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1 UMA TEORIA PARA A QUESTÃO RACIAL DO NEGRO BRASILEIRO: A trilha do círculo vicioso Hélio Santos Professor da Faculdade de Economia e Administração da PUC-Campinas, Ex-presidente do Conselho da Comunidade Negra de São Paulo A invisibilidade da temática racial no Brasil nunca foi tão grave quanto nos dias atuais. À medida que o país busca a consolidação da democracia, a luta pela cidadania do negro, contraditoriamente, dilui-se nas chamadas “questões gerais” do povo brasileiro. Tal emperramento observa-se de maneira mais nítida desde a eleição e posse do Congresso Constituinte (1986-87) e, após o Centenário da Abolição (1988), entramos em um processo de letargia profunda. É certo, contudo, que o que se convencionou chamar “Movimento Negro” nunca pôde sozinho, dar conta de toda questão racial que, para nós, continua sendo o nó da democracia em um sentido mais amplo, em nosso país. Inicialmente, é importante reconhecer essa obviedade: o Movimento Negro no Brasil é um diminuto extrato da população negra e reflete amostralmente o que vem a ser o povo negro aqui; logo trazendo consigo toda carga de dificuldades inerente aos descendentes dos escravos de um país que foi o último a abolir o escravismo e o primeiro a se autoproclamar democrata racial. Depois, seria necessário reconhecer também que não há, rigorosamente falando, um sentido unitário na luta do negro no Brasil. O certo, portanto, seria falarmos em Movimentos(s) Negros(s), em virtude de existir uma razoável defasagem por parte dos diversos grupos em relação ao nível de compreensão do conjunto da luta. Finalmente, deve-se reconhecer ainda que o tamanho das dificuldades de ordem política, material e teórica tornam a questão tão complexa ao ponto de nenhum segmento isolado dar conta da mesma. Assim, não é justo, no Brasil, exigir do Movimento Negro a eficácia requerida para promover grandes avanços nessa área sem o apoio da academia, dos partidos políticos e, sobretudo, do Estado e dos meios de comunicação de massa. O Movimento Negro teria assim uma expansão pela adesão de aliados diferenciados e que não deveriam ser necessariamente negros. Todos que se dediquem ao estudo da questão racial do negro no país sabem que tal problema é específico, dado as idiossincrasias da realidade brasileira. Não é de se esperar que o Movimento Negro, sozinho, tenha que gestar uma teoria específica que facilite o real avanço dessa luta. A criação de uma tecnologia específica que sirva de instrumento adequado para tal batalha exige um tipo de conhecimento que ainda está para ser colocado. Daí o título desse artigo. O presente trabalho é parte de um ensaio cujo projeto foi desenvolvido com o apoio do Centro de Estudos Afro-Brasileiros de Brasília (Ceab) e do Conselho Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No estudo efetuado, buscávamos discutir a necessidade de dispormos de uma teoria específica para nossa específica luta. É sabido que a maior força do racismo e preconceito racial contra os negros no Brasil advém da forma aparentemente branda com que tais manifestações acontecem. Por outro lado, é sabido, também, que a grande fraqueza do apartheid americano (até os anos 60) e sul-africano (até recentemente) foi a forma absurdamente violenta com que se impedia o direito à cidadania ao povo negro. Ora, diante de um racismo que se manifesta diametralmente oposta, não foi sábia a idéia de tentarmos atuar como os militantes negros americanos nos anos 50 e 60. Ter como referência o reverendo Luther King ou o revolucionário Malcoml X, ou ainda, o prisioneiro Nelson Mandela foi o caminho trilhado pelo Movimento Negro. Aqui, o discurso racial não tem aderência em virtude da forma com que o discriminado vê a sua realidade introspectivamente. São Paulo em Perspectiva, v.8, n.3, jul/set 1994, p.56-65 2 Por que isso ocorre? Basicamente, pela maneira com que a discriminação racial se manifesta entre nós, com as suas mil caras, como um caleidoscópio. Evidentemente, isso é fortemente agravado pelo antigo fusionismo racial, inegável para nós. Portanto, a miscigenação é outro tópico com o qual nós do Movimento Negro não sabemos lidar muito bem. Também pudera. O que Gilberto Freyre denominou de “fusionismo racial”, o levou a crer que tínhamos uma democracia racial. Entretanto, o nosso maior aliado, entre os cientistas sociais, Florestan Fernandes, imaginou uma certa mobilidade social dos chamados mulatos que mais tarde provou-se falsa (Silva, 1980). Ambos, apesar de possuírem posturas ideológicas opostas, foram traídos pelo olho, analisando o mesmo fato: viram mestiços em profusão indo e vindo e acreditaram que tal movimentação física significasse mobilidade social. É o que se pode chamar de ilusão de óptica. Erros desse tipo foram os que mais se cometeram, tanto pela militância negra, quanto pelos estudiosos da questão racial. Nosso entendimento é que se deve considerar o cotidiano das relações raciais para se avançar cientificamente nesse tema. A vida se desenvolve por essa instância – o dia-a-dia - e não por outra. Há muito tempo se vem “patinando” nessa questão sem que novos aspectos relevantes surjam a fim de facilitar a ampliação do conhecimento a respeito das relações entre negros e brancos no país. O caminho que se procura é necessariamente interdisciplinar. São múltiplos os aspectos a serem considerados. São de natureza complexa e variada e, segundo o nosso entendimento, os diversos especialistas que investigam a temática racial não avançaram tanto quanto poderiam em virtude de terem estudado isoladamente a questão em seus respectivos “nichos” de especialização. Antropólogos, historiadores e sociólogos – sobretudo esses – adentraram a questão; alguns até pioneiramente. Contudo, não decodificaram in totum essa centopéia de duas cabeças que é a questão racial do negro em nosso país. São dois os sentidos do tema: em uma primeira vertente, temos a sociedade brasileira, que se supõe branca, discriminando o negro sofisticada e veladamente; numa segunda vertente, temos o próprio negro com a discriminação introjetada em si mesmo. A maioria dos autores simplifica a temática estudando apenas a primeira mão dessa via dupla. Não localizaram muito bem o próprio negro vindo na “contra-mão”. PRESSUSPOSTOS DA NOVA ABORDAGEM TEÓRICA A abordagem multidisciplinar para o estudo da questão racial do negro no Brasil foi a conclusão do Seminário: “Por uma Teoria do Negro”, realizado em 29 de outubro de 1987, pela Coordenadoria de Atividades Culturais da USP. Basicamente, o Seminário reconhecia que: “O tratamento interdisciplinar da questão do negro em nosso país permitirá amplo e inter- relacionado estudo de todos os aspectos dessa problemática, diferentemente das abordagens setoriais até agora efetuadas”. Os diversos tópicos que constituem as dificuldades sofridas pelos não-brancos no Brasil têm uma seqüência que é melhor compreendida mediante um enfoque sistêmico, em que um determinado problema é visualizado em seu todo com seus múltiplos relacionamentos e conexões. Como se sabe, “a metodologia sistêmica tem como essência o entendimento das múltiplas interrelações dos diversos componentes de um problema. A partir desta visão de conjunto, essa metodologia possibilita conhecer de maneira integrada os vários setores existentes” (Santos, 1988:48). O que se busca, basicamente, é impedir a superespecialização que acaba dando maior ênfase às partes isoladas da problemática racial, em vez de compreendê-la globalmente. A proposta cuida de reverter essa idéia de “compartimentação” do estudo da questão racial do negro no Brasil. Resumindo, são três os pressupostos da nova abordagemtrazia por esse estudo. Em primeiro lugar, temos a multidisciplinaridade conjugada à idéia da interdisciplinaridade. São múltiplas as áreas que devem trabalhar com a questão racial brasileira. Por outro lado, existe ampla conexão entre essas disciplinas que não devem ser estudadas sem levar em conta as diversas interfaces existentes entre elas. Em segundo lugar, tem-se como foco básico do estudo, o cotidiano, no qual a ocorrência dos fatos se dá. É no cotidiano que os tópicos devem ser buscados e selecionados para serem estudados. Em terceiro lugar, aparece a idéia de 3 circularidade que caracteriza o nosso estudo. Tal idéia vem a reboque do enfoque sistêmico que interliga todos os tópicos “pescados” no cotidiano. Portanto, a interdisciplinaridade, o cotidiano social e a circularidade trazida pelo enfoque sistêmico, constituem a base na qual a teoria do círculo vicioso se assenta. Damos ao conjunto de dificuldades específicas enfrentado pelo povo não-branco (pretos e pardos) do Brasil o nome de “trilha do círculo vicioso”, porque, como será visto, é essa a característica que promove o desenvolvimento diferenciado entre brancos e não-brancos aqui. A TRILHA DO CÍRCULO VICIOSO O aspecto sócio-econômico da população não-branca se explica historicamente pela forma com a abolição se deu. No que se refere à problemática do negro brasileiro, não há como deixar de se considerar a escravidão. Sem o enfoque histórico, não podemos entender a subcidadania imposta aos não-brancos, que tem como origem a forma como se deu a abolição entre nós. A FORMA COMO SE DEU A ABOLIÇÃO O Brasil seria um outro país hoje caso a abolição fosse acompanhada por uma adequada reforma agrária, em que as famílias dos ex-escravos tivessem recebido pequenas propriedades agrícolas aptas à produção. Tais famílias, como é sabido, detinham então secular experiência rural. Ruy Barbosa sintetiza muito bem quando afirma que o abolicionismo se configurava no “enthusiasmo nacional” em conflito com o latifúndio, os conservadores e a monarquia. No contexto sintetizado por Ruy, entretanto, pode soar estranho, à primeira vista, a abolição vir pelas mãos de gabinete conservador (João Alfredo). A explicação é muito bem apresentada por Ferreira Vianna, ministro da Justiça do gabinete de João Alfredo, que entendia não caber, de fato, a extinção da escravidão! Para o ministro da Justiça do governo que “libertou” os escravos, o que cabia fazer é declarar a escravidão “extincta” (sic). É o que afinal foi feito. O artigo 1º da Lei 3.353, de 13 de maio de 188, diz: “É declarada extincta a escravidão no Brasil”. A massa negra quando não era mantida nas fazendas, onde muito ex-escravos continuaram trabalhando, partia para a periferia das cidades de onde nunca mais saiu. O processo de enfavelamento urbano, a partir daí se agigantou. As doenças (sífilis, tuberculose, lepra, esquistossomose e outros males, como a loucura) reduziram a vida média da população negra. A deteriorização do povo negro se acelera desde então. De um lado, a desvalorização profissional, representada pelo aviltamento salarial, de outro, um aspecto mais grave, porque de ordem psicológica, o estigma secular de ter sido escravo por tanto tempo. É importante frisar que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. A DICOTOMIA: BAIXA RENDA E ESCOLARIDADE INFERIOR Discriminado no mercado de trabalho – tanto nas funções mais simples quanto nas mais complexas – (Oliveira, 1981:29) o não-branco não pôde investir (e também não se sentiu estimulado), como os demais (brancos, judeus e amarelos) em sua capacitação profissional. Por outro lado, encontra-se absolutamente órfão em termos de capital social. Afinal, o seu pedigree é a senzala... Tal marca atávica não pode referendar um cidadão pleno em virtude dos preconceitos de origem. Não se deve esquecer que muitos autores entendem que o racismo contra o negro é resultado da extensão da escravidão (Golden, 1964). Ora, em um país onde o cartorialismo constitui a base de praticamente todas as relações (econômicas, políticas e pessoais), quem tem como referência a senzala não vai competir e participar em igualdade de condições com os demais. 