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Teorias da Justiça: o valor liberdade em Kant, Hegel e Rawls Gustavo Bohrer Paim1 SUMÁRIO: Introdução; A teoria da justiça e as decisões judiciais; O formalismo kantiano; A dialética hegeliana; A justiça como eqüidade de Rawls; Conclusão; Bibliografia Introdução Este singelo artigo visa a demonstrar a importância do valor liberdade para a ciência política, para a justiça, especialmente diante da ótica de Kant, Hegel e Rawls. Trata-se de um estudo dirigido ao Instituto de Estudos Políticos Ildo Menghetti, que merece todo louvor e homenagem pela realização de um curso regular de capacitação política, indispensável para o desenvolvimento e a melhoria de nossos gestores públicos. Busca-se, aqui, a demonstração da necessidade de uma fundamentação ética do conceito do Direito e da Justiça, bem como o desenvolvimento dos princípios da justiça como idéias reguladoras das liberdades individuais e das instituições sociais. Tal escopo é alcançado por meio do estudo da “Doutrina do Direito”, de Immanuel Kant, da “Filosofia do Direito”, de Hegel, e de “Uma Teoria da Justiça”, de John Rawls. Nesse sentido, procura-se analisar, criticamente, o formalismo kantiano, a dialética hegeliana e os princípios da justiça de Rawls, dando ênfase a este 1 Gustavo Bohrer Paim. Advogado, Especialista em Administração Pública Eficaz pela UFRGS, Mestrando em Direito pela PUC/RS, Professor de Direito da Unisinos. 2 último filósofo e à sua justiça procedimental, encontrando o valor liberdade como um elemento comum das teorias dos três pensadores. 1. A teoria da justiça e as decisões judiciais Conforme ressalta Ronald Dworkin, quando se estiver diante de normas contraditórias, a decisão judicial deverá se basear em princípios (universalizáveis), garantindo os direitos preestabelecidos, constituindo-se na função da teoria da justiça na decisão judicial. Em verdade, os ordenamentos jurídicos em geral não prevêem a existência de qualquer direito absoluto, eis por que as garantias encontram-se em coexistência, limitando-se mutuamente, merecendo relevância na medida em que sirvam à consecução de seus fins, e só em tal medida. Ocorre com freqüência a oposição recíproca de garantias fundamentais, devendo-se permitir aos magistrados uma margem de flexibilidade na aplicação do direito.2 Saliente-se, inclusive, no direito pátrio, o fato de não ser punível o aborto praticado por médico em caso de gravidez decorrente de estupro. Nesse contexto, em que o próprio direito à vida pode ser relativizado para que haja a garantia de outros direitos juridicamente relevantes, é que são encontradas limitações às garantias previstas pelos ordenamentos jurídicos, não podendo ir de encontro à segurança de todo o sistema. É preciso que se reconheça que os valores limitam-se reciprocamente, visando a assegurar a preservação de todo o conjunto. Não se pode aplicar determinadas normas quando em confronto com outras mais relevantes, razão pela qual todas as normas devem ser interpretadas no contexto em que se inserem, e não isoladamente, em prol da preservação de todo o sistema jurídico. Portanto, normas 2 PAIM, Gustavo Bohrer. A garantia da licitude da prova e o princípio da proporcionalidade no direito brasileiro. As garantias do cidadão no processo civil: relação entre Constituição e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 173. 3 jurídicas não se encontram independentes das demais, devendo ser interpretadas conjuntamente. Nesse sentido, Dworkin traz a existência dos “casos difíceis”, onde se depare com incertezas, com a existência de normas contraditórias ou, até mesmo, com a inexistência de norma. Entretanto, o magistrado não pode se eximir de sua função jurisdicional, tendo em vista a previsão do non liquet. Assim, nesses “casos difíceis”, dever-se-iam aplicar os princípios, não deixando maior liberdade aos juízes, por não estarem estes legitimados a ditar normas, muito menos retroativas. Assim, em havendo contradição ou omissão de normas, não se deve pautar a atividade jurisdicional na discricionariedade, pois dever-se-á respeitar a orientação principiológica. Esta é a função da teoria da justiça nas decisões judiciais. Os casos difíceis trazem problemas que a teoria deve resolver, buscando-se um princípio orientador, justificador da decisão. Serve, pois, a teoria para reduzir as incertezas. Portanto, a teoria da justiça procura reduzir as incertezas jurídicas. Cumpre salientar que as teorias possuem um aspecto descritivo (o que é) e um aspecto prescritivo (voltado para o futuro, o que deve ser). O princípio é um dever ser, enquanto que as regras constituem-se mais no que realmente é. Procura-se, nesse diapasão, a orientação do que deve ser, com base nos princípios eticamente universalizáveis. 