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Roberto DaMatta o carnaval e a interpret

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In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
 
Roberto DaMatta, o carnaval e a interpretação do Brasil 
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti 
 
Apresentação: um depoimento pessoal 
Em 1990, tendo reaberto minha matrícula no curso de doutoramento em 
Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social 
(PPGAS)/Museu Nacional, redefini também meu objeto de tese, elegendo o 
carnaval carioca como tema. Eu já tinha escrito dois artigos sobre o carnaval, mas 
esse era então, para mim, sobretudo 'o' tema de Roberto DaMatta. Um assunto 
sobre o qual DaMatta já dissera coisas muitíssimo interessantes, talvez mesmo tudo 
que havia de interessante a dizer. E isso me intimidava terrivelmente… 
Roberto DaMatta foi meu professor no mestrado, no mesmo PPGAS, em 
1978. Um professor estimulante e divertido, com quem aprendi, entre muitas outras 
coisas, a fazer análise estrutural. Na época, DaMatta examinava o conto de Pedro 
Malasartes, análise publicada como um dos capítulos de "Carnavais, malandros e 
heróis" no ano seguinte. Lemos Vladimir Propp, muito Lévi-Strauss e analisamos o 
conto de João e Maria numa versão recolhida por Sílvio Romero. Eu me fascinei 
pelo desvendamento das 'estruturas' que lá jaziam, de fato, sob o texto, revelando 
fatos à primeira vista totalmente insuspeitos. Como os sonhos, os mitos e contos 
revelavam a extraordinária qualidade de desdobrarem-se em múltiplos sentidos 
quanto mais interrogados. Meu pendor pelo simbólico, o gosto pelos mitos e ritos 
só se tornariam daí em diante cada vez mais claros. 
Em 1991, porém, depois de uma dissertação sobre o Espiritismo Kardecista 
(1983), e diante do que era então apenas o projeto de uma tese sobre carnaval, eu 
precisava 'enfrentar-me' com o autor de um livro magnífico e ousado. Um livro que 
foi, e é até hoje, uma libertação, trazendo a cultura e com ela a perspectiva 
antropológica para a ordem do dia na compreensão da sociedade brasileira. Uma 
extraordinária problematização dos níveis e fatos sociais que nos dão o sentido de 
pertencimento a uma cultura nacional; daqueles valores, modos de ser e 
personagens, sem os quais, como propõe DaMatta, nos falta algo de essencial e 'o 
mundo parece deslocado'. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
Escrevi então o texto que segue, que enviei então ao meu professor. Imagino 
como deva ser difícil a experiência de quem, tendo realizado tanto, se dispõe a ouvir: 
há aqui um problema, há ali outro… Mas urgia tornar minha admiração pensante e 
falante. Eu estava diante da escrita de minha própria tese. Momento em que um 
mestre desaparece, depois de nos ter dito: "Olhe, aprenda a ver!", como sugeriu 
Marcel Proust em 'Sobre a leitura'. 
Almoçamos depois para trocar algumas idéias a respeito, e DaMatta, de um 
jeito amigo, disse-me algo mais ou menos assim: "se o carnaval é realmente esse 
grande tema que acreditamos, sempre há de haver muitas coisas novas para dizer". 
De lá para cá, quanto mais me enfronho no mundo dos ritos e mitos, mais DaMatta 
continua dizendo: "Olhe, aprenda a ver!"1 . 
Revendo-o agora, por ocasião desta homenagem aos 20 anos de publicação 
de Carnavais…, optei por manter o texto tal como escrito em 1991, com algumas 
pequenas revisões. Se fosse refazê-lo hoje, acrescentaria à discussão então 
empreendida, centrada na compreensão do carnaval e na formulação de uma teoria 
do Brasil, uma leitura mais solta e fragmentada, que explorasse a qualidade ensaística 
de cada capítulo e as muitas digressões em que o texto tantas vezes se abre. Pois 
como o carnaval analisado, o livro de DaMatta se movimenta também em múltiplos 
planos. Creio entretanto que, tal como está, este texto preserva seu interesse. 
Ao mestre, com carinho. 
 
 
 
 
 
 
1 O trecho citado de Proust é "Olhe a pedra de bolonha, rosa e brilhante como uma concha! Olhe, aprenda a 
ver! E nesse momento ele [o autor] desaparece". Anos depois encontrei menção a essa misteriosa pedra no 
Werther, de Goethe (uma tradução comentada de Marcelo Backes, para a LPM/2000). O trecho de 
Goethe/Werther é "Falam da pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por 
algum tempo durante a noite" (p.61). E o tradutor nos explica que a tal pedra existiu de fato: "Desde os 
primeiros anos do século XVII se dá o nome de pedra de Bolonha ao espato pesado ou baritina, o mais 
importante dos derivados do Bário. A baritina foi elaborada pelo sapateiro bolonhês Vicente Casciordus que, 
ao calcinar uma mescla pulverizada do mineral, mais carvão e verrniz, obteve uma massa fosforecente logo 
depois chamada lapis salarius. Anos mais tarde, o nome foi trocado pela pedra luminosa de Bolonha". 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
Introdução2 
O livro de Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do 
dilema brasileiro (1979), marcou época, por sua originalidade e escopo interpretativo3. 
Impossível, hoje, estudar o carnaval no país sem com ele dialogar. Este texto, 
situado no curso de minha pesquisa de doutoramento sobre o desfile das escolas de 
samba no carnaval carioca (PPGAS/MN) é, portanto, um diálogo4. A primeira 
seção examina a construção da opção analítica do livro que traz a sociedade 
complexa para o centro da reflexão antropológica. A segunda focaliza 
especificamente as formulações relativas ao carnaval. Ritual igualitário numa 
sociedade hierárquica, o carnaval, segundo o autor, fala do país. É um momento 
privilegiado para a percepção da ambigüidade entre sistemas de valores conflitantes 
que constituiria o 'caráter nacional' brasileiro. Minha pergunta é específica: interessa-
me perceber quais aspectos substantivos do ritual examinado - o carnaval - 
articulam-se a uma proposta de interpretação do Brasil, e como tal articulação se faz. 
 