4 Uma boa política de pessoal é a que busca obter no merca do o melhor material humano disponível a fim de atingir os múltiplos objetivos da organização. Ora, o negro na sociedade brasileira está longe de ser visto como o protótipo do mais capacitado. Portanto, segundo as técnicas usuais para a seleção de pessoal, o não-branco não é visto como o mais adequado para desempenhar funções importantes, e mesmo algumas atividades não-relevantes dentro das empresas. Dentre estas, estão, a título de exemplos, garçons, recepcionistas, simples atendentes de balcão, etc. NO mercado de trabalho os impedimentos aos negros ocorrem em todo o processo: muitas vezes já no recrutamento, mediante o sutil conceito (ou preconceito) da “boa aparência”; na seleção, mediante avaliações subjetivas ou não-definidoras adequadas da real capacitação do candidato; nas promoções, muitas vezes, ocorre uma “carona”, em que uma pessoa não-negra, menos qualificada ou com menos tempo de serviço do que um concorrente negro, é aproveitada em detrimento deste, e, finalmente, na hora das demissões, em que, geralmente, os nefros acabam sendo os primeiros a sair – isto tanto nos momentos de crises recessivas, quanto nas demissões rotineiras. Isto é, a taxa de turnover dos pretos e pardos é maior do que a dos não- negros. Além disso, restam dois aspectos: a questão da qualificação, em que o negro está originalmente prejudicado em virtude de não dispor de recursos que o permita investir em educação, e a inexistência, quase que absoluta, de capital-social. Em relação ao alegado despreparo do negro, é certo que as melhores escolas (geralmente as universidades públicas e gratuitas) não estão abertas aos mais pobres. Lá chegam os abastados e as diversas variações da classe média. Raramente os mais pobres (pretos e pardos em sua maioria) têm acesso a um tipo de ensino que requer uma pré-capitação inalcançável para quem desde a gestação já estava em posição desvantajosa. Os chamados vestibulares de acesso às universidades públicas são semelhantes a uma corrida entre a lebre e a tartaruga (o resultado dessa disputa não é como na fábula, na qual o quelônio vence. Na vida real a lebre sai na frente e ganha competindo apenas com outras lebres). Além disso, a escola, sobretudo a pública, não facilita o desenvolvimento do aluno negro. Conforme demonstra estudo feito por Rosemberg (1987), as tabelas da pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 1982, evidenciam um maior índice de repetência das crianças negras (pretas e pardas) em todas as séries do 1º grau. Para a 1ª série do 1º grau, o índice de repetência das crianças negras é de 41%, contra apenas 29% das crianças brancas. Quanto à passagem da 3ª para 4ª série, 10% das crianças negras evadem da escola, enquanto que a taxa de evasão das crianças brancas é de apenas 5%. Por outro lado, a vida escolar dos negros é bem mais acidentada do que a dos brancos. As crianças negras sofrem um número de saídas e retornos superior ao das crianças brancas. As escolas que atendem aos carentes também são carentes. E na opinião de Rosemberg, um sistema de quotas destinadas à população não-branca enfrentaria dificuldade de toda ordem: operacional, política, etc. O mais adequado seria investir em educação (mais e melhores escolas) nas regiões onde a população negra representasse parcela significativa da clientela escolar. A segregação espacial dos segmentos raciais permite mapear as regiões com um perfil adequadopara receber maior atenção do setor público. Temos, pois, na origem do círculo vicioso as dificuldades econômicas e educacionais dos não-brancos. As primeiras reforçando as últimas e estas impedindo a alteração daquelas... A dicotomia “baixa renda/escolaridade inferior” ocasiona razões estruturais das diferenças entre negros e brancos no país. Entretanto, seus efeitos, como será visto a seguir, têm um forte componente psicossocial que acaba definindo e reforçando o tipo de embaralhamento que enfrentamos frente à temática racial do negro. É que tais efeitos vão refletir no plano do pensar coletivo, no qual o preconceito e a não-identidade têm papel significativo. A VISÃO DA SOCIEDADE As dificuldades econômicas e educacionais somadas são, em grande parte, a causa da visão equivocada e discriminatória que a sociedade acaba tendo em relação aos pretos e pardos. 