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15 Detalhe do frontispício da Enciclopédia, ou Dicionário analítico de ciências, artes e ofícios. Charles Nicolas Cochin, o Jovem, 1764. E ETIMOLOGIA Enciclopédia. Do grego egkuklopaideía, literalmente "ensino circular" (panorâmico), por extensão, "educa- ção completa ". Bem ao estilo do ideal iluminista, no centro desta ilustração que consta do frontispício da Enciclopédia, vemos a Verdade, envolta em intensa luz, ladeada à esquerda pela Imaginação (a poesia), prestes a enfeitá-la, e à direita pela Razão (a filosofia), que lhe retira o manto. Esse gesto faz alusão à palavra grega alétheia, "verdade", que etimologicamente signüica "não oculto", e, portanto, o que é "desvelado", "descoberto", "trazido à luz" pela razão. A obra grandiosa da Enciclopédia é composta de 28 volumes, sendo 17 de textos e 11 de estampas. Organizada por Denis Diderot, contou com mais de cem colaboradores, entre eles figuras de peso como Montesquieu, D'Alembert, Voltaire, Rousseau, Condorcet, D'Holbach. A obra divide-se em três partes: História (Memória), Filosofia (Razão) e Poesia (Imaginação). A parte de filosofia inclui a ciência, conhecida também como "filosofia natural". Observe que o subtitulo da obra - "Dicionário analítico de ciências, artes e oficios" -revela o crescente interesse pelas artes e pelos oficios, o que representa a valorização do artesão e do trabalho. Nela destaca-se a esperança depositada nos beneficios do progresso da técnica e no poder da razão de combater o fanatismo, a intolerância, inclusive religiosa, a escravidão, a tortura, a guerra. Discuta com seu colega em que medida os ideais iluministas foram cumpridos ou não - ao longo dos séculos subsequentes. 179 D De que trata o capitulo A reflexão que abre o capítulo nos dá a dimensão do que representou para o século XVIII e seguin- tes o movimento intelectual da Ilustração. A crença na razão como guia na busca da verdade acentuou o processo que vinha da modernidade, desde que Descartes destacou o poder do sujeito de atingir o que era indubitável. Veremos como as dificuldades colocadas por outros pensadores diante da pretensão da razão levaram a uma primeira revisão crítica realizada por Kant. Por sua vez, já no século XIX, Hegel, Comte e Marx, entre outros, aprofundaram as divergên- cias abrindo novas perspectivas, sobretudo a partir do desenvolvimento tecnológico e industrial, cujo impacto já era inegável. fJ A Dustração: o Século das Luzes O século XVIII é o período conhecido como Iluminismo, Século das Luzes, Ilustração ou Aufklarung (em alemão, "Esclarecimento''). Como as designações sugerem, trata-se do otimismo em reorganizar o mundo humano por meio das luzes da razão. Desde o Renascimento desenrolava-se a luta contra o princípio da autoridade e buscava-se o reconhecimento de que os poderes humanos por si mesmos seriam capazes de orientar-se sem tutela alguma. O racionalismo e o empirismo do sé- culo XVII deram o substrato filosófico dessa reflexão. A filosofia do Iluminismo também sofreu a in- fluência da revolução científica levada a efeito por Galileu no século XVII. O método experimen- tal recém-descoberto teve a técnica como aliada, expediente que fez surgirem as chamadas ciên- cias modernas. Posteriormente, a ciência seria responsável pelo aperfeiçoamento da tecnologia, o que provocou no ser humano o desejo de melhor conhecer a natureza para dominá-la. Por fim, a natureza passou a ser vista de maneira secularizada, desvinculada da religião. Livre de qualquer controle externo, sabendo-se capaz de procurar soluções para seus problemas com base em princípios racionais, o ser humano estendeu o uso da razão a todos os domínios: político, econô- mico, moral e inclusive religioso. Roland Desné assim explica a exaltação do poder humano nesse período: [ ... ]a segurança do filósofo é a segurança do burguês que deve à sua inteligência, ao seu espírito de iniciativa e de previdência, o lugar que tem na sociedade[ ... ] A emancipação do homem, na qual Kant vê o traço distintivo do Iluminismo, é a emancipação de uma classe, a burguesia, que atinge sua maioridade.1 1/;i,l PARA SABER MAIS O século XVIII é o período das revoluções burgue- sas. Ainda no final do século anterior, em 1688, a Revolução Gloriosa na Inglaterra destronou os Stuarts absolutistas e, em 1789, no continente euro- peu, os Bourbons foram depostos com a Revolução Francesa. No Novo Mundo ocorreram movimen- tos de emancipação, como a Independência dos Estados Unidos (1776), e, no Brasil, a Conjuração Mineira (1789) e a Conjuração Ba iana (1798), com nítida influência dos ideais iluministas. A influência do Iluminismo estendeu-se por toda a Europa, principalmente na Inglaterra, na França e na Alemanha. D Kant: o criticismo No tempo de Kant (séc. XVIII), a ciência newto- niana já estava plenamente constituída e as ques- tões relativas ao conhecimento ainda giravam em torno da controvérsia entre racionalistas e empi- ristas. Kant estava atento às dificuldades relativas à natureza do nosso conhecimento e debruçou-se sobre o assunto em sua obra Crítica da razão pura, mudando o rumo dessa discussão. Sua filosofia é chamada criticismo porque, diante da pergunta "Qual é o verdadeiro valor dos nossos conhecimentos e o que é conhecimento?", Kant coloca a razão em um tribunal para julgar o que pode ser conhecido legitimamente e que tipo de conhecimento não tem fundamento. Segundo o próprio Kant, a leitura da obra de Hume o des- pertou do "sono dogmático" em que estavam mer- gulhados os filósofos que não se questionavam se as ideias da razão correspondem mesmo à realidade. 