I. A Antropologia entre os rituais e a sociedade nacional 
Carnavais, malandros e heróis situa-se num cruzamento de tradições intelectuais. 
De um lado, dialoga com autores chaves do pensamento social no Brasil que 
elaboraram ou problematizaram em sua obra representações simbólicas da 
nacionalidade. DaMatta expressa abertamente o desejo de ver o livro somado às 
contribuições de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, 
Florestan Fernandes, entre outros, na busca do entendimento daquela 'terra sem a 
qual o mundo fica deslocado" (op. cit. , p.34). 
De outro lado, o autor se insere firmemente na tradição antropológica em 
uma de suas vertentes clássicas: os estudos de simbolismo e ritual. No campo 
 
2 Este texto foi apresentado no GT de Pensamento Social no Brasil, no XV Encontro Anual da ANPOCS, 15 
a 18 de outubro de 1991, Caxambu, Minas Gerais, e na XVIII Reunião da Associação Brasileira de 
Antropologia. Belo Horizonte, abril de 1992. 
3 O livro foi lançado em 1979. Agora, em 1999, está em sua quinta edição. As resenhas elaboradas na época 
são expressivas de sua recepção. Examinando-as constatamos porém, com surpresa, que o livro foi recebido 
com reticências pela antropologia (Trindade-Serra, 1981 e Fry, 1983). As resenhas francamente favoráveis 
vieram da ciência política (Schwartzman, 1980 e Faoro, 1980) e da crítica cultural (Merquior, 1981). Na 
França, ondea tradução foi lançada em 1983, o livro foi saudado por Pierre Chaunu ( 1984), David le Breton 
(1984), Jean Pierre Dupuy ( 1980). Em 1991, foi lançada uma edição norte-americana. 
4 A tese foi transformada no livro Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: FUNARTE/Ed. 
UFRJ, 1994. Os artigos que escrevi sobre o carnaval entre 1984 e 1997 foram reunidos em O rito e o tempo. 
Ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
intelectual brasileiro, DaMatta é um dos operadores da ampliação do campo 
empírico da antropologia no sentido da inclusão das chamadas sociedades 
complexas em seu território disciplinar (Peirano, 1981)5. Carnavais, malandros e heróis 
reúne ensaios que marcam essa passagem na trajetória profissional do autor, até 
então um especialista em sociedades indígenas. É bem verdade que, já em Ensaios de 
Antropologia estrutural, publicado em 1973, Da Matta falava de uma "antropologia social 
que se pretende cada vez mais disposta a testar seus métodos e suas interpretações em áreas 
tradicionalmente excluídas do seu campo de estudos" (1973, p.11). E apresentava, 
ressaltando "a desvantagem do treinamento em somente uma disciplina visando o etudo de 
sociedades tribais" (op.cit, p.12), um "exercício" de análise estrutural sobre o carnaval": 
'O Carnaval como rito de passagem'. Esse artigo traz, entretanto, o embrião de 
Carnavais, malandros e heróis, onde, seis anos depois, o autor propõe uma "sociologia do 
dilema brasileiro". 
Essa incursão da antropologia na sociedade complexa e seu encontro com 
vertentes do pensamento social ganha corpo na formulação da pergunta (inspirada 
em Gunnar Myrdal, 1944; Otávio Paz, 1976 e Louis Dumont, 1966 e 1983) sobre 
"o que faz o brasil, Brasil" 6. Trata-se de compreender a especificidade cultural e 
sociológica da participação de uma sociedade periférica num sistema mundial 
capitalista que, no plano dos valores, tem sua pedra de toque na ideologia burguesa 
da democracia e dos direitos iguais7. 
A identidade a ser desvendada é problemática, um dilema a ser apreendido 
não a partir do exame de "eventos em sua evolução temporal" , mas através de uma análise 
que se pensa como "uma contribuição às teorias das dramatizações e das ideologias". Citando 
Otávio Paz, DaMatta concorda com a pergunta: "mas para que ir procurar na história 
uma resposta que só nós mesmos podemos dar? Se somos nós que nos sentimos diferentes, o que nos 
 