2. O formalismo kantiano Inicialmente, necessário tecer breves considerações sobre o Iluminismo. Trata-se de esclarecimento, cuja idéia básica é uma defesa incondicional da idéia liberdade. Para que haja esta liberdade, deve haver uma autonomia. Apenas quando é possível se dar a si mesmo a própria lei é que se está diante de verdadeira autonomia, diante de uma verdadeira liberdade. 4 Também se impõe tratar do uso público e do uso privado da razão. Este ocorre quando há uma vinculação a uma legislação, a toda uma estrutura que constitui uma determinada função. Quando nos baseamos em normas ou princípios fazemos o uso privado da razão. É o desempenho da função vinculado às normas da atividade. O uso privado tem determinadas limitações. Não há uma liberdade plena, há restrições à liberdade. Já no uso público da razão não pode haver restrição da liberdade. É uma argumentação racional, bem intencionada. Nesse sentido, os princípios universais não podem ser tirados da experiência, eles devem vir a priori da razão. A experiência nunca é universal, ela é particular. O critério ético tem que ser universalizado, não pode ser tirado da experiência. O critério último deve ser dado a priori na razão. Aqui Immanuel Kant traz a razão pura. Para Kant a vontade deve vir da razão, a razão pura não tira da experiência a sua fundamentação, mas tira de si mesma, não há uma heteronomia, mas sim uma verdadeira autonomia: eu dou a lei a mim mesmo. Nesse sentido da liberdade e da autonomia, muitos juristas remontam a Kant a essência do direito fundamental da dignidade da pessoa humana. Dignidade esta que é uma qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano, sendo irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado.3 Portanto, nota-se que o homem por si só é titular de direitos que se impõe sejam reconhecidos por toda a sociedade, independentemente de qualquer fator. Para Ingo Wolfgang Sarlet, o elemento nuclear de dignidade da pessoa humana reconduz a Immanuel Kant, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito 3 Salienta SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 37, que “a fundamentação metafísica da dignidade da pessoa humana, na sua manifestação jurídica, significa uma última garantia da pessoa humana em relação a uma total disponibilidade por parte do poder estatal e social”. 5 de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).4 Para Kant,a autonomia é, pois, fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional.5 Na linha do grande mestre da filosofia, seguem-se inúmeros doutrinadores, que vêem na autonomia e na liberdade a chave necessária para que se tenha uma vida digna. Nesse sentido, José Joaquim Gomes Canotilho afirma que o “princípio material que subjaz à noção de dignidade da pessoa humana é do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo seu próprio projeto espiritual”.6 Percebe-se, pois, a razão pura trazida por Kant, que nos brinda com uma teoria da justiça que prevê que um princípio, para ser justo, deve ser eticamente correto, deve vir a priori da razão e não ser baseado em experiências pessoais.7 Deve haver liberdade, para que haja o uso público da razão, com autonomia. Assim, o imperativo categórico é formal, dando-se independentemente de condições. O formalismo kantiano é no sentido de que a validade apriorística de uma lei não pode admitir exceção, pois é nas exceções que está a imoralidade de um ato. Os princípios devem ser eticamente universalizáveis, não comportando exceções. Eu não posso querer uma exceção a meu favor, pois isso seria uma imoralidade para o formalismo kantiano. 4 Para Immanuel Kant, a dignidade da pessoa humana é respeitada quando se tem autonomia, não podendo o ser humano, para ter dignidade, ser instrumentalizado. O homem deve ser livre, resultando na autonomia de poder dar a lei a si mesmo, sendo o autor da própria lei, livre e digno. 