ao homem, implicando alguma reflexão do homem so bre si mesmo e um conhecimento de si obtido de maneiras diversas: do recurso à meditação poética, aquela que hoje chamamos de introspecção. A antropologia deste século desenvolve também uma atenção particular à dimensão moral, anatômica e psíquica do homem. Não se pode dizer ainda, de qualquer modo, que nos encontramos diante do uso constante e bem definido do termo “antropologia”. Uma confirmação vem-nos das contribuições de Erasmo de Roterdã (cerca de 1466-1536) e de M. de Montaigne (1533-1592). O primeiro decisivamente toma distância da antropologia renascentista, que define o homem na sua relação com o cosmo. “Em Erasmo, o homem procura compreender-se, aceitar-se e se conhecer assim como é. Entra em si e valoriza aquilo que é caraterístico do homem. Permanece no seu âmbito humano e afugenta cuidadosa mente tudo quanto poderia distanciá-lo dele, conduzindo-o para além de si mesmc, no lugar por ele ocupado na vida, nos termos com os quais fala de si”4. Este homem, segundo Montaigne, não está, porém, 4GROETHUYSEN. Antropologia filosofica. Napoli: Guida, 1969, p. 285. 12 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 13 em condições de conhecer as razões últimas daquilo que vive e expe rimenta e, tão estranho e tão enigmático, reserva-lhe sempre surpre sas, como lhe reserva o mundo no qual está inserido. “Não podemos fazer outra coisa que relatar as coisas sobre nós mesmos e sobre os outros e representar aquilo que aconteceu em nós”5, com a conse qüência que o homem colhe a si mesmo como uma criatura entre muitas outras, como qualquer coisa de aleatório que se produz só uma vez no vasto campo da criação. Ao longo do arco do século XVII, confirma-se a linha persegui da já no século precedente e o termo “antropologia” é empregado no sentido de pesquisa referente especificamente ao olhar do homem voltado para si mesmo com o esforço conseqüente de atingir o “co nhecimento de si”. Será necessário aguardar, como veremos, o fim do século XVIII, com a Anthropologie in pragmatischer Hinsicht abgefasst (Antropologia de um ponto de vista prático) (1798) de Kant (1724- 1804), para que esta pesquisa encontre expressão completa. Coerentemente com todo o seu sistema, em Descartes (1596- 1650), a “antropologia” apresenta uma caracterização mecanicista, tornada ainda mais explícita em alguns intelectuais cartesianos. Fi cou famosa a definição do médico real, o cartesiano Pierre Dionis, que, em 1690, sustentou que a ciência que nos faz conhecer o ho mem se chama antropologia. Ela consta, porém, de duas partes: a psi cologia, que trata do homem, e a anatomia, que diz respeito ao corpo e tudo aquilo que está ligado a ele. Malebranche (1638-17 15), como se disse, é lembrado pelo uso, senão propriamente negativo, certamente redutivo do termo “antro pologia”. Segundo o filósofo francês, o motivo pelo qual se pode afir mar que a Sagrada Escritura é destinada tanto aos doutos quanto às pessoas simples está no fato de que “ela está plena de antropologia “; lá onde, por “antropologia”, Malebranche entende as características e a linguagem humanas atribuídas a Deus. Encontramo-nos, portanto, diante de uma identificação indébita da “antropologia” com o “antropomorfismo”. Passando através da filosofia empirista, chega-se à formulação daquele que é o nó central da reflexão sobre o homem do século XVIII e que se pode expressar assim: em que consiste a natureza real do homem, não a pertencente ao mundo das idéias, mas aquela es truturalmente ligada à realidade concreta? As palavras-chaves, que doravante e sob o impulso desta inter rogação se utilizam em antropologia, são as mesmas que pertencem ao vocabulário da ciência da natureza: em Outros termos, o homem é considerado como