5 Peirano (1981) argumenta que, no plano ideológico, o processo de construção da nação no Brasil definiu 
parâmetros ao interior dos quais as ciências sociais 'nativas' se desenvolveram. Roberto da Matta, Florestan 
Fernandes, Darcy Ribeiro, Otávio velho e Antônio Cândido, são autores analisados à luz dessa hipótese. 
6 A opção pela interpretação totalizante expressa nessa pergunta sobre o 'caráter nacional' distingue o autor de 
outras tendências, igualmente importantes, que se consolidam na antropologia brasileira no mesmo período. 
Penso especificamente nos trabalhos de Gilberto Velho (1973,1975,1981). Esses trabalhos propõem a 
apreensão da 'sociedade complexa' a partir da ênfase na heterogeneidade e na fragmentação, focalizando 
especialmente as camadas médias urbanas. Para uma resenha bastante completa dessa literatura ver Salem, 
1985. 
7 Peirano define como questão básica para DaMatta em Carnavais, … , a pergunta: "how capitalism develops 
in confrontation with different cultural values" (1981, p.15). 
 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
faz diferentes e em que consistem essas diferenças?" (1979, p.15). Nesse primeiro momento, 
o álibi analítico que opõe um enfoque metodológico ainda a ser explicitado à idéia 
de história, privilegia uma determinada noção de história, entendida como sucessão 
linear de eventos, e excluída do reino dos valores de modo um tanto simplificador. 
A oposição tem sobretudo o propósito de clarear os contornos da abordagem 
proposta: DaMatta faz uma antropologia da cultura ancorada no plano dos valores: 
"um plano de elaboração interna do sistema. Uma zona onde se processam as escolhas que irão 
determinar o curso da ação após o recebimento do estímulo (seja do passado, seja do presente) e 
antes de ser realizada a resposta", onde se traduzem "fatos e forças universais em especificações e 
identidades" ( op. cit. p.15). Na perspectiva antropológica consagrada no estudo das 
sociedades primitivas, essa zona é o ritual, essa dimensão da vida "que dá asas ao 
plano social e inventa, talvez a nossa mais profunda realidade" (idem, p.31). 
Um ponto central da argumentação é a defesa da autonomia metodológica e 
interpretativa do plano simbólico ou dos valores, concebido entretanto de uma 
forma que importa qualificar. Entre a busca de uma identidade nacional, que situa o 
livro como interlocutor de tantas outras teorias do Brasil, e a incursão do 
instrumental teórico da antropologia no exame da sociedade complexa, o conceito 
de totalidade emerge como central na perspectiva proposta. Trata-se, diz DaMatta, 
de "ver a nossa totalidade como um drama". Mas há mais. Na sua visão, a 
interpretação sociológica é necessariamente uma interpretação preocupada com 
totalidades (idem, p.18)8. Seguindo os passos de Dumont (idem, p.22), a 
compreensão sociológica requer a comparação entre princípios estruturais e 
simbólicos internos às diferentes sociedades, comparar sociologicamente é, 
portanto, comparar totalidades. É preciso primeiro conhecer a lógica inerente a um 
sistema classificatório para então compará-lo a outro. A tarefa de fundo é a busca do 
universal antropológico absoluto: localizar, através do contraste e da diferença, 
mecanismos sociológicos implícitos e explícitos para construir e ampliar um sistema 
universal de tradução (p.18). 
 
8 Peirano (op. cit, p.181) destaca três temas abordados ao longo da careira intelectual de Roberto DaMatta: o 
da fricção interétnica, sob a influência dos estudos de Roberto Cardoso de Oliveira; o da estrutura social dos 
Apinajé e das tribos Gê do Brasil Central, enquanto aluno de Harvard; e o estudo de rituais nacionais. Nessas 
três etapas, o conceito de totalidade, com a idéia de coerência interna a um sistema, é visto como chave. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
Em Carnavais, malandros e heróis, uma primeira acepção da idéia de totalidade 
remete, portanto, às idéias, tão caras à antropologia, de sistema e de relativização. 
Nessa perspectiva ‘totalizante e comparativa’, o Brasil tem dois ‘outros’ como 
interlocutores: o princípio da hierarquia expresso no sistema social das castas na 
Índia, com a autonomia histórica que distingue essa civilização; e o princípio 
igualitário, com a fundada na noção de indivíduo e na idéia de mercado. Esse 
princípio se expressaria de modo especialmente claro nos Estados Unidos da 
América que cristalizam a idéia de uma sociedade 'capitalista,ocidental, moderna'. "O 
que em outros termos - já dizia DaMatta em 1973, p.17/18 - equaciona o 'tradicional' a um 
sistema onde o todo predomina sobre as partes, tudo lhe sendo submetido; ao passo que o 'moderno' 
é o sistema onde o indivíduo é o sujeito. Sabemos que tal sistema nasceu num certomomento 
histórico, formalmente a partir do século XIX, e que daí em diante se abriu uma brecha em nossa 
formação social, brecha que permite reconhecer atomizações permanentes dentro da nossa totalidade 
social"(1973,). 
Carnavais, malandros e heróis trata do conflito e da acomodação entre esses dois 
sistemas de valores no Brasil. O Brasil é um dilema entre o tradicional holista e o 
moderno individualista. Há, de um lado, um poderoso sistema de relações pessoais 
(a família, o compadrio, a amizade, a patronagem, o parentesco, o jeitinho, 
realidades sem as quais, nesse país "ninguém existe como ser humano completo"9. 
De outro lado, há um sistema legal moderno, inspirado na ideologia liberal 
burguesa, apenas aparentemente democrático pois, feito por aqueles que têm 
relações pessoais poderosas, na verdade serve à submissão das massas. A 
combinação dos dois modelos resulta particularmente perversa: "Assim, o sistema legal 
em sociedades com esqueleto hierarquizante, não só amplia a representatividade de amplos setores, 
mas tende a sufocar esses setores por meio do jogo impessoal da lei: 'Aos amigos tudo, aos inimigos 
a lei '" (p.20). 
Há, assim, como ponto de partida para a compreensão do dilema brasileiro, 
uma visão compacta e funcional que problematiza a sociedade nacional num 
esquema de valores dualista. Na dinâmica social, entretanto, esses dois sistemas de 
valores se sobrepõem e atuam ao mesmo tempo, configurando um jogo complexo. 
Essa sobreposição, que põe em movimento a sociedade brasileira, é apreendida no 
 