5 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 66. Kant refere, ainda, que “a simples dignidade do homem considerado como natureza racional, sem qualquer outro fim ou proveito a alcançar por meio dela, isto é, só o respeito por uma mera idéia, deve servir, no entanto, de imprescindível regra da vontade, e que precisamente nessa independência da máxima em relação a todos os impulsos semelhantes consista a sua sublimidade e torne todo o sujeito racional digno de ser um membro legislador no reino dos fins, pois de outro modo teríamos de representá-lo somente como submetido à lei natural das suas necessidades”. 6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 219. 7 WEBER, Thadeu. Razão teórica e razão prática em Kant. Veritas Revista Trimestral de Filosofia e Ciências Humanas da PUCRS, v. 42, dez. 1997, p. 919: “Se estes princípios fossem tirados da experiência, os atos humanos com eles concordantes não teriam valor moral, quando muito, valor legal. Princípios empíricos nunca servem para sobre eles fundar leis morais. Tais princípios não se caracterizam pela necessidade e universalidade, portanto, não seriam a priori; estariam “patologicamente afetados” pela subjetividade”. 6 Nesse sentido, os princípios orientadores representam não o que é, mas sim o que deve ser, e o que deve ser não se esgota no que é. Os conceitos de direito e de justiça não são retratados por aquilo que são (ser), mas sim o que devem ser (dever ser), não podendo ser vislumbrados pelo empirismo, não tendo como positivá-los. O direito positivo traz o que é lícito ou ilícito, mas não pode trazer o conceito de justiça. A idéia de justiça tem que vir do dever ser, da razão pura. A razão é pura quando é autônoma, sem razão externa, ou seja, uma razão é pura quando ela é livre, quando é ela quem dá a lei a si mesma. Por fim, traz-se à baila a diferença entre moral e direito ensinada por Kant. Uma ação que se guia pelo medo das conseqüências é uma ação legal, mas não uma ação moral. Não se trata de uma ação imoral, mas apenas não tem o mérito moral.8 Quando se cumpre a lei por uma razão externa, está-se diante de uma heteronomia, não havendo verdadeiro mérito moral. Assim, aquele que pára seu automóvel no semáforo vermelho, em razão da presença de um fiscal de trânsito, para não levar uma multa, realiza um atividade legal, mas que não possui o mérito moral. O valor da moralidade vem da pureza de seu desinteresse, o valor moral está no desinteresse. Mas será possível esse total desinteresse? Será possível essa absoluta pureza? Talvez isso não seja possível, mas do ponto de vista ético tem que tender a essa pureza, tender a agir totalmente desinteressado. Portanto, para Kant a justiça é mais um dever ser, possuindo uma fundamentação ética. 3. A dialética hegeliana O princípio da filosofia de direito de G. W. F. Hegel prevê um princípio orientador filosófico, que se concretiza dialeticamente. O conceito chave da dialética é a mediação, acompanhada pela contradição, que move a própria dialética. Se não houvesse contradição não haveria necessidade de uma mediação e de uma conseqüente superação. O sistema tem que ter uma lógica interna, um nexo causal necessário. 8 Idem, p. 915: “se a razão determina a priori as condições de possibilidade do conhecimento deve também determinar a priori a vontade dos sujeitos agentes através do imperativo categórico, para que seus atos tenham valor moral”. 7 Hegel, para explicar sua dialética (movimento triádico), refere na “Fenomenologia do Espírito” que “o botão desaparece no desabrochar da flor, e pode- se dizer que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta”. Com isso ele chama a atenção para o todo, e não apenas para o momento. Assim, o botão seria a afirmação, que é negado pela flor, para que haja a negação da negação, que seria o fruto. Este fruto, que seria a síntese desse processo dialético não é algo totalmente novo, pois ele conserva as duas verdades que se negaram. A verdade não está num momento, mas no todo. Processo de negação, conservação e superação dos momentos anteriores. É a estrutura triádica da dialética hegeliana.9 Para Hegel, conforme aduz o Professor Thadeu Weber, o conceito de direito prevê o direito abstrato, a moralidade (intenção, motivação