uma das espécies pertencentes ao reino animal. Como veremos melhor em seguida, neste contexto cultural e naquele imediatamente sucessivo, o termo “antropologia” é empre gado para indicar tudo o que contribui para fazer emergir diferenças e relações entre o homem e as outras realidades viventes, a origem do homem, os diversos estados do seu desenvolvimento, as suas pe culiaridades e tudo aquilo que concorre para lhe definir a natureza. Quem, neste século, contribuiu certamente para clarear e de terminar o uso correto e diversificado do termo “antropologia” foi Kant. No Prefácio à sua Antropologia do ponto de vista pragmático, o filósofo de Künigsberg chama “antropologia” “uma doutrina do co nhecimento do homem ordenado sistematicamente”; no seu inte rior, distingue-se uma antropologia fisiológica e uma pragmática. A primeira é o estudo que tende a “determinar aquilo que a natureza faz do homem”6; já a antropologia pragmática, embora conservando o seu corte especificamente ético, enquanto tende a aumentar as capa cidades do homem, é vista como uma verdadeira e própria reflexão filosófica sobre o homem. 5lbidem, p. 3. ~I. KANT. “Prefácio” a Antropologia dai punto di vista pragrnatico. Torino: Uter, 1970, p541. 14 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 15 Introduzindo os Novos ensaios de antropologia (1823-1824), Maine de Biran (1766-1824) enquanto justifica a escolha do termo “antropologia” e sua colocação no título do seu ensaio, define com clareza a perspectiva da sua pesquisa em torno do homem. “O título da minha obra — escreve o filósofo espiritualista — preanuncia a intenção de considerar o homem na sua integridade e não só uma parte ou um aspecto dele. Sentia que, se tivesse adotado, seguindo minha primeira intenção, o título de psicologia, ele não teria indica do o meu escopo melhor que o de fisiologia. O meu livro deve tratar do homem e especialmente do homem considerado do ponto de vis ta dos relacionamentos estabelecidos pela consciência entre o sujei to idêntico, permanente, que se chama eu, e as sensações, idéias, funções ou operações de todas as ordens orgânicas ou intelectuais que mudam, passam e se sucedem com uma prodigiosa variedade”7. Um recurso muito mais amplo e diversificado ao termo “antro pologia” se encontra em A. Rosmini (1797-1855). Ele o emprega, entre outras, em duas de suas grandes obras: A antropologia a serviço da ciência moral (1832) e a Antropologeia sobrenatural, escrita entre 1832 e 1836, mas publicada postumamente em 1884. São dois, porém, os textos dos quais é possível tirar o significa do que ao termo “antropologia” atribui Rosmini. Na carta escrita a N. Tomaseo aos 27 de dezembro de 1854, ele define a antropologia “a ciência que trata da natureza humana”8. “Ora— lê-se, além disso, na Introdução à Filosofia —‘ a ciência da natureza humana pode-se chamar apropriadamente Antropologia, a qual deve considerar o ho mem não menos na sua parte animal, quanto relativamente ao seu espírito, e finalmente no sujeito no qual convém a animalidade e a inteligência”9. 7MAINE DE BIRAN. Nuoui saggi di antropologia. Torino: SEI,1949, p. 3. 5N. TOMMASEO— A. ROSMINI. Carreggio edito e medito. Org. por V. Missori, vol. II. Milano: Marzorati, 1967, let. 360, 425. 