9 Cabe observar aqui a justaposição das noções de hierarquia, holismo e patronagem. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
curso do livro de duas maneiras. A primeira é pelo exame dos ritos, especialmente 
de um sistema ritual ideal e tripartido — os carnavais, as paradas, as procissões, no 
qual os carnavais merecem o forte da atenção do autor — e ainda da deliciosa análise 
do rito verbal tão nosso conhecido, o "Você sabe com quem está falando?". A 
segunda é através da discussão de um sistema de personagens que encarnam 
representações ideais de trajetórias sociais que dramatizam o conflito e acomodação 
entre os diferentes valores em jogo. O ponto é exemplificado com as análises do 
conto popular 'Pedro Malasartes' e do conto erudito de Guimarães Rosa "A hora e a 
vez de Augusto Matraga', onde a literatura é usada como forma de etnografia de um 
universo social. Interessa portanto a Roberto DaMatta apreender o sociedade em 
seu movimento. Esse é um ponto importante na análise proposta O conflito entre 
os dois sistemas desdobra-se na análise de um 'triângulo ritual nacional', e revela sua 
complexidade e sutileza através de muitos mediadores, passagens, ou como diz 
muitas vezes DaMatta, de inúmeras 'brechas' e 'atomizações'. 
 Precisando o ponto da relação entre antropologia e história, DaMatta nos 
explica então que não se trata, na verdade, de excluir a história ou o fato histórico da 
análise, uma vez que os princípios sociológicos que interessa desvendar se atualizam 
por meio de relações e instituições em situações sociais concretas e históricas. Trata-
se antes de relativizar, à la Lévi-Strauss, o que uma sociedade acredita ser o seu 
motor e força dominante (p.27). Não é que o primitivo não perceba o passar do 
tempo, ou que os antropólogos não queiram perceber a dimensão temporal dos 
acontecimentos; "É simplesmente que nessas sociedades tradicionais, onde o todo predomina 
sobre as partes (…) tudo está coerentemente colocado e totalizado, numa forma de realidade social 
onde o abrangente não é o tempo percebido enquanto tal (…), mas as relações sociais que, aqui, são 
relações totalizantes" (p.22). 
 Emerge aqui um uso diferente da idéia de totalidade, que se refere agora à 
visão 'totalizante' que a sociedade tradicional tem de si mesma, e não mais à reflexão 
sociológica que deve sempre apreender os sistemas sociais a partir de seus princípios 
estruturais. Os dois usos da noção de totalidade são contíguos na argumentação: a 
perspectiva comparativa antropológica é 'totalizadora' (o que significa dizer 
relativizadora e estrutural) porque a disciplina nasceu do estudo de sociedades que 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
concebiam a si mesma como totalidades10. Porém, esses dois usos da noção de 
totalidade são contíguos num outro nível também. Para DaMatta, perceber a 
sociedade brasileira como uma totalidade no sentido sociológico é, ao mesmo 
tempo, instaurá-la como uma totalidade para o ponto de vista nativo, e aqui a 
totalidade é a nação. 
 Vejamos o ponto com mais detalhe. O interesse do livro "Não é negar que os 
ritos (…) tenham uma história, mas é tomar tais manifestações para verificar seu significado social 
e sua posição ao longo de uma ideologia que tende a negar o tempo" ( p.24). O mundo dos ritos 
e dos personagens paradigmáticos sobre o qual o livro se debruça é "a esfera que 
gostaríamos que estivesse colocada ao longo ou mesmo fora do tempo". A argumentação conclui 
com uma afirmação de base durkheimiana com ênfase funcional: "Daí porque os 
rituais servem, sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e construir o seu 
caráter" (p.24). A dimensão ritual do comportamento humano aproxima sociedades 
primitivas e sociedades complexas, expressando nessas últimas a exigência de um 
lugar ao menos onde o todo predomine sobre as partes, o coletivo sobre o 
individual. Numa outra formulação: "(…) o problema de uma sociedade complexa como a 
nossa ( isto é, um sistema orientado para múltiplas visões de si mesmo e altamente individualizado) 
é o de criar perspectivas totais e integradas de si própria; ao passo que o problema das sociedades 
tribais (…) é o de inventar alternativas que possam relativizar seus comentários sociais, os quais 
são sempre coletivos, totalizantes e, assim, absolutos (…)" (op. cit, p.239). 
 DaMatta propõe-se, de certo modo, como que a ajudar a sociedade brasileira 
a resolver o problema cruciante de uma sociedade complexa (no caso também 
dividida entre os valores conflitantes da hierarquia e do igualitarismo) a pensar-se 
como totalidade. Como a sociedade brasileira pode ser reconhecida no plano 
ideológico e cultural como uma nação? Para tanto, é preciso resolver o problema 
metodológico de propor o 'caráter nacional' de uma sociedade fragmentada, 
heterogênea e, no fim das contas, histórica, através do estudo dos rituais e dos 
personagens paradigmáticos. Diante da idéia de heterogeneidade e fragmentação 
sociais, o autor contrapõe a idéia de que o ritual, em seus múltiplos planos, é 
justamente a instância que permite totalizar. Diante da idéia de historicidade, afirma-
se a possibilidade de revelar valores decisivos de sociedades históricas através de 
 