subjetiva) e a eticidade (conseqüência, resultado do ato). A moralidade perguntaria pela “autodeterminação da vontade”, pela fundamentação subjetiva da ação, pelo saber e pelo querer. A moralidade requer o saber (plena consciência) e o querer (vontade).10 Já o direito abstrato não se interessa com a vontade do sujeito (motivação subjetiva), apenas impõe o cumprimento do ato. Por fim, a eticidade trata das conseqüências objetivas do ato, o que não interessa à moralidade. A eticidade é o campo da moralidade social. O jurídico e o moral têm no ético seu ponto de sustentação e fundamento. A eticidade representa a realização do conceito da liberdade, síntese final do processo de desdobramento da idéia da liberdade. A eticidade tem a função de tornar compatíveis as formas do Direito abstrato, por um lado, e a moralidade subjetiva, por outro. A eticidade não se situa no nível da contingência das opiniões subjetivas e caprichos pessoais, mas no nível das instituições e leis existentes em si e para si.11 9 WEBER, Thadeu. Dialética e política em Hegel. Veritas, v. 40, nº 160, dez. 1995, p. 759. 10 WEBER, Thadeu. Hegel: liberdade, Estado e história. Veritas, v. 38, nº 149, mar. 1993, p. 09: “A moralidade representa a interiorização do princípio da liberdade a ser respeitada com relação a todo agir social. Trata-se do reconhecimento da liberdade como universal. A necessária universalidade da idéia de liberdade, na consciência de todos, decorre do fato de oDireito abstrato não ultrapassar a determinação imediata. O avanço da moralidade em relação ao direito abstrato está no reconhecimento subjetivo da liberdade como princípio universal”. 11 Idem, p. 10. 8 O Estado, para Hegel, é uma unidade na diversidade, devendo administrar os conflitos da sociedade civil e da família, e não eliminá-los. Deve-se administrar os interesses pessoais dentro do interesse coletivo, buscando uma unidade entre os fins universais e os interesses particulares, compondo um Estado ético. Somente este Estado ético é capaz de assegurar uma unidade entre os fins universais e os interesses particulares. Essa eticidade pressupõe a existência de fins universais, de princípios universais. O interesse particular é algo imediato, sendo necessária uma mediação para que surjam os princípios universais. Assim, o Estado ético teria como funções a proteção da vida, a proteção da propriedade e a proteção do arbítrio de cada um. Norberto Bobbio, em seus Estudos sobre Hegel, assevera que o Estado não é um contrato, pois nós já nascemos dentro do Estado. Assim, a Constituição não deve dizer o que deve ser feito, mas sim como ser feito, por meio dos princípios orientadores. O espírito do povo é o retrato do povo, a sua cara, devendo estar representado na Constituição. Nesse sentido, a Constituição não pode vir de fora, pois ela deve representar o espírito do povo. Foi por essa razão que os espanhóis rejeitaram a Constituição dada por Napoleão, mesmo que esta fosse muito melhor que a Constituição que possuíam. Para Hegel, não se pode falar em Estado sem uma sociedade civil organizada em estamentos (com estatuto jurídico próprio), evitando-se o estado totalitário. O Estado não deve ser limitado pelo direito positivo formal, não se exaurindo no que deve ser feito, mas sim fornecendo princípios orientadores, que digam como deve ser feito. Ao contrário de Kant, Hegel diz que o Estado não é um contrato, pois não pode ser desfeito, tendo em vista que não é possível desfazer o espírito do povo, a história desse povo. O Estado apenas formaliza o que o povo efetivamente já é. Percebe-se, pois, que os princípios éticos (universais) previstos tanto por Kant como 9 por Hegel dão-se de forma diferente para os dois pensadores. Enquanto para Kant os princípios universais vêm a priori da razão, para Hegel eles são dados pelo espírito do povo. O Estado em Hegel é submetido a um Tribunal da História. O povo (totalidade ética) torna-se um Estado (totalidade política) pela Constituição. Os fins dos indivíduos são mediados, superados e guardados num nível superior (fins do Estado).12 O Estado para Hegel seria uma união (não uma associação com simples agregados), não corporativista (pois no corporativismo não há mediação, não há dialética), nem patriarcal (pois não haveria instâncias mediadoras, tudo ocorrendo