5 O lado atrasado do país não é branco: inúmeras análises sócio-econômicas com os cortes raciais evidenciam esse fato. Tudo isso é agravado pelo fato de o Brasil desenvolvido crer que a imobilidade social dos não-brancos decorre de uma incapacidade natural destes. Este é, em geral, o entendimento da sociedade, sem, contudo, explicitar essa visão discriminatória objetivamente. Para Munanga (1990), as teorias que tentam explicar a complexidade do racismo são numerosas e muitas vezes contraditórias. Ele cita dois aspectos básicos: a divisão ou classificação do gênero humano, feita pelos cientistas em “variedades geralmente denominadas de raças”, como de resto fazem a zoologia ao classificar os animais e a botânica, ao selecionar as plantas; e o fato de a sociedade moderna ocidental, a partir dessa classificação, tirar conclusões absurdas e injustas “... em nome das quais o homem branco se dava o direito de explorar, dominar, humilhar e até de exterminar outros homens.” Entretanto, os cientistas que trabalhavam com essa classificação – os antropólogos – estariam inocentados caso tivessem atuado à semelhança dos zoólogos e botânicos, que não buscaram hierarquizar as espécies selecionadas em seus estudos. Os antropólogos, em vez de apenas classificar os diversos grupos humanos em função de suas características físicas, passaram a hierarquizar tais grupos, mediante critérios sem base, que poderíamos chamar de científicas. A esse respeito, Munanga diz que: “No ponto atual de nossos conhecimentos, não existe relação entre caracteres físicos ou biológicos e as disposições intelectuais ou morais de um indivíduo” (Penteado, 1993). Retomando a análise da “visão da sociedade”, é necessário esclarecer que, tanto os meios de comunicação quanto a polícia, bem como a própria população negra fazem parte da sociedade. Entretanto, em nosso estudo, a fim de focalizar o envolvimento sistêmico de todo o processo, destacamos os vários setores que devem ser estudados isoladamente para compreensão do todo. OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Os meios de comunicação (rádio, revistas, jornais, literatura e, sobretudo, TV) têm a visão da sociedade dominante e existem para esta. O Conselho da Comunidade Negra em São Paulo (1984-87) se esforçou para que as agências de propaganda veiculassem o negro de uma forma positiva, a fim de auxiliar a reverter estigmas acumulados ao longo da opressão secular da qual foi vítima. A partir desta época, começou-se a dar um negro não só maior, mas também onde este não era tão ridicularizado como antes. Isto não significa entender que os não-brancos deixaram de estar invisíveis. A invisibilidade continua a ser marca do negro nos meios de comunicação, sobretudo na TV. Quanto à propaganda, é bastante pertinente a pergunta feita pelo publicitário José Roberto Whitaker Penteado (Cury, 1985): “Qual a cor do nosso mercado?” Há um entendimento por parte de muitos publicitários de que os negros aparecem menos na propaganda porque consomem menos. Entretanto, no artigo, Penteado acredita ter encontrado... “fortes indícios de que 20% a 25% de todo o consumo de bens e serviços de marca no Brasil ...poderia ser atribuído a “mestiços” e “negros”... É importante esclarecer que não se trata de bens de serviço de consumo popular, mas sim de marca. Penteado conclui em seu artigo que “nosso mercado de produtos femininos é absolutamente europeu”. Ele chega a essa conclusão após constatar, mediante estudo amostral, inexistirem anúncios com modelos negros em revistas femininas dirigidas aos estratos superiores do mercado. O mais grave no caso de modelos femininos é que no exterior, especialmente na branca Europa, os modelos negros são amplamente valorizados. Em seminário promovido pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1986, sobre a discriminação racial nos meios de comunicação, as conclusões revelam que em todas as áreas da comunicação, as conclusões revelam que em todas as áreas da comunicação social (literatura, imprensa escrita, falada e televisada, propaganda,teatro, cinema) ocorre a divulgação negativa do elemento negro, na qual este, 6 geralmente, aparece como um indivíduo não-pensante. Isto é, o corpo conta mais do que o intelecto. A VIOLÊNCIA POLICIAL Ainda na trilha do círculo vicioso, temos a repressão policial (sobretudo a policial- militar) contra os não-brancos. Quanto a esse particular nada mais natural: o Brasil desenvolvido, o mundo branco que é o país oficial, tem nas polícias (civil e militar) o seu braço armado. À medida em que a sociedade tem os não-brancos como marginais em potencial, é razoável que as polícias (sobretudo a militar) reservem para estes a sua maior atenção. O problema, contudo, está no crucial fato de que é bem diferente enfrentar um racista em uma seleção do que defrontar com um racista armado; e ainda pior: a soldo do Estado. A violência policial contra negros é uma marca mundial. Entretanto, aqui no Brasil, a impunidade é o que escandaliza a todos. O povo humilde e pobre, na sua vasta maioria “preto e pardo”, vive “ensanduichado”. De um lado, têm-se os marginais que infestam não só os centros das cidades, mas também a periferia, favelas e morros. E de outro, temos a própria polícia, que, como os marginais, está solta e armada pelas ruas. No caso das polícias, não só os não-brancos mais humildes correm risco. Aquilo que poderíamos chamar de classe média negra não está livre da violência policial, como poderia imaginar alguns incautos. Dentre os agredidos pelas polícias temos desde artistas detidos absurdamente, evidenciando de forma escancarada a miopia racista com que os policiais agem, até autoridades estrangeiras (negros, evidentemente) que visitam o país. Dois casos absurdos: o conhecido cantor e compositor Djavan é detido pó PMs no centro de São Paulo, “...por excesso de documentos”. Pelo menos essa é a possível razão identificada pelo artista ao ser abordado pelos policiais. Djavan trazia consigo todos os documentos possíveis de portar, incluindo passaporte e carteira de músico. Foi levado à delegacia e prontamente liberado por um aturdido delegado que, ao reconhecê-lo, pediu desculpas; o outro caso refere-se à inacreditável agressão, violenta, inusitada, sofrida – pasmem todos – pelo ex-presidente do Suriname, Desi Bourtese. Mais grave ainda: o ex-presidente estava acompanhado por diplomatas, incluindo uma mulher que também foi estapeada e chutada pelos policiais. Toda a comitiva de negros engravatados foi tida como assaltantes de bancos pelos PMs. Tal imbróglio custou ao Ministério das Relações Exteriores e ao Ministério da Justiça, envergonhadas, explicações aos convidados que visitavam o país a negócios. No Brasil, são raros os negros urbanos que não experimentaram ainda gravesdissabores e agressões das policias (civil e, sobretudo a militar). A NÃO-IDENTIDADE RACIAL DOS NÃO-BRANCOS Por cerca de três séculos e meio, o negro foi escravizado: de 1534 a 1888. Esse período tão longo estigmatizou o negro como subpessoa. A verdade é que o negro foi colocado como alguém incapacitado para a plena cidadania. Por outro lado, o negro foi compelido a crer, efetivamente, nisso. Temos a partir daí a contramão citada em nosso estudo: a identidade (mais certo seria dizer a não-identidade) do não-branco brasileiro. As práticas escolares definem a “concepção de mundo” das crianças É o que Cury (1985) chama de “ritual pedagógico”. Tal ritual, na opinião de Gonçalves (1987), exclui a luta das populações negras na sociedade brasileira. Mais ainda: o ideal de ego branco é o que as crianças negras passam a reivindicar para si na ausência de uma identidade que as possa fortalecer. Kabengele Munanga, em seu ensaio sobre identidade e negritude, afirma que é comum indagar se é possível no Brasil “a existência de uma identidade de negros diferente dos demais cidadãos (...)” Diz mais: “... outros chegam a indagar se as ditas negritude e identidade negras não podem ser vistas como uma divisão de luta de todos os oprimidos?” (Munanga, 1991:1). 7 O discurso militante fala em identidade “afro-brasileira” e em negritude como forma de buscar uma identidade perdida. O que Munanga questiona (Munanga, 1991:7), com o que concordamos in totum, é se tais conceitos encontram ressonância no povão negro. Como se sabe, a alienação do negro brasileiro passa pela inferiorização de sua cultura e de seu físico. A cultura negra já é expropriada e, a rigor, faz parte da cultura nacional. Isto é, pertence a todos brasileiros (negros e não-negros). E depois, ser negro não é algo convidativo em um país embranquecido ideologicamente. Para a juventude negra tais aspectos são ainda mais sensíveis do que para os mais velhos. No Brasil, o Movimento Negro ainda atua muito na linha da defesa da cultura negra. Em seu ensaio, o professor Munanga afirma que tal postura “não cria nenhum problema quando não é acompanhada da reivindicação política”. Pior do que isso: “a retórica oficial se expressa através das próprias contribuições negras no Brasil, para negar a existência do racismo e para afirmar a proclamada „Democracia Racial‟” (Munanga, 1991:9). A MANUTENÇÃO DO STATUS QUO Fechando a trilha do círculo vicioso temos a manutenção da situação em que se perpetua os negros no Brasil. Como os próprios não-brancos (pretos e pardos) introjetam as idéias racistas e preconceituosas armadas contra si, a identidade racial afro-brasileira não se afirma, incapacitando, assim, a alteração desse quadro via discurso racial. A roda das dificuldades gira indefinidamente permitindo mudanças pequenas para restritas parcelas da população negra, sem, contudo alterar significativamente o conjunto. Mudanças estas bem mais lentas do que para o resto da população. Este giro tem, efetivamente, uma característica imobilizadora perversa, pois simula com extrema eficácia que as dificuldades sofridas pelos negros são de exclusiva responsabilidade deles. Não apenas a população branca crê nisso. É importante saber que é imenso o número de negros que pensam assim. A perpetuação da subcidadania dos descendentes dos escravos é a marca que mantém o país no Terceiro Mundo. É impensável a idéia da modernidade em um país cortado ao meio. Há, na realidade, dois Brasis: o primeiro é bem parecido com alguns europeus – uma Bélgica, a título de exemplo. Esse primeiro tem como vizinhança o pior dos mundos: o Brasil não-branco. Esse segundo Brasil é o campeoníssimo em endemias que já se supunham extintas, é onde ocorre forte déficit habitacional. O país é inconcluso, porque não soube transformar os antigos escravos e seus descendentes em cidadãos plenos. O combate à pobreza no Brasil foi esquecido pelas elites, precisamente pelo fato de que a miséria atingia e atinge majoritariamente a população não- branca, com a qual as classes dirigentes nunca se preocuparam. Tal fato não se deu em países como o Japão ou a Alemanha. Povo e elite, naquelas nações, têm a mesma matriz racial, o que manteve uma ligação forte entre as classes dirigentes e o resto da população. Nesses casos, as políticas públicas visavam fortalecer o povo e a vertente educação foi o item em que mais se investiu. Assim sendo, não faz sentido o uso disseminado pelos intelectuais brasileiros de um conceito novo entre nós: o do apartheid social. Enquanto na África do Sul o apartheid legal chega ao fim, aqui não temos olhos para ver que a esmagadora maioria das pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza não são brancas. O mais grave, contudo, é saber que o apartheid brasileiro se perpetua, precisamente, por ser, na realidade, “quase racial” mesmo. Como já observamos, as elites dirigentes têm se mostrado insensíveis ao barbarismo social no país em virtude da (suposta) desconexão racial entre elas e a massa – em sua maioria negra e mestiça. Como o caráter racial da divisão de renda eterniza os negros no papel de pobres e incultos, e como eles constituem mais da metade da população, podemos