10 Ver a respeito Marcel Mauss, 1978 e Louis Dumont, 1966,1983. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
uma análise que suspende, por meio de um artifício analítico, essa dimensão da 
temporalidade. Essas opções definem o plano específico onde se desenrola a 
reflexão do livro. Para dizer o muito que há a ser dito, DaMatta interpreta o ritual na 
esteira de sua dimensão cósmica, definidora de regiões cuja modificaçãoacarretariam, não uma revolução, mas a perda do sentido de nossa continuidade 
enquanto grupo. 
 Um ritual específico, entretanto, se sobressai. Impossível pensar o Brasil sem 
o carnaval ou o futebol: "(…) no futebol falamos de nós mesmos através do confronto com os 
outros e pelos outros ( os adversários), enquanto no carnaval falamos com nossa própria consciência 
na forma de múltiplos grupos e planos ( …) que fazem parte do nosso universo e sistema" (p.25). 
está esboçada a metonímia central do livro: Carnaval = Brasil11. Metonímia que 
tende a naturalizar em alguma medida a idéia de nação. Pois se o exame do ritual, ao 
suspender o tempo histórico, permite o resgate e a instauração de uma totalidade - 
um universo de valores nacional - a natureza histórica da noção de nação é também 
abstraída do argumento. 
 Ao pensar um sistema de valores que caracteriza o Brasil através do 
carnaval, Da Matta problematiza também a familiaridade, o senso comum, e assume, 
de modo inequívoco, a identidade de antropólogo nativo, refletindo sobre suas 
próprias crenças e experiências. Não há no livro uma etnografia do carnaval no 
sentido clássico. A análise do tema incorpora dois bons estudos de caso: os livros de 
Goldwasser (1975) e o de Leolpoldi (1978). Com base na experiência de campo em 
culturas indígenas, DaMatta já escrevera também uma bela reflexão sobre a 
pesquisa de campo em antropologia e sua dialética entre o familiar e o exótico 
(1978). Em Carnavais… entretanto, o 'campo' é, sobretudo, o imaginário social de 
um cotidiano nacional. O uso da idéia de atores sociais para designar personagens 
paradigmáticos do drama brasileiro indica esse deslocamento de um nível de 
abstração para outro, no qual a análise efetivamente se situa. Nele, DaMatta se 
movimenta, com sólida bagagem antropológica, entre fontes eruditas e populares, 
questionários de pesquisa de alunos, observação do carnaval de rua no centro do 
 
11 Esta é uma opção de leitura, que é também a de Trindade-serra e Capinan (1981). Merquior (1981) toma 
como central em Carnavais… o ensaio "Você sabe com quem está falando?" Esse rito verbal e o carnaval são 
na verdade complementares, representando respectivamente a ordem e seu avesso. Ambos igualmente 
reveladores dos mesmos princípios fundamentais. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
Rio de Janeiro, comentários sobre rotinas subitamente desbanalizadas, digressões 
generalizantes, numa cultura a que pertence e, ao mesmo tempo, desvenda. O uso 
quase literário da condição de nativo, imbricado no desenvolvimento da 
argumentação, o tom coloquial, incisivo e reiterativo, associado ao hábil manejo de 
teorias antropológicas, caracteriza o livro, e é responsável, creio, pela sua 
extraordinária criatividade. 
 