9A. ROSMINI. lncroduzione alla filosofia. Ed. critica org. por P. P. Ottonello. Roma: Città Nuova, 1979, p. 330; cf. além disso N. GALANTINO — O. LORIZIO. Sapere l’uomo e la sroria. Cmniseilo Balsamo: San Paolo, 1998, p. 77-97. Uma contribuição certamente decisiva por um recurso sempre mais freqüente e semanticamente definido do termo “antropologia” deu-o L. Feuerbach (1804-1872). Para o filósofo alemão, a antropo logia, integrada pela fisiologia, é a ciência universal. E é o mesmo filósofo, nos Escritos filosóficos, a lhe dar motivação, quando escreve: “A nova filosofia é a conversão completa, absoluta, coerente da teo logia em antropologia; a teologia é, de fato, convertida não apenas na velha filosofia, na razão, mas também no coração ou, para ser breve, na essência total e real do homem”°. A contribuição de Feuerbach à definição do significado e dos conteúdos da antropologia é colocada no interior de seu projeto filo sófico. Do momento que, para Feuerbach, a realidade coincide com a sensibilidade, abre-se a estrada para um materialismo diverso da quele mecanicismo de Lamettrie e de Holbach. O feuerbachiano é um materialismo no interior do qual não há nenhuma necessidade de recorrer a Deus para explicar ou interpretar a realidade: o ponto de partida de toda filosofia é o homem. Num contexto semelhante, o termo “antropologia” é antes de tudo um termo/conceito polêmico; isso soa como convite para aban donar os horizontes de sentido da teologia cristã e da especulação idea lista. Pôr a antropologia no centro é o grande desafio da Idade Mo derna, chama a transformar e dissolver a teologia em antropologia”. A atenção à antropologia não conhece queda de tensão em Marx (1818-1883), que, porém, nas Teses sobre Feuerbach, integra a pers pectiva anti-hegeliana de Feuerbach enriquecendo a sua perspectiva antropológica com forte enraizamento na história, que se torna, de pois, práxis revolucionária objetivando libertar o homem de toda forma de alienação. O termo “antropologia” refere-se, assim, não só à concepção do homem coerente com a visão materialista da histó 10L. FEUERBACH. Scrittifllosofici. Bati: Laterza, 1976, p. 27. °CÍ. L. FEUERBACH. La filosofia dell’avvenire. 4.a ed. Bati: Laterza, 1975. p. 93. 16 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 17 ria, mas também ao conjunto das estratégias necessárias para que a imagem do homem projetada possa, de fato, se realizar. 1.2. Antropologia e antropologias: do termo à “disciplina” Enquanto a Itália se beneficia das fortes intuições antropológi cas de A. Rosmini, a Alemanha é teatro do desencontro entre as duas diretrizes assumidas pelos epígones hegelianos’2, a França e a Inglaterra, pelo que diz respeito ao termo e aos conteúdos da “antro pologia” fazem as contas com uma situação extremamente dinâmica. A partir de 1830, não só o termo “antropologia”, mas também os de “etnologia” e “etnografia” conhecem uma boa difusão e se benefi ciam de importantes contribuições na sua evolução semântica. Em 1839, foi fundada, na França, a Société d’Ethnologie e, ainda na França, em 1859, iniciam suas atividades a Société d’Anthropologie e a Société d’eth’iiographie. Ao lado destes grupos de pesquisa coloca-se (1843) a Ethnological Society de Londres. O debate se desenvolveu entre estas associações culturais e ser virá, ao menos, para fazer sair gradualmente os termos acima recor dados por um uso genérico e não raro confuso. A exigência de se diferenciar leva, por exemplo, a Société d’Anthropologie a concentrar a própria pesquisa sobre a ‘biologia do gênero zoológico Homem” nas suas variáveis raciais e paleontológicas, ou seja, a antropologia física. De sua parte, a Société d’ethnologie, por meio da análise da di mensão sociopolítica, se interessará pelo estudo das questões cultu rais e sociais, chegando a formular as leis que regulam a organização das nações e a economia mundial. Veremos, em seguida, como se evoluirá, sobretudo na França, o estudo da etnografia, seja recuperando um interesse maior nos con frontos do homem particular, seja por aquilo que diz respeito às rela ções que ela estabelecerá com o resto das ciências que se interessam pelo homem. De fato, reconhecendo, porém, que todos os esforços empregados para instrumentalizar em chave etnocêntrica estes