afirmar que o Brasil rico e próspero é branco. Consequentemente, o segundo Brasil – miserável e atrasado – é composto, em sua maioria, por não-brancos. A esperteza com que as elites brasileiras teimam em prosseguir dá sinais de esgotamento. Basicamente elas operam assim: falam em modernidade e posicionam-se com cenários do Século XXI. Entretanto, quando agem, fixam-se, teimosamente, no século XVIII. A modernidade exige a modificação da sociedade em outra que tenha como base o uso intensivo 8 de idéias racionais, por isso eficazes. O apartheid quase-racial brasileiro não é algo que se possa ter como racional. A manutenção da situação racial-econômico-social do negro é que causa a inconclusão do país ambíguo e excludente que temos: rico e miserável; próspero e, ao mesmo tempo, anacrônico – em suma; branco e negro. UMA TEORIA ESPECÍFICA PARA O NEGRO BRASILEIRO A busca de uma teoria específica para o negro brasileiro parece ser o caminho adequado, hoje, para iniciar mudanças que possibilitem o desenvolvimento harmonioso do país. No tópico inicial fixamos os pressupostos de uma provável teoria do negro brasileiro e nos dois tópicos seguintes, apresentamos, de uma forma geral, a idéia sobre o tema. O ESQUEMA GRÁFICO PARA O NEGRO BRASILEIRO O esquema gráfico dá uma visão completa do que denominamos “a trilha do círculo vicioso”. Nosso pressuposto é que os impedimentos ao desenvolvimento dos não-brancos no Brasil constituem um sistema circular em que as partes (subsistemas) que compõem o todo, impulsionam, às vezes difusamente, as dificuldades. Explicando: um determinado subsistema é ocasionado por um que o antecede. Tal subsistema, por sua vez, é causa daquele que o sucede. Ou seja, os efeitos de um subsistema antecedente constituem a causa do subsistema subseqüente, e assim por diante, até retornarmos ao ponto inicial (ver figura 1). Temos, às vezes, um subsistema retroalimentando aquele que o ocasionou. Outras vezes, temos um subsistema atuando de maneira difusa que não só retroalimenta o foco gerador, como também impulsiona diversos outros subsistemas. É o caso dos subsistemas “Visão da Sociedade” e “Meios de Comunicação”. A “Visão da Sociedade” origina-se do resultado ocasionado pelas dificuldades econômicas somadas às dificuldades educacionais. Tal dicotomia tornou-se o estereótipo do negro brasileiro, com uma logomarca que significa: pobre e sem capacitação. Esse é o ponto de vista da sociedade que retroalimentaas dificuldades iniciais citadas. A “Visão da Sociedade” preconceituosa e racista, forma a idéia que os “Meios de Comunicação” tratam os negros, da mesma maneira fomenta a “Repressão Policial” e acaba atingindo a sua vítima diretamente, mediante a introjeção de seus valores pelos não-brancos. Os “Meios de Comunicação”, por sua vez, são a voz da sociedade e confundem-se com ela em uma atuação paralela, como uma imagem e sua sombra. A ABORDAGEM SISTÊMICA NA TEORIA DO NEGRO BRASILEIRO A técnica de raciocinar pelo Método Cartesiano baseia-se na divisão de um problema ou assunto até se chegar a um ponto perfeitamente inteligível a respeito do tema. Assim, o enfoque cartesiano baseia-se no que a lógica aponta: um dado global confunde e impede uma interpretação correta. Isto posto, deve-se dividir o problema em partes e subpartes até se chegar a um perfeito entendimento para o raciocínio. Caminho contrário ao apontado pelo Método Cartesiano foi o escolhido pelo Movimento Negro Brasileiro para enfrentar a problemática racial. Situávamos no geral. Apontávamos e denunciávamos as agruras do povo negro. A atuação da militância negra não poderia e nem deveria ser diferente. Contudo, Descarte não estudou muito bem as múltiplas inter-relações das diversas partes contidas em um problema. O processo de feedback não consta do método Cartesiano. A metodologia sistêmica tem como essência o entendimento das múltiplas inter-relações dos diversos componentes de um problema. A partir dessa visão de conjunto, essa metodologia possibilita conhecer de maneira integrada os vários setores existentes (Santos, 1988:48). Ora, o que faltava ao Método Cartesiano foi trazido pela visão sistêmica. É o que falta àqueles que batalham pela questão racial no Brasil. Militantes e cientistas atuam de forma a não percebe r 9 que a visão sistêmica, com o seu caráter globalizante, facilita o entendimento do todo. Os militantes foram e ainda são, em grande parte, generalistas. Os cientistas “departamentarizaram” a questão racial em “nichos” de sua predileção: educação, violência, cultura, comunicações, etc. Por outro lado, a população – negra e branca – atua no cotidiano, e como esta instância é dinâmica e interdisciplinar, há que se ter um “olho sistêmico” para decifrarmos a “centopéia de duas cabeças” a que me referi no início. O esforço feito por militantes e cientistas deve ser contemplar o funcionamento da vida em seu dia-a-dia. Os militantes se fecharam em “guetos discursivos” e os cientistas em “guetos departamentais”. É importante explicitar bem o significado da expressão “sistema”. Para Churchman, apesar de ter sido definida de muitas maneiras, “todos os definidores estão de acordo que um sistema é um conjunto de partes coordenadas para realizar um conjunto de finalidades” (Churchman, s/d:50). Para Maciel, “sistema é um conjunto de elementos ligados entre si por cadeia de relações, de moído a constituir um todo organizado” (Maciel, 1974:13). Estas definições explicitam bem a interdisciplinaridade da metodologia sistêmica e contemplam adequadamente a problemática racial no Brasil como a concebemos. As interfaces e conexões, com os seus inter-relacionamentos, são