II. O carnaval entre a igualdade e a hierarquia 
A comparação do carnaval de Nova Orleans, representativo da sociedade 
norte-americana, com o carnaval do Rio de Janeiro, representativo do Brasil 
(capítulo III) assegura o nível de generalidade da argumentação na abordagem do 
ritual carnavalesco. O carnaval de Nova Orleans, localizado, é a especialidade dessa 
cidade. O carnaval do Rio de Janeiro é parte de uma festa compacta e generalizada. 
A ordem do desfile em Nova Orleans é classista, demarcando hierarquias. No Rio 
de Janeiro, o desfile é um concurso, reino do desempenho e não da sbstância 
(p.125). Nessa comparação, emerge claramente o princípio social da inversão 
próprio do rito carnavalesco. Numa sociedade igualitária, temos um carnaval 
aristocrático, numa sociedade hierarquizada e autoritária, temos um carnaval 
igualitário (p.132). O carnaval de Nova Orleans, com suas krewes aristocráticas e seu 
rei, recoloca um princípio de diferenciação num meio onde o credo oficial o exclui 
legal e juridicamente. Aqui, o carnaval, cujo símbolo é o malandro, introduz, no 
mundo fechado da moralidade brasileira, uma relativização através da multiplicidade 
de códigos e eixos classificatórios que o regulam (p.134). 
Focalizando o Brasil, e completando a percepção dessa sociedade, DaMatta 
situa o carnaval num triângulo ritual que incorpora também as paradas e procissões. 
Os três são modos básicos de ritualizar no/o mundo brasileiro. O ritual é definido 
de modo "gradualístico", por meio de contrastes com o mundo diário que definem 
pontos de vistas específicos sobre o mundo social. Ao deslocar elementos e 
relações, o ritual focaliza e traz à consciência aspectos recorrentes da realidade 
social. A atenção analítica concentra-se nas oposições básicas entre seqüências de 
ações dramáticas elaboradas em todo ato cerimonial ou ritual em compatibilidade 
com o mundo cotidiano (p.36). 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
O Dia da Pátria, o carnaval e as festas religiosas salientam aspectos críticos 
de uma mesma realidade (p.52). A parada reforça rotinas diárias de ordem e 
respeito, confirma regras do mundo das hierarquias e dos caxias. O carnaval conjuga 
posições e aproxima-se das relações jocosas do dia-a-dia. É uma construção da 
brincadeira, que suspende temporária e controladamente as regras vigentes (p.40). 
As festas religiosas, o vértice menos elaborado na análise do triângulo ritual 
proposto, são rituais de neutralização que correspondem à relação cotidiana da 
evitação. 
Carnaval e dia da Pátria, feriados nacionais, dramatizam valores globais e 
críticos da sociedade brasileira. Anualmente reencenados, os dois ritos remetem a 
temporalidades distintas, num exemplo da multiplicidade de calendários em 
operação simultânea na "sociedade complexa e industrializada". Articulam-se a 
partir de uma série de contrastes. O Dia da Pátria, na semana que lhe é consagrada, 
é um rito histórico, de sentido unívoco. O uniforme iguala e corporifica. O carnaval, 
além de nacional, é cósmico. Seu tempo, semelhante ao das procissões, é 
universalista e transcendente. A fantasia, elemento que constrói seus personagens, 
distingue e revela desejos escondidos, o passado e as fronteiras simbólicas da 
sociedade brasileira. Seu foco é o ilícito, os "interstícios do sistema". O ator é o 
povo, a vertente mais desorganizada da sociedade civil: "A ênfase é, assim, no 
encontro e no cerne mesmo da sociedade em sua vertente criativa e fundamental 
que sempre se representa pelo que nós chamamos de popular" (p.47). 
Esse privilégio do popular na discussão do nacional traz para a cena uma 
tradição marginal ao desenvolvimento das ciências sociais no país: a dos estudos de 
folclore (Cavalcanti e Vilhena, 1990 e Cavalcanti et al. 1992). Não é gratuita a 
presença na bibliografia de autores como Amadeu Amaral, Édison Carneiro, 
Câmara Cascudo, Sílvio Romero. No caso da análise do conto de Pedro Malasartes, 
o folclore é usado, via análise estrutural, como fonte popular. Por sua vez, o tema 
carnaval era, até que DaMatta o engrandecesse, assunto específico dos estudos de 
folclore, incluído nos chamados folguedos. DaMatta elabora também, em novos 
termos e nova roupagem, uma crença romântica cara a essa área de estudos: a de 
que o popular abriga a essência da nacionalidade. A própria pergunta que abre o 
livro - "O que faz o brasil, Brasil?" - pode ser lida como uma variação da 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157problemática modernista tal como formulada por Mário de Andrade, que buscava 
no folclore a "brasilidade" como necessária intermediação da participação do país no 
"concerto internacional das nações" (Moraes, 1978). 
Está certo que paradas e procissões, festas com dono, também são 
populares, mas o carnaval, a festa sem dono por excelência, o é numa medida 
superior, permitindo uma visão mais completa da nacionalidade. Festa dos 
destituídos e dos dominados, o carnaval é como "uma imensa tela social onde as múltiplas 
visões da realidade social são simultaneamente projetadas" (p.92). A polissemia carnavalesca 
conjuga representantes simbólicos (ou reais) de campos antagônicos e 
contraditórios, e é isso o que "constitui a própria essência do carnaval como ritual nacional" 
(p.49). 
Embora exista um local especial para os desfiles de escola de samba, a 'rua' , 
em seu sentido mais genérico, e em oposição à 'casa' (repressentativa do mundo 
privado e pessoal), é o local próprio do ritual. Paul Rigger (cap. II), herói de Jorge 
Amado que se sente brasileiro quando samba na rua e surra em casa a amante 
francesa que o traiu, é personagem paradigmático da equação entre sambar = rua = 
descontrole e massificação e surrar = casa = controle = autoritarismo. Essa 
oposição categórica, proposta como ordenadora do universo social brasileiro, 
possibilita o uso metonímico do carnaval do Rio de Janeiro (representado, por sua 
vez, pelo desfile das escolas de samba) como representativo do Brasil. É como ritual 
da rua e da polissemia que o carnaval carioca simboliza o carnaval nacional12. 
Na reinvenção do espaço citadino promovido pelo carnaval, a rua é 
domesticada. A decoração redefine a cidade integrando-a "num grande número de 
subdivisões, cada qual com seu coreto, sua banda e sua população. Todos brincando e se articulando 
num espaço que passa a ser pessoal, comunitário ( no sentido de Victor Turner), e sobretudo 
criativo, permitindo dar vazão a individualidades de bairro, de classe e categoria social " ( p.89). 
Uma multiplicidade de eventos ocorre simultaneamente: "Loucura, porque estamos na 
'rua', que subitamente, se torna um lugar seguro e humano. Loucura, finalmente, porque nosso 
mundo social, tão preocupado com as hierarquias e as lógicas do 'você sabe com quem está falando?' 
está oferecendo mais abertura do que aquelas em que podemos realmente entrar" (p.91). É assim 
 