estu dos, deveremos fazer as contas, mais tarde, com uma justa e positiva recuperação da “diferença” que se imporá aos etnólogos franceses. Retenho, antes, que, deste ponto de vista, a própria antropologia se servirá disso para que, sobre um plano diverso, também ela deva es colher entre uma antropologia que tende a reduzir e uma que tende a valorizar a “diferença”. Ao lado dos elementos oferecidos por um reconhecimento se mântico do termo “antropologia”, verifica-se uma tendência agora sedimentada no uso deste termo. O tomar conhecimento permite facilmente escapar das inevitáveis dificuldades que acompanham o diversificado quadro interpretativo a respeito do termo que estamos analisando. No mundo anglo-saxão, a “antropologia” compreende a antro- pologia física, a antropologia cultural e a etnologia. Em grande parte da área cultural latina e da alemã, a “antro pologia” se identifica com a antropologia física e estuda justamente os caracteres físicos e morfológicos do homem nas suas variantes individuais, raciais e sexuais. Não faltam, de qualquer modo, exem plos em que o recurso ao termo “antropologia” faz, de maneira evi dente, referência àquilo que, mais para a frente, identificaremos como “antropologia filosófica”. Recordo para todos o que escreveu E. Przywara: “Na palavra antropologia, ‘logia’ e ‘ánthrôpos’, isto é, plano do logos ideativ.o e plano da realidade prática do homem, se encontram numa dupla relação. De um lado, deve-se colher um verdadeiro logos do homem por meio da plenitude das suas mani festações prático-reais, como explicitação de um logos implícito em tais manifestações (isto é, como logos do homem). Da outra parte, este logos, como eidos e telos do homem, deve vir elevado, deste2Cf, N. ir, N. GALANTINO — O. LORIZO. Sapere l’uorno e la storia. 1nterprerazion~rosn,iniane. Cinisello Balsamo: San Paolo (RDT Iibrary 103), 1998, p. 77-79. 22 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 23 Não compartilhamos nem mesmo a concepção redutora que Jürgen Habermas tem da antropologia filosófica. Este lhe designa a tarefa de interpretar filosoficamente os resultados obtidos pelas ciên cias do homem, da antropologia biológica à psicologia e à sociolo gia’8. Para o filósofo de Frankfurt, a antropologia filosófica é a “rea ção da filosofia ao advento daquelas ciências que lhe disputam o objeto ou, por certo, o justo direito de se ocupar dele”9. 1.4. A antropologia filosófica: à procura de urna definição Antes de nos colocarmos à procura de uma definição de “antro pologia filosófica” que nos sirva de orientação e de ponto de referên cia no prosseguimento da nossa indagação, parece oportuno atuali zar-nos sobre as principais acepções de “antropologia filosófica” presentes na história desta disciplina. Helmut Fehrenbach20, aplicando-se sobre a história do modo como o termo “homem” se desenvolveu e se definiu, apresenta um ma pa das possibilidades de entender o título “antropologia filosófica”. 1) Numa primeira acepção de “antropologia filosófica”, confluem todas as observações sobre o homem contidas no complexo de uma filosofia, ou as asserções que dizem respeito ao homem em determina dos contextos ou autores (por exemplo, a antropologia de Aristóteles, de Agostinho etc.). Nestes casos, a “antropologia filosófica” é apenas um dos capítulos que compõem uma proposta filosófica global. 2) Uma segunda acepção de “antropologia filosófica” é a que vê nesta pesquisa uma disciplina fundamental, ou seja, não como um ‘8U. FADINI. “Antropologia filosofica.” In P. ROSSI (ed.), La filosofia. 1. Le filosofie speciali, Torino: UTET, 1995, 496s. ‘9J. HABERMAS. ‘Antropologia.” Em G. PRETI (ed.). Filosofia. Milano: Feltrinelli — Fischer, 1966, p. 20. °H. FEHRENBACH. “Uomo.” Em H. KRINGS — H. M. BAUMGARTNER— CH. WILD (ed.). Concettifondamenrali difilosofia. 