a essência da teoria circular esquematizada na figura 1 e, ao mesmo tempo, a característica que a enriquece. Entretanto, a utilização da abordagem sistêmica em problemas do dia-a-dia de ordem administrativa ou de cunho mais social – não obteve um franco sucesso, em virtude da base inicial da teoria de sistemas dirigir-se para a biologia. Havia, assim, uma certa inadequação. A hierarquização de sistemas é que viabiliza a metodologia sistêmica em problema mais amplos como o da questão racial do negro brasileiro. O enfoque sistêmico sem hierarquização não nos possibilita em perfeito entendimento do problema em virtude do elevado número de inter-relações contidas no processo. A hierarquização, como é utilizada nesse estudo, auxilia a metodologia sistêmica, dando à teoria do negro um maior sentido operacional. Assim, a hierarquização de sistemas é a abordagem sistêmica utilizando modelos. Modelos de pensar e desenvolver um determinado tema (Bernardes, 1982). Para a questão racial do negro, a hierarquização de sistemas é um caminho adequado para focalizarmos o conjunto sem perder de vista os múltiplos aspectos envolvidos. O que fizemos neste estudo foi a utilização esquemática da idéia trazida pelo enfoque sistêmico: o entendimento das diversas inter-relações dos múltiplos componentes de um problema (como ocorre na questão racial brasileira). Como a questão em pauta tem uma amplitude maior, a hierarquização vem em socorro à teoria de sistemas auxiliando a criação de um modelo para pensar e desenvolver a “centopéia de duas cabeças” que é a questão racial do negro no Brasil. IDÉIAS FINAIS Qual deve ser a abordagem correta para interpretar a trilha circular que trava o desenvolvimento pleno do negro no Brasil, no sentido de trazer caminhos que alterem esse quadro para o futuro? A sucessão de partes que explicam e constituem a vida do negro brasileiro tem uma circularidade que torna difícil a sua interrupção. Até porque as pessoas não identificam bem esse processo circular. Como foi visto, os estudiosos dessa questão ativeram-se, preferencialmente, a aspectos isolados, sem fazer a necessária conexão entre os diversos vetores do problema. O ESTUDO INTERDISCIPLINAR DA TRILHA DO CÍRCULO VICIOSO A maneira adequada de atuarmos de forma positiva em relação à questão racial é seguirmos a própria trilha do círculo vicioso. Contudo, é fundamental hierarquizarmos as diversas fases da terapia a ser adotada. Isto vale dizer: o que (e como) deve ser feito, bem como a intensidade das diversas ações a serem empreendidas. 10 Em primeiro lugar, é importante frisar que só é possível reverter a “Visão da Sociedade” via processo educativo. Inexiste discurso ou vontade política de grupos ou partidos que possa fazê-lo. Em segundo lugar, não é descabido lembrar que a população não-branca faz parte da sociedade. Isto quer dizer que negros e brancos devem passar por uma pedagogia específica a fim de reverterem a marca estigmatizada do negro ao longo de quase meio milênio. Quero dizer com isso que é na educação que se deve empreender o maior esforço para iniciarmos uma nova fase na temática racial brasileira há tanto tempo emperrada. Essa nova fase deve buscar duas coisas: ● conscientizar a sociedade da imensa contribuição negra na formação do que somos como nação. Isso, a médio prazo, deve levar os brancos a reivindicarem a sua parcela negra. Para tanto, tal terapia pedagógica deve evidenciar com competência que somos mais ricos, culturalmente, que a branca Europa (de certa forma meio decadente) por termos como base uma matriz mista, consubstanciada em diversas culturas em que a africana destaca-se de maneira especial. Não se trata só de nossa musicalidade – reconhecida por todos – do nosso forte paladar ou ainda de nossas habilidades múltiplas, também confirmadas por estrangeiros que a estudam. Não me conteria apenas à nossa religiosidade, outra marca importante oriunda de nossa mãe África. Trata-se, sobretudo, de nossa forma de contemplar o mundo e a própria vida! Enfim, ao reivindicar o seu lado negro, a “Visão d Sociedade” será, precisamente, o contrário do que ocorre hoje; ● para a população negra e mestiça, essa terapia pedagógica reversiva afirmará sua identidade racial. Esse cenário, nos remete a algo fantástico, comparado ao que temos hoje. Diversos não-brancos, mestiços de pele clara, “negros de pouca tinta”, como se diz em São Paulo, reivindicando o seu lado negro com firmeza e orgulho, sabendo ser esseum efetivo ponto positivo de sua personalidade. Falamos antes que não cremos numa mudança significativa sem que a área acadêmica auxilie. O processo educativo depende inicialmente de vontade política. Contudo, essa vontade sozinha não produz o material dessa pedagogia reversiva requerida para o trabalho de mudança. Cabem aos pesquisadores e estudiosos da psicologia (especialmente a social), pedagogia, história, economia, antropologia, demografia, geografia humana e sociologia em esforço significativo para que se avance na temática racial brasileira. É importante ainda a implementação da pesquisa em duas áreas cruciais que têm atuado muito aquém do necessário: a comunicação social e o direito. Por outro lado, a economia e a geografia são áreas que historicamente não têm contribuído para a temática racial brasileira. É importante enfatizar que a maneira adequada de atuação é pela via interdisciplinar, a fim de, sistematicamente, trabalharem o todo que é complexo e dinâmico. Tanto o machismo quanto o racismo são comportamentos arraigados, cujas origens são antigas no planeta. Entretanto, os dois têm suas peculiaridades. Com isso queremos