12 Obviamente casa e rua são tipos ideais. A dicotomia supõe gradações, pois o desfile promove um 
fechamento no carnaval de rua. No clube, por sua vez, o fechamento é relativo, pois os ingressos são 
comprados. Dentro de cada um desses espaços se reproduz a casa e a rua. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
que, pelas ruas da Avenida Rio Branco passeia, em repentinos deslocamentos dos 
níveis da narrativa de Carnavais…, o brasileiro que "brinca o carnaval", celebra "coisas 
difusas e abrangentes, coisas abstratas como o sexo, o prazer, a alegria, o luxo, o canto, a dança" 
(p.92). 
O grande desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é examinado de 
mais perto, revelando em sua organização um traço decisivo da nacionalidade. Essas 
organizações espontâneas constituem "um modo de dialogar com as estruturas de relações 
sociais vigentes na realidade brasileira. É nisso que reside, provavelmente, sua autenticidade, sua 
permanência". Diferentemente dos blocos, as escolas ultrapassam sua base territorial. 
Focalizam o pobre, entretanto "promovem uma sistemática integração das classes no seu 
desfile altamente complexo" (p.96). 
O ritual do desfile propriamente dito tem, como elementos básicos, os 
processos de massificação e individualização dos figurantes em relação de inversão 
com o cotidiano da escola13. A estrutura formal das escolas, que gerencia a rotina 
diária e constitui seu núcleo central, é totalmente ligada às redes locais e de 
vizinhança que fundaram a organização. Nesse plano, "a escola suprime individualidades 
e fica poderosamente ordenada em torno do poder autoritário e patronal de seu presidente, como 
acentua Leolpoldi (1978) (…)". No carnaval, porém, o desfile "(…) permite o desencadear 
de individualidades enquanto grupo corporificado, em oposição a outros grupos do mesmo teor" 
(p.102/103). 
Na época da preparação do carnaval, forma-se, sobre a estrutura central, uma 
outra, mais aberta, que congrega a cúpula carnavalesca, presidentes de alas e 
componentes de modo geral. Essa outra estrutura, como a "cauda de um cometa" 
compõe uma ordem muito mais flexível e difusa, uma área voltada para o mundo 
exterior (p.103). Aqui o ponto central do capítulo II, o 'Carnaval em Múltiplos 
Planos': essa estrutura dual e conciliatória, que articula a passagem do cotidiano ao 
ritual, capaz de juntar casa (o núcleo) e a rua (a periferia), é genuinamente nacional. 
É um elemento básico na definição social das associações formadas em sociedades 
com um forte componente hierárquico (p.104). Nessas associações (o bloco, a 
 