de cima para baixo). A Constituição é a mediação da sociedade organizada em estamentos, sendo o processo de transformação da sociedade civil em Estado. Assim, quem garante o direito positivo, as leis, em última instância, é o Estado; e quem garante a Constituição, em última instância, é o espírito do povo. Uma vontade particular, ao se objetivar, se nega para reaparecer na síntese como mais determinada. O Estado aparece como instância necessária (e não contingente), situado acima dos interesses individuais e corporativos, procurando preservar a universalidade na diversidade. O Estado, portanto, dentro da lógica da realização da Idéia de liberdade, é uma necessidade, mas as formas de sua estrutura e organização são contingentes.13 4. A justiça como eqüidade de Rawls John Rawls traz uma idéia de justiça como eqüidade, em que se procura uma sociedade bem ordenada (concepção pública de justiça), em que todos aceitam e sabem que outros aceitam a mesma justiça, e em que as instituições dessa sociedade respeitam essa concepção de justiça. 12 WEBER, Thadeu. Dialética e política em Hegel. Veritas, v. 40, nº 160, dez. 1995, p. 766: “é importante observar que o problema da mediação dos interesses particulares com os da coletividade é o fio condutor de todo movimento dialético da mediação social da liberdade”. 13 Idem, p. 768. 10 O sistema público de regras (Legislativo) será justo se a Constituição assim o for, e a Constituição só será justa em razão do cumprimento dos princípios da justiça. Temos, pois, os fundamentos ético-políticos da Constituição. Rawls parte de uma posição original, posição hipotética em que todos se encontram numa condição de igualdade inicial, sem peculiaridades. Nessa posição original de igualdade desaparecem os interesses particulares, mesmo que hipoteticamente. Parte-se de uma situação hipotética de igualdade, de eqüidade. Nessa posição original os princípios da justiça encontram-se escondidos pelo véu da ignorância. Exclui-se o conhecimento das contingências que criam disparidades entre os homens e permitem que eles se orientem pelos preconceitos.14 Assim, partindo-se dessa posição original de igualdade, pode-se alcançar o primeiro estágio, que seria o da “adoção dos princípios da justiça”. Aqui o “véu de ignorância” é total, desaparecendo à medida que se caminha aos estágios posteriores. Para Rawls Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do ocaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste eqüitativo.15 Percebe-se, pois, o significado da expressão justiça como eqüidade, tendo em vista que os princípios são escolhidos e acordados em uma posição original hipotética de igualdade, em que ninguém se aproveita das contingências para se favorecer. 14 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 12: “A idéia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação”. 15 Idem, p. 13. 11 Os princípios da justiça, para John Rawls, seriam dois: princípio das liberdades básicas iguais, que inclui o princípio das necessidades materiais básicas satisfeitas, e o princípio das desigualdades sociais, que seria o princípio das diferenças, desde que haja igualdade de oportunidades e vantagens aos menos favorecidos, favorecendo-se as diferenças, mas contemplando a todos, contemplando também os menos favorecidos.16 Esses dois princípios devem obedecer a uma ordenação serial, no sentido que o primeiro deve anteceder o segundo. Assim, não se poderia violar as liberdades iguais protegidas pelo primeiro princípio com a justificativa de que satisfaria o segundo princípio, trazendo maiores vantagens econômicas e sociais. Note-se que tal pensamento é trazido por nosso direito constitucional, que prevê os direitos liberdades como direitos de primeira dimensão, tratando-se de uma competência negativa, enquanto que o segundo princípio representaria os direitos de segunda dimensão, que seriam os direitos sociais, uma imposição positiva. Em relação ao segundo princípio,John Rawls estabelece que a segunda parte deve ser entendida como princípio liberal da igualdade eqüitativa de oportunidades. A idéia intuitiva é conceber o sistema social de modo que o resultado seja justo qualquer que seja ele, pelo menos enquanto estiver dentro de certos limites.17 Trata-se da busca de uma justiça procedimental pura. Entretanto, uma justiça procedimental perfeita é quase impossível, razão que justifica a utilização de uma justiça procedimental imperfeita.18 Cumpre referir, ainda, que Rawls prevê princípios aplicados aos indivíduos e princípios aplicados às instituições. 