1 DESNÉ, Roland, citado por CHÂTELET, François (Org.). História da .filosofia: ideias, doutrinas. v. 4. Rio de Janeiro: Zahar, s.d. p. 74. Unidade 3 O conhecimento Pretendia superar a dicotomia racionalismo-em- pirismo: condenou os empiristas (tudo que conhe- cemos vem dos sentidos) e não concordava com os racionalistas (tudo quanto pensamos vem de nós mesmos). QUEM É? lmmanuel Kant (1 724- -1804) nasceu na Prússia (Alemanha), em Kon igsberg, cidade de onde nunca saiu. Era profundamente religioso e levou vida metódica, dedicando-se a estudar e ensinar. Foi um dos maiores expoentes do Iluminismo, ao superar o racionalismo e o empirismo. Alertado pelo ceticismo de Hume, exami- nou as possibilidades e limi- lmmanuel Kant, s/d, autoria desconhecida. tes da ra zão em sua obra Crítica da razão pura, na qual indaga sobre "o que podemos conhecer"; em Crítica da razão prática trata das possibilidad es do ato moral ao perguntar sobre "o que devemos fazer"; em Crítica da faculdade do juízo investiga os juízos estéticos, distinguindo o belo do agradável e do útil. Defendeu sobretudo a autonomia moral do sujeito, a liberdade de pensa mento e a "paz perpétua", título de um texto famoso que até hoje merece atenção. Publicou também Fundamentos da metafísica dos costumes e A religião dentro dos limites da simples razão, entre outras obras. • Sensibilidade e entendimento Para superar a contradição entre racionalistas e empiristas, Kant explica que o conhecimento é constituído de algo que recebemos de fora, da expe- riência (a posteriori) e algo que já existe em nós mesmos (a priori) e, portanto, anterior a qualquer experiência. lY ETIMOLOGIA A posteriori. Do latim posterus, posterioris, "posterior". • O que vem de fora é a matéria do conhecimento: nisso concorda com os empiristas. ·O que vem de nós é a forma do conhecimento: com os racionalistas, admite que a razão não é uma "folha em branco". Qual é então a diferença entre Kant e os filósofos que o antecedem? É o fato de que matéria e forma atuam ao mesmo tempo.Para conhecer as coisas, precisamos da experiência sensível (matéria); mas essa experiência não será nada se não for orga- nizada por formas da sensibilidade e do entendi- mento, que, por sua vez, são a priori e condição da própria experiência. A sensibilidade é a faculdade receptiva, pela qual obtemos as representações exteriores, enquanto o entendimento é a faculdade de pensar ou produzir conceitos. Em cada uma dessas faculdades, Kant identifica formas a priori. • As formas a priori da sensibilidade ou intui- ções puras são o espaço e o tempo. Ou seja, o espaço e o tempo não existem como realidade externa, são antes formas a priori que o sujeito precisa para organizar as coisas. Dizendo de outra maneira, fora de nós estão as coisas, mas quando as percebemos "em cima'', "embaixo'', "do lado'' ou então "antes", "depois", "durante" é porque temos a intuição apriorística do espaço e do tempo, caso contrário não poderíamos percebê-las. • As formas a priori do entendimento são as categorias. Como o entendimento é a faculdade de julgar, de unificar as múltiplas impressões dos sentidos, as categorias funcionam como concei- tos puros, que não têm conteúdo, por serem for- mas a priori, condição do conhecimento. Kant identifica 12 categorias, entre as quais destaca- remos três: a substância, a causalidade e a exis- tência. Quando observamos a natureza e afirma- mos que uma coisa "é isto'', ou "tal coisa é causa de outra'', ou "isto existe", temos, de um lado, coisas que percebemos pelos sentidos, mas, de outro, algo lhes escapa, isto é, respectivamente as categorias de substância, de causalidade, de existência. Essas categorias não vêm da expe- riência, mas são postas pelo próprio sujeito cog- noscente. Portanto, segundo Kant: Nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo o conhecimento começa com ela. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que nossa própria faculdade de conhecimento [ ... ] fornece de si mesma. [ ... ] Tais conhecimentos A crítica à metafísica denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja, na experiência. 2 Lill PARA SABER MAIS Lembre-se de que Hume explica a causalidade pelo hábito e pela crença. Kant o refuta ao afirmar que a causal idade é uma condição da experiência e que não podia ser derivada dela. Posteriormente, outros filósofos criticaram Kant, até que na década de 1920 o físico alemão Werner Heisenbergformulou o princípio de incerteza, que põe em xeque o determi- nismo e questiona a noção de causalidade (consultar o capítulo 31, "O método das ciências da natureza"). • As ideias da razão e a metafísica Com sua teoria, Kant garante a possibili- dade do conhecimento científico como univer- sal e necessário. No entanto, até aqui trata-se do conhecimento fenomênico, isto é, restrito ao conhecimento dos fenômenos, que percebemos inicialmente pelos sentidos e pelo entendimento. Poderíamos, porém, conhecer a "coisa em si" (o noumenon)? O que seria a coisa em si? São as ideias da razão para as quais a experiência não nos dá o conteúdo necessário. Nesse sentido, o noumenon pode ser pensado, mas não pode ser conhecido efetiva- mente, porque, como vimos, o conhecimento humano limita-se ao campo da experiência. No entanto, o ser humano deseja ir além da experiên- cia e nisso consiste o trabalho da razão, que inves- tiga as ideias de alma, mundo e Deus, justamente os objetos da metafísica. Ao examinar cada uma dessas ideias, Kant se depara com as antinomias da razão pura, isto é, com argumentos contraditórios que se opõem em tese e antítese. Vamos dar alguns poucos exemplos, entre outros, a que Kant recorreu: • a ideia de liberdade tanto pode ter argumentos a favor como contra (determinismo); • pode-se argumentar tanto que o mundo tem um início e é limitado ou que não teve início e é ilimitado; • tanto se argumenta que o mundo existe a par- tir de uma causa necessária, que é Deus, ou que não existe um ser absolutamente necessário que seja a causa do mundo. Kant conclui, portanto, não ser possível conhe- cer as coisas tais como são em si. Decorre dessa constatação a impossibilidade do conhecimento metafísico. Devemos, portanto, nos abster de afir- mar ou negar qualquer coisa a respeito dessas rea- lidades. Trata-se de um agnosticismo. W ETIMOLOGIA Fenômeno. Do grego phainoménon, "aparência", o que "aparece" para nós. Noumenon. Do grego, "o que é pensado"; particípio passado de noein, "pensa r"; Kant usa o termo para designar "a coisa em si", em oposição a "fenômeno". Antinomia. Do grego anti-nomía, "contrad ição das leis", "confl ito de leis". Agnosticismo. Do grego a, "não", e gnosis, "conhe- cimento". Para um agnóstico a razão é incapaz de afirmar ou negar a exi stência do mundo, da alma e de Deus. Com frequência o termo