3.” ed. ir. org. porG. Penzo. Brescia: Quiriniana, 1982, p. 2.269s. problema entre outros, mas como temática sistematicamente central e fundamental da filosofia em geral. 3) Muito próxima desta acepção é aquela de todos os que retêm que a expressão “antropologia filosófica” e os seus conteúdos possam funcionar como título ou como recipiente ao qual é reconduzida toda reflexão filosófica. 4) Há, enfim, quem considere a “antropologia filosófica” como uma disciplina particular, desenvolvendo-se no interior da filosofia, em que a reflexão sobre o homem é definida e desenvolvida de ma neira conceitualmente estruturada, com o objetivo de colher e de descrever sistematicamente as formas de pensamento (“categorias”) e as constantes filosóficas do universo pessoal. Enquanto a primeira das acepções apresentadas vê na “antro pologia filosófica”, como se diz, um dos tantos capítulos dos quais se compõem um sistema filosófico, a segunda e a terceira podem ser re conduzidas, feitas as devidas precisões, à posição expressa por L. Feuerbach (1804-1872). O filósofo alemão, no interior de um proje to tendente a resgatar a centralidade do ser humano em relação ao objeto da teologia (=Deus), afirma que a “filosofia do devir” deverá contrastar a ênfase especulativa da subjetividade abstrata, fazendo do homem “o objeto único, universal e supremo da filosofia”, confi gurando a antropologia como a “ciência universal”. A conseqüência necessariamente implicada na aceitação de tal perspectiva é que o princípio fundamental da práxis humana — a sua lei primeira e su prema— não poderá ser senão “o amor do homem pelo homem”21. A referência ao “amor”, neste caso, tem pouco a ver com o Evan gelho ou, de qualquer modo, com apelos de natureza filantrópica; o sentido e o apelo ao “amor” têm, aqui, outras motivações. Partindo do axioma feuerbachiano, “só aquilo que é sensível é verdadeiro, é 21L. FEUERBACH. L’essenza dcl cristiancsimo. Milano: Feltrinelli, 1971, p. 286. 24 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 25 real”, o homem, não o homem abstrato ou fechado em si mesmo, mas o homem que vive em relação com os seus semelhantes, é um ente verdadeiro e real só porque colhe a realidade e a si mesmo com os sentidos. Chama-se “amor” a certeza de que existe um outro ho mem além de mim; o “amor” não é outra coisa que a constatação sensível de que existo, não estou só, sou visto por outro e vejo outros. É por isso que “a propósito de Feuerbach — segundo alguns críticos— parece necessário falar, de modo definitivo, mais que de antropologia filosófica, de uma “filosofia antropológica” ou de uma filosofia convertida em antropologia”22. A quarta acepção de “antropologia filosófica” é a que, evitando o limite da primeira e a pretensão absolutizante (a antropologia como ciência universal) das outras duas, afirma ser possível a existência de uma disciplina que, com método próprio e mediante a utilização dos instrumentos filosóficos, está em condições de colher e de descrever sistematicamente a essência do homem. Para identificar as coordenadas epistemológicas da antropolo gia filosófica e o seu objeto específico já se tornou clássico recorrer às páginas com as quais Kant introduz a sua Logik (25 A). O filósofo alemão afirma que uma “filosofia com intenção cos mopolita” deve se organizar em torno de quatro interrogações, deve poder dar resposta a estas quatro perguntas: “Que coisa posso pensar? Que coisa devo fazer? Que coisa é-me consentido esperar? Que coisa é o homem?”23. A última destas perguntas encontra resposta na an 22N4. IVALDO. “Antropologia, un,anesimo, uomo.” Em op.cit., p. 9s e p. 20s. 23São também as perguntas da Critica deila rogion pura (tr. it. de O. Genttle e O. Lombardo. Radice dei 1909-1910. 