13 A bateria, por exemplo, massifica, pois desfila como grupo compacto. Ela produz, entretanto, o que uma 
escola tem de mais particular, o seu ritmo, a sua batida. As alas, que agregam ricos e pobres, os de dentro e os 
de fora, são todas nominadas e individualizadas. Podem entrar em aberta competição mas sempre de modo 
controlado, pois devem contribuir para o todo. A figura do 'Destaque' seria uma forma extrema de 
individualismo. 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
escola, a tenda espírita, quem sabe o partido?, o clube de futebol) , uma ideologia 
igualitária é superimposta a um 'núcleo familístico, patronal, autoritário", no qual a 
ideologia é claramente hierárquica: "Não se trata pois de sociedades no sentido liberal (…). 
São de fato agremiações familísticas ou patronais, onde o espaço gerado pelo grupo é que transforma 
em gente ( ou pessoa), o indivíduo que a ela pertence. É pois, o grupo que constitui a pessoa, e não 
a união igualitária que faz o grupo"(p.104). A indivisibilidade impediria que os marginais 
do mercado de trabalho - "nossos biscateiros e empregados domésticos"- fossem vistos e 
tratados com o respeito e a consideração que merecem. Ao dividí-los em pessoas, o 
carnaval permite com que sejam de um lado explorados, e de outro considerados. 
Temos aqui, nos diz Da Matta, os ingredientes fundamentais do patrimonialismo e 
da patronagem "na sua sofisticada dialética de explorar e respeitar, desonrar e considerar". 
(p.135/136). 
Ao garantirem o controle de seu centro organizacional, ao mesmo tempo em 
que se abrem à participação de todos no ritual, as escolas de samba servem de "arena 
de mediação entre segmentos com interesses social e politicamente contrários"(p.105). A brecha 
aberta no sistema pela inversão carnavalesca concilia diferenças, produz uma 
"harmonização das desigualdades" (p. 134/135). O carnaval transforma marginais e 
inferiores (muito significativamente chamados, no Brasil, de 'indivíduos', ou seja 
alguém sem ninguém e sem posição social) em "pessoas"; e transforma as pessoas 
(que são donas do sistema) em indivíduos (uma massa indiferenciada de cidadãos 
com os mesmos direitos para cantar, dançar e brincar) 14. No ritual carnavalesco, o 
idioma hierárquico da sociedade se transforma em linguagem competitiva, igualitária 
e compensatória. 
Em sua fase mais dramática, tal qual nos ritosde passagem, o carnaval cria 
"uma realidade que não está aqui nem lá; nem fora nem dentro do tempo e do 
espaço que vivemos e percebemos como 'real'(…) uma zona de alta ambiguidade 
(…) num mundo que se especializou no controle da mudança social radical'(p.117). 
Nessa subversão temporária, e básica, a hierarquia é submetida a uma recombinação 
passageira. O carnaval, "comentário complicado sobre o mundo social brasileiro" 
 
14 DaMatta reconhece plenamente o quanto essa igualdade carnavalesca é problemática, revelando a 
dificuldade de um mundo de indivíduos no Brasil. Ela provoca surtos de hierarquização pela violência e pelo 
rito verbal do "Você sabe com quem está falando? (p.135) 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
(p.68), dramatiza e acomoda a tensão entre o princípio hierárquico e o princípio 
igualitário ambos cruciais na sociedade nacional. 
 
II. Conclusões 
Carnavais, malandros e heróis, original e ousado, tem grande poder de persuasão. 
No que tange a análise substantiva do carnaval, esse ritual emerge claramente como 
um dispositivo simbólico capaz de articular redes sociais amplas e diferenciadas. 
Essa capacidade de mediação, ligada ao princípio da inversão e ancorada na 
dimensão cósmica e popular e na polissemia da festa carnavalesca, articula-se na 
análise de Roberto DaMatta a uma pergunta sobre um Brasil que se deseja uma 
"totalidade". O carnaval torna-se desse modo o espelho de uma nacionalidade, cujo 
conteúdo cultural se revela no exame da relação entre cotidiano e ritual na 
organização do carnaval carioca. 
É inevitável, nessa perspectiva, o esmaecimento de dimensões básicas da 
existência das chamadas sociedades complexas: a diversidade e a historicidade15. É 
como uma fotografia tirada num momento especialmente revelador de um drama, 
que não nega todos os demais momentos, mas reserva-se o direito dizer alguma 
coisa de especialmente importante. Quando DaMatta diz, à la Durkheim, que o 
ritual permite totalizar, ele está dizendo que, para além da fragmentação e da 
heterogeneidade, é lá que podemos encontrar um sistema de valores, ou melhor, o 
movimento gerado pelo conflito entre sistemas de valores que define a 
nacionalidade. É preciso totalizar justamente porque a sociedade é heterogênea. 
Feita a operação, a heterogeneidade esmaece. A realidade diferentemente 
apreendida, lida e dramatizada no triângulo ritual nacional ou num sistema de 
personagens característicos é, afinal, sempre a mesma realidade: a sociedade 
hierárquica que incorpora de forma perversa os valores democráticos modernos, 
aquilo que faz o brasil, Brasil. Lá estamos nós, capturados num retrato revelador, 
com nossos carnavais, malandros e heróis, com nossa ambigüidade, violência e 
conciliação. Numa leitura estática, a pergunta sobre a nacionalidade, aliada à 
intenção generalizante da abordagem e a suspensão consciente da historicidade e 
 
15 Vale notar que é apenas na década de 1980 que os estuds antropológicos sobre ritual voltarão sua atenção 
para a relação entre história e estrutura. Ver Kelly J.D. e Kaplan, Martha (1990). 
In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura 
Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 
diversidade, torna o carnaval o símbolo integrador de uma imagem de Brasil na 
coerência aprisionante de um dilema. Porém, esse dilema, feito da superposição dos 
sistemas de valores hierárquico e igualitário, é sobretudo a fonte do movimento da 
sociedade brasileira, que se resolve desdobrando-se num sistema ritual e simbólico 
altamente criativo e original. Até quando nos debateremos nos quadros desse 
dilema? Como reinventaremos mudança e permanência no tempo que há sempre de 
vir? Carnavais… é sempre um novo convite à leitura, a muitas leituras. 
 
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