ficou reduzido à ideia de Deus e, nesse caso, distingue-se do ateísmo, que nega a ex istência de Deus. Entretanto, em outra obra, Crítica da razão prá- tica, Kant recupera as realidades da metafísica que criticara no processo anterior. Enquanto a razão pura ocupa-se das ideias, a razão prática volta-se para a ação moral, que só é possível porque os seres huma- nos- ao contrário da natureza, sujeita aos determi- nismos - podem agir mediante ato de vontade, por autodeterminação. Pela análise do mundo ético, Kant recoloca as questões da liberdade humana, da imor- talidade da alma e da existência de Deus, recuperadas como postulados. Trata-se de postulados, ou seja, de pressupostos que lhe permitem explicar a lei moral e seu exercício. Assim Kant justifica-se: "tive de supri- mir o saber para encontrar lugar para a fê'. ~PARA SABER MAIS Os temas referentes à Crítica da razão prática serão retomados no capítulo 20, "Teori as éticas". • A heranca kantiana ' O pensamento kantiano é conhecido como idea- lismo transcendental. A expressão "transcendental" em Kant significa aquilo que dá a condição de pos- sibilidade da experiência, ou seja, o conhecimento transcendental é o que trata dos conceitos a priori dos objetos, e não dos objetos como tal. 2 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 23. (Coleção Os Pensadores). Unidade 3 O conhecimento :i ci ~ Q o "" i g a: A liberdade guiando o povo. Eugene Delacroix, 1830. O próprio Kant descreveu sua filosofia crítica como uma "revolução copernicanà': tal como Copérnico levantara a hipótese de não ser o Sol que gira em torno da Terra, mas o contrário, também Kant afirma que se a metafisica anterior admitia que o nosso conhe- cimento devia regular-se pelos objetos, agora admi- timos que os objetos regulam-se pelo nosso conheci- mento. Portanto, são os objetos que se adaptam ao conhecimento, e não o contrário. Mesmo fazendo a crítica do racionalismo e do empirismo, o procedimento kantiano redundou em idealismo: ainda que reconheça a experiência como fornecedora da matéria do conhecimento, é o nosso espírito, graças às estruturas a príori, que constrói a ordem do universo. Da crítica feita por Kant à metafísica, na Crítica da razão pura, surgiram duas linhas divergentes entre os filósofos do século XIX: • a primeira, representada pelos materialis- tas (Feuerbach) e positivistas (Comte). Para Feuerbach, a matéria é anterior ao espiritual e o determina; posteriormente, os materialistas dialéticos Karl Marx e Friedrich Engels incor- poraram ao materialismo de Feuerbach a noção hegeliana de dialética. Para Comte, a ciência (o saber positivo) é a formamais adequada de conhecimento, daí ter reduzido o conheci- mento à descrição dos fenômenos, e a filosofia, à mera síntese dos resultados das diversas ciên- cias particulares. Esta tela foi pintada no ano da revolução que depôs o rei Carlos X da França e representou uma inovação sob vários aspectos. Abandonando os princípios da representação acadêmica, que preferia cenas posadas em ateliê, Delacroix busca na rua a turbulência de um acontecimento daquele momento histórico. Em lugar de personagens importantes, prefere o povo anônimo, na luta destemida. A Liberdade é representada por uma mulher que ergue a bandeira tricolor da França e empunha um mosquete com baioneta. O menino armado simboliza a jovem República. A tela expressa düerentes niveis de tensão: entre classes, jovens e velhos, homens e mulheres, vivos e mortos. Observe a imagem com um colega e tentem localizar algumas dessas oposições. • a segunda, dos idealistas, que levaram às últi- mas consequências a capacidade que Kant atri- buía à razão de impor formas a priori ao con- teúdo dado pela experiência. Os principais nomes foram Johann G. Fichte, Friedrich Schelling e Georg W. F. Hegel. Trataremos dos idealistas e positivistas em tópicos específicos, a seguir. 1- Um novo tempo No final do século XV1II e começo do século XIX ocorreram significativas transformações. ·As revoluções: a independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789) foram celebradas como conquistas das Luzes. • A implantação do Terror na França por Robespierre e posteriormente a instauração do Império por Napoleão: tudo parecia contradizer o espírito do Iluminismo. • Prenúncio do romantismo na Alemanha (década de 1770) com o movimento Sturm und Drang ("tempestade e ímpeto"), com o nacionalismo e a exaltação da natureza, do gênio, do senti- mento e da fantasia. Esse foi um período de grande produção literária, com destaque para Goethe e Schiller, e filosófica, com]acobi e Herder. Esse movimento desembocou na recuperação da cultura clássica, no gosto pela arte e filosofia gregas, cujo equilíbrio se contrapôs à impetuosidade do período inicial do romantismo. A crítica à metafísica Capitulo 15 1 O monge à beira-mar, de Caspa r David Friedrich, 1809. Nesse ambiente cultural surgiu o idealismo filosó- fico, representado por Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Schelling e Georg Hegel, sendo este último o que exer- ceu maior influência no pensamento posterior. I] Hegel: o idealismo dialético O alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770- -1831) viveu a turbulência daqueles momentos que sacudiram a Europa e entusiasmou-se com eles. Conta-se que, ainda jovem, com 19 anos, ao lado de Schelling e Hõlderlin, celebrou a Revolução Francesa com o plantio simbólico de uma árvore. Sua admi- ração por Napoleão, pela capacidade humana de transformação e pelo elogio aos movimentos polí- ticos revolucionários refletiu-se em sua concepção filosófica de história e em sua epistemologia. Imbuído do espírito de sua época, fundou seu sis- tema a partir da noção de liberdade do sujeito, cuja experiência não é solitária, mas se encontra envolvida pelo coletivo -instância essencial para a consciência de si mesmo. Nesse sentido, Hegel criticou a filoso- fia transcendental de Kant por ser muito abstrata e alheia às etapas da formação da autoconsciência do indivíduo e deste na sua cultura. Hegel escreveu inúmeras obras, entre as quais Fenomenologia do espírito, Ciência da lógica, Enciclopédia das ciências filosóficas, Introdução à história da filosofia e Principias da