7.” ed. Revista por V. Mathieu, Laterza, Roma-Bari, 1979 onde, na p. 612, se lê: “Todo o interesse da minha razão (tanto o especulativo como o prático) se concen tra nas três perguntas seguintes: 1) que coisa posso saber?; 2) que coisa devo fazer?; 3) que coisa posso esperar?” De particular utilidade resulta também a leitura de M. HEIDEOGER. Kant e ii problema della metafisica (org. por V. Verra). Laterza, Roma-Bari, 1985. De modo particular, a seção quarta: “A fundação da metafísica”, na sua repartição A. Fundação da metaftsica na antro pologia, p. 178-188. tropologia, a que, disse Kant, é possível reconduzir também as outras perguntas. Fica assim estatuída a centralidade24 da reflexão filosófica sobre o homem: é dentro desta perspectiva que são enfrentados os temas referentes à metafísica, à ética e à religião. Se, portanto, objeto da antropologia, como para tantas outras disciplinas, é o homem, o nosso é um interesse voltado para uma di mensão específica dele: queremos nos ocupar de antropologia filosó fica, com a tarefa precípua de mostrar como “de uma estrutura fun damental do ser homem deriva tudo aquilo que é monopólio específico, efeito e obra do homem” M. Scheler,[sic}). Desta, que é uma das tantas definições possíveis da antropologia filosófica, se de duz tanto o específico desta disciplina, quanto a possibilidade de va lorizar-lhe ulteriormente as aquisições. Para Scheler, de fato, e para grande parte dos antropólogos modernos, a resposta à pergunta: “Quem é o homem?” não nasce independentemente da existência concreta do homem e não é, de outra parte, fim para si mesma. Assim que, com já se disse, embora sendo necessário distinguir entre as diversas abordagens do homem, não é possível decretar a absoluta independência e estranheza dos resultados conseguidos caso por caso. A definição de Scheler e as que nela se inspiram não parecem, porém, particularmente atentas para enfrentar e resolver um dos nós referentes ao estatuto epistemológico da antropologia filosófica que, geralmente, está ligado ao problema da possibilidade mesmo da metafísica. Um problema levantado por Heidegger a respeito do pen samento de Kant, mas que depois se tornou um tema fundamental também por aquilo que atinge sua reflexão sobre o homem25. ~ Parenti fala de “centralidade metódica” em Sapere anrropoiogico e iinguaggio. Inrroduzione critica ali’onto-reologia. Brescia: Morcelliana, 1990, p. 53ss. (Fenomenologia, tr. it. de A. Fabris, Genova: II Melangolo, 1988.) 2’Com estas referências concorda M. Scheler, que escreve: “Em certo sentido, todos os problemas fundamentais da filosofia podem-se reconduzir à pergunta que coisa seja o homem e 26 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 27 Para aqueles, como E. Coreth, que mantêm praticável o discur so metafísico, a antropologia filosófica é a “disciplina que procura conhecer o homem na sua dimensão metafísica essencial, na sua re ferência ao ser, na sua abertura ao ser”26. Para quem, ao invés, recusa a metafísica, a antropologia filosófica se identifica com a tentativa de integrar, numa síntese, os resultados que são oferecidos pelas as sim chamadas ciências empíricas como a biologia, a anatomia, a psi cologia, a sociologia, as ciências da linguagem e da história, da cul tura e da religião27. Considero importante ter presente as observações e as distin ções feitas até aqui todas as vezes em que nos aproximamos de um tratado ou de um ensinamento de antropologia filosófica. Ela é, de fato, indevidamente reunida com a antropologia cultural por todos os que julgam insólito o recurso à metafísica e, de qualquer modo, inútil interrogar-se sobre elementos que concorrem para definir a identidade do homem28. qual lugar e posição metafísica ele ocupa entre a totalidade do ser, do mundo, de Deus”. (M. SCHELER. “Stdl’idea dell’uomo.” In Idem. La posizione dell’uomo nel cosmo, Milano: Fabbri, 1970, p. 93). Em referência à pergunta “que coisa é o homem?”, oportunamente, Ricardo de São Vitor (De Trinitate, 4,6) distingue a pergunta “que coisa é o homem?” de “quem é o homem?”, en quanto a primeira conceme a toda “substância” natural, a segunda é formulada relativamente ao homem. 