16 John Rawls, à p. 64, traz a seguinte afirmação sobre os dois princípios: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”. 17 Idem, p. 91. 18 “Existe um procedimento correto ou justo de modo que o resultado seja também correto ou justo, qualquer que seja ele, contanto que o procedimento tenha sido corretamente aplicado”. 12 O segundo estágio seria o da “formação da convenção constituinte”, para fazer a Constituição.19 Para que se projete, defina-se um procedimento justo, tem que se contemplar as liberdades iguais, e isso é feito pela Constituição. Esse segundo estágio acontece após a escolha dos princípios da justiça, em que se estabelece a concepção de justiça que deve pautar as instituições. Pode-se supor, então, que as pessoas deverão escolher uma Constituição e uma legislatura para elaborar leis, e assim por diante, tudo em consonância com os princípios da justiça inicialmente acordados.20 Nesse sentido, uma concepção completa de justiça é capaz de classificar procedimentos para selecionar as opiniões políticas que deverão ser transformadas em leis, e não apenas avaliar as leis e políticas. Ademais, tendo em vista o anteriormente referido, que o processo político é, na melhor das hipóteses, uma aplicação imperfeita da justiça procedimental, os cidadãos devem analisar até que ponto as leis elaboradas pela regra da maioria devem ser obedecidas, e quando podem ser rejeitadas. Até que ponto deve-se obedecer a leis injustas, havendo a possibilidade da desobediência civil, visto que maiorias erram. Essa Constituição deve trazer presentes as liberdades de cidadania, protegendo-as. Supõe-se que na estruturação desta Constituição justa os dois princípios de justiça já escolhidos definam um padrão independente para o resultado desejado. Nesse segundo estágio, em que já há uma concepção da justiça estabelecida consensualmente pela adoção dos princípios da justiça, o véu de ignorância já não é mais pleno, já teve uma parte desvendada. 19 RAWLS, John, op cit., p. 213, “Tendo conhecimento teórico e conhecendo os fatos genéricos apropriados a respeito de sua sociedade, devem escolher a constituição justa mais eficaz, que satisfaça os princípios da justiça e seja a mais bem projetada para promover uma legislação eficaz e justa”. 20 Idem, p. 14. 13 Atingindo o terceiro estágio, que é o legislativo, a justiça das leis e políticas deve ser avaliada dessa perspectiva. Os diversos institutos legais devem satisfazer não apenas os princípios da justiça, mas também respeitar quaisquer limites estabelecidos na constituição. Para Rawls O primeiro princípio da liberdade igual é padrão primário para a convenção constituinte. Seus requisitos principais são os de que as liberdades individuais fundamentais e a liberdade de consciência e a de pensamento sejam protegidas e de que o processo político como um todo seja um procedimento justo. Assim, a constituição estabelece um status comum seguro de cidadania igual e implementa a justiça política. O segundo princípio atua no estágio da legislatura. Determina que as políticas sociais e econômicas visem maximizar as expectativas a longo prazo dos menos favorecidos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades e obedecendo à manutenção das liberdades iguais.21 Nota-se, por conseguinte, que a prevalência do primeiro princípio frente ao segundo, conforme anteriormente explicado, reflete-se na prioridade da convenção constituinte sobre o estágio legislativo. O quarto, e último, estágio seria o da aplicação das regras aos casos concretos por parte dos magistrados e administradores, bem como a observância destas regras pelos cidadãos. Nesse último estágio desaparece por completo o véu de ignorância, visto que todos já têm conhecimento de todos os fatos, adotando-se um sistema pleno de regras que se aplica aos indivíduos em virtude de suas características e circunstâncias. Assim, têm-se os quatro estágios, que formam uma seqüência para a aplicação dos princípios da justiça desenvolvidos por John Rawls. Aqui, então, teríamos a adoção de princípios consensualmente estabelecidos, servindo como norte para todo o sistema. Tais princípios são adotados eqüitativamente, em um total véu de ignorância. A partir desse norte, deve-se proceder a uma convenção constituinte, fazendo uma constituição justa. Dessa constituição justa surgirão limites à legislação, 21 Idem, p. 215-216. 