filosofia do Direito; outras resultaram das anotações de seus alunos na universidade de Jena. A produção filosófica de Hegel talvez represente o último exemplo de teoria sistemática, que forma um todo acabado cujas partes se interligam de maneira Unidade 3 O conhecimento O pintor David Friedrich produziu inúmeras paisagens que exprimem o "sentimento do subli.me", tipico do romantismo. Nesta tela, observe a figura di.minuta do monge olhando o mar, enquanto tem a experiência simultânea de fascinio e terror em face do "demasiadamente grande" . Os sentimentos provocados pela visão do horizonte i.li.mitado do mar e a imensidão da natureza nos colocam diante do incomensurável, pelo qual nos damos conta de nossa pequenez e fi.nitude. coesa. No entanto, sua vasta erudição e a transforma- ção que realiza em conceitos tradicionais tomam sua filosofia de dificil interpretação, às vezes hermética. Conceitos como ser, lógica, absoluto e dialética assu- mem sentidos radicalmente novos. Por exemplo: o ser não é o ser da metafisica tradicional, mas designa uma realidade em processo, uma estrutura dinâmica. Além de que nenhum conceito é examinado por si mesmo, mas sempre em relação ao seu contrário: ser-nada, corpo-mente, liberdade-determinismo, universal- -particular, Estado-indivíduo. Ou seja, o ser está em constante mudança: esta é a dialética hegeliana, ins- pirada no pré-socrático Heráclito. liiYETIMOLOGIA Dialética. Do grego dialektiké, termo composto de lego, "falar", e dia, "através de", "por meio de". Entre os gregos, significa o diálogo, a arte da discussão. Em Hegel, expl ica a mudança pela contradição. • A dialética Hegel introduz uma noção nova, a de que a razão é histórica, ou seja, a verdade é construída no tempo. Partindo da noção kantiana de que a consciência (ou o suje i to) interfere ativamente na construção da realidade, propõe o que se chama filosofia do devir, do ser como processo, como movimento, como vir- -a-ser. Desse ponto de vista, o ser está em constante transformação, donde surge a necessidade de fun- dar uma nova lógica que não parta do princípio de identidade, que é estático, mas do princípio de con- tradição, para dar conta da dinâmica do real. A sua nova lógica Hegel chama dialética. Hegel desenvolve, portanto, um novo conceito de história, também dialético: o presente é engendrado por longo e dramático processo; a história não é simplesmente acumulação e justaposição de fatos acontecidos no tempo. Resulta de um processo cujo motor interno é a contradição dialética, que conduz ao autoconhecimento do espírito no tempo. Segundo a dialética, todas as coisas e ideias sur- gem e morrem. Como diz o poeta Goethe: "Tudo o que existe merece desaparecer". Mas essa força des- truidora é também a força motriz do processo his- tórico. A ideia central é a de que a morte é criadora, geradora. Todo ser contém em si mesmo o germe da sua ruína e, portanto, de sua superação. Em sua principal obra, Fenomenologia do espírito, o termo fenomenologia remete à noção de fenômeno como aquilo que nos aparece, que se manifesta, na medida em que é um objeto distinto de si, porque nele descobrimos a contradição, que por sua vez será superada em um terceiro momento. Vamos exempli- ficar as três etapas da dialética com o desenvolvi- mento da planta, que passa pelo botão, flor e fruto: • o botão: é a afirmação; • a flor: é a contradição, é a negação do botão; • o fruto: é uma categoria superior, a superação da contradição entre botão e flor. Napoleão sobre o cavalo na passagem de São Bernardo. Jacques Louis David, 1801. Hegel admirava Napoleão até que, em 1807, as tropas francesas acamparam em frente de sua casa, em Jena, na Alemanha. ~PARA SABER MAIS É comum referir-se à tese, antítese e síntese como as trêsetapasda dialética hegeliana.Noentanto,o próprio Hegel não fez uso desses termos, que foram introduzi- dos em 1837 por um comentador, Heinrich Chalybaus. Para melhor entender o processo dialético, lem- bramos que Hegel usa a palavra alemã aufheben, "superar". A riqueza do termo está em significar "suprimir", "negar" e também "conservar". Essa ambivalência é adequadapara representar que, na superação da contradição, o que é negado é ao mesmo tempo mantido pela dialética. Portanto, a contradição não se reduz à alternativa de enuncia- dos excludentes de tipo "ou-ou". U' PARA REFLETIR O que seria a crise da ado lescência senão a contra- dição entre aquilo que fomos na infância e o que negamos dela? Por isso confrontamos nossos pais e seus valores, ao mesmo tempo que esses valores fazem parte de nós. A maturidade é que irá supe- rar a contradição, ao nos const ituirmos como sujei- tos livres ... até que outras cont rad ições surjam para serem superadas. Você viveu ou vive essas contradi- ções em sua adolescência? Dê um exemplo. Desse modo, conhecer a gênese, o processo de constituição pelas mediações contraditórias, é conhecer o real. Por esse movimento, a razão passa por todos os graus, desde o da natureza inorgânica, da natureza viva, da vida humana individual até a vida social. Vejamos esse processo. Para explicar o devir, Hegel parte não da natu- reza, da matéria, mas da ideia pura: • a ideia, para se desenvolver, cria um objeto oposto a si, a natureza; • a natureza é a ideia alienada, o mundo privado de consciência; da luta desses dois prinCípios opostos surge o espírito; • o espírito é ao mesmo tempo pensamento e matéria, isto é, a ideia que toma consciência de si por meio da natureza. • O idealismo O que Hegel entende por espírito? Num sentido geral, espírito ( Geist, em alemão) é uma atividade da consciência que se manifesta no tempo e se expressa em três momentos distintos: • o espírito subjetivo é o espírito individual, ainda encerrado na sua subjetividade (como ser de emoção, desejo, imaginação); • o espírito objetivo opõe-se ao espírito subjetivo: como tal, é o espírito exterior como expres- são da vontade coletiva por meio da moral, do direito, da política. O espírito objetivo realiza-se naquilo que se chama mundo da cultura; A critica à metafísica Capítulo 15 Mosaico de Minerva, 188o. M inerva é a versão latina da grega Atena, deusa da razão, das artes, da literatura e da filosofia, geral mente