26E. CORETH. Was ist philosophische Anthropologie?, reportado porJ.L. MOLINERO. “Antropologia.” Em Dizionario difilosofia conternporanea, Assisi: Cittadella, 1979, p. 20. 27M. IVALDO. “Antropologia, umanesimo, uomo.” Em A. RIGOBELLO (ed.). Lessico dela persona umana. Roma: Studium, 1986, p. 1-40. 28Para captar de maneira exata e também sem fechamento preconcebido e redutor o alcance destas afirmações e distinções e daquelas que as seguem, quero dizer que partilho, em boa parte, a repreensão que Th. LITT (em Le science e L’uo,no. Roma: Armando, 1972, p. 141) move à tendência presente em algumas “correntes espirituais dos nossos dias que se podem perceber sob o título de ‘antropologia filosófica’ de quase não tomar conhecimento dos esforços e dos resultados da física contemporânea, ou de só lhe fazer acenos com único fim de mostrar que ela é incapaz de contribuir com alguma coisa de válido para a solução dos problemas da antropologia, como também a física é acusada de cobrir ou obs curecer fatos que a reflexão antropológica espera clarear”. Como conclusão do primeiro capítulo do texto citado, o filósofo alemão escreve: “Em nítida síntese com cada corrente da antropologia que ostenta uma indiferença pela ciência da natureza, podemos, pois, afir mar que esta ciência, ainda que exclua do próprio âmbito o homem enquanto homem, antes justo pelo fato deste seu excluí-lo, deve constituir um objeto essencial para toda reflexão antropológica” (Ibidem, p. 154). Alguns momentos da indagação semântica conduzida sobre o termo “antropologia” e as indicações referentes explicitamente à “antropologia filosófica” permitem afirmar que a antropologia filo sófica, como pesquisa conceitualmente estruturada pelo universo pessoal, teve sempre um espaço na reflexão filosófica. Os resultados desta pesquisa, alcançados com métodos e modos diversos, não po dem, pois, ser postos todos sob o mesmo plano e avaliados com os mesmos critérios. Como, de fato, a explicitação das perspectivas de abordagem do homem reduzem os perigos de generalização e de reducionismo, assim uma leitura orientada das respostas à pergunta “quem é o homem?” permite orientar-se com clareza no panorama antropológico. Com as páginas seguintes quer-se contribuir para alcançar este escopo respondendo a perguntas que constituem outros tantos nú cleos em tomo dos quais pode ser ordenada grande quantidade de informações direta ou indiretamente reconduzíveis à antropologia filosófica. A primeira olha o “de onde” nasce e o “porque” nasce a pergunta sobre o homem; a segunda pergunta conceme aos instrumentos de pesquisa dos quais se serviu o homem para responder à pergunta “quem é o homem?”. Enfim, pergunta-se se, no interior das respostas que têm sido oferecidas, é possível identificar, além de uma esquematização cr0- nológica, um divisor de águas metodológico claramente reconhecível. 1.5. “De onde” nasce e “por que” nasce a pergunta antropológica? É possível identificar os lugares e os motivos que levam o ho mem a se interrogar sobre si mesmo? Sobre sua natureza? Sobre sua origem? Sobre o sentido da relação com os Outros e com o mundo? Sobre sua destinação final? Antes de tomar em consideração as situações pessoais que impulsionaram cada um a se interrogar sobre si mesmo e, portan
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