14 que deverá, também, ser orientada pelos princípios da justiça. A constituição e as leis são justas à medida que seguem uma justiça procedimental, mesmo que imperfeita. O objetivo da justiça, em última instância, é um resultado justo. Este resultado justo decorreria da adoção de um procedimento justo. Posteriormente, desaparece por completo o véu de ignorância, com a aplicação das regras justas estabelecidas aos casos concretos e com a obediência dos cidadãos, lembrando que podem ocorrer regras injustas, pois maiorias também erram, razão pela qual é possível falar-se em desobediência civil, perquirindo-se até que ponto os cidadãos devem obedecer leis injustas. 5. Conclusão Buscou-se, com esse trabalho, tecer algumas considerações acerca das teorias da justiça desenvolvidas por Immanuel Kant, Friedrich Hegel e John Rawls. Trata-se, sem sombra de dúvidas, de alguns dos maiores pensadores de todos os tempos, tendo desenvolvido teorias de grande valia e importância. Percebe-se que há muitas divergências entre as três teorias; entretanto, estudando os referidos pensadores, pode-se encontrar a liberdade como um valor ou princípio fundamental para todos. Kant evidencia a importância do valor liberdade ao tratar da razão pura, que seria uma razão autônoma, livre. A idéia de justiça vem do dever ser, da razão pura, e a razão só é pura quando é autônoma, sem razão externa, ou seja, uma razão é pura quando ela é livre, quando ela dá a lei a si mesma. A liberdade, portanto, não pode ser conhecida, mas deve poder ser pensada como condição de possibilidade do valor moral dos atos humanos. Ela passa a ser uma idéia reguladora, necessária para a razão prática. A idéia reguladora tem a função de ser um dever ser para tudo o que é. Só é possível emitir um juízo moral sobre o que é de fato a partir da idéia do que deve ser.22 22 WEBER, Thadeu. Razão teórica e razão prática em Kant, p. 919. 15 A dialética de Hegel, muito embora traga idéias diferentes deKant, também traz a liberdade como um princípio fundamental, orientador. Para Hegel, O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo.23 Procura Hegel mostrar a idéia de liberdade como princípio orientador e organizador das estruturas jurídicas. O Direito, como ciência filosófica, trata da reconstrução da realidade concreta do Direito, tendo como princípio orientador a idéia da universalidade da liberdade, ordenando a realidade social. Por fim, John Rawls também expressa a importância da liberdade, tratada por ele como uma ausência de impedimentos e restrições. O Estado não deve criar obstáculos, impedimentos. É um dever de não interferir imposto ao Estado. Esse é o conceito de liberdade para os liberais, como Rawls, em que se define a liberdade negativamente. A liberdade, aqui, também está presente como um princípio da justiça, um princípio orientador. Em sua obra clássica, Uma Teoria da Justiça, Rawls refere que qualquer liberdade pode ser explicada mediante uma referência a três itens: os agentes que são livres, as restrições ou limitações de que eles estão livres, e aquilo que eles estão livres para fazer ou não fazer.24 Em razão de todo o exposto, podemos perceber a importância da liberdade para qualquer teoria da justiça. Foi nesse contexto, que este ensaio procurou retratar a importância fundamental da liberdade como um princípio orientador das teorias da justiça de Kant, Hegel e Rawls. 23 Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 12. 24 Op. cit., p. 218-219. 16 BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Kant. Brasília: UnB, 1990. ____. Estudos Sobre Hegel. Direito, Sociedade Civil, Estado. São Paulo: Brasiliense/UNESP, 1991. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1999. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997. KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edição 70. ____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. WEBER, Thadeu. Hegel: Liberdade, Estado e História. 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