representada com a coruja, uma ave noturna. • o espírito absoluto, ao superar o espírito obje- tivo, realiza a síntese final em que o espírito, ter- minando o seu trabalho, compreende-o como realização sua. A mais alta manifestação do espírito absoluto é a filosofia, saber de todos os saberes, quando o espírito atinge a absoluta autoconsciência, depois de ter passado pela arte e religião. Por isso, Hegel chama a filosofia de ''pássaro de Minerva que chega ao anoitecer", ou seja, a crítica filosófica é feita ao final do trabalho realizado. O espírito absoluto na verdade é o mais complexo, porque ele é a totalidade ou síntese que resulta de todo o percurso anterior de autoconhecimento do espírito. Ao explicar o movimento gerador da realidade, Hegel desenvolve uma dialética idealista: a raciona- lidade não é mais um modelo a se aplicar, mas é o próprio tecido do real e do pensamento. Na Filosofia do Direito, Hegel diz que o mundo é a manifestação da ideia: "o real é racional e o racional é real". A ver- dade, nesse caso, deixa de ser um fato para ser um resultado do desenvolvimento do espírito. A razão nasce, portanto, no momento em que a consciência adquire "a certeza de ser toda a rea- lidade" por meio das etapas fenomenológicas da razão no processo dialético. É esta uma contribui- ção fundamental de Hegel: a defesa de uma concep- ção processual de tudo o que existe. Unidade 3 O conhecimento Essa maneira de pensar é um idealismo porque os seres humanos pensam sobre si mesmos, mas também sobre a natureza, que inicialmente surge como um "outro'', diferente de mim, o que é supe- rado quando ela é "idealizada'' pela razão. Na filosofia posterior a Hegel, tornou-se fecunda a ideia de que a razão é histórica e transforma-se a partir de conflitos e contradições. Como veremos, ora os pensadores reafirmam o caráter determi- nante da razão e reforçam o idealismo, ora criticam esse idealismo. É o que fazem os marxistas, que enfatizam as contradições sociais e políticas como determinantes do processo que provoca a mudança da própria razão. Lill PARA SABER MAIS Voltaremos a Hegel no capítulo 25, ''Libera lismo e democracia". D Comte: o positivismo A Revolução Industrial no século XVIII, expressão do poder da burguesia em expansão, demonstrou a eficácia do novo saber inaugurado pela ciência moderna no século anterior. Ciência e técnica tor- naram-se aliadas, provocando modificações jamais suspeitadas. Basta lembrar que, antes da máquina a vapor, era usada apenas a energia natural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais que tenha havido avanços nas técnicas adota- das pelos diversos povos através dos tempos, nunca um novo modo de produzir energia foi tão crucial como a obtida do vapor, que só se tornou possível com a Revolução Industrial. A exaltação diante dos novos saberes e for- mas de poder levou à concepção do cientificismo, que se caracteriza pela valorização da ciência. Ela se tornou o único conhecimento possível, e o método das ciências da natureza passou a ser o único válido e que deveria, portanto, ser esten- dido a todos os campos de conhecimento e de ati- vidades humanas. A doutrina positivista, cujo principal represen- tante foi o francês Augusto Comte (1798-1857), nasceu nesse ambiente cientificista - que o pró- prio filósofo ajudou a exacerbar. Em sua obra Curso de fi losofia positiva, propôs-se a examinar como ocorreu o desenvolvimento da inteligência humana desde os primórdios, a fim de dar as dire- trizes de como seria melhor pensar a partir do pro- gresso da ciência. o u ~ <> " C> "' ai 3 o c; :5 a. o "' ~ o o u ~ "' • A lei dos três estados Comte diz ter descoberto uma grande lei funda- mental, segundo a qual o espírito humano teria pas- sado por três estados históricos diferentes: o teoló- gico, o metafísico e finalmente o positivo. • No estado teológico, as explicações dos fenô- menos supõem uma causalidade sobrenatural; os fenômenos da natureza, a origem dos seres, os costumes são explicados pela ação dos deuses. Tumba de Nefertari, esposa de Ramsés li (1 9ª dinastia), sécu lo XIII a.C. Osíris verde, deus da vida e da morte. No Egito Antigo, o culto de natureza mistura-se com o nascimento das divindades. Osíris é verde porque representa a fertilidade da terra, ao mesmo tempo que é o senhor da vida, da morte e da ressurre ição. • No estado metafísico, os agentes sobrenatu- rais são substituídos por forças abstratas, por noções absolutas pelas quais são explicadas a origem e o destino do universo; por exemplo, na sua metafísica, Aristóteles explica a queda dos corpos pela essência dos corpos pesados, cuja natureza os faria "tender para baixo'', para o seu "lugar natural". · No estado positivo, que decorreu do desen- volvimento das ciências modernas, as ilusões teológicas e metafísicas foram superadas pelo conhecimento das relações invariáveis dos fatos, por meio de observações e do raciocí- nio, que visam a alcançar leis universais. Por exemplo, Galileu Galilei, espírito positivo, não indaga por que os corpos caem, não procura as causas primeiras e últimas, mas se con- tenta em descrever como o fenômeno da queda ocorre. Para Comte, o termo "positivo'' designa o real em oposição ao quimérico, a certeza em oposição à indecisão, o preciso em oposição ao vago. Portanto, o estado positivo corresponde à maturidade do espírito humano, objetivo de toda educação daí em diante. É nesse sentido que diz: Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados.Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada , como convém, ao estado viril de nossa inteligência.3 Desse modo, o positivismo retoma a orientação daqueles que aproveitaram a crítica feita por Kant à metafísica, no século XVIII. E leva às últimas con- sequências o papel reservado à razão de descobrir as relações constantes e necessárias entre os fenô- menos, ou seja, as leis invariáveis que os regem. Ao se estender para as explicações sobre os fenôme- nos humanos, essa concepção recusa a noção de liberdade. • A classüicação das ciências O determinismo cientificista do positivismo des- considerou as expressões míticas, religiosas e meta- físicas. E à filosofia, que papel lhe foi reservado? Segundo Com te, cabe a ela a sistematização das ciên- cias, a generalização dos mais importantes resulta- dos da física, da química, da história natural. Comte reconhece que a matemática, pela sim- plicidade de seu objeto, constitui uma espécie de instrumento de todas as outras ciências e desde a Antiguidade teria atingido o estado positivo. Elaborou então a classificação das ciências - cinco, ao todo: astronomia, física, química, fisiolo- gia (biologia) e "física social" (sociologia). Essa clas- sificação parte da ciência mais simples, mais geral e mais afastada do humano, que é a astronomia, até a mais complexa e concreta, a sociologia. 