dizer que o machismo e o racismo brasileiro são farinhas do mesma moenda; mas não do mesmo saco, pois estão alojados em “compartimentos” distintos da sociedade. Não cabe aqui trazer inúmeras similaridades existentes entre ambos. Entretanto, a pedagogia a ser adotada tem, sem dúvida, semelhanças. Seminário levado a efeito na USP, ao sugerir a instalação de um centro ou núcleo interdisciplinar, chegou à conclusão de que deve existir um setor que coordene os trabalhos a fim de tratar o conjunto deles sistemicamente. A produção científica de um centro de estudos com tal característica sistematizadora levaria em conta os diversos aspectos da temática racial, o que, em nossa opinião, significaria mudar o que vem sendo feito até hoje e que, afinal, é a essência do que sugere a Teoria do Círculo Vicioso. Nesse sentido, encaminhou-se á reitoria da USP, ofício propondo a criação do Núcleo de Estudos interdisciplinares sobre a temática racial do negro brasileiro. A proposta, feita por um grupo de docentes e pesquisadores, busca não só resgatar a tradição da USP na área, como também fazer avançar o conhecimento e o interesse pela temática – trabalho a ser desenvolvido pela via interdisciplinar. Em razão do exposto, finalizamos vislumbrando para o Movimento Negro Brasileiro três caminhos que devem nortear a atuação enquanto movimento social em um país com as características do Brasil: 11 ● buscar na academia um aliado vigoroso, elucidador e criativo, que auxilie na gestação da pedagogia reversiva a que referimos anteriormente. Ao mesmo tempo, lutar para que o Estado se responsabilize pela execução material da idéia, já que estão consignados, constitucionalmente, os direitos básicos dos negros; ● batalhar pela conquista de meios que viabilizem a comunicação. Em um país de dimensões continentais, como o Brasil, com mais de quatro mil municípios, não é possível enfatizar nossa oralidade. Aqui, a oralidade tem a eficácia do tan-tan (instrumento utilizado pelas comunidades africanas para comunicarem-se entre si...). Ou seja, nenhuma. Sem os meios de comunicação de massa: rádio e especialmente a TV, não temos como interligar idéias e fatos. Estamos soltos, não há estratégia possível sem isso; ● nosso sucesso (ou insucesso) passa por um desafio para o qual sempre alertamos: o risco da partidarização da questão racial. Nenhum dos partidos existentes – precisamente nenhum – tem o negro na sua justa dimensão. A razão dessa afirmação é simples: as lideranças partidárias brancas fazem parte da sociedade brasileira e têm suas respectivas visões de centro, esquerda, direita, centro-esquerda e centro-direita (bem como suas possíveis variações) – considerando o que isso possa representar hoje -, sem levar em conta que a democracia no Brasil, passa pela questão racial. Depois, nem sempre o discurso racial (quando existe) e a prática dessas lideranças têm sido consistentes. O trinômio colocado exige do Movimento Negro, ou o que possa existir de mais consolidado dele, uma atuação cujo vetor tenha um cunho estratégico, em vez de manter uma postura operacional, em nada condizente com o momento que o país vive e, particularmente, com a invisibilidade a que estamos todos relegados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERNARDES, C. Sistemas Hierarquizados na Administração e Culturas Organizacionais. Tese de Livre-Docência. São Paulo, FEA/USP, 1982. CHURCHMAN, C.W. Introdução à Teoria dos Sistemas. Petrópolis, Ed. Vozes, 1971. CURY, C.R.J. Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenômeno educativo. São Paulo, Ed. Cortez, 1985. GOLDEN, H. Kennedy e os Negros. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1964. GONÇALVES, L.A.O. “Reflexão sobre a particularidade cultural na educação das crianças negras”. (Raça negra e educação). Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 63(3), set/out/nov/dez. 1987. MACIEL, J. Elementos de Teoria Geral de Sistemas. Petrópolis, ED. Vozes, 1974. MUNANGA, K. “Racismo: da desigualdade à intolerância”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, 4(2), abr/jun. 1990. ___________. Negritude Afro-brasileira: perspectivas e dificuldades. São Paulo, 1991, mimeo. OLIVEIRA, L.E.G. de et alli. O Lugar do Negro na Força de Trabalho. Rio de Janeiro, Fundação IBGE, 1981. PENTEADO, J.R.W. “Brasileiros Invisíveis”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 12/01/1993. ROSEMBERG, F. “Relações Raciais e Rendimento Escolar”. (Raça negra e educação). Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 63(3), set/out/nov/dez. 1987. SANTOS, H. de S. O Uso de Sistemas Hierarquizados em Análise de demonstrativos Financeiros. Tese de Doutorado. São Paulo, FEA/USP, 1988. SILVA, N. do V. “O Preço da Cor: diferenciais raciais na distribuição de renda no Brasil”. Pesquisa e Planejamento Econômico. Rio de Janeiro, 10(1), abril, 1980. 12 Figura 1 A trilha do círculo vicioso A forma como se deu a Abolição Piores empregos / Piores salários Dificuldades econômicas Meios de Comunicação Dificuldades educacionais Modestas condições de investir na capacitação Retroalimentação das dificuldades Preconceitos e Racismo Retroalimentação das dificuldades Visão da Sociedade Não-brancos são incapazes por natureza Retroalimentação das dificuldades INVISIBILIDADE Não-brancos Introjeção do Racismo e dos preconceitos Retroalimentação das dificuldades Preconceitos e Racismo Retroalimentação das dificuldades Repressão policial Violência Desmotivação Desmotivação Não-identidade racial Incapacitação para alterar o status quo via discurso racial Manutenção do status quo
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