3 COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 11. A crítica à metafísica • A sociologia, ciência soberana Comte afirmava ser o fundador da sociologia, por ter sido ele quem lhe deu o nome e o esta- tuto de ciência. Definiu-a como física social, mas na verdade tomou os modelos da biologia e expli- cou a sociedade como um organismo coletivo. Entusiasmara-se pela então recente teoria ~ ~de Gall, que analisava a inteligência humana pela sua origem orgânica, inclusive buscando deli- mitar a localização, no cerébro, das faculdades mentais - conhecer, sentir, querer - , sem con- siderar conceitos como "eu'', "alma'', "consciência'', típicos da filosofia tradicional. Inspirado por essa teoria, Comte afirmava que apenas uma elite teria capacidade de desenvolver a parte frontal do cérebro, sede da faculdade superior, ou seja, da inteligência e dos sentimentos morais. Concluiu pela necessidade de a maioria dos seres humanos- dominados pela afetividade e, portanto, causadores da instabilidade social - ser moldada e dirigida em nome da harmonia e da ordem social, a fim de garantir o "progresso dentro da ordem". Reconhece que o indivíduo, submetido à cons- ciência coletiva, tem pouca possibilidade de inter- venção nos fatos sociais. A ordem da sociedade é permanente, à imagem da invariável ordem natu- ral. A sociologia de Com te gira em torno de núcleos constantes, como a propriedade, a família, o traba- lho, a pátria, a religião. Para alguns intérpretes, a filosofia comteana pode ser considerada uma reação conservadora à Revolução Francesa (1789). No entanto, a professora CRÁ NRS DE CRJM I N RLS Lelita de Oliveira Benoit não identifica seu pensa- mento com o caminho contrarrevolucionário enca- beçado por De Maistre, por exemplo. Comte não pensava em uma volta ao passado, à realeza e ao catolicismo, a fim de conservar a ordem burguesa abalada pela revolução. Não pretendia eliminar o progresso, mas desenvolver uma teoria da ordem com o progresso: ele queria participar da reconstru- ção, instituindo a ordem de maneira soberana. É essa ideia de ordem que dominou seu trabalho de sistematização da filosofia, levando-o a classi- ficar as ciências e todo o conhecimento em qua- dros fechados, estanques. Vale observar que a pala- vra ordem significa ao mesmo tempo "arranjo" e "mando''. É o próprio Comte que afirma: "Nenhum grande progresso pode efetivamente se realizar se não tende finalmente para a evidente consolida- ção da ordem". A história não é mais pensada como vir-a-ser, mas como sequência congelada de estados definitivos. A evolução seria a realização, no tempo, daquilo que já existia em forma embrionária e que se desenvol- veria até alcançar o seu ponto-final. O conceito de ciência comteano é o de um saber acabado, que se mostra sob a forma de resultados e receitas. Tendo colocado a ciência positiva como o ápice da vida e do conhecimento humanos, Comte estabeleceu uma série de postulados aos quais a ciência deve- ria se conformar. O principal deles seria assegurar a marcha normal e regular da sociedade industrial. Ora, ao fazer isso, Comte trocou a teoria filosófica do conhecimento por uma ideologia. ARNIONI bri gan d Existe criminoso nato? Há quem pense que sim. O médico criminalista italiano Cesare Lombroso (1836-1909), igualmente influenciado pela frenologia de GaU, desenvolveu uma teoria para "identificar", na formação craniana e nos traços de fisionomia, os sinais da delinquência. Suas conclusões, de orientação positivista, tiveram larga aceitação por um certo periodo. Teria desaparecido sua influência? Você certamente VILLELLA t-: ~~~:!t~i~~~p~~:!l~ 11!11~;:~:~ut ARNI (IN I brigt nd C. Tu~•n:ulu ocuu~ d' tu <rôtn CH I ES I uunin, npl!!!- WJ!CCHI ~•le~r Unidade 3 O conhecimento já assistiu a telejornais de noticia policial. Na imprensa e nas conversas, sobretudo quando ocorre um crime bárbaro, é comum algumas pessoas tentarem explicar as ações criminosas com base em condicionantes psicológicos (distúrbios mentais, comportamento antissocial nato) ou fisiológicos (biológicos), que determinariam de modo incontrolável aqueles atos. Qual é seu ponto de vista? Para você, as teorias de Lombroso para explicar o comportamento criminoso são válidas ou não? Justifique sua resposta. Crânios de criminosos. Cesare Lombroso, 1887. • A religião da humanidade A rígida construção teórica de Comte culminou com a concepção da religião positivista. Não deixa de ser incoerente a criação de uma religião, pois, no contexto do seu pensamento, o estado teológico é o mais arcaico e infantil da humanidade. No entanto, desde seus primeiros escritos já aparecia essa noção de espiritualidade, que não se confundia com a reli- gião tradicional. Diante do poder espiritual arrui- nado de seu tempo, Comte via a necessidade de refundá-lo em princípios não teológicos, por meio da criação de uma Igreja Positivista, principalmente para convencer o proletariado a abandonar o pro- jeto revolucionário. A religião do positivismo integra a sociedade dos vivos na comunidade dos mortos, na trindade for- mada pelo Grande Ser (a humanidade), pelo Grande Feitiço (a Terra) e pelo Grande Meio (o Universo). Seria a religião da humanidade que forneceria o enquadra- menta social para colocar os indivíduos ao abrigo das convulsões históricas. A religião positivista produzi- ria então o milagre da harmonia social. Interior da Igrej a Posit ivista do Brasi l. Ri o de Janeiro, 200 5 . O tem plo posit ivist a foi construído segundo orientações expressas de Augusto Comte. Nas paredes latera is, 13 bustos homenageiam grandes personalidades, responsáveis pelos progressos na ciência, na indústria, nas artes, na arq uitetura, como Moisés, Homero, Aristóte les, Dante e Gutenberg. No alta r principal, há uma pintura de Clot ilde de Vaux, por quem Comte se apaixonara: com uma criança no colo, ela simboliza a humanidade. • O positivismo no Brasil O positivismo exerceu grande influência no pensamento latino-americano. Em 1876, foi fim- dada a Sociedade Positivista do Brasil e, em 1881, Miguel Lemos e Teixeira Mendes fundaram a Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, cujo templo se situa na cidade do Rio de Janeiro. Foram eles tam- bém os idealizadores da bandeira brasileira, com o seu dístico "Ordem e Progresso". Outros representantes foramLuís Pereira Barreto e Benjamin Constant, este último militar e matemá- tico, conhecido pela participação atuante no movi- mento político que culminou com a proclamação da República. Como ministro da Instrução (equiva- lente ao da Educação), tentou transformar a tradi- ção humanística do ensino com a introdução dos estudos científicos. Os adeptos do positivismo eram geralmente jovens da pequena burguesia comercial de cidades em crescimento, cujo anseio pela industrialização se contrapunha aos interesses dos proprietários de terra. Muitos positivistas eram militares, médi- cos e engenheiros, o que denotava a valorização do conhecimento científico. • A herança positivista Além da influência na proclamação da República, o positivismo, no Brasil, repercutiu de maneira deci- siva na concepção cientificista, a que já nos referi- mos no início deste tópico. Essa orientação marcou a epistemologia das ciências humanas no início do século XX, dando origem à sociologia de Durkheim (1858-1917), que quis fazer dela uma ciência objetiva, examinando os fatos sociais como "coisas". Também a psicologia teve início na Alemanha, no final do século XIX, como psicofísica. Seus repre- sentantes, como Wilhelm Wundt (1852-1920), eram médicos voltados para o exame de questões relati- vas à percepção, com experiências controladas em laboratórios, deixando de lado questões que não pudessem ser observadas. til PARA SABER MAIS Voltaremos à influência de Comte no capítulo 32,"0 método das ciências humanas". Frenologia. Teoria segundo a qual cada uma das faculdades mentais se localiza em uma parte do córtex cerebral. O tamanho ocupado por cada faculdade poderia ser percebido pela configuração externa do crânio. A aítica à metafísica Capítulo 15 .. . ~-~- ~I! Moradores da vi la operária na Rua do Senado. Rio de Janeiro, 1906. Moradores diante de cortiço. A literatura naturalista do século XIX exemplifica bem a tendência ao materialismo e ao determinismo com a separação entre mente e corpo. São comuns as descrições de personagens como simples joguete do meio, da raça, do momento. Nos romances O mulato e O cortiço, de Aluisio Azevedo, o negro e o pobre são condicionados pelas circunstâncias, das quais não conseguem escapar. m Marx: materialismo e dialética Os alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) escreveram juntos algumas obras e outras separadamente, mas sempre estive- ram um ao lado do outro por convicções de pensa- mento e por amizade. Engels, rico industrial, muitas vezes acolheu Marx e a família em momentos de dificuldades financeiras. Juntos observaram que o avanço técnico aumen- tara o poder humano sobre a natureza e foi res- ponsável por riquezas e progresso; mas, de outro lado, e contraditoriamente, trouxera a escraviza- ção crescente da classe operária, cada vez mais empobrecida. Leitores de Hegel, aproveitaram dele a dialé- tica. Porém, Marx e Engels perceberam que a teo- ria hegeliana do desenvolvimento geral do espí- rito humano não conseguia explicar a vida social. Dando sequência às críticas feitas por Feuerbach ao idealismo, Marx e Engels realizaram uma inver- são, assentando as bases do materialismo dialético. Engels afirma que: [ ... ]a dialética de Hegel foi colocada com a cabeça para cima ou , dizendo melhor, ela , que se tinha apoiado exclusivamente sobre sua cabeça, fo i de novo reposta sobre seus pés4 Ou seja, enquanto para Hegel o mundo material é a encarnação da "ideia absolutà', da "consciência", para o materialismo o mundo material é anterior ao espírito e este deriva daquele. Segundo a visão materialista, o movimento é a propriedade funda- mental da matéria e existe independentemente da consciência. A matéria, como dado primário, é a fonte da consciência, e esta é um dado secundário, derivado, pois é reflexo da matéria. No contexto dialético, porém, a consciência humana, mesmo historicamente situada, não é pura passividade: o conhecimento das relações determinantes possibilita ao ser humano agir sobre o mundo, até mesmo no sentido de uma ação revolucionária. • Materialismo histórico O materialismo histórico é a aplicação dos princí- pios do materialismo dialético ao campo da histó- ria. Como o próprio nome indica, é a explicação da história a partir de fatores materiais (econômicos, técnicos). Pelo senso comum costuma-se explicar a história pela ação das grandes figuras, como César, Carlos Magno, Luís XVI, ou das grandes ideias, como o helenismo, o positivismo, o cristianismo, ou ainda pela intervenção divina. Marx inverte esse processo: no lugar das ideias, estão os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes. 4 ENGELS, G. "Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã''. Em: MARX Karl e ENGELS. Friedrich. Antologia .filosófica. Lisboa: Estampa, 1971. p. 136. Unidade 3 O ~onhecimento g ~ "' u e ~ s o u ~ o "' o ;;; .. <ri 3 "' "' :f o O> u <> o o u ~ "' ~ g :õ e <> ~ u e <> lf o a: w z ,;:; w o o ã' :i z o \;l Cartaz, ~ provavelmente s do início do ~ séculoXX. A Lei Áurea, que pôs fim à escravidão, resultou do crescente encarecimento da mão de obra escrava, das pressões internas em prol da abolição, incluindo as revoltas e as fugas de escravos, e do fortalecimento de fazendeiros do oeste paulista, os quais, de mentalidade mais capitalista, já tinham iniciado a experiência com a mão de obra livre. Sob essa perspectiva, os motivos econômicos tiveram maior força na abolição do que os ideológicos, ao contrário do que insinua a ilustração. Nela o branco cumprimenta o negro, e a expressão "Agora sim!" demonstra um otimismo que não se cumpriu, já que os ex-escravos não foram adequadamente integrados ao mercado de trabalho nem à sociedade, e lutam até hoje contra o preconceito e a discriminação. Discuta com seu colega por que esse tema foi escolhido para fazer parte em um tópico sobre a teoria de Marx. llill PARA SABER MAIS Consu lte também os capítulos 6, "Trabalho, al iena- ção e consumo", e o 26, "As teorias social istas". O marxismo não nega o heroísmo de alguns nem as ideias, mas explica a realidade a partir da estrutura material de uma determinada sociedade. A ide ia é algo secundário, não no sentido de ser menos importante, mas sim por derivar de condições materiais, ou seja, as ideias do direito, da literatura, da filosofia, das artes ou da moral estão diretamente ligadas ao modo de produção econômico. Por exemplo: na moral medie- val, a valorização da fidelidade do vassalo ao suserano decorre do modo de produção que estabelece os for- tes liames da hierarquia. Sem a fidelidade, a relação de produção na sociedade feudal estaria arruinada. Com o comércio e a indústria nascente, que se baseava no modo de produção capitalista, deixam de existir senhores, vassalos e seus servos. As rela- ções de trabalho estabelecidas por contratos e a ideia de cidadania se sobrepõem aos valores de fide- lidade e servidão. Portanto, segundo Marx, para estudar a socie- dade não se deve partir do que os indivíduos dizem, imaginam ou pensam, mas da identificação de como produzem os bens materiais necessários a sua vida. Analisando as forças produtivas e as rela- ções de produção é que se descobre como os seres humanos produzem sua vida, suas ideias e como fazem a história. Assim dizem Marx e Engels em A ideologia alemã: Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.5 E Marx, em Teses sobre Feuerbach: Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transjormá-lo. 6 O que os dois filósofos querem nos dizer? Que não basta teorizar, se nãopartirmos da vida concreta e a ela voltarmos para transformá-la. O movimento dialético entre teoria e prática chama-se práxis. Mas não se veja na teoria uma atividade anterior à prá- tica e que a determina nem vice-versa, uma vez que ambas encontram-se dialeticamente envolvidas. No mesmo texto Teses sobre Feuerbach (Tese li), Marx diz: A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a real idade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento isolado da práxis é uma questão puramente escoJástica. Escolástica. Com este termo, Marx ironiza a tradição aristotélico-tomista, que para ele é idealista, contemplativa e, portanto, desligada dos rea is interesses humanos. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1984. p. 37. 6 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Hucitec, 1984. p. 14. A crítica à metafísica Capítulo 15 1 • A ideologia Segundo o materialismo dialético marxista, as ideias devem ser compreendidas no contexto his- tórico vivido pela comunidade. No entanto, Marx vai além, mostrando que muitas vezes esse conhe- cimento aparece de maneira distorcida, como ideo- logia, ou seja, como conhecimento ilusório que tem por finalidade mascarar os conflitos sociais e garan- tir a dominação de uma classe sobre outra, quando se vive em uma sociedade dividida em classes, com interesses antagônicos. Para Marx, as concepções filosóficas, éticas, poli- ticas, estéticas, religiosas da burguesia são estendi- das para o proletariado, perpetuando os valores a elas subjacentes como verdades universais. E desse modo, impedem que a classe submetida desenvolva uma visão do mundo mais universal e lute por sua autonomia. O quarto estado. Giuseppe Pel izza da Volpedo, 18g8-1g01. O títu lo da obra sugere que o proletariado seria o novo poder emergente. Os três estados eram no século XIX a nobreza, o clero e o "terceiro estado" (a burguesia). Se levarmos às últimas consequências a ideia de que, sob uma perspectiva dialética, a consciência nunca é cegamente determinada, pode-se concluir que caberá à classe dominada desenvolver o dis- curso não ideológico, portador de universalidade Unidade 3 O conhecimento e não mais restrito aos interesses de uma classe dominante. E, como dirá Marx, o proletariado poderá lutar inclusive pela revolução, entendida como transformação radical do ser humano e da sociedade. 6 Para uma visão de conjunto No século XVIII, Kant propôs superar a dicoto- mia racionalismo-empirismo, que fora a principal discussão epistemológica do século anterior. Aliou as formas a priori da sensibilidade e do entendi- mento ao conteúdo fornecido pela experiência sen- sível, mas esbarrou nas antinomias da razão que o impediam de conhecer as realidades metafísicas. A filosofia de Kant desembocou, no século XIX, no idealismo e no materialismo, nos quais destacamos Hegel, Comte e Marx. Hegel inovou ao perceber a realidade como um processo dialético: a razão é histórica, a verdade é construída no tempo. O pensamento, posto em movimento na história, desferiu um golpe na visão estática e metafísica do mundo. Para o idealismo hegeliano, mais do que um modelo a ser aplicado, a racionalidade é o próprio tecido do real e do pensamento. Comte procurou entender o novo mundo criado pela ciência, pela tecnologia e pelo desenvolvimento industrial. Descartou a metafísica ao reconhecer a ciência positiva como um saber acabado, o ápice da vida e do conhecimento humanos, configurando assim a concepção cientificista que marcaria um longo período. Apropriando-se da dialética e baseado em uma visão materialista do mundo, Marx reforçou a dimensão comunitária da vida e viu no conheci- mento uma maneira de intervir no mundo ( conhe- cer para transformar). Com a crítica da ideologia - esse saber ilusório - , antecipou questões que, no século seguinte, desencadearam a chamada "crise da razão". Deixamos aqui de examinar o pensamento de Nietzsche, para abordá-lo na próxima parte, tal a força iconoclasta de suas ideias e sua influência na filosofia do século XX. Iconoclasta. Que destrói imagens sagradas (ícones). No contexto, que